MELANCOLIA E RESISTÊNCIA EM MILTON HATOUM · Melancolia y resistencia en Milton Hatoum. 2013....

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADO EM LETRAS VERIDIANA VALENTE PINHEIRO MELANCOLIA E RESISTÊNCIA EM MILTON HATOUM. BELÉM - PARÁ 2013

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADO EM LETRAS

VERIDIANA VALENTE PINHEIRO

MELANCOLIA E RESISTÊNCIA EM MILTON HATOUM.

BELÉM - PARÁ

2013

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADO EM LETRAS

VERIDIANA VALENTE PINHEIRO

MELANCOLIA E RESISTÊNCIA EM MILTON HATOUM.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Pará, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Estudos Literários Orientadora: Profª. Drª. Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja.

BELÉM - PARÁ

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada à fonte.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará

Pinheiro, Veridiana Valente.

Melancolia e resistência em Hilton Hatoum/ Veridiana Valente Pinheiro; orientadora Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja. – Belém-Pará, 2013.

Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará. Área de Concentração: Estudos Literários

1. Literatura brasileira. 2. Ditadura – Brasil. 3. Melancolia. 4. Resistência. 5. Violência. 6. Trauma. 7. Milton Hatoum. CDD 869.935

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PINHEIRO, Veridiana Valente. Melancolia e resistência em Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, para obtenção do título de Mestre em Letras.

Banca examinadora

Profª. Drª. Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (Presidente)

Instituição: Universidade Federal do Pará

Julgamento: _________________________

Assinatura:__________________________

Prof.ª Dr.ª Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões

Instituição: Universidade Federal do Pará

Julgamento: _________________________

Assinatura:__________________________

Prof. Dr.º Rauer Ribeiro Rodrigues

Instituição: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Julgamento: _________________________

Assinatura:__________________________

Apresentado em: ____/____/____

Conceito: __________________

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A Deus, À minha família. Ao meu esposo Humberto de Castro Junior, meus filhos, Antônio Nahum Neto, Bruna Maria Nahum, Fernanda Castro, Humberto Neto e a minha querida orientadora Tânia Sarmento-Pantoja, que tanto contribuíram para a superação dos obstáculos encontrados nesta trajetória, mantendo os laços de dedicação e amor.

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AGRADECIMENTOS

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de estudos que me concedeu durante os dois anos de estudo e pesquisa.

A Prefeitura Municipal de Abaetetuba, em particular a Secretária Municipal de Educação: Secretário Jefferson Felgueiras de Carvalho; Diretora de Ensino Marineide Ribeiro, pela compreensão e colaboração.

A Câmara de Vereadores da Prefeitura Municipal de Abaetetuba, na pessoa do Vereador Alcídes Negrão (Chita) por sua colaboração nesse percurso.

Aos professores Tânia Sarmento-Pantoja, Silvio Holanda, Izabela Leal, Antônio Máximo, Socorro Simões, Germana Sales, Marília Ferreira, Luis Heleno, pelos conhecimentos e experiências positivas que muito contribuíram para minha formação, seja por suas respectivas disciplinas na Pós-graduação ou pela excelente administração profissional.

Ao professor Rauer Rodrigues, pelo gentil aceite em participar da minha banca de defesa.

Aos professores Silvio Holanda e Socorro Simões, pelo gentil aceite do convite para participar da minha banca de qualificação, e pela generosa leitura que fizeram do meu trabalho.

Aos professores Maria Rita Duarte, Abílio Pacheco, Augusto Sarmento-Pantoja, Deurilene Sousa, pelas colaborações feitas à minha pesquisa durante os encontros do Projeto Narrares.

A professora Tânia Sarmento-Pantoja, desta vez pelo respeito, dedicação, seriedade e competência com que orientou minha pesquisa de mestrado junto ao projeto “Narrares”.

Aos colegas da Pós-graduação, em especial, a Suellen, Regina, Edvaldo e Breno, pelas possibilidades e dicas, ainda que em um tempo curto, de um mundo enlutado, que às vezes a pesquisa provoca.

A amiga Vivianne da Cruz Vulcão pela dádiva de sua amizade e pelas sugestões oferecidas ao longo do curso de Mestrado.

À Profª Mara Rita Duarte, Profª Socorro Simões, Profª Deurilene Sousa, Prof Abílio Pacheco, Prof Carlos Augusto Costa, Prof Augusto Sarmento-Pantoja, Profª Katyane Marinho, Sonia Barreto, pelo respeito e admiração que tenho por cada um, pelo incentivo e pelas conversas sobre literatura.

A professora Deurilene Sousa, desta vez pelo respeito atenção com leu o meu trabalho. A professora de psicologia Ana Cleide Guedes Moreira, pelas contribuições e

ensinamentos sobre psicanálise. Ao meu esposo Humberto de Castro Junior, pela compreensão, carinho, amor, e aos

filhos Bruna Maria, Fernanda, Antonio Neto, Humberto Neto, pelo lar aconchegante que construímos.

As amigas Juracélia, Eliana, Daniele, Marineide, Fátima, Nazaré e Alice, que tanto me apoiaram nesse percurso.

A toda minha família pai (Nezito Pinheiro), mãe (Luciana Pinheiro), irmãos: Nielson, Nelielson, Nizielson, Neilson, Laudelina, Lucilene, Luciane, Vladir, Dilson, sobrinhos, sobrinhas, cunhadas, cunhados e também à minha sogra Julia Tuji, pelo incentivo dado em todos os momentos da minha vida.

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“O passado sempre é novo. Ele se altera constantemente, assim como a vida segue em frente. Partes da vida que parecem ter afundado no esquecimento reaparecem”

“O presente conduz o passado como se fosse membro de uma orquestra [...] Assim, o passado parece às vezes curto, às vezes longo; às vezes soa, às vezes cala”

Italo Svevo

“Lápis e papel escrevem o que a imaginação quer” Nezito Pinheiro

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RESUMO

PINHEIRO, Veridiana Valente. Melancolia e resistência em Milton Hatoum. 2013. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará.

Esta dissertação tem como objetivo analisar o romance Cinzas do Norte (2005), de Milton Hatoum, verificando quais são as relações das categorias estéticas de melancolia e resistência com o contexto histórico da Ditadura Militar, de 1964, no Brasil. Partindo da ideia de que a teoria com a qual estamos lidando é marcada pela melancolia segundo Walter Benjamin. Nesse sentido, examinamos como a arte, que é parte de composição da narrativa e, também as referências memorialísticas, utilizadas como estratégias ficcionais de resistência ao regime de repressão, em particular, ao autoritarismo, servem de base para problematizar os regimes de imposição instaurados naquele período. Com base em algumas abordagens teóricas, relacionadas à resistência, à melancolia e à memória. Mediante essas abordagens verificamos quais consequências estão ligadas ao período ditatorial, e como elas fazem parte da compreensão do sujeito melancólico. Para dar conta da teoria relacionada à melancolia utilizamos os textos de autores como: Sigmund Freud (1976), Maria Rita Kehl (2009), Julia Kristeva (1989),Walter Benjamin (1985), Susan Sontag (1976), Suzana Lages (2007). Para os estudos relacionados à resistência e a memória, utilizaremos os textos de Alfredo Bosi (2002), Jacques Le Goff (2003), Paul Ricœur (2007) e Aleida Assmann (2011), servirão de base para nossas reflexões.

Palavras-chave: Ressonâncias. Resistência. Melancolia. Memória. Estética.

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RESUMEN

PINHEIRO, Veridiana Valente. Melancolia y resistencia en Milton Hatoum. 2013. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará.

Esta tesis tiene como objetivo analizar las Cinzas do Norte (2005) romance, Milton Hatoum, comprobando cuáles son las relaciones de las categorías estéticas de la melancolía y la resistencia con el contexto histórico de la dictadura militar de 1964, en Brasil. Partiendo de la idea de que la teoría con la que estamos tratando es marcada por la melancolía según Walter Benjamin. En consecuencia , examinamos cómo el arte, que es parte de la narrativa y la composición, también memorialísticas referencias utilizadas como estrategias de ficción de la resistencia al régimen de represión, en particular, el autoritarismo, la base para cuestionar los sistemas de gravámenes que trajeron período. Sobre la base de algunos de los enfoques teóricos relacionados con la resistencia, la melancolía y la memoria. Através de estos enfoques que rastrean consecuencias están vinculados a la dictadura, y la forma en que son parte de la comprensión del tema melancólico. Para tener en cuenta la teoría de la melancolía relacionada con el uso de textos de autores como Sigmund Freud (1976), Maria Rita Kehl (2009), Julia Kristeva (1989), Walter Benjamin (1985), Susan Sontag (1976), Suzana Lages (2007). Para los estudios relacionados con la resistencia y la memoria , vamos a utilizar los textos de Alfredo Bosi (2002), de Jacques Le Goff (2003), Paul Ricoeur (2007) y Aleida Assmann (2011), forman la base de nuestras reflexiones. Palabras clave: Resonancias. Resistencia. Melancolía. Memoria. Estética.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1: Instituto Amazônia, construído pelos imigrantes japoneses ............................ 64 Figura 2: Barracão onde ficava a fibra da juta, na Vila Amazônia ................................. 65 Figura 3: Abertura dos Portos do Amazonas ao Comércio Mundial ............................... 72

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10 CAPÍTULO 1: O mundo de Mundo .................................................................................. 15 1.1. O romance Cinzas do Norte ......................................................................................... 15 1.2. Recorrências na fortuna crítica .................................................................................. 18 CAPÍTULO 2: Mundo melancólico................................................................................... 27 2.1. A melancolia e o campo psicanalítico ......................................................................... 28 2.2. A melancolia e o campo filosófico ............................................................................... 43 CAPÍTULO 3: O relato (em Cinza) de Lavo .................................................................... 55 3.1. Tempo e Memória: movimentos em Cinzas do Norte ................................................. 55 3.2. Cinzas do Norte como metaficção historiográfica ....................................................... 63 CAPÍTULO 4: Melancolia e resistência: meandros em Cinzas do Norte.. ....................... 76 4.1. Mundo como artista melancólico ................................................................................ 76 4.2. Da melancolia à arte como resistência ........................................................................ 85 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 90 6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 91 6.1. Textos literários ........................................................................................................... 91 6.2. Estudos Literários e Estudos de Teoria da Memória ................................................. 91 6.3. Fortuna crítica de Cinzas do Norte ............................................................................ 93 6.4. História e Teoria da Melancolia ................................................................................. 94 6.5. Outros materiais .......................................................................................................... 95 6.6. Pesquisa em bases de dados virtuais ........................................................................... 96 6.7. Material consultado e não citado ................................................................................ 97

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INTRODUÇÃO

[...] A verdade e a memória Fazem força para falar

[...] O presente tropeça no passado

E segue machucando Mirando o horizonte

Fragmentos da música: Memórias da Resistência, da banda Mulambo Tu1

Este trabalho tem como perspectiva central a análise do romance Cinzas do Norte

(2005), de Milton Hatoum, com base em uma abordagem que mescla filosofia, história e

teoria literária com vistas à analise dos efeitos de melancolia e resistência que avaliamos estar

presentes no romance.

A análise centra-se em investigar de que forma os traumas sofridos, em particular os

que o personagem Mundo vivenciou, são reelaborados pela arte produzida pelo protagonista,

na medida em que esta se torna mediadora de uma voz que fala por metáforas, objetivando

com isso uma projeção reflexiva, no futuro, de um passado recente. Pois, em síntese, em

Cinzas do Norte há uma arte, arte de Mundo calcada na problematização da violência, que faz

força para falar “a verdade e a memória”, conforme se observa na epígrafe que abre esta

introdução.

De forma específica, tratamos das relações entre a constituição do personagem e

protagonista Mundo e as implicações históricas e políticas2, que estão presentes no romance.

Além dessas, nos detemos também no discurso elaborado pelo narrador Lavo e a melancolia

que norteia o comportamento de Mundo como artista. Entendemos igualmente que por se

tratar de uma melancolia criativa, incide a partir, dela o desencadeamento de movimentos de

resistência. Para situarmos melhor o que acabamos de problematizar se fazeram necessárias

algumas pontuações acerca da estruturação da narrativa do romance.

Assim sendo, em primeiro lugar a questão do tempo da narrativa. Cinzas do Norte

possui três narradores: Lavo, Ranulfo e Mundo, dentre eles o mais evidente é Lavo, pois é ele

que agrega o relato dos outros dois narradores ao seu próprio relato. Essa estratégia ficcional

provoca uma oscilação do tempo da narrativa. Dessa forma, há um tempo de construção do 1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=d5qlHTjiJN8>. Acesso em: 06/07/2013. 2 Há várias referências oriundas de matérias historiográficas diversas: A imigração Japonesa, a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar de 1964.

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relato no romance: o momento em que Lavo erige a rememoração, ou seja, constrói de fato a

narração. É a partir desse tempo de rememoração, que ocorrem referências às várias matérias

historiográficas. Segundo, há o tempo em que Mundo ainda se encontra vivo, que é o tempo

do pós-guerra e da Ditadura Militar de 1964, no Brasil. Esse tempo no qual Mundo está

imerso e mais a relação conturbada com o pai serão fundamentais para entendermos porque

Mundo pode ser visto como um personagem melancólico. Com isso, uma matéria

historiográfica específica, justamente a da Ditadura Militar de 1964, surge como elemento

norteador do assunto que tratamos no decorrer deste trabalho: a melancolia.

Destarte Cinzas do Norte (2005), obras como Estorvo (1991), Benjamin (1995) e outras,

foram produzidas fora do período ditatorial, mas têm em seu núcleo elementos norteadores,

que tematizam a melancolia voltada ao trauma provocado pela violência do estado ditatorial.

Essas obras, além de problematizarem a melancolia e a violência, também elaboram

esteticamente a violência, através de estratégias ficcionais próprias da literatura e isto se dá

em função do movimento de apropriação dos dados históricos.

Verificamos que o romance de Milton Hatoum está inserido neste contexto, na medida

em que as estratégias de composição da narrativa se configuram a partir de uma relação

conflituosa entre pai e filho. Tal relação é reproduzida pelo narrador através do processo de

apropriação e atualização do discurso de ambos (pai e filho), via discurso direto. Assim, o

romance permite um olhar minucioso, sobre a história, atualizada pela memória dos

personagens.

Ressaltamos que essa nucleação nas cenas de violência tem como principal perspectiva

a crítica ao autoritarismo, em particular a face cruel de todo agente autoritário. Em Cinzas do

Norte, o agente autoritário central é Trajano (Jano), o pai de Mundo, que por diversas vezes

tortura Mundo quando este ainda é criança, o envia ao exército no início da juventude para

servir na selva e mantém com o filho na fase adulta uma relação fundada na inferiorização do

outro. A personagem Trajano é construído com base em elementos comuns à figura do agente

autoritário: narcisista, arrogante, sádico e cruel. Vale ressaltar que outros agentes autoritários

estão presentes como personagens no romance: Delmo, Marechal Presidente, Bombom de

Aço, Professor de educação física, Coronel Zanda, Albino Palha, Tenente Galvo, Heródoto –

todos, ligados de alguma forma a Trajano Mattoso, marcam a existência de Mundo justamente

a partir da face violenta que expõem. Eles se tornam não somente personagens do romance;

são também personagens dos objetos artísticos produzidos por Mundo.

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Assim, Mundo, ao reelaborar a violência por meio da arte, apresenta dois aspectos

importantes a serem refletidos: o primeiro, diz respeito aos traumas insuperáveis, provocado

pelo torturador, que neste caso é seu próprio pai; o segundo, são os efeitos que esses traumas

causam na personagem, sendo que esses efeitos são percebidos, principalmente, na relação

estabelecida entre pai e filho, que sempre culmina em confronto e, consequentemente, em

violência, seja da parte do pai que não aceita as escolhas do filho, seja pelo filho que reage

utilizando a arte que produz para enfrentar o pai.

O contexto conflituoso gera na personagem Mundo uma consciência de perda e de luto

muito intensa. Mundo perde a convivência com a mãe e também perde a convivência com o

pai, porque de certa forma o pai de Mundo morre metaforicamente para ele e isto se configura

como perda. Além disso, a personagem também lamenta, em vários momentos, uma infância

perdida, maculada pela violência do pai. O luto de Mundo, em relação a essas perdas, se faz

em função de um movimento catártico, na medida em que ele cria objetos artísticos –

desenho, pintura, instalação. A perda, o luto e mesmo o movimento catártico podem ser

compreendidos como aspectos inerentes a um comportamento melancólico. Estudos de

Sigmund Freud e Walter Benjamin, entre outros, nos permitem tal possibilidade de leitura.

Portanto, a melancolia funda o processo criativo de Mundo.

Nesse processo, o narrador (Lavo) descreve e reelabora os eventos traumáticos sofridos

por Mundo. Isso ocorre através da memória de suas vivências com o amigo. Essas

reelaborações acontecem pelo discurso do narrador e pelas reiterações constantes das

descrições das cartas, dos objetos artísticos produzido por Mundo, da vida do personagem,

tanto em relação às vivências familiares, quanto às com a sociedade. Com isso, observamos

uma narrativa fragmentada, em função da constituição do espaço e do tempo, presentes na

fala do narrador.

Outro elemento presente na narrativa, e significativo para o processo de fragmentação, é

a alternância do foco narrativo, que se compõe, como já ressaltamos, de três narradores. O

primeiro é Lavo, que é quem narra as andanças de Mundo desde a infância até a morte; o

segundo é Ranulfo, visto como o narrador de algumas das cartas; e o terceiro é Mundo, que

aparece no romance como narrador. Em duas situações observadas no capítulo 1, do romance

de Milton Hatoum.

Nossa hipótese central é a de que Mundo é uma personagem melancólica, inclusa em

um universo social e histórico marcado por várias formas de violência. Mundo, ao reelaborar

esse universo agônico como arte, provoca na narrativa de Cinzas do Norte pelo menos dois

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grandes movimentos de reação, quais sejam: 1) a própria produção dos objetos artísticos por

parte de Mundo; 2) a elaboração da memória de teor testemunhal realizada por Lavo. A

presença da melancolia na constituição da personagem Mundo e a elaboração da memória da

vida de Mundo por Lavo surgem como elementos norteadores para compreender as formas de

resistência que se opõem ao regime autoritário e, de modo mais amplo, a comportamentos

autoritários em geral.

Por ser uma pesquisa na área de literatura comparada levamos em consideração o

contexto de produção da obra. No que concerne aos procedimentos metodológicos, realizamos

pesquisa bibliográfica, com vistas a identificar se havia, na fortuna crítica, elementos

caracterizadores da violência, da melancolia e outras categorias afins, com vistas a uma

melhor delimitação do problema que elegemos. A pesquisa bibliográfica abrangeu também o

levantamento minucioso de estudos no âmbito da história e da teoria da melancolia. Com

vistas a uma compreensão mais elaborada acerca da melancolia, participamos durante alguns

meses do grupo de estudo em psicanálise3. Procedemos ao tratamento dos dados, em que

procuramos apresentar o personagem Mundo enquanto sujeito melancólico. Por fim,

analisamos o modo pelo qual o artista melancólico, gera uma arte comprometida com uma

reflexão ética acerca do autoritarismo, o que faz Cinzas do Norte uma narrativa de resistência.

Considerando essas etapas, organizamos a dissertação em quatro capítulos.

No primeiro, intitulado O mundo de Mundo, apresentamos o enredo do romance,

chamando atenção para a melancolia das personagens e os elementos mais recorrentes

encontrados na fortuna crítica do romance estudado. Com base na localização do problema,

traçamos o nosso percurso de leitura para os próximos capítulos.

No segundo capítulo, denominado Mundo melancólico, trabalhamos teoricamente a

melancolia mediante dois campos de estudo: o psicanalítico, que serviu de base para a

compreensão do conceito de melancolia, e o filosófico, a partir do qual consideramos

principalmente o universo social e histórico do personagem Mundo, marcado por várias

formas de violência. Assim, trouxemos à investigação textos de estudiosos oriundos desses

dois campos, como Maria Rita Kehl, Sigmund Freud, Julia Kristeva, Jaime Ginzburg, Walter

Benjamin, Suzana Lages e Susan Sontag.

No terceiro capítulo, denominado O relato (em Cinza) de Lavo, teorizamos sobre a

categoria resistência, ao mesmo tempo em que analisamos as relações entre tempo e memória,

e também os elementos que constituem Cinzas do Norte como metaficção historiográfica. 3 No Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, da Universidade Federal do Pará, coordenado pela professora Doutora Ana Cleide Guedes.

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Essas relações possibilitaram pensar os arrolamentos desses elementos que compõem o tempo

relatado por Lavo. Os trabalhos de Peter Burke, Linda Hutcheon e Aleida Assmann

contribuíram para esta abordagem.

No último capítulo, denominado Melancolia e resistência: meandros em Cinzas do

Norte, nossa análise se detém em averiguar como o mundo melancólico, sofrido e enlutado é

expresso nas pinturas e instalações de Mundo, e também como a melancolia, enquanto

categoria estética, pode ser vista como elemento de resistência. Para tanto, partimos da

possibilidade de ser Cinzas do Norte uma metaficção historiográfica, pois essa condição

justifica vários aspectos inerentes à escrita do romance, entre os quais destacamos, no capítulo

anterior, um diálogo intertextual com matérias historiográficas distintas, o caráter

autorreflexivo apresentado pela narrativa desse romance, e principalmente os movimentos

possibilitados pela presença de um ethos melancólico.

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CAPÍTULO 1: O mundo de Mundo

“Meu verso é sangue, volúpia ardente Tristeza esparsa, remorso vão

Dói-me nas veias amargo e quente [...]

Eu faço versos como quem morre”. Manuel Bandeira4

Este capítulo foi elaborado tendo em vista duas etapas: a primeira, diz respeito à

apresentação da narrativa do romance. A segunda concerne a um levantamento dos temas

recorrentes na fortuna crítica do romance Cinzas do Norte.

1.1. O romance Cinzas do Norte

A narrativa do romance Cinzas do Norte (2005), de Milton Hatoum, se passa na Manaus

das décadas de sessenta e setenta, e se estende para outras cidades e países que representam os

lugares onde Raimundo (Mundo) morou. No Brasil, por exemplo, além de Manaus, ele

também viveu no Rio de Janeiro. Fora do país, a personagem residiu um longo tempo de sua

vida em Berlim e Londres. Essa perambulação se dá em função da trajetória que Mundo faz

em sua carreira como artista.

Na constituição do romance há três narradores: Lavo, Ranulfo e Mundo. Lavo é o

narrador principal, pois é ele quem narra toda a vida de Mundo; Ranulfo é o narrador das

cartas. Vale ressaltar que as cartas são relevantes no romance porque elas desvendam as

particularidades da relação de Alícia e Trajano, pais de Mundo. As cartas também elucidam as

experiências extraconjugais de Alícia com Ranulfo, além disso, elas revelam o grande segredo

do romance que envolve a paternidade de Mundo. Ranulfo em uma das cartas faz referência a

Alícia quando diz: “fiquei escondido em um matagal, enciumado, pensando se havia alguém,

um homem dentro da casa: a vigília dos que se entregam a uma loucura mansa e melancólica”

(HATOUM, 2010, p. 40).

Mundo assume a perspectiva narrativa apenas no capítulo dezesseis e no epílogo5. Ele

apresenta um relato de tristeza, melancolia, desfalecimento e agonia antes de sua morte. Lavo

4 Disponível em: http://www.escritas.org/pt/manuel-bandeira. Acesso em: 19/08/2013. 5 Cabe a Lavo narrar à história do amigo, costurando-a ao conteúdo das cartas que Ranulfo escreve, pedindo-lhe que o publique, em memória de Alicia e de Mundo. A carta de Mundo serve-lhe de epílogo. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/Vertentes34/Shirley%20Carreira.pdf>. Acesso em: 20/12/2012.

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e Mundo tornaram-se amigos na infância e a amizade entre eles se estendeu através dos anos,

indo além da morte de Mundo. Vejamos, no próximo fragmento a fala da personagem Mundo:

Brixton, Londres[,] 8-18 de outubro, 1977 – Malditos papeletes, Lavo! E malditas palavras emperrada, frases travadas ... Desenhar é minha sina, escrever é um martírio... Como será para os Advogados? Quem redige os autos de um processo: vocês ou os escribas? Se eu não começar a rabiscar agora, nunca mais... Vou escrever em ritmo de conta-gotas, meia página por dia. Europa: três anos aqui e apenas dois amigos [...] (HATOUM, 2010, p. 179).

É o relato de Lavo que vai agregando à narração dos outros narradores. Essa demanda

por memória se dá em função da amizade de Lavo com Mundo. Para tanto, Lavo assume um

papel de narrador e editor porque é ele que adiciona a fala dos demais e é por isso que a

narrativa é descrita preferencialmente do ponto de vista de Lavo. Logo, ficamos sabendo tudo

de sua perspectiva. É Lavo quem conta a história de Mundo desde a infância até a morte,

relatando as atrocidades e angústias que Mundo sofre durante sua vida. Essas atrocidades

estão relacionadas à não aceitação do pai Trajano (Jano) em relação à arte que o filho tanto

lutara para promover e desenvolver. A partir do conflito entre pai e filho, observamos que o

narrador do romance se constitui pelo que Gérard Genette (1995) define como homodiegético

e intradiégetico. Observamos que essa estratégia tem como efeito o relato de teor testemunhal,

que condiciona a perspectiva de Lavo.

Lavo é um personagem órfão e pobre, que com muito esforço e a ajuda de Ramira – a

tia, e de Trajano, consegue formar-se em Direito. Ele é criado tanto por Ramira, quanto por

Ranulfo, o tio e amante de Alícia, mãe de Mundo e esposa de Jano. A família de Mundo é

rica, eles são donos da Vila Amazônia, colônia japonesa próxima da cidade de Parintins,

construída para plantação e cultivo da juta, por volta de 1930.

As personagens da narrativa representam uma vida cinzenta e triste, são projetos de

vidas fracassadas; estão ligadas por um grande segredo, que se revela ao final da narrativa.

Embora o tempo da narrativa se inicie focando a vida da personagem Mundo, a partir de sua

morte a obra tematiza, entre outras coisas, a traição e o ciúme, a construção da cidade,

obsessões e aberrações, melancolia e apatia.

São as décadas de sessenta e oitenta que marcam historicamente a obra, anos

compreendidos pela história da política brasileira como sendo os Anos de Chumbo, período

em que o Governo Militar esteve mais violento, com presença marcante na narrativa a partir

de várias referências a datas e situações. Um exemplo é o ano da carta enviada pelo

personagem Mundo: “Brixton, Londres[,] 8-18 de outubro, 1977” (HATOUM, 2010, p. 179).

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O diálogo com a história da ditadura de 1964 também repercute nos espaços descritos no

romance. Esses espaços aludem a um grande movimento de reação literária, tendo em vista

três aspectos resultantes de imposições: os sociais, os culturais e os políticos, ocorridos na

Amazônia, no período da Ditadura Militar. Na narrativa são poucas as vozes que se levantam

e reagem. Mundo, por exemplo, é um deles, pois, quando decide ir em busca de seus ideais,

utiliza-se da arte de pintar como meio de reação.

Diferente de Ranulfo, que é um personagem composto como o típico vagabundo

brasileiro. Apaixonado por Alícia, Ranulfo passa a vida voltado para as conquistas amorosas,

acreditando apenas naquilo que lhe convém acreditar. Cobiça, submissão e resignação são

sofrimentos que caracterizam, por sua vez, Ramira, pois ela, ao alimentar um amor platônico

e dolorido por Trajano, vive uma vida de intenso pesar. Macau, chofer da família Matoso e

Arana, artista e pai biológico de Mundo, constituem vidas que valem o quanto pagam por

elas, ou seja, Macau vende sua fidelidade a Trajano por pouco e Arana vende a fantasiosa arte

que faz, como produto turístico de inovação na Amazônia por muito. Fogo, cachorro de

Trajano, é amigo fiel, de todas as horas.

E assim, as vidas das personagens vão sendo construídas totalmente sem esperança,

alguns reagindo, seja por apatia ou melancolia, utilizando seus últimos suspiros e coragem, a

partir do que lhes resta, ou nem tanto, pois algumas personagens apenas se colocam em

posição paciente de aceitação. Outras dessas vidas acabam em cinzas, em função da não

concretização de seus ideais, uma vez que o norte do título da narrativa, que seria a direção

metaforizada de um lugar melhor, passa a ser um lugar sem direção alguma.

A história de Mundo é cinzenta e triste, representada por um percurso apático e

enlutado, que vai se construindo no decorrer da narrativa, em projeto de uma vida fraturada e

fracassada, consequência das imposições despóticas de Trajano Matoso. Sua reação vem de

suas habilidades criativas como artista. A ênfase neste trabalho é ao movimento itinerante e

dialético tomado por Mundo, pois a personagem, ao mesmo tempo em que reage às

imposições do pai (Trajano), também se mostra em condição de definhamento total, que

culmina com sua morte.

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1.2. Recorrências na fortuna crítica

Feita a apresentação do “mundo de Mundo”, apresentamos estudos direcionados ao

projeto estético e literário de Milton Hatoum, com ênfase para alguns a respeito do romance

Cinzas do Norte.

No que diz respeito à obra de Milton Hatoum, identificamos trabalhos que tematizam o

espaço amazônico, a ideia de ruína, a cidade, a memória, a identidade e as relações com o

mundo.

Em Entre Construções e Ruínas: uma leitura do espaço amazônico em romances de

Dalcidio Jurandir e Milton Hatoum, José Alonso Torres Freire (2006) identifica as

representações do espaço amazônico. O autor dedica um capítulo da tese “ao espaço e

opacidade da memória de Milton”, sendo que já no primeiro capítulo há um subtópico

chamado “As Cinzas do Norte”, em que ele se propõe analisar as configurações do espaço

amazônico, com interesse de inserir o romance Cinzas do Norte em uma tradição literária de

ambientação amazônica. De acordo com Freire,

as principais questões a esclarecer em Cinzas do Norte referem-se ao impacto desse mundo em transformação: de que maneira os personagens são afetados pelas mudanças drásticas sofridas pela cidade após a instalação das fábricas da zona Franca? Como reagem a essas mudanças e se posicionam na nova configuração? (FREIRE, 2006, p. 203).

Alguns apontamentos da categoria melancolia, objeto de estudo de nosso trabalho, são

apresentados por Freire em sua tese. A melancolia observada por ele baseia-se no “espaço do

passado irremediavelmente perdido” (FREIRE, 2006, p. 205), verificada na elaboração da

narrativa que norteia a personagem Alícia, descrita pelo narrador Lavo.

Para Freire, Milton Hatoum

confere uma visão alterna ao mundo amazônico urbano por ele recriado, marcada pelo desenraizamento de seus personagens e de seus narradores em primeira pessoa, que tentam reconstruir, a partir dos fragmentos de sua memória, o passado irremediavelmente perdido, Cinzas do Norte (2005), expande o universo romanesco do autor, incluindo cenas do Rio de Janeiro e em cidades da Europa, e é uma marga visão do conflito de gerações, em que Mundo o rebelde filho do empresário Jano, que tinha planos para que ele continuasse seus negócios, torna-se um artista em processo de destruição e sai do país para buscar a liberdade longe do pais. Em todos esses romances há uma visão critica dos efeitos destruidores de um “progresso” desordenado que desfigura completamente a cidade de Manaus afetando a todos os personagens de alguma maneira. [...] o romance acompanha o percurso de

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aprendizagem [da] personagem desgarrada que é Mundo, aproximando-se do chamado “romance de formação”, tanto pela recusa da realização burguesa de continuar a “obra” do pai, quanto pela escolha do personagem do caminho da arte como resistência (FREIRE, 2006, p. 159-207).

Para elucidar tal aspecto apontado por Freire, constatamos que, segundo o estudo de

Wilma Patrícia Maas6, o romance de formação poderá ser chamado de

Bildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade [...]. Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da bela formação do homem [...].

De acordo com Maas, é a primeira parte da definição dos estudos de Karl Morgenstern,

que tem como resultado as relações entre a epopeia antiga e o romance burguês, mostrado por

Morgenstern, pois o

protagonista agindo em direção ao exterior, provocando alterações significativas no mundo; o romance, por sua vez [mostra] os homens e o ambiente agindo sobre o protagonista, esclarecendo a representação de sua gradativa formação interior. Por isso mesmo, a epopeia apresentará antes os atos do herói com seus efeitos exteriores sobre os outros; o romance, ao contrário, privilegiará os fatos e os acontecimentos com seus efeitos interiores sobre o protagonista [...] (MORGENSTERN, 1988, p, 66 apud MAAS, 2013, p. 01).

Achamos interessante levantar este aporte a respeito do romance de formação

decorrente da necessidade de citar no transcorrer deste trabalho as alterações significativas e

singulares que ocorrem no mundo da personagem Mundo.

A tese Expedientes metadiscursivos na articulação e categorização de práticas

comunicativas em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, de Renato Rezende (2010),

defende que o uso de procedimentos metadiscursivos é presidido, no romance de Hatoum, por

uma reflexibilidade do fazer textual que compreende a própria escrita da obra também como

prática comunicativa. Para Rezende,

a obra de Milton Hatoum tem atraído olhares de diferentes perspectivas teóricas [...] estudos sobre O Relato de um certo Oriente e literatura de imigrantes[assim como] trabalhos que inter-relacionam memória, ficção e história na obra do autor, [...]ocupa uma posição privilegiada no campo da produção ficcional brasileira contemporânea, por seu total mérito, se observado sob o ângulo de sua relação com a crítica especializada, o público e as instituições que dão visibilidade social do escritor (REZENDE, 2010. p. 19-20).

6Morgenstern, citado por Maas (2013, p. 1). Material disponível em: <http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/abralic/romance_formacao.doc>. Acesso em: 01/02/2013.

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De acordo com Rezende, Cinzas do Norte tem o papel, na obra de Hatoum, de

caracterizar a dinâmica do espaço ficcional, representada “por meio de esforço memorialístico

conjunto” (REZENDE, 2010, p. 20). Portanto, ele conclui que há

uma correlação direta entre uma concepção de linguagem como prática, que entende a língua como uma miríade de gêneros de práticas comunicativas, e o desenvolvimento da escrita da obra. E essa concepção de linguagem tem como um de seus fundamentos conceber o sujeito social como um agente estrategista da produção textual [...] (REZENDE, 2010, p. 175).

Por outro lado, Miriam Moscardini, em sua dissertação Os percursos dos atores Lavo,

Mundo e Jano: a enunciação e o enunciado em Cinzas do Norte (2010), realiza uma análise

para verificar o modo como se instaura a relação conflituosa entre o ator protagonista Mundo

e seu pai Trajano, tendo em vista o mérito que cada um deles atribui a seus objetos de valor. A

autora também examina como a questão do ponto de vista estrutural da narrativa, em

particular a figura do narrador “Lavo”, no presente da enunciação, relata a história do amigo

Mundo. Além disso, ela procura observar como Lavo, por meio de seu foco de observação e

simulacro do enunciador e ator participante, reconstrói o percurso do protagonista, delegando

voz a outros narradores, o que propicia a criação de efeitos de sentido de verdade ao texto, ou

seja, o efeito de testemunho.

A autora apresenta as estratégias enunciativas de Cinzas do Norte com ênfase em

focalizar o modo pelo qual o narrador Lavo manifesta “no nível da enunciação [...] a relação

entre Mundo e o Outro, por meio da delegação de voz que atribui ao próprio Mundo e a

Ranulfo” (MOSCARDINI, 2010, p. 11). Baseada nisso, a autora mostra que as estratégias

utilizadas pelo enunciador (narrador) muda o foco de observação e de delegação de voz,

direcionando o texto ao norte do país e seu contexto ao da Ditadura Militar de 1964, no Brasil.

Moscardini, utiliza dois momentos que caracterizam os atores centrais como sujeitos

pragmáticos, o cognitivo e o passional, ambos no nível da enunciação e do enunciado:

Lavo já demonstrava ser um sujeito cognitivo, tinha a consciência de que o amigo fora em busca de tudo o que desejava “sem medo”. Assim, fica implícito que sua admiração pela figura audaz de Mundo, cuja história marcou sua vida, deveu-se ao fato de ele não ter sido movido pela paixão do medo”. [Dessa forma observamos no trabalho que] “por meio de um dispositivo de ancoragem espacial, figurativizado pela “praça São Sebastião”, “ Ginásio Pedro II”, o enunciador quer mostrar, por meio da ótica do sujeito narrador, que os lugares dão efeito de veracidade ao espaço em que se processa a história, que não são, assim, meros ornamentos (MOSCARDINI, 2010, p. 66).

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Além disso, a autora ressalta a importância das relações pessoais no romance, na

medida em que elas se entrelaçam às paixões que movem o universo social. Para a autora, “a

cólera do pai em relação ao filho e a do filho em relação ao pai metaforizaram na obra o duro

período da ditadura militar em nosso país” (MOSCARDINI, 2010, p. 101). Essa relação

representa a resistência de Mundo ao decidir afrontar o pai por meio da criação de suas obras

artísticas. Moscardini afirma que

Lavo, como sujeito narrador, observador e ator-participante, como sujeito da enunciação, responsável pela obra, é aquele que, em nível de enunciado, admira o amigo Mundo em sua coragem e, para fazer homenagem a ele, como alter-ego do autor, é o responsável pela escritura da obra, uma vez, que, em nível de enunciado, não tinha o mesmo poder de rebeldia e revolta do amigo (MOSCARDINI, 2010, p. 101).

Para tanto, diante do nível da enunciação, Moscardini discorre sobre a configuração das

cinzas, e seu trabalho mostra que essas configurações abrem inúmeras possibilidades de

metaforização das cinzas no contexto do romance, tanto no plano subjetivo, quanto no social,

por meio da ancoragem que a obra dá ao tempo da ditadura militar. Para a autora, Milton

Hatoum, recria na obra o contexto político. De acordo com Moscardini,

a relação entre a figura das “cinzas” e a figura do “norte” em Cinzas do Norte, [...] como figura topológica, possibilita-nos várias leituras. Uma delas é a alusão à região amazônica, ou melhor, à região norte de nosso país, de grande riqueza natural que tem sido dizimada com o tempo. A destruição da riqueza natural da região se evidencia em umas das andanças de Lavo com Mundo. Ao longo da história. A cena começa a ser descrita no momento em que passam perto da sede do governo (MOSCARDINI, 2010, p. 89).

Diante do exposto, a autora conclui que o próprio título da narrativa está ligado à

relação conflituosa entre Raimundo e Trajano, pois, segundo ela, as personagens enquanto

“figuras aludiam à localização espacial e temporal em que se projetava a narrativa”

(MOSCARDINI, 2010, p. 100).

Outra conclusão de Moscardini (2010, p. 101), tem relação com a questão literária,

corroborada com a história, de modo que o leitor é tomado por uma abordagem de temas

históricos e sociais voltados à ditadura, tais como as reflexões da destruição da Amazônia

pós-guerra por meio da história de um conflito familiar entre pai e filho. Com isso, a autora

conclui seu trabalho mostrando a

importância da posição dos três narradores na obra que, na verdade, transmitem o ponto de vista polifônico do sujeito da enunciação sobre as diversas vozes que

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compõem esse momento obscuro da história subjetiva e social, o que nos leva a refletir, que Mundo, em seu fracasso como artista, reflete o fracasso de um período de repressão. Assim, a obra Cinzas do Norte tragicamente aponta para as cinzas que desnortearam o país nesse momento social. Literariamente, por outro lado, é dotada de grandeza suficiente para levar-nos a refletir sobre a destruição de valores que um momento ditatorial pode causar na história de um país, de seu povo, de sua cultura (MOSCARDINI, 2010, p. 101).

Outro texto, que objetiva analisar e compreender a trajetória biográfica e intelectual do

escritor Milton Hatoum, é Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória

intelectual, de Bruno Leal (2010). O autor problematiza a ideia de que as categorias

relacionadas ao pensamento social brasileiro, pela tradição literária brasileira, tornam-se

fundamentais para o próprio entendimento da obra do autor, como também de seu projeto

literário. Assim, Leal afirma que a

condição do artista e do próprio universo da arte no Brasil e no Amazonas no período do regime militar, espaço em que se situa o personagem Mundo de Cinzas do norte, mas também o momento em que Milton Hatoum estava envolvido no cenário artístico local e nacional (LEAL, 2010, p. 14).

Para compreender a trajetória intelectual de Milton Hatoum, Leal realiza estudos

bibliográficos que discutem a produção literária de Hatoum. Uma das referências tomadas

como processo de apropriação estética e formal é a comparação do pessimismo e da

melancolia euclidianas presentes em textos sobre a Amazônia que ecoaram longe, mesmo em

autores recentes como Márcio Souza e Milton Hatoum. Um exemplo é o travo melancólico

em refletir sobre as “derrotas históricas”7, quando as cinzas do norte permanecem como

desolação. De acordo com Leal,

o polo do poder em Cinzas do Norte está ligado aos homens que representavam o regime militar, bem como aos empresários que traziam consigo as ideias de progresso e civilização. É como se o criador (Hatoum), por meio de sua criatura (Mundo), pretendesse realizar uma crítica ferrenha aos homens do poder, seja na produção de suas telas, revelando todo tipo de atrocidades com as populações urbanas, ribeirinhas e até mesmo indígenas, seja tecendo críticas e ironizando o comportamento dos homens do progresso e da civilização (LEAL, 2010, p. 101-102).

Leal discorre mostrando a forma como as produções de arte, no caso da personagem

Mundo e suas pinturas, revelam a violência e os traumas impostos por um regime de governo

autoritário, imbuído de um processo civilizatório na Amazônia. Diante dessa problemática,

7 A ideia apresentada pelo autor é baseada nas reflexões acerca do trabalho do pesquisador Foot Hardman (2009, p. 44).

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Bruno Leal apresenta as seguintes conclusões em seu trabalho, no que diz respeito à criação

artística de Mundo:

Mundo produzirá uma arte que responda aos seus anseios e expectativas como artista e como ser humano, não se sujeitando às demandas externas que venham contaminar seu projeto artístico, tais como as imposições de seu pai ou a censura por parte da sociedade amazonense (LEAL, 2010, p. 104).

Mundo ascende sua própria concepção de arte, ao impor sua personalidade e escolhas

sociais e políticas, a partir do processo criativo. A personagem não se submete às relações de

poder do pai Jano, por isso resiste às suas imposições, mesmo que isso lhe custe a própria

vida.

Quanto ao plano estrutural, o pesquisador mostra que estruturalmente, a narrativa

costura uma relação entre os campos da arte, cultura, poder econômico e político,

evidenciados com vistas à análise

dos polos opostos (arte/poder) que estruturam o espaço social; pode-se inferir a própria condição e escolha no fazer artístico do criador da obra (Hatoum), que se nega a subjugar sua arte às demandas econômicas, e busca posicionar-se no âmbito do campo literário brasileiro em posições mais autônomas (LEAL, 2010, p. 106).

Através de um estudo criterioso e demarcatório, Leal deu ênfase à condição

problemática de se fazer arte, não só no estado do Amazonas, mas também no Brasil.

Segundo o autor, Milton Hatoum, ao definir seu projeto literário, problematiza também os

espaços mais autônomos e consagrados dentro do campo literário brasileiro, diante da

condição de ser artista num país que não prioriza a arte nem os artistas, ou investe tão pouco

no campo cultural.

Por outro lado, Paulo César de Oliveira, em seu artigo intitulado Cidades de papel:

breve percurso, de Machado de Assis a Milton Hatoum (2011), tematiza a cidade, através de

um percurso pela literatura brasileira, a partir da seminal reflexão machadiana, com base em

alguns momentos-chaves que são interessantes para a compreensão de cenários urbanos, que

vão desde o modernismo brasileiro até a contemporaneidade. Esses cenários convocam um

olhar particular em direção às representações das cidades que estão nas obras de ficção de

Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Milton Hatoum. Para o autor,

Hatoum, faz uma fusão entre a representação da cidade contemporânea e o discurso ficcional,

na medida em que o espaço urbano se torna uma fonte de questionamentos inesgotáveis para a

crítica contemporânea. Na visão de Oliveira, a Manaus de Hatoum funda questões éticas,

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filosóficas e culturais das mais pertinentes e essenciais ao debate teórico atual. Além disso,

adiciona reflexões renovadas ao tema das cidades.

Para Oliveira, o futuro que caracteriza a noção de representação das cidades no romance

contemporâneo, que ao mesmo tempo vem se solidificando na ideia moderna de crise da

autoridade do passado, rejeita a confiança moderna no futuro, opondo a ela as aporias

‘tardomodernas’ de desconfiança e ceticismo em relação ao devir.

Em outro texto8, Oliveira (2008) apresenta uma análise introdutória da obra do escritor

amazonense e, a partir dela, procura traça um perfil das discussões críticas em torno das

relações entre mundo, texto e crítica. O autor investiga de que modo o saber literário se insere

na discussão crítica, estabelecendo entre-lugares, brechas, nas quais a amplificação

interpretativa não só é necessária, mas indissociável de toda condição de leitura na prosa

contemporânea.

Por sua vez, Shirley Carreira, em seu artigo Diferença e alteridade em Cinzas do Norte,

de Milton Hatoum (2009), apresenta uma vasta leitura sobre as relações intersubjetivas em

Cinzas do Norte, à luz do pensamento de Emmanuel Lévinas9, focalizando, em particular, sua

perspectiva sobre a questão da alteridade e a relação ética e metafísica entre o Eu e o Outro.

De acordo com a autora, subjetividade e alteridade se constituem em uma relação que se

tecem, sem se fundirem e sem se alienarem. No romance, elas reproduzem diferentes nuanças

à experiência de Lévinas, à medida que essa experiência se opõe à concepção de alteridade

por ele defendida. A síntese das relações humanas, no romance, baseia-se na negação da

alteridade.

Com isso, explica Carreira, Cinzas do Norte emblematiza, desde seu título, um universo

ficcional que reporta aos “anos de chumbo”; um momento histórico em que não havia espaço

para a expressão da alteridade. A afirmação da diferença no âmbito do romance ocorre em

duas esferas: a privada, nas relações conturbadas entre as personagens, e a pública, das

relações do indivíduo com o poder civil. Essa “obra tem uma linguagem objetiva, às vezes

dura, que conta uma das possíveis estórias de uma geração que sonhou com um mundo mais

justo, apenas para encontrá-lo em cinzas na sua maturidade” (CARREIRA, 2009. p. 2-3). O

que impulsiona a busca de realização do sonho, e, a afirmação da alteridade sucumbe ante a

potência da tirania.

Sylvia Telarolli, em seu artigo O Norte da Memória (2007), através de uma leitura que

trata do modo como Milton Hatoum, explora em seus três romances - Relato de um certo 8 Zona de fronteira: ressonâncias críticas na obra de Milton Hatoum (OLIVEIRA, 2008). 9 A obra Da existência ao existente, de Emmanuel Lévinas.

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oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, aspectos da memória por meio do entrecruzamento de

vozes: “o perfil de personagens complexas se constrói na fusão de relatos, cartas e

depoimentos, intercalando faces do indivíduo e da coletividade por meio da memória”

(TELAROLLI, 2007, p. 273).

Para Telarolli, em Cinzas do Norte um componente que auxilia na exposição de fatos e

desvendamento de dúvidas, paralelo à voz do narrador homodiegético que acompanha a vida

de Mundo e as transformações que ocorrem na Manaus dos anos sessenta e setenta, é a voz de

Ranulfo, que assume posição autodiegética e narra, em primeira pessoa, passagens da vida

pregressa, bem como a paixão desenfreada que compartilhou com Alícia:

o tom é confessional, a feição é de um diário ou conjunto de cartas, mas sem datas ou referências mais precisas quanto à cronologia; a precisão, se há, está no desvendamento da intimidade, dos sentimentos dos apaixonados; as confissões do diário, impresso em capítulos escritos em itálico (TELAROLLI, 2007, p. 279).

Esse tom segue uma sequência particular, que não é a da narrativa da vida de Mundo,

mas o curso da vida de sua mãe: “Mais de um mês sem beijá-la, sem nem mesmo tocar em

seu corpo. Não a via nos lugares dos nossos encontros, ela não respondia aos meus recados, se

esquivava [...]” (HATOUM, 2005, p. 81 apud TELAROLLI, 2007).

Segundo Telarolli as confissões e as revelações que trazem essas memórias orientadas

pelos passos de Alícia são dirigidas a um leitor em especial, o seu filho. Ainda para Telarolli é

primordial o depoimento que encerra a narrativa de Cinzas do Norte, a carta deixada por

Mundo e entregue pela mãe ao narrador Lavo, depois da morte do filho. Essa carta guarda a

memória dos últimos dias de agonia de Mundo. Nela, as recordações de Mundo entremeiam-

se pelas sofridas confissões de sua mãe, sobre o segredo de sua origem.

Para Telarolli, e concordamos com ela há, no romance, três vozes cruzadas: a de Lavo,

narrador homodiegético, que é dominante, a do tio Ranulfo, nas cartas, e a de Mundo, na carta

final. A autora (2007. p. 279) conclui seu texto dizendo que o

caminho escolhido por Hatoum traz preciosos tesouros guardados por suas desorientadas figuras – personagens perdidas, desnorteados narradores – a lembrar que o norte está na busca e não no encontro, a alegria do mistério muito mais no caminho do desvendamento, nos interditos, nos silêncios, do que na solução, se é que ela existe, fazendo renascer sempre, magnífico e renovado, por sobre as cinzas que restam, o prazer e a perícia de narrar e ouvir.

Nesse percurso, verificamos ainda que Luiz de Assis Brasil, ao entrevistar Milton

Hatoum, demarca algumas faces da obra do autor que estão pautadas na ideia do lugar, ou

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seja, a Amazônia de ontem e a Amazônia do presente - mediante a pergunta: “Em que medida

a Amazônia de hoje é diferente de quando você era menino?” (2009, p. 161), Milton

responde:

Nas últimas quatro décadas, muita coisa mudou. No começo dos anos 60, Manaus e Belém eram cidades relativamente pequenas, sendo que Belém era maior, mais cosmopolita e menos isolada do centro-sul, pois já existia a rodovia Belém-Brasília. As outras capitais da Amazônia brasileira eram acanhadas e isoladas, não tinham universidades. Hoje, todas têm universidades públicas e particulares. Manaus, com quase dois milhões de habitantes, é um dos maiores centros de indústria eletroeletrônica da América Latina e ocupa o sétimo lugar entre as capitais mais ricas do Brasil. No entanto, a desigualdade social é aberrante. A cidade da minha infância não existe mais.

Nessa mesma entrevista, Hatoum fala a respeito de bons escritores e algumas leituras

que considerou excelentes durante seu percurso como estudante. Uma delas é a leitura do

curso de Davi Arrigucci acerca de Os ratos, de Dyonélio Machado, e alguns contos de João

Simões Lopes Neto. Ambos são, segundo o autor, escritores extraordinários. Para Hatoum,

“Machado situa-se na linha de frente do Modernismo brasileiro, Lopes Neto foi uma das

fontes literárias de Guimarães Rosa”.

Ainda segundo Brasil, Hatoum leu na juventude O Continente, Vidas Secas, Capitães

da areia e trechos de Os sertões. Essas leituras faziam parte do currículo, no colégio Pedro II,

em Manaus, onde Hatoum estudou. Na entrevista, Hatoum explica que por meio da leitura foi

possível descobrir outro Brasil, a partir do contato, na condição de leitor, com “regiões com

uma geografia, uma história, um vocabulário e uma dicção diferentes da minha. Isso foi

surpreendente, pois a literatura nos conduz a outros lugares e paisagens” (BRASIL, 2009, p.

161). Hatoum destaca ainda que essas leituras lhes proporcionaram a

[descoberta de] um país complexo, não poucas vezes violento. Mas a “velha guarda” gaúcha marcou presença também através da Livraria Editora Globo (de Porto Alegre). Um dos meus tios comprava as boas traduções da Globo. Esses livros, que atravessavam o Brasil, me fascinavam. Há uma cena no Cinzas do Norte sobre essa travessia. Felizmente os mitos e os livros viajam.

Vemos que algumas obras lidas por Hatoum podem ter influenciado sua produção,

assim como o seu estilo de escrever com vistas a reflexões acerca de dados históricos que

marcaram a sociedade brasileira evidenciados em suas produções literárias. Para nós, aqui,

interessa, Cinzas do Norte.

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CAPÍTULO 2: Mundo melancólico

“Mundo mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução”.

Poema de Sete Faces Carlos Drummond de Andrade10

Para trabalhar teoricamente a melancolia e observar como o personagem Mundo está

incluso em um universo social e histórico marcado por várias formas de violência, é que

chamamos atenção com a epígrafe de Drummond. Uma vez que o vasto mundo apontado na

poesia pode ser aquele que quando imerso no universo de imposição e autoritarismo, não é

soluto para o individuo que busca expressividade.

Nosso percurso se deu tendo em vista uma apresentação conceitual da melancolia, com

base no campo de estudo psicanalítico, entendido para fins deste trabalho como ponto de

partida da compreensão dessa categoria.

A composição da melancolia resulta de um trauma sofrido em qualquer circunstância da

vida de um indivíduo. Pensar sobre trauma e de onde ele resulta é pensar a respeito do

desencadeamento de fatores traumáticos, em que tomamos por base dois processos de

violência: a física e a psicológica.

Neste trabalho, a definição de trauma diz respeito a um conjunto de perturbações,

causado por um choque emocional, que provoca uma perturbação durável e insuperável. Essas

inquietações são obsevadas a partir da forma como a vida da personagem Mundo, de Cinzas

do Norte, foi sendo construído. Uma delas é a exposição constante e permanente de sua vida a

situações de violência: seja ela política, ideológica ou familiar. Tais situações tornam-se

pontos determinantes de traumas acumulados por Mundo no decorrer de sua vida.

Pensando sobre os processos de violência e trauma, presentes na vida do personagem,

percebemos que eles desencadearam fator que ora aparece como apatia e ora como

movimento de reação, que é a melancolia. Para compreender tais aspectos, optamos por um

estudo voltado à teorização da melancolia, tendo em vista os campos psicanalítico e

filosófico. Por uma questão metodológica, iniciamos com o campo psicanalítico, em

particular a psicanálise freudiana, que sustenta a teoria sobre a melancolia na modernidade.

10 ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

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2.1. A melancolia e o campo psicanalítico.

No texto Luto e Melancolia, Sigmund Freud constrói uma elaborada tentativa de

explicar a melancolia, de forma que as considerações feitas a respeito de sua natureza são

comparadas ao afeto normal do luto, mesmo que no decorrer da abordagem sobre o assunto

ele direcione a discussão para as manifestações de origem psicogênica, ou seja, o estudo de

desenvolvimento de processos mentais que podem causar uma alteração no comportamento.

É a partir deste texto que Freud, pela primeira vez, antecipa o complexo de Édipo, no

seguinte fragmento:

os impulsos hostis contra os pais (o desejo de que morram) são também parte integrante da neurose. [...] na paranoia os impulsos são reprimidos [...] quando a compaixão pelos pais é ativa. [...] é uma manifestação de luto recriminar-se a si próprio pela morte deles (o que se reconhece como melancolia) ou punir-se a si mesmo de uma maneira histérica (FREUD, 2006, p. 100).

Freud discorre sobre a importância de se fazer uma comparação entre os estados

normais de luto com a melancolia, delimitando que o problema psicológico ainda era algo que

não se podia resolver. Através desta delimitação, o autor pensa a melancolia a partir dos

princípios conceituais de narcisismo e de ideal do Eu. Esses conceitos foram discutidos por

Freud em um de seus estudos sobre paranoia, pois o autor descreve o agente crítico, no âmbito

da concretização, e a correlação desse agente ao atuar na melancolia.

Com a utilização de um quadro de semelhanças entre as duas manifestações, Freud

justifica a conexão entre luto e melancolia. Para o autor, o luto se caracteriza pela reação

normal relativa à perda de um ente querido e a melancolia, como uma doença, diagnosticada

em grande parte da população mundial, é hoje nomeada como depressão.

No texto Totem e Tabu, Freud apresenta a relação entre o filho e o pai da horda

primeva, que no “ato de devorá-lo realizam sua identificação com ele” (FREUD, 1913, p. 91),

o que mostra que o Eu deseja congregar para si o objeto que é o pai, na fase oral, ou

canibalística, do desenvolvimento libidinal. É a partir dessa fase que Freud começa a se

interessar pelos estudos sobre melancolia, através da sugestão de Abraham, que propõe a fase

oral para o desenvolvimento da melancolia, na medida em que “na melancolia um

investimento objetal é substituído por uma identificação”.

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Entendemos que o conceito de melancolia para a psicanálise é próximo da psiquiatria

descritiva, por se apresentar em formatos diversos na clínica de afecções somáticas.

Considerando este aspecto, o autor mostra que o luto se correlaciona com a melancolia a

partir da manifestação do estado de reação à perda de algo amado ou a perda de abstrações

colocadas em seu lugar, tais como a pátria, liberdade, um ideal etc. Isto não implica condição

patológica, desde que seja superado após certo período de tempo.

Em algumas pessoas portadoras de uma disposição patológica, que se encontra em pré-

disposição de perda, surge a melancolia, em vez do luto. Nelas, algumas características do

luto se assimilam às da melancolia como: os traços marcantes de desânimo profundo e

penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, inibição de toda e qualquer atividade,

perda da capacidade de amar, depreciação do sentimento-de-si (são os seus próprios desejos

ou suas auto-punições), que evoluem de forma crescente até chegar a uma expectativa

delirante de ser punido. A característica de maior peso na diferenciação dos dois estados é

presença de baixa auto-estima e auto-recriminação, comuns na melancolia, que se caracteriza

psiquicamente por um estado de ânimo profundamente doloroso e inexistente luto normal.

Assim, no luto não ocorre a depreciação do sentimento-de-si, o aspecto que o diferencia

da melancolia, pois, fora este, todos os outros sentimentos são iguais. Dessa forma, no luto

existe a perda de interesse pelo mundo externo, a não ser que se trate de circunstâncias ligadas

ao objeto perdido, de maneira que há a dificuldade de aceitar um novo objeto de amor. Assim,

a superação do luto “ocorre pouco a pouco e com grande consumo de tempo e energia,

enquanto, em paralelo, a existência psíquica do objeto perdido continua a ser sustentada”

(FREUD, 2006, p. 104).

No luto, a reação que se estabelece em resposta à perda da pessoa querida, não é em

nada inconsciente, mesmo que a pessoa usualmente preserve certos interesses e reaja

positivamente ao ambiente, quando devidamente estimulada. Na melancolia, a perda do

objeto escapa à consciência, ou seja, a perda é desconhecida, ou seja, se sabe quem se perdeu,

mas não se sabe o que se perdeu nessa pessoa, pois o melancólico apresenta algumas

características ausentes no luto que são a depreciação do sentimento-de-si, um enorme

empobrecimento do Eu. “No luto, o mundo se tornou pobre e vazio; na melancolia, foi o

próprio Eu que se empobreceu” (FREUD, 2006, p. 105), pois, para o melancólico, não se

pode ver exatamente qual o conteúdo da perda. O empobrecimento do Eu é um aspecto

presente no personagem Mundo, devido ao definhamento social e histórico marcado por

várias formas de violência.

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Na melancolia, o ego se apresenta desprovido de valor, incapaz de qualquer realização.

A baixa auto-estima pode estar associada à insônia e à recusa em se alimentar. A formação da

melancolia, de acordo com Freud, estaria numa ligação objetal, como dito anteriormente, em

que a libido se desloca para o ego, estabelecendo uma espécie de identificação deste com o

ente perdido. A perda objetal passa a ser uma perda do próprio ego.

Outro aspecto verificado no estudo freudiano está relacionado com as observações feitas

pelo autor, através da prática clínica, a partir dos relatos dos pacientes com mania. Freud

ressalta que a melancolia tem uma forte tendência a se transformar em mania, que em nada

difere do conteúdo da melancolia, como se ambas lutassem contra o mesmo complexo. Na

melancolia, o ego cederia a ele mesmo, diferente do que ocorre na mania, uma vez que o

próprio ego se encarrega de superar a perda, e prova disso é o estado de alegria por alívio, de

economia de energia. Vale salientar que há três pré-requisitos da melancolia – perda do

objeto, ambivalência e regressão da volta ao Eu, sendo que, nesta situação, a ambivalência

representa a força motora do conflito, logo, esse conflito se assemelha a uma ferida dolorosa.

Baseado nesses três elementos, Jaime Ginzburg (2001), em texto intitulado Conceito de

melancolia, realiza uma descrição das concepções clássica, romântica e moderna do termo em

questão. Para o autor, o conceito clássico de melancolia é atribuído a Hipócrates, estudioso

grego considerado o “pai da medicina”, que desenvolveu a teoria dos quatro humores

corporais: sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra. Esta última seria a responsável pelos

estados melancólicos do ser humano. Já naquela época, a melancolia era entendida como uma

doença, caracterizada, segundo Hipócrates (apud GINZBURG, 2001, p. 103), por um estado

de “tristeza e medo”. Segundo Ginzburg “[p]ara o pensamento clássico antigo, a condição

melancólica se caracterizaria por uma alteração comportamental, marcada pelo medo, pela

misantropia e pelo abatimento profundo” (GINZBURG, 2001, p. 105),.

Na concepção romântica, a melancolia é descrita como uma categoria do sublime, em

que duas naturezas antagônicas seriam passíveis de coexistir no espírito humano. Assim, o

sublime consiste num “sentimento misto. Compõe-se do estar-dorido, que, no seu máximo

grau, se exterioriza como um estremecimento, e do estar-alegre, que pode elevar-se até o

encanto” Schiller (apud GINZBURG, 2001, p. 107). Essa dualidade do espírito caracterizaria

o comportamento melancólico do homem romântico que, embora sofra, é capaz de enfrentar e

superar seus limites.

Modernamente, a concepção de melancolia tem sido fundamentada na chave da

psicanálise freudiana. Em seu texto seminal Luto e melancolia (1976), Freud apresenta alguns

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fatores que estão na base do surgimento dos estados de luto e melancolia. Assim, os estudos

sobre melancolia, a partir da psicanálise freudiana, apenas dão conta de uma visão moderna

da categoria, voltada à patologia. Ele sustenta a tese de que o luto não representa uma

disposição patológica na pessoa enlutada e que, por isso, é superado com o passar do tempo.

Para Freud (1976, v. 17), a melancolia deve ser compreendida como uma disposição

patológica que necessita de cuidados médicos;

[o]s traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar a expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.

Na base das precondições dos estados melancólicos estariam, segundo o autor, três

aspectos: a “perda do objeto”, a “ambivalência” e a “regressão da libido ao ego” (FREUD,

1976, v. XVII). O primeiro aspecto estaria relacionado à incapacidade de superar a perda de

uma pessoa amada, ou mesmo de um ideal. O segundo, diz respeito à luta travada em torno do

objeto perdido, em que amor e ódio são os personagens principais. Enquanto aquele busca a

continuidade da ligação libidinal entre sujeito e objeto, este procura interromper sua ligação.

A consequência dessa disputa é percebida na terceira precondição melancólica em que o

sujeito, incapaz de libertar sua libido do objeto perdido e identificar-se com outro (pessoa

amada, ideal etc.), recolhe-se em si mesmo por meio de uma contemplação narcisista. Por

isso, a perda do interesse pelo mundo exterior, a incapacidade de amar outra pessoa ou aderir

a uma nova ideia.

Outra autora, que realizou um vasto estudo sobre a melancolia, é Julia Kristeva, em sua

obra Sol negro: depressão e melancolia (1989), em que mostra a origem e desdobramento da

melancolia nos campos psicanalítico e literário. Nesse percurso, ela mostra uma das formas de

como a arte pode ser compreendida na atualidade. Para compreensão dos estados

melancólicos, Kristeva apresenta o processo de escrita na arte, até sua morte, e como isto

resulta na falência da arte de um indivíduo. Para a autora, na arte refletida sobre a própria arte,

ocorre uma ausência dos sentidos dos outros, pois “filosofar é aprender a morrer”

(KRISTEVA, 1989, p. 12).

Podemos dizer que o filosofar a que a autora faz referência se caracteriza pela intenção

de ampliar incessantemente a compreensão do Ser, mediante estudos que busquem

compreender uma (re)alidade capaz de abranger todas as outras, mesmo que essa (re)alidade,

seja pautada na destruição e na ruína, que culminam em um pesar profundo.

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A partir da proposição citada, verificamos que há na melancolia um calçamento sombrio

da paixão, com ênfase no pensamento do artista, em que a crise que reflete essas relações é

parecida com as que os filósofos mantinham com a melancolia. Assim, para Kristeva, "[o]

artista que se consome com a melancolia é, ao mesmo tempo, o mais obstinado em combater a

demissão simbólica que o envolve ... Até que a morte o atinja ou que o suicídio se imponha

para alguns, como triunfo final sobre o nada do objeto perdido [...]” (KRISTEVA, 1989 p. 15-

16).

O aspecto citado faz referência à melancolia em um sentido de perda, tomada pela

dicotomia entre palavra escrita e imagem, transcrita por alguns elementos presentes nas obras

de arte dos escritores. Estes utilizam o lugar melancólico para criação em que a melancolia se

torna o lugar e mola propulsora da genialidade.

Tendo como base os mesmos princípios discutidos por Kristeva, Maria Rita Kehl (2009)

constrói uma hipótese, fundamentada na teoria de que a depressão provém de um sintoma

social contemporâneo. Baseada nessa ideia, a autora desenvolve três ensaios que compõem o

livro O tempo e o cão, a atualidade das depressões. No primeiro, discute como se dá os

percursos da melancolia e da depressão; no segundo, problematiza a temporalidade como

aspecto a contemporaneidade; e no terceiro, comprova, patologicamente, o recuo do

depressivo.

O livro é baseado nas experiências e reflexões sobre o contato com pacientes

depressivos. A autora realiza um apanhado do lugar simbólico, ocupado pela melancolia,

desde a Antiguidade clássica até meados do século XX, quando Freud trouxe tais significantes

do campo das representações estéticas para o da clínica psicanalítica.

No capítulo em que trata da atualidade da depressão, a autora se questiona: “O que a

teoria freudiana sobre a melancolia pode ensinar ao psicanalista sobre a clinica das

depressões?”. É a partir desse questionamento que Kehl fala sobre os congressos de que tem

participado, e como alguns abordam os quadros depressivos e melancólicos “como se fossem

a mesma coisa”. Para ela, não são, visto que

às características “depressivas” do melancólico – negativismo, falta de animo, falta de autoestima, fantasias autodestrutivas, distúrbios somáticos e outras tantas manifestações de dor psíquica – podem se aparecer empiricamente, com as dos depressivos (KEHL, 2009, p. 39).

Os aspectos mostrados pela autora dizem respeito a algumas crises histéricas e

construções de pensamento que não podem ser confundidas com sintomas psicóticos, visto

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que a semelhança fenomenológica entre a tristeza e o abatimento dos melancólicos e dos

depressivos não são estruturas psíquicas das mesmas manifestações. Para ela, a confusão

sobre essas manifestações se deve ao fato de Freud, em Luto e melancolia (1915),

ter promovido no plano clínico duas rupturas simultâneas, devido a partir de seu texto ter trazido a melancolia do plano do campo da medicina psiquiátrica para o da clínica psicanalítica: no outro plano, o da história das ideias, o texto de Freud acabou por afastar definitivamente a melancolia da longa tradição pré-moderna das representações, predominantemente sublimes, atribuídas aos homens de caráter melancólico desde a Antiguidade grega (KEHL, 2009, p. 40).

A atualidade faz uma abordagem de duas operações combinadas. A primeira, é a clínica,

ao considerar que não existe identidade, na psicanálise, entre melancolia e depressão. A

segunda, é a construção da ideia de que, em um plano geral, o sofrimento depressivo se

apresenta pelo viés do “mal-estar da civilização”, ao fato de ocupar um lugar melancólico na

tradição do pensamento anterior a Freud: o do sintoma social.

Para Kehl (2009, p.48), “a psicanálise freudiana toca na franja da dimensão política do

sujeito do inconsciente, mas não é esse o seu objeto, como não diretamente políticos os

efeitos da cura analítica”. A autora aborda de um ponto de vista teórico fundamental o

complexo de Édipo, partindo de um conjunto de relações mais íntimas e privadas da

constituição do sujeito. Perpassando ainda pela relação subjetiva, na medida em que utiliza

como estratégia metodológica de análise, em pacientes depressivos, a relação com a

temporalidade.

O percurso utilizado pela autora, até o momento, foi pautado na possibilidade de

sustentar a ideia de que é na modernidade que o Outro se torna inconsciente; assim, o retorno

à teoria freudiana da melancolia, pela autora, visa situar a ruptura que ela representou em

relação às formas pré-modernas do lugar ocupado pelos melancólicos, “para o conjunto de

manifestações de sofrimento mental” (KEHL, 2009, p. 48). Nesse sentido, Freud ficaria

obrigado a incluir a mania como um triunfo temporário do melancólico, manifestada na

batalha inconsciente entre o eu e o supereu, em face indissociável dos estados maníacos e

melancólicos.

Para Kehl, Freud, ao utilizar o “significante da melancolia para designar o ciclo

depressivo desse tormento, marca a diferença entre a proposta teórica e o diagnóstico da

psicose maníaco-depressiva de Kraepelin”11. A autora critica a ideia de que tal afirmativa

11 Emil Kraepelin, psiquiatra alemão e um dos criadores da moderna psiquiatria, ele defendia a ideia de que as doenças psiquiátricas são causadas principalmente por desordens genéticas e biológicas.

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privatiza o conceito da melancolia, “cujo[s] vetores teóricos se deslocaram para os planos das

relações mais precoces e mais íntimas da vida psíquica” (KEHL, 2009, p. 49). Para ela, o laço

social de representação das melancolias desde a Antiguidade marcam temporariamente hoje o

campo das depressões, decorrentes da perda do “lugar dos sujeitos junto à versão imaginária

do Outro” (KEHL, 2009, p. 49). Nesse âmbito, é o sofrimento decorrente dessa perda que

baliza as certezas imaginárias de sustentação do sofrimento do ser.

Uma discussão interessante destacada pela autora, para discorrer sobre a ideia de Um

sujeito em desacordo com o Bem, pauta-se na análise da poesia “Comigo me desavim”, de Sá

de Miranda, que tematiza a culpa do desejo a uma condição subjetiva particular. Com isso,

Kehl problematiza as características principais do indivíduo moderno que é a condição de que

a “verdade do sujeito esteja em desacordo com o que o seu meu meio social estabeleceu como

Bem” (KEHL, 2009, p. 61).

Tal cizânia é possível de ocorrer em qualquer tempo e cultura, mas apenas se forem nas

condições que a modernidade proporciona mesmo que de forma tardia, pois, se fosse outro

tempo, o “Bem não seria incompatível com a verdade de um sujeito” (KEHL, 2009, p. 61).

Ou seja, é a tradição que mantém a força de determinar os destinos das gerações. Já na

modernidade, tal papel se inverte, pois a tradição perde força quando a verdade deixa de ser

entendida como manifestação divina.

Nesse sentido, na modernidade, o sujeito da psicanálise é constituído pelo que advém de

uma operação de recalque, e sua verdade provém do inconsciente, e é este aspecto que o

separa do gozo do Outro. Para Kehl, a operação é resultado da ignorância do indivíduo, a

partir de sua função enquanto eu, pois é isto que faz referência à verdade que sustenta seu

desejo, baseado na ideia de subversão proposta por Lacan. Desta forma, é o “estatuto

imaginário do Outro, que se fragmenta em inúmeras representações; por outro lado, o

aumento da responsabilidade do eu – que se individualiza – por suas escolhas [...]” (KEHL,

2009, p. 62). Assim, as representações da melancolia nesse sujeito são sinalizadas a partir de

um “desajuste semelhante entre um homem, tomado individualmente, e o Bem, estabelecido

pela coletividade a que pertence” (KEHL, 2009, p. 63). Logo, suas escolhas o tornam um

indivíduo desajustado.

Para sustentar suas proposições sobre a melancolia, a autora utiliza como objeto de

estudo a proposição apresentada no Problema XXX. Tomado como desvio de um percurso

sobre a história desde o Ocidente, este se apresenta como forma de problematizar os sintomas

da melancolia, no homem daquele período, ou seja, tenta provar que nem todo homem,

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tomado pelo excesso de bílis negra é melancólico, assim como nem todo melancólico é

doente.

De acordo com Kehl, o dimensionamento da predisposição do estado melancólico

também pode ser pensando pelo viés da arte poética, devido ao talento do artista para a

mímesis, que lhe dá capacidade de “tornar-se outro”. Esse outro, no sentido de instabilidade

do indivíduo, oscila perigosamente entre o gênio e a loucura. Nesses dois aspectos, a

diferença se encontra no grau e na qualidade da alma.

O desacordo entre o sujeito e o Bem, para Kehl, é marcado historicamente por

Aristóteles, que situa o melancólico em um lugar de exceção, diante das representações

antigas da melancolia. Essa demarcação foi inspirada na pesquisa icnográfica de Jean Clair12.

Para este, Ajax, herói grego da guerra de Troia, se desmoraliza quando comete o suicídio,

mediante a forma com que Palas Athena o castiga perante os guerreiros de Tróia. A vergonha,

segundo Clair, era causada na antiguidade, quando um homem era ferido em sua imagem

pública. Seu ato ensandecido era visto pela sociedade guerreira como uma vergonha pois,

naquela sociedade, o valor de um homem se estabelecia na batalha e no ato de seus

companheiros. Para Clair, Ajax inspirou uma das mais expressivas representações plásticas da

melancolia na Antiguidade. O suicídio de Ájax representa uma manifestação da melancolia

diante do pensamento da Antiguidade em que seu “efeito de perda [cede] seu lugar ante aos

desígnios do Outro” (KEHL, 2009, p. 65).

A psicanalista faz uso das artes plásticas, mais especificamente, do desenho do pintor

renascentista Albrecht Dürer, Melancolia I (1514), para apresentar como o gênio melancólico

era compreendido no período da Acedia. Ela descreve em sua análise, sobre a gravura, a

“figura andrógina e alada”13 (KEHL, 2009, p. 69). Com base em pesquisas de outros autores,

como Panofsky e Saxl, a autora discorre também sobre a ideia de que a obra de Durer marca

historicamente o fim da Idade Média.

É nesse sentido que a melancolia designa, no homem, um estado de espírito diferente da

acedia, que tinha como aspecto principal uma espécie de desilusão, tristeza ou desistência,

diante dos bens espirituais, diferentemente do aspecto que vê o desânimo e a inibição do

homem renascentista diante dos recursos alcançados pelos avanços científicos de seu tempo.

Com isso, há a “possibilidade, ou pelo menos o desejo, de domínio racional do real deixado

12 Exposição Mélancolie: génie et folie em Ocident [ Melancolia: gênio e loucura no Ocidente], este trabalho repercute em várias passagens como um grande levantamento de representações da melancolia empreendida desde a década de 1920 por Saxl (KEHL, 2009, p. 65). 13 A ideia diz respeito ao híbrido entre homem, mulher e anjo.

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[a]o homem renascentista diante da perda do sentido metafísico pelo mundo” (KEHL, 2009,

p. 70).

Outra pesquisa realizada por Kehl é a obra Anatomia da Melancolia do teólogo inglês

Burton, onde ela observa as estratégias utilizadas pelo autor para pesquisar tudo o que outros

autores escreveram sobre a melancolia em sua época; e a partir dessa pesquisa, faz um

apanhado dos aspectos que servem para explicar o surgimento da doença, tais como:

má alimentação (por excesso ou escassez), falta de exercícios ou de banhos frios, excesso de isolamento, falta de divertimento para a alma e para o corpo, reclusão em ambientes artificiais, má iluminação dos quartos, mau uso da sexualidade, vícios, excessos, abstinência e, como não poderia deixar de ser, uma grave consequência da negação de Deus (KEHL, 2009. p. 72).

A desarmonia provocada por escassez ou excesso do homem, provoca outra ruptura

entre este e o mundo, entendida como perda do cenário campestre, marcada pelos poetas

românticos do século XVIII e representada pelo grupo de Jena14. Para esse grupo, a

melancolia era considerada “a marca do gênio romântico que, entre razão e loucura, ordem e

caos, buscava tocar o Sublime sem sucumbir à degeneração da sensibilidade” (KEHL, 2009,

p. 73). Assim, para os primeiros românticos, a impossibilidade de restaurar a natureza e a

união entre forma e conteúdo na arte, provocou a nostalgia pela perda de uma suposta

inocência estética acessível de seus antecessores e como forma de aproximar a totalidade

perdida, eles propõem a estética do fragmento. A partir desse aspecto, observa-se um ideal de

Belo, pensado pelos românticos como referência a um objeto perdido, que cede lugar à

metonímia15 que é parte de um fragmento. Para a autora, nesse processo de perda existe uma

dolorosa consciência desse dano que estaria na origem da melancolia dos filósofos de Jena.

Melancolia e modernidade são aspectos apresentados por Kehl a partir da análise do

poema spleen16, que marca simbolicamente a melancolia em Charles Baudelaire. De acordo

com a autora, é através do flâneur17 que o poeta vagueia em busca de fragmentos do passado.

14 Grupo de célebres poetas da época do romantismo. Disponível em: <http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero10/v.html>. Acesso em 03/06/2013. 15 Tal ideia é proposta por Jaime Ginzburg (2012, p. 62), sobre a literatura brasileira e suas imagens viabilizadas pelo movimento melancólico, a partir de um aspecto fantasmagórico. 16 Forma moderna da acedia. 17 O termo significa vagabundo, vadio, preguiçoso, vem do francês flâneur, significa volta, ou seja, é designado aos sujeitos que ficam passeando. Baudelaire utilizou o termo para designar pessoas que andam pela cidade com o intuito de experimentá-la. Assim, a ideia que o flâneur, provoca tem sido utilizado como um produto de compreensão da modernidade. Walter Benjamin utiliza o flâneur, como um produto da vida moderna e da Revolução Industrial. Tais elucidações estão disponíveis no texto “Homem da multidão e o flâneur no conto “O homem da multidão” de Edgar Allan Poe”, de Sérgio Roberto Massagli. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol12/TRvol12f.pdf>. Acesso em 03/06/2013.

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É baseado nesses fragmentos que Baudelaire nomeia alguns grupos representantes do aspecto

urbano em Paris: os mendigos, os operários, os velhos, os bêbados, as prostitutas e todos os

desgarrados das formas comunitárias de pertencimento e amparo do capitalismo. Assim, se vê

em Baudelaire uma forma subjetiva do indivíduo que se completa a partir do isolamento de

seus semelhantes, rivais e irmãos, ou seja, todos são desenraizados dele. Nessa perspectiva, o

spleen baudelairiano é “próximo do tédio, mas não se resume a ele” (KEHL, 2009, p. 74),

devido o spleen conjugar gozo e desencanto, misantropia e gosto estético pelo mal. Então

spleen seria, para Baudelaire, “uma manifestação da indolência natural dos inspirados”

(BENJAMIN, 2009, p. 75, apud KEHL, 2006, p. 285).

É com base no exposto que Kehl analisa a matéria da melancolia em Baudelaire como

uma relação dele com o espaço público, ou seja, o espaço urbano, cujo pertencimento dos

cidadãos é marcado pela perda das formas comunitárias de convívio que a modernidade

destruiu. Na arte de Baudelaire, o Belo é visto como objeto perdido. Diante disso, seu trabalho

é recriar o sublime, a partir dos fragmentos observados como ideal de algo supostamente

perdido. Sobre esse olhar, a autora resenha Walter Benjamin, que vê Baudelaire como poeta

que assume para si a “tarefa heróica de, através da poesia, emprestar uma forma simbólica à

modernidade, esse tempo cujo devir não se anuncia no horizonte” (KEHL, 2009, p. 76), visto

Baudelaire ter percebido muito cedo que a modernidade é uma forma disforme por “ser o que

menos se parece consigo mesma”. Isto é semelhante ao que ocorre com as descrições das

obras de arte de Mundo, pelo narrador Lavo, que é diferente daquilo que foi produzida por

Mundo. Na visão de Kehl, quando pensamos pelo melancólico benjaminiano, até certo ponto

pode ser entendido pelo sentido interpretativo da explicação da questão dos semelhantes pré-

modernos, ou seja, um sujeito que se sente afastado da “dimensão pública do Bem” (KEHL,

2009, p. 77).

A autora conclui que, para Walter Benjamin (2009, p. 78), tanto Baudelaire, quanto

outros poetas teriam perdido “as transformações prometidas pela Revolução Francesa”, pois

Baudelaire participou ativamente do confronto nas ruas nesses períodos, aliado ao

proletariado. Com isso, o que se percebe na análise de Kehl é que foi a desilusão, causada

pelo fracasso da revolução, que se configurou em uma perda de crença voltada à ação pública.

A autora analisa o poema Mon couer mis à nur, de Baudelaire, que tematiza essa

descrença com a revolução e o conformismo irônico de Napoleão III. O poema começa com a

frase: “Minha embriaguez 1848. De que é essa embriaguez? [...] Meu furor ante o golpe de

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Estado. Quantos tiros levei! Mas um Bonaparte! Que vergonha!18. Nesses versos, é bem clara

a temática do descrédito, no movimento e também a insatisfação transferida para a poesia pelo

inconformismo com o líder político da época.

Com isso, a melancolia em Baudelaire emerge pelo viés social, mediante sua relação

conflituosa com a sociedade, pois foi através da vida pública representada, principalmente

pelos espaços urbanos da cidade, que Baudelaire procurou o objeto perdido da modernidade.

Sua poesia elucida um movimento rumo ao sintoma de dor e sofrimento que roga por uma

tentativa de cura em relação à consciência dessa perda. Tal aspecto é visto como ponto

interessante da análise de Kehl, por ser capaz de diferenciar a melancolia freudiana da

benjaminiana. Em Freud, a perda está ligada ao inconsciente, ou seja, sabe-se que se perdeu

algo, mas não se sabe o que foi perdido. No estudo de Benjamin sobre Baudelaire, a perda é

consciente, uma vez que o objeto perdido é visualizado.

Além de Maria Rita Kehl, outros pesquisadores também traçam reflexões acerca da

embriaguez literária criada por Baudelaire como meio de resistir e combater o conformismo

queixoso que caracteriza o melancólico daquela época.

Em nome da arte, o poeta foi um dos únicos que teria rompido com o público, ou seja,

como bem afirma Kehl (2009. P, 80), a romper com “as expectativas estéticas da sociedade

francesa da segunda metade do século XIX”. Mesmo Baudelaire tendo se condenado a um

isolamento social, após o período citado, ele não abriu mão da liberdade criativa.

Kehl (2009, p. 81), com base na discussão entre “Melancolia e fatalismo”19 apresenta a

contribuição mais valiosa de Walter Benjamin, sobre a ideia que norteia o desacordo entre

sujeito e Bem, ou seja, o desembocar da melancolia pela falta de perspectivas sociais ou

individuais, que o melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, sem esperanças ou crenças

nas coisas que sustentam a vida social de seu tempo. Ao contrário do sentimento criativo de

seus precursores renascentistas, o melancólico vê-se em uma atitude fatalista, ligado ao

abatimento e ao sentimento de inutilidade de suas ações, daí o sentimento de insignificância

do sujeito como agente de transformações das esferas públicas e privadas.

Assim, a análise benjaminiana sobre a melancolia leva em conta condições sociais

muitos diferentes daquelas que abatiam o homem da Idade Média, ou seja, a melancolia para

Walter Benjamin pauta-se na “mobilidade social” recém-inaugurada nas sociedades da corte,

precursoras do Estado moderno. Nesse sentido, o conceito de fatalidade melancólica é

18 BAUDELAIRE, 2009, p, 78, apud KEHL, 1867, p.631. 19 De acordo com Maria Rita Kehl, o fatalismo é ligado à origem da acedia, que quer dizer “indolência do coração” (KEHL, 2009, p. 83).

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pensado por Benjamin: logo no início de sua produção intelectual, o autor aponta

manifestações da melancolia desde o período da arte Barroca mediante à

contrarreforma, [a melancolia] é entendida por Benjamin como tributária de uma determinada maneira de se interpretar a história e, consequentemente, de se posicionar diante dos conflitos sociais e políticos do presente [...] [Assim segundo Kehl], “as teses sobre história contêm uma preciosa indicação a respeito do “objeto perdido” da melancolia benjaminiana (KEHL, 2009, p. 85-86).

No caso citado, o objeto perdido seria a multidão derrotada na luta que o processo de

mobilidade social realizara; observada na lírica de Baudelaire, diante do registro da

experiência e consciência do choque produzido pelas marcas que possibilitam a “memória

rememorativa”, que segundo a teoria benjaminiana, a melancolia estaria associada aos fatos

de dor e desalento do pós-guerra, baseada nesse viés que para a autora “A melancolia de

Baudelaire e a lírica do choque” são reproduzidas no texto de Benjamin para provocar

reflexões acerca da leitura “Sobre alguns temas em Baudelaire”, e que acrescenta a ideia de

que

[o]nde há experiência, no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo. Os cultos com seus cerimoniais, suas festas, [...] produziam literalmente a fusão desses dois elementos na memória. [...] As recordações voluntárias e involuntárias perdem assim, sua exclusividade recíproca (BENJAMIN, 2009, p. 167, apud KEHL, 1989, p.107).

Com base nesse aspecto, a experiência do indivíduo surge como produtora de uma

fissura, no âmbito da relação individual com a coletividade, em função de suas várias

movimentações. Tal aspecto ainda pode ser verificado no texto de Benjamin “O Narrador”,

em que há a impossibilidade dos soldados transmitirem suas experiências pós-guerras, para

Kehl a impossibilidade é compreendida como uma “metáfora para o evento traumático das

condições da vida social na modernidade (KEHL, 2009, p. 170)”.

A autora apresenta um processo de diferenciação entre o trauma e o choque, com base

na visão freudiana. Para Freud, o choque ocorre pelo estímulo, e o trauma é baseado no

estímulo irrepresentável responsável por desorganizar o psíquico. Observamos que o interesse

de Walter Benjamin não é caracterizar o trauma, mas a “velocidade com que a consciência é

assolada pelo prosaico e corriqueiro choque” (KEHL, 2009, p. 175). É nessa perspectiva que

Benjamin impõe o choque como sobrecarga das condições da vida moderna.

Na obra de Kehl, verificamos duas caracterizações da melancolia na produção de Walter

Benjamin: a primeira é o sintoma social e a segunda é a prevalência das funções da

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consciência sobre a memória marcada pelo choque. Para a autora, esses dois fatores estão no

campo psicanalítico, que pensa a melancolia como patologia. Percebemos que a psicanálise

tem sido, no decorrer deste trabalho, um campo especulativo que nos permite pensar a

categoria da melancolia não como patologia, mas sim como meio de reação criativa por meio

de estratégias ou ferramentas que a vida moderna possibilita para reagir aos choques, que a

memória traumática insiste em restabelecer.

Com base nesse apontamento, nas reflexões que Maria Rita Kehl nos proporcionou e

pelo que foi exposto anteriormente, entendemos que, para Benjamin, o melancólico é aquele

que não vê sentido na sua existência, ou seja, o melancólico é restrito a uma série de vivências

mecânicas que não resultam em experiências artísticas. Sem essas experiências, ele morre, a

exemplo do que acontece com o personagem Mundo, que, quando deixa de pintar, morre. É a

partir desse processo de identificação, do que seria um sujeito melancólico, que Benjamin

estabelece reflexões acerca da melancolia e da vivência, embasado em recorte temporal da

modernidade voltada ao século XIX. Essa modernidade amparada pelo capitalismo exigia de

Baudelaire o poder da criação em transformar “os choques da vida moderna em matéria

simbólica” (KEHL, 2009, p. 177). A matéria simbólica surge com uma especificidade muito

pontual, que é a de dar forma às teratologias que a modernidade constrói.

Walter Benjamin, ao estudar a poesia de Baudelaire, observa que o tempo da

modernidade para o poeta é percebido como algo disforme, mediante a velocidade com que

supera a si mesmo e ao interesse de se perpetuar através da arte. Então, seria este o motivo do

desejo do poeta, em querer ser lido algum dia como autor antigo? Nesse âmbito, de acordo

com Kehl, Baudelaire, delimita os contornos dos tempos modernos amparado em uma forma

subjetiva do indivíduo, que “representa a si mesmo como um ser autônomo e isolado em meio

à multidão” (KEHL, 2009, p. 177).

Maria Rita Kehl afirma que Benjamin torna Baudelaire um paradigma marcante da

relação entre modernidade e melancolia. A autora diz que esse paradigma não tem relação

com diagnóstico clínico; logo, a autora se posiciona apenas como uma leitora crítica da obra

de Walter Benjamin e não como uma psicanalista, mesmo porque o que a autora pretende na

análise do poeta Baudelaire não é diagnosticar a melancolia enquanto patologia, mas

“sublinhar a relação entre melancolia baudelaireana e seu projeto estético, em que o Belo tem

o estatuto de um objeto perdido” (KEHL, 2009, p. 178).

Em Baudelaire, a beleza está associada com a dor que ela evoca, por exemplo, a das

velhas coisas e das coisas perdidas. Sendo assim, a relação com o Belo vai além da ideia de

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conceitos e valores que são preservados na ideia de beleza. Na obra baudelaireana a beleza é

caracterizada pelo objeto da melancolia dos românticos que transportam a dor para o reino do

mundo através da linguagem poética.

Ao pensarmos um pouco sobre a experiência do personagem Mundo, e o tempo da

narrativa, verificamos o processo pelo qual passam as produções de suas obras de arte. O

percurso feito pelo personagem passa por um tempo que envelhece muito depressa, devido à

velocidade dos estímulos produzidos sem interrupção pelas mais diferentes esferas sociais.

Tais produções mostram que não é possível viver o presente sem “apagar os rastros” do

passado recente. Na modernidade, um vivente do presente envelhece tão depressa, sem nem

mesmo saber que seu fim acontece no presente de sua vivência. No sentido restrito da palavra,

a vivência apresentada por Walter Benjamin estaria numa dimensão especializada da

temporalidade, pautada em um presente contido no trabalho da consciência, de controlar a

recepção dos estímulos e suavizar seus impactos em relação às condições das experiências

propostas por Benjamin. Este ponto de vista sobre a experiência difere da análise de Kehl,

quando afirma a “experiência [como algo] incompatível com a atividade da consciência, [por

se] deixar insensibilizar” (KEHL, 2009, p. 182).

A discussão de Kehl sobre a melancolia voltada à experiência poética de Benjamin,

deixa claro que o autor, ao analisar a poesia baudelaireana, confirma que o poeta precisou

“melancolizar-se” para extrair o material criativo para sua poesia. Mas, para que isso pudesse

acontecer, foi necessário ao poeta um processo de emancipação de suas vivências na Paris

moderna. A mobilização desse processo melancólico, na visão de Kehl, é o tempo, por ele ser

uma dimensão da falta, pois neste caso, ele representa a passagem de fluir da vida; no sentido

de que o tempo tem uma relação direta com a melancolia, por ele ser uma dimensão da

perda20, ou seja, a arte criada, da personagem Mundo tem relação direta com a perda e por

consequente com a melancolia, que se projeta em uma ambientação de reação resistente aos

processos de imposições.

A autora conclui o capítulo descrevendo a cena na qual Baudelaire - o poeta, “enxerga

algo entre os reflexos que a vela projeta nos vidro fechado de um quartinho pobre, que ele

observa através de sua própria janela” (KEHL, 2009, p. 190). Neste processo de observação,

existe um objeto perdido que compõe uma outra cena, que a perda impede seu

preenchimento.

20 Ver nas lituras de Bárbara Lucchesi (1996), as reflexões que Heráclito, realiza com relação ao tempo. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_01_03.pdf>. Acesso em 25/09/2013.

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Vimos que, para Kehl, os conceitos sobre melancolia são construídos a partir das visões

de autores que discutem o tema; além disso, verificamos que o embasamento teórico dela não

se limita apenas no campo psicanalítico, mas também ao campo filosófico, embora

considerado em pensadores como Henry Bérgson e Walter Benjamin, ambos dedicados a

reflexões sobre a melancolia. Ela também abordou, nesses autores, e em outros estudos, uma

distinção entre depressão e melancolia no campo psicanalítico, para mostrar que as posições

subjetivas possibilitaram episódios pontuais em cada uma das patologias.

Logo, diante do exposto, obsevamos que as obras resenhadas neste capítulo constroem

uma relação direta com a psicanálise. Assim, a literatura, ao se apropriar deste campo de

estudo, promove a construção e reflexão de conhecimento no âmbito social, ou seja, o

indivíduo que deseja conhecer ou compreender a fundo as ações humanas cujos mecanismos

estão subjetivados pela experiência clínica pode, também, contribuir para esclarecer o

sofrimento, cujos sintomas da vida social são expressos tanto pela literatura quanto pelas

outras artes.

Apesar das enormes contribuições dos estudos acerca da melancolia que Freud

proporcionou, vale resaltar que para fins deste trabalho não são suficientes, porque de certa

maneira toda reflexão em torno do campo psicanalítico acaba sendo apenas hipóteses, para

possíveis reflexões que a narrativa de Cinzas do Norte suscita.

O luto teorizado por Freud transforma a matéria da arte literária, que Mundo cria, em

matéria especulativa para escalação e efeito de sua arte. Assim, tudo aquilo que faz parte

desse luto, como a violência, a dor, a tristeza, o trauma e o sofrimento, são transformados em

tema artístico.

Para Freud, a melancolia centra-se no estado patológico do luto, assim o indivíduo passa

do luto a perda, portanto o individuo se encontra em estado melancólico quando ele não

transcende o luto; dessa forma, a melancolia se torna um estado doentio, que rumina a perda

até o individuo se autodestruir.

Diante dessas reflexões surge a necessidade de irmos a outras fontes que teorizem sobre

a melancolia e que tratem do assunto a partir de outras perspectivas.

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2.2. A melancolia e o campo filosófico.

No tópico anterior, falamos do conceito de melancolia, voltado ao campo psicanalítico,

por uma questão metodológica, uma vez que o estudo realizado foi direcionado para o

processo de apropriação do referido campo. Vale ressaltar que nesse processo alguns diálogos

foram feitos com o campo filosófico e literário, no sentido de deixar claro que nossa análise

não é baseada no campo psicanalítico, por termos constatado no decorrer da pesquisa que a

psicanálise freudiana não foi suficiente para compreensão da melancolia enquanto categoria

estética, ou seja, para a psicanálise a melancolia é considerada patologia. Neste tópico, vamos

dar ênfase ao conceito de melancolia que tem sido discutido segundo a teoria benjaminiana;

além disso, também trouxemos para discussão algumas leituras e estudos realizados pela

teoria literária e pela teoria da tradução sobre o tema melancolia.

A evidência da melancolia, por Walter Benjamin, é observada nos poemas de Erich

Kastner, a partir dos três volumes de poemas publicados em Berlim, por volta de 1930. De

acordo com Benjamin, para investigar as características das estrofes é necessário lê-las em seu

formato original, pois, para ele, nos livros elas aparecem comprimidas e sufocadas e nos

jornais “deslizam como peixes na água” (BENJAMIN, 1985, p.73). Vale resaltar que a água,

citada por Walter Benjamin, é uma metáfora relacionada à linguagem produtiva, que a poesia

provoca naquele que a lê. É clara a diferença observada pelo autor, sobre a forma como as

leituras são observadas a partir de objetos diferentes.

Observamos, no texto do autor, que o poema e sua popularidade estão diretamente

ligados à camada social, devido ao processo de apropriação do texto (poesia) e sua produção

de significados. Isto promove o poder da camada social que da poesia pode ser abstraído. De

acordo com o autor, a camada é a dos “agentes sem filhos” que prosperam a partir de um

começo insignificante (BENJAMIN, 1985, p. 73). Para Georg Otte e Miriam Lídia Volpe21,

Benjamin nos mostra que há a necessidade de ir cada vez mais longe para detectar dentro da

linguagem as metáforas e, “a própria escrita benjaminiana exige que se mergulhe cada vez

mais nas profundezas das palavras para explorar ao máximo toda a sua abrangência e, a partir

daí, seu possível uso metafórico”.

No texto que estamos resenhando, Benjamin mostra que é para a camada social, citada

anteriormente, que o poeta tem a dizer os gestos de sua maneira de pensar, é ela que o autor

lisonjeia, “não mostrando-lhe um espelho, mas correndo com o espelho atrás dela, desde de 21 Disponível no artigo: Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin. No site: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/download/6415/5984>. Acesso em: 18/07/2013.

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seu despertar até a hora que ela se recolhe para dormir.” (BENJAMIN, 1985, p. 74).

Assim, são os intervalos entre as estrofes, que correspondem metaforicamente aos

indivíduos que fazem parte da camada social que Benjamin faz referência, pois o autor, ao

problematizar a temática da poesia de Kastner voltada à camada social, aponta para o sentido

irônico do poético, no que tange às aparências e, sobretudo, aos interesses de cada grupo

social sobre os estratos médios. Entre esses grupos estariam os jornalistas, os diretores de

pessoal etc.

Outra temática, presente na poesia de Kastner, é o próprio ódio que ela expressa contra

a burguesia, por ser constituída de um aspecto voltado à familiaridade exagerada, mas, por

outro lado, o autor critica o posicionamento da poesia quando através da nostalgia perde de

vista o que se propõe a atingir. De acordo com Benjamin, a perda se configura na seguinte

estrofe: “Oh, se existisse apenas doze homens sábios, com muito dinheiro!” (BENJAMIN,

1985, p. 74).

Benjamin afirma que Kastner é um poeta “insatisfeito e um melancólico”, tendo em

vista o conflito deste poeta expressado por meio de sua poesia, assim como sua relutância em

se manter sob as rédeas da burguesia. Para Benjamin, Kastner ao capturar os elementos do

social permite definir a melancolia criativa de um poeta, que através de sua insatisfação,

observa a rotina de um meio que o enoja, transformando-o em poesia. Como em Ítalo

Calvino22, põe a presença indelével em tudo que se possa falar sobre leveza, pois é a partir

disso que a leveza, ao possuir uma expressão filosófica para a tristeza, se torna melancolia.

Voltando ao texto de Benjamin, verificamos que o autor problematiza questões voltadas

à política e à sociedade, especialmente em relação à posição ocupada pelos radicais de

esquerda para, com isso, mostra que a poesia de Kastner também deriva dessa dialética,

confrontando a natureza das coisas e seus lugares vazios, diante do gesto revolucionário.

Para o autor, Kastner tem grande talento para transformar a luta política em objeto de

prazer, mesmo que com isso tenha que capturar todos os excrementos da camada social e

transformar em elementos de sua poesia.

Podemos pensar por um instante, que esses excrementos fazem parte de segmentos

sociais considerados espantosos, tais como os prisioneiros, os suicidas, os doentes, os loucos

etc. São estereótipos que Kastner transformou em figuras tristes e intumescidas na poesia que

produzira. Seus poemas, segundo a visão de Benjamin, são dirigidos à “tristeza dos saturados,

22 LOPES, Denilson. Do sublime à leveza. Revista Contracampo edição especial / número duplo. nº. 10/11 (2004). Disponível em: <http://www.uff.br/contracampo/index.php/revista/article/view/530>. Acesso em: 18/07/2013.

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que não podem aplicar inteiramente seu dinheiro para alimentar seu estômago. Estupidez

torturada: é a última metamorfose da melancolia, em sua história de dois mil anos”

(BENJAMIN, 1985, p. 77).

É baseado nessa estupidez que o autor afirma que os poemas de Kastner são feitos às

avessas, de forma desajeitada, por pertencer aos fantoches e tristes burgueses, cujo caminho

passa no meio dos cadáveres. Com isso, Benjamin define metaforicamente a melancolia, a

partir da associação dela com a obstrução intestinal, vista como uma interrupção proposital ou

não, por tempo variável, produzida pelos obstáculos sociais, ou seja, no corpo social um ar

sufocante é capar de perseguir o indivíduo e, até mesmo os poemas de Kastner não são

suficientes ou em nada contribuem para purificar o ambiente. Tal situação é próximo ao que

ocorre com as pinturas do personagem Mundo, pois mesmo ele abstraindo toda violência, dor,

tristeza e vazio em suas obras, o ambiente a que ele pertence em nada é purificado com sua

arte. Em suas obras os indivíduos comparam - se aos insetos hemípteros, cujo aparelho bucal

é sugador da identidade daquele que quer se constituir como humano.

Dessa forma, é na proposição ligada ao campo filosófico e também ao campo de estudo,

da tradução sobre a obra de Walter Benjamin, que Susana Lages, em seu livro Walter

Benjamin: Tradução e melancolia (2007), propõe uma discussão voltada à tradução e sua

reflexão histórica sobre a melancolia. Ela considera, em sua tese, quatro articulações que

compõem o caráter intrigante das concepções: a primeira, é a figura de um anjo; a segunda, a

questão da verdade e da narração em suas diferentes manifestações; a terceira, a análise de

Proust e Baudelaire como paradigma de uma moderna escrita melancólica; e a quarta, é a

questão voltada à melancolia em sua conexão com linguagem e morte.

No primeiro capítulo de sua tese, Lages inicia com a citação de George Steiner, sobre a

tristeza particular que deriva do processo tradutório, em relação à impossibilidade do tradutor

de “fazer com que o texto corresponda plenamente ao texto original” (LAGES, 2007. p, 29).

Partindo deste aspecto e trilhando os campos da história e literatura, ela dialoga com vários

estudos de correntes interpretativas sobre a tradução. Nesse percurso, a autora se dedica aos

autores contemporâneos como Heidgger, Paul de Man, Haroldo de Campos e Jacques Derrida.

Além disso, Lages realiza um trabalho de análise meticulosa no texto “A tarefa do

tradutor”, procurando relacionar os temas presentes no texto com a narração ali exposta. Tal

tarefa só é possível de ser observada no âmbito da linguagem, e da sua possível morte, tomada

como modelo de escrita melancólica na modernidade por Baudelaire e Proust.

Assim, como no trabalho de Maria Rita Kehl, Lages também faz em seu trabalho um

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breve percurso histórico, desde o mais remoto registro na Antiguidade, para mostrar a

manifestação da melancolia. Ambas se propõem a entender o surgimento da melancolia com

base em sua origem, ainda que utilizem propostas de análises em campos diferentes, elas

utilizam o suporte teórico intelectual voltado à compreensão da categoria, através do campo

filosófico, passando por pensadores como:

Homero e Sêneca, [que] passando pelos escritos hipocráticos, pela tragédia, pelo pseudo-aristotélico Problema XXX, I, [que apresenta pela primeira vez o]temperamento melancólico associado a personalidade de exceção, à genialidade, e por escritos de médicos como Celso, Sorano de Éfeso[...] (LAGES, 2007, p. 31).

Para ela, o momento da história que mais refletiu a melancolia foi o Renascimento, em

sua forma figurativa e literária. Assim, a melancolia se tornou a “doença da moeda”, que o

influxo do neoplatonismo promoveu; o período da renascença elevando não só o auge da

melancolia, assim como o da loucura, em que são mapeadas as causas e sugestões para o

tratamento das doenças.

Susana Lages propõe ao leitor pensar que os processos de apropriações para escrever a

partir de percurso histórico, em textos que antecedem os de Walter Benjamin são necessários

para “consubstancia[r] à atividade filosófica, do escritor, enfim, do intelectual em geral, para

o tradutor, ela é a premissa concreta, a origem e a possibilidade mesma de seu trabalho”

(LAGES, 2007, p. 35).

A autora afirma que

a melancolia está historicamente vinculada a duas questões fundamentais, implicadas no problema da tradução: à questão da autoridade do texto escrito e o correlato tema da identidade do sujeito que escreve, e a questão da relação entre texto (e autor) presente e textos (e autores) do passado, ou seja, a relação de um autor com a tradição (LAGES, 2007, p. 37).

Na citação anterior, observamos uma clara relação paradoxal em identidade e tradução

vinculada à linguagem escrita, seja em uma obra do passado, ou uma obra do recente

presente. Essa relação paradoxal constitui uma passagem, como afirma Lages, da filosofia

para a melancolia, no âmbito da atividade intelectual, pois essas duas situações, quando

experimentadas no limite pelo tradutor, apresentam riscos que se assemelham ao desejo do

melancólico que é a perda de multiplicidade dos sentidos infinitos das línguas, ou seja, a

possibilidade de o tradutor chegar ao vazio do “sem-sentido – para, enfim, fazer confluir

todos os sentidos no silenciar definitivo da morte” (LAGES, 2007, p. 37).

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No âmbito do percurso histórico da melancolia, a autora inicia sua análise da categoria,

pela representação nas artes, em especial na pintura. Para Lages, desde a Idade Média, as artes

visuais determinavam uma espécie de icnografia, voltada à Iconologia de Cesare Ripa, datada

do final do século XV. Além desse, também o estudo de Erwin Panofsky, sobre a obra do

alemão Albrecht Dürer, por volta do ano de 1943. Entre as obras estudadas de Dürer, a mais

enigmática representação do humor melancólico foi o quadro Melancolia I. De acordo com

Lages, a obra é demarcatória no que tange às artes plásticas e à história da melancolia. Além

desse aspecto, a obra de Dürer possibilita uma reflexão pontual sobre a tradução, pois a

singularidade da obra e a inserção no período da Renascença refletem várias leituras sobre a

melancolia, devido ao contexto em que a obra é inserida.

Com base no aspecto citado, Lages discorre sobre o fazer tradutório da obra,

justificando o sentido de uma tradução de um texto para outra língua, influenciado pelo

período que é associado, ainda que seja este o pensamento e haja erro de fundação da

tradução. Diante disso, Lages destaca alguns aspectos que considera importante. Um deles se

dá pelo fato da obra ter sido numerada com algarismo romano I. Essa enumeração

corresponde à ideia de que a obra é uma representação neoplatônica, o que permite uma

definição de leitura voltada a três tipos de melancolia: a) melancolia imaginativa (imaginatio),

própria dos artistas; b) melancolia concentrada na razão (ratio), própria dos filósofos e

cientistas; c) melancolia concentrada na mente (mens), instruída por espíritos superiores

quanto às questões relacionadas às leis divinas e salvação da alma;

Esse três tipos estão diretamente ligados à atividade humana, baseada nos grupos de

definição da melancolia. Lages também realiza estudo sobre os outros quadros de Dürer,

sendo um deles a gravura São Jerônimo em seu gabinete. Esta obra também corrobora para o

estudo sobre tradução que tem como tema a melancolia. Com essas duas obras, Lages faz uso

das citações de Walter Benjamin como forma de ilustrar a teoria da tradução e o que ela

possibilita discutir na modernidade, uma vez que para Benjamin são as “coisas insignificantes

[que] aparecem como cifras de uma sabedoria misteriosa” (BENJAMIN, 2007, p. 37, apud

LAGES, 1989, p. 159), que permitem leituras e reflexões diversas.

Lages adota em sua análise o estudo que Walter Benjamin faz da poesia de Baudelaire,

reinterpretando esse estudo para o campo da tradução. Com isso, oferece uma descrição

alegórica da ideia obscura presente na obra düreriana. Vale salientar que a alegoria de que

estamos falando, neste ponto da tese de Lages, se alicerça na ideia de ruína.

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Uma das conclusões que a autora chega é que o trabalho de tradução, realizado a partir

da técnica, na gravura de Dürer, problematiza uma “técnica de representação artística”,

através da qual o autor realizou obras definitivas. Nesse contexto, a reinterpretação

(reprodução das gravuras através da técnica), não gera apenas uma obra única e original, mas

sim a possibilidade de se ter, a partir de uma matriz, inúmeros originais, ou até mesmo

inúmeras cópias. De acordo com Lages (2007, p. 48), a arte produzida por Dürer é marcada

pela invenção da imprensa que, por estar ligada à escrita, se relaciona em sua forma mais

acabada com o texto impresso (o livro), a exemplo da gravura de São Jerônimo, visto toda

gravura ser uma mera descrição do livro, desde seu título. Sendo assim, a forma como o

objeto é apresentado, pode ser rapidamente descrita como objeto de leitura dos religiosos.

Na gravura de São Jerônimo em seu gabinete, verificamos os elementos alegóricos que

aparecem: o sino, o cão, o morcego, o arco-íris, o quadrado mágico etc. Para a autora, esses

elementos pertencem a uma iconografia tradicional, mas que “na gravura de Dürer parecem

adquirir algum outro significado” (LAGES, 2007, p. 48). Para Lages, esse outro significado

depende da figura ativa do leitor caso esse leitor atribua outro significado aos elementos

alegóricos da gravura. É no viés entre alegoria e símbolo, no texto de Walter Benjamin A

Origem do Drama Barroco, que

Dürer constitui uma espécie de emblema da representação alegórica como produto de uma visão fundamentalmente ligada a melancolia, afeto que tende a reforçar todo e qualquer movimento de cisão, separação, distância temporal (LAGES, 2007, p. 52).

O aspecto acima citado funciona, na tese de Lages, como item de transição que se

manifesta tanto na teoria da melancolia, quanto na de tradução, pois ambas possuem uma

história secular, por possibilitarem que cada nova época encontre novas soluções para as

questões antigas, mas em novas chaves. É por isso que no século XX a teoria da melancolia

recebeu uma leitura psicanalítica, que tem sido discutida até hoje, início do século XXI. Na

atualidade, a leitura sobre o viés psicanalítico talvez não seja mais suficiente para dar conta

dos aspectos ligados à arte literária a partir de dois aspectos: o primeiro, ligado à ideia de que

os campos de estudos, ao mesmo tempo em que se aproximam, também podem se distanciar,

devido suas particularidades e um segundo, ligado à ideia de que a arte da leitura não se

associa à patologia.

Pautada no exposto, a tese de Lages faz uma reeleitura da teoria psicanalítica e da teoria

da tradução, ou seja, para a primeira, a autora se baseia no texto de Freud e, para a segunda,

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nos textos de Walter Benjamin. Ambas propõem visões diferenciadas sobre a melancolia, mas

contribuem para uma reflexão crítica acerca da teoria, por problematizarem aspectos ligados à

história, cultura e memória, mesmo que a melancolia em Walter Benjamin seja um motivo

evidente da tese de Lages.

Outra conclusão da autora (2007, p. 101), sobre a melancolia é pontuada segundo a

produção escrita de Walter Benjamin, por ela se constituir como articulação, na medida em

que cada texto se renova em planos que se contrapõem a uma prosa, “que se constrói sobre o

signo da duplicidade [...] o recurso do texto benjaminiano a oposições, ambivalências,

comparações, polaridades tem também seu duplo na tentativa de realizar sua dissolução [...]”.

Essa construção dúplice resulta na reflexão da linguagem de maneira analogicamente

intrínseca e paradoxal. Daí o objeto de reflexão de sua própria constituição. O mesmo ocorre

com as pinturas de Mundo com relação ao uso da linguagem metaforizada pela arte presente

nas obras criadas pela personagem. Elas tornam-se objetos de reflexão de sua própria

constituição para o leitor, pois a interpretação pode ser estranha e possivelmente grotesca,

devido à matéria violenta de que as pinturas foram produzidas e o efeito que as pinturas

provocam naqueles que as observam, ou seja, quando pensamos na obra e no artista

(personagem), vemos a interpretação de um objeto que resulta de operações violentas e suas

expressões se fundam em um grande conflito entre o Eu e o Mundo,que a arte provoca, por

estar dotada de um pano de fundo histórico, social e político.

Baseada na teoria benjaminiana, Lages afirma que “toda referência a linguagem implica

concomitantemente uma referência à sua forma escrita” (LAGES, 2007, p. 149). É por isso

que toda forma de arte deve ser entendida como manifestação da linguagem em uma

pluralidade infindável de sentidos dispersos e apreendidos por quem os observa. Dessa forma,

Lages conclui sua tese mostrando o enigma de uma composição inédita extraída da tradição

filosófica e literária de Benjamin, que utilizava as imagens como função esclarecedora de um

contexto vazado, em um processo de interpretação que problematiza o texto e sua escrita. É

justamente nesse movimento que a melancolia se funda no processo de tradução, resultando

em uma melancolia ambígua, produtiva e não mais destrutiva. Neste caso, o ato de ler liga-se

diretamente ao objeto (o texto) de forma aprisionada, por ser alheio em relação ao leitor.

Outro estudo relevante para este trabalho, sobre melancolia, é o de Susan Sontag (1986),

Sob o signo do saturno, no qual ela faz uma análise minuciosa das fotografias da face de

Walter Benjamin. Nessa foto, ele aparece com o olhar voltado para o chão e o rosto apoiado à

mão direita. Tal imagem é comparada à pintura de Dürer, Melancolia I. Sontag, em sua

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pesquisa, pauta-se na ideia de que o melancólico de Benjamin é o ser da modernidade, em que

a obra de arte perde o lugar da comunicação e de sua função social. Esta perda torna o poeta

um ser sem lugar dentro da sociedade; por ser um lugar problemático, a perda está no âmbito

daquilo que a arte tinha de aurático.

Além disso, verificamos na obra de Sontag a ideia de perda analisada segundo a figura

de Baudelaire, que representa o ser melancólico que perde seu lugar problemático, por não

mais estar atrelado à melancolia freudiana. É neste caso que observamos o sujeito, no caso de

Baudelaire, que se torna um ser sem lugar. Analogicamente, observamos a personagem

Mundo, através de sua arte, em busca de um lugar que não é próprio dele. Isto é verificado

pela elaboração do discurso do narrador Lavo, que se funda em uma profunda apatia que

antecede a melancolia. A partir da descrição do narrador sobre a relação conflituosa entre

Mundo e o pai (Trajano), observamos em sua narrativa uma fala sobre as obras de arte que

não é própria de Mundo, e sim da elaboração estética de Lavo, que se eleva pela forma como

abstrai a relação conflituosa exposta.

Para Sontag, a fotografia de Walter Benjamin deve ser analisada como a de um filósofo

da modernidade pois, para ela

Benjamin se projetou em todos os seus principais temas, e neles projetava seu temperamento, que determinava sua escolha. Era o que ele via nos temas, como os dramas barrocos do século XVII (que dramatizavam diferentes facetas da “apatia saturniana”) e nos escritores a respeito de cujas obras escreveu de forma tão brilhante – Baudelaire, Proust, Kafka, Karl, Kraus. Descobriu o elemento saturniano no próprio Goethe [...] (SONTAG, 1986. p. 85).

De acordo com Sontag, “não se pode interpretar a obra a partir da vida”, mas é possível

a partir da obra interpretar a vida. É baseada nesta proposição que a autora realizou um vasto

estudo em dois livros: o que trata da reminiscência na infância de Walter Benjamin, e o da

época de estudante em Berlim, ambos escritos nos anos 30. Com isso, a autora aponta um

traço muito característico presente na vida de Benjamin, que é a sua referência ao ser

melancólico, que despontava na solidão da grande metrópole. Isto se dava pela atividade

intelectual do filósofo, que caminhava sem destino, livre para sonhar, observar, refletir e

viajar através da própria solidão.

Assim é possível se obervar que lentidão, solidão e apatia são movimentos contrastantes

da vida moderna, visto que tudo gira de forma muito rápida, como se fosse uma rua de mão

única. Estes apontamentos ocorrem pelo processo de rememoração, que resulta em um

movimento de recriação na escrita, por Benjamin, na medida em que o método de rememorar

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a própria vida rompe com todo tipo de linearidade. Este é um aspecto presente na tese sobre a

história, pois o rompimento, neste caso, permite momentos que fazem a comunicação entre o

presente e o passado, de forma que o presente altera o passado ao pensarmos que “Benjamin

considera tudo aquilo que seleciona para relembrar” (SONTAG, 1986, p. 87).

Constatamos, na análise de Sontag, que não há uma ordem cronológica nas

reminiscências de Benjamin, o que se aproxima das obras de arte da personagem Mundo, pois

o jovem pintor expressa em sua obra a passagem pela vida, pela família e pela sociedade, sem

uma cronologia social pontual, mas de um ponto de vista da história e da política em que vive.

As obras de Mundo são construídas obedecendo a um processo inverso de desconstrução da

vida, em que se define o tempo político, e o faz desmoronar pelo uso de sua memória como

encenação do passado, transformando cada tela em história do mundo social grotesco

representado pela arte.

Assim, a autora possibilita a observação da melancolia como percepção da história e de

catástrofe, presentes na origem do drama barroco. O texto trabalha o conceito de alegoria

como algo que vai se contrapor ao símbolo daquilo que é simbolizante e simbolizado,

deixando sempre uma espécie de abertura. Diante desse movimento alegórico, com o futuro é

possível redimir o passado, a partir do rompimento com a linearidade.

Com tal ruptura há o efeito de esvaziamento, culminando em um processo melancólico,

verificado na confecção da arte da personagem Mundo. Porém, isso apenas é possível

observar através do discurso de Lavo, que mostra Mundo como aquele que instiga o mundo a

refletir sobre a sociedade. Logo, a melancolia, ao possibilitar a reflexão, se constrói no âmbito

da criação. Assim, todo conhecimento derivado das observações do personagem Mundo

assume a forma de arte, pois, “o melancólico vê o próprio mundo se tornar coisa: refúgio,

refrigério, encantamento” (SONTAG, 1986. p. 95).

Com base no texto de Sontag é possível fazer aproximações entre Mundo e Baudelaire.

O último, escreve interruptamente sobre a vida e Mundo pinta incessantemente a forma como

vê a sociedade onde vive, expressando seus devaneios e temperamento melancólico, atrelados

diretamente ao trabalho de pintar. Suas pinturas são eventos mortos/vivos do passado e suas

experiências recriadas pela arte como recortes de memória construídos em mosaicos.

Sontag, ao pontuar algumas posições trilhadas por Benjamin, evidencia as posições:

teológica, surrealista/estética e comunista do filósofo. Para ela, mesmo ele tendo esses

posicionamentos, suas decisões tendiam a prejudicá-las; por exemplo, a rua de mão única que

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permite ao indivíduo proclamar seu direito de levar uma vida independente. Com isso, o

melancólico dá a sua posição às escolhas associais de independência.

Idelber Avelar (2003), ao dialogar com outros críticos sobre o tema do luto e da

melancolia, afirma que no pensamento de Walter Benjamin não há uma teoria que defina cada

um dos termos. Para Avelar, a oposição binária freudiana do luto e da melancolia não existe

no pensamento de Benjamin. Para este, a melancolia é a condição necessária para a realização

de qualquer trabalho, até mesmo o trabalho do luto. Sem a melancolia, afirma Avelar,

retomando o pensamento de Benjamin, não há trabalho, o que há é apenas a técnica.

Logo, a literatura, ao apresentar a melancolia, pode provocar a reflexão sobre processos

históricos, estéticos e epistemológicos. A partir do estudo da melancolia em narrativas de

resistência é possível se ter uma maior compreensão de como, culturalmente, o período

histórico da época da Ditadura Militar e uma série de dimensões éticas, relacionadas à

resistência política contrária ao regime, foram compreendidas pelo campo literário.

É a partir da compreensão do campo literário sobre a temática da melancolia que

observamos na obra Literatura, violência e melancolia (2012)23, do pesquisador Jaime

Ginzburg, o capitulo três do novo livro, intitulado: Morte e Melancolia, tem início com a

intrigante pergunta: “Como fala o melancólico?” (GINZBURG, 2012, p. 47). A partir de um

rápido apanhado sobre a Antiguidade Clássica, Ginzburg define a melancolia segundo

Hipócrates que a define no Aforismo 23 do livro VI de seus aforismos. “Se o medo e a

tristeza duram muito tempo, tal estado é própria [da] melancolia” (PIGEAUD, 2012, p. 47,

apud GINZBURG, 1988. p. 58). Tal formulação aparece em outro texto de Ginzburg (2001),

intitulado Conceito de melancolia, em que o autor realiza uma descrição das concepções

clássica, romântica e moderna sobre a melancolia.

Voltando ao texto que estamos resenhando, Ginzburg afirma que a noção de tristeza

enquanto formulação da melancolia tivera importante desdobramento no livro de Constantino

El Africano, escreveu:

Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem na alma parece ser o medo e a tristeza [...] Com efeito, a definição de tristeza é a perda do mundo intensamente amado. O medo é a suspeita de algo que causará dano (CONSTANTINO, 2012, p. 48, apud GINZBURG, 1992, p. 15).

23 A noção de melancolia, apresentada nesta obra, remete a um celebre trabalho do autor, Conceito de melancolia, que centra sua análise em mapear o entendimento da categoria nas épocas Clássica, Romântica e Moderna, que também foi objeto de estudo desta dissertação.

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Para Ginzburg a teoria da perda é desenvolvida a partir da noção de tristeza em

Constantino. Assim, “os melancólicos são, entre outros, os que perdem seus filhos e amigos

mais queridos, ou algo precisos que não puderam restaurar” (CONSTANTINO, 2012, p. 48,

apud GINZBURG, 1992, p. 40). Dessa forma, para situar o espaço e tempo do melancólico, o

Ginzburg afirma que o melancólico “estaria [...] em uma espécie de ponto de mediação

temporal, a partir do qual vê com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se inquieta

com o futuro, pelo medo de um possível dano” (GINZBURG, 2012, p. 48). Seria essa

inquietação que motiva a personagem Mundo, do romance Cinzas do Norte, a recriar

artisticamente o universo ao seu redor. E isto se dá em razão de suas perdas em todas as

esferas da sociedade, resultado de um medo que o provoca sempre reelaborar a memória do

vivido.

Outra questão levantada por Ginzburg é a não dialética voltada a um lugar, em que não

há sossego devido às dores do passado, projetado em um futuro que não oferece paz. Para

elucidar essa questão o autor utiliza os exemplos que fazem referência às construções afetivas

das personagens Hamlet, de Shakespeare, Riobaldo, de Guimarães Rosa, e André, de Raduan

Nassar. Nessas narrativas é claro o sentido de perda que gira em torno dos personagens. Em

Hamlet, é a relação conflituosa com o pai: em Riobaldo, é a perda de Diadorim; e em André, é

a perda de Ana.

Há nos respectivos personagens a presença da tristeza provocada por um sentimento de

perda que, segundo Ginzburg, elabora “uma imagem icônica da melancolia, na tradição

ocidental, é o planeta Saturno” (GINZBURG, 2012, p. 49), ou seja, um modelo capaz de

definir a melancolia nos dias atuais.

O autor faz uma analogia do planeta Saturno com o deus Cronos da Antiguidade

Clássica, mediante sua imagem dúbia, que tanto pode simbolizar a solidão quanto a sombria

morte. Pelo que observamos, o autor utiliza o exemplo de Cronos para mostrar que na

Antiguidade era possível se ter a imagem icônica da melancolia.

Diante das relações entre literatura, violência e melancolia, que o Ginzburg fundamenta

sua hipótese com base na tragédia de Hamlet, no intuito de mostrar como “O príncipe

melancólico” suscita reflexões acerca da compreensão da melancolia na literatura, a partir da

descrição do episódio em que Hamlet reconhece que a morte formula um problema de

identidade, assim como a elaboração do problema relacionado à perspectiva de morte dos

soldados do exército. Além disso, com a confirmação de que foi o próprio tio o responsável

pelo assassinato de seu pai, Hamlet traça um plano de vingança, que culmina em sua morte e

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de sua mãe. A personagem dessa tragédia é considerada por Benjamin (2012, p. 51, apud

GINZBURG, 1984, p. 180), segundo a afirmação de Walter Benjamin, como um “paradigma

da melancolia”, devido ao seu comportamento e a sua necessidade íntima de impor-se à

aceitação do meio.

Diante disso, Ginzburg, mostra que o teatro, assim como outros gêneros literários, de

fato propõem a construção de um “caráter [...] de imagem humana [através de uma] afirmação

da arte, como campo de manifestação capaz de subverter o cinismo” (GINZBURG, 2012, p.

52).

Após termos feito esse longo percurso teórico pela categoria da melancolia, vamos, a

partir do próximo capítulo, analisar o romance Cinzas do Norte, com vistas a verificarmos

como a melancolia se apresenta na elaboração da personagem Mundo e no discurso do

narrador Lavo, na medida em que essas personagens exteriorizam, de maneira diferente, seus

traumas. O trauma sofrido pela personagem se apresenta como um desdobramento que

culmina em uma melancolia criativa, exteriorizada e metaforizada nas pinturas e instalações

artísticas que tematizam tanto a melancolia, como o grotesco, o feio, a família, a sociedade, a

cidade, a memória etc. Lavo, ao narrar e descrever essas obras, problematiza a forma como as

esferas sociais, institucionais, políticas e econômicas refletem os sintomas da melancolia no

sujeito contemporâneo.

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CAPÍTULO 3: O relato (em Cinza) de Lavo

A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro [...].

Le Goff (2003, p. 471)

A memória enquanto efeito em uma narrativa ficcional se dá às vezes pela forma como

a perda se expressa. E toda perda é ausência. O “espelho onde observamos os ausentes”24

pode ser assim representação e ao mesmo tempo reflexo. Em Cinzas do Norte esse espelho é a

memória. A memória é o desenho que reflete as impressões, sociais, históricas e políticas

inerentes aos tempos. Desse modo, é com base nessas reflexões inspiradas na epígrafe citada

que este capítulo apresenta dois momentos. O primeiro apresenta algumas referenciais

teóricas acerca da memória. O segundo converge para a possibilidade de vermos Cinzas do

Norte como metaficção historiográfica, condição que nos auxilia a melhor analisar a

melancolia em Mundo e a relação desta com as temporalidades imersas no romance em tela.

3.1. Tempo e Memória: movimentos em Cinzas do Norte

A hipótese nuclear desta dissertação pauta-se na ideia de que Mundo é uma personagem

melancólica, inclusa em universo social e histórico marcado por várias formas de violência. A

reelaboração desse universo agônico como arte instaura na narrativa de Cinzas do Norte pelo

menos dois grandes movimentos de reação, quais sejam: a produção das obras de arte por

parte de Mundo e a elaboração da memória testemunhal realizada por Lavo.

Com base nessa perspectiva trazemos as concepções de Walter Benjamin acerca da

melancolia discutida nos capítulos anteriores, assim como o debate realizado por seus

comentadores sobre o referido tema. Essas concepções nos ajudaram a observar que a arte

utilizada pelo personagem Mundo surge ligada aos efeitos de reação. Dessa forma, o artista

faz uso da arte para reelaborar seu universo individual e, ao mesmo tempo, reelabora o

universo coletivo e com isso alcança o universo cultural, social, político e familiar. Essa

reelaboração, porém, está longe de ser pacífica, condição que o narrador de Cinzas do Norte

não demora a nos revelar:

24 A citação faz referência ao escritor francês Joseph Joubert.

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Ainda guardo o seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de Londres: “Ou a obediência estúpida, ou a revolta” (HATOUM, 2010, p. 7).

O artista Mundo reproduz em tela o mundo que observa e apreende; mundos fortemente

ancorados na violência, no autoritarismo, no sofrimento e, principalmente, no desencanto.

Nesse universo surgem aspectos que podemos compreender como sendo próprios dos estados

melancólicos: a sensação de vazio, a apatia, a tristeza, relacionados às experiências de Mundo,

personagem que vive o luto relativo a afetos e experiências fracassados.

Observamos o luto do protagonista como forma de resistência que se manifesta pela

representação prosopopéica, de uma realidade metaforizada, em elementos grotescos e que

pululam nos objetos artísticos por ele produzidos. A prosopopéia tem a função de figura pela

qual se dá vida à ação, ao movimento e voz às coisas inanimadas. Ela empresta voz a pessoas

ausentes ou mortas e até mesmo aos animais; no processo de abstração do artista, trazem a

público o mundo deteriorado, corrupto, infecto e pervertido, manifestado pela linguagem

artística. Nas últimas cartas escritas para Lavo, Mundo evidencia, a partir da personificação e

da expressão da dor e de tristeza, o mundo político e social que conheceu, como algo

contaminado, dotado de sofrimento e angústia. Um exemplo dessas apreensões é uma tela

intitulada “Corpos Caídos”, assim apresentada por Lavo:

Corpos caídos25 foi a primeira sequência que ele deixou sobre sua carteira em uma manhã em que foi à cantina. Vimos nossos corpos tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas: o Minotauro, meio monstro e o único sem cabeça, o Delmo com a cara de gafanhoto, e o professor, no centro da quadra, um arlequim atarracado, a cabeça separada do corpo. Os desenhos distorciam e misturavam nossos corpos, reconhecíamos traços de nós mesmos e de outros, de modo que todos se sentiram ultrajados (HATOUM, 2010, p. 13).

Tais apreensões vêm à escrita de Cinzas do Norte, na forma de um intenso trabalho

rememorativo, desencadeado e constituído por Lavo. É consenso entre os estudiosos da

produção de Milton Hatoum, que a memória tem um papel capital, no conjunto da produção

desse escritor. José Alonso Torres Freire (2008, p. 180) nos indica que em todos os romances

de Hatoum “há uma visão crítica dos efeitos destruidores de um ‘progresso’ desordenado que

desfigura completamente a cidade de Manaus”. Além de não fugir a esse dever de memória

que prefigura outros romances, em Cinzas do Norte essa memória assume a face do culto à

25 Nome dado à primeira obra de arte produzida pelo personagem Mundo.

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ruína, especialmente nos objetos que compõem a produção artística de Mundo. Destacamos

que a composição de seus objetos artísticos não apenas assumem esse culto à ruína, como se

constituem de maneira ruiniforme.

Desde o surgimento das primeiras civilizações o homem sempre procurou registrar suas

memórias através dos recursos mais primitivos de arte. Com o surgimento do desenho na pré-

história, o homem das cavernas grafava, por meio de desenhos, os hábitos e experiências dos

primitivos. Tais registros eram realizados através das pinturas rupestres26. Estas pinturas eram

utilizadas como formas de expressão e comunicação antes mesmo que se consolidasse uma

linguagem verbal. Nesse sentido, com a consolidação da linguagem, o homem passou a

refinar seus rabiscos através de pinturas que retratavam a memória social de um indivíduo ou

a memória coletiva de seu povo, principalmente seus costumes e hábitos.

Na contemporaneidade, o homem também continua grafando os registros das histórias,

de sua vida, Cidade, Estado, País e Nação, nos mais diferentes objetos artísticos, objetivando,

com isso, manter viva a memória política, social, econômica e cultural de que fez parte. Hoje

o registro é feito de diversas formas e entre elas, estão: pinturas, fotografias, instalações,

gravitaria, esculturas. Além dessas, ainda temos o romance, o conto, a poesia, as narrativas

fílmicas, o documentário, a música etc. Com isso, o homem contemporâneo, ao se utilizar da

tecnologia, expandiu de maneira fantástica os recursos que servem de retenção dos dados e

fatos relevantes da história e recuperados pela memória.

Entretanto, enquanto as pinturas rupestres são utilizadas pela arte com base em um

processo de imitação da realidade, as artes plásticas contemporâneas são registros de uma

apreensão individual não coletiva com o intuito de distorcer a realidade. Cinzas do Norte é

uma narrativa cujo reservatório de recordações é instaurado nos diversos objetos artísticos

produzidos por seu protagonista.

Nas primeiras páginas do romance, o narrador descreve as primeiras recepções em

relação às caricaturas desenhadas por Mundo:

causaram alvoroço no Pedro II: apareceram na capa dos quatrocentos exemplares do Elemento 106, o jornaleco do grêmio. Destaca-se o desenho do semblante carrancudo do marechal-presidente: a cabeça rombuda, espinhenta e pré-histórica de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto de uma carapaça. Ao redor das patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições grotescas; o maior deles, o Bombom de Aço, segurava uma vara e ostentava na testa o emblema do Pedro II. (HATOUM, 2010, p. 12).

26 Algumas leituras sobre este assunto foram coletadas no site: <http://www.fumdham.org.br/pinturas.asp>. Acesso em: 22/06/2013.

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A ousadia do artista e a façanha dos redatores renderam a eles um mês de suspensão e a

apreensão do jornal. Mesmo assim, a capa do Elemento 106 ficou exposta nos mais diversos

espaços do colégio, principalmente nas portas dos banheiros, das salas de aulas e da direção.

A arte, por menor que pareça sua expressão, causa em seus observadores efeitos que se

instrumentalizam pela recomposição do imaginário. A partir dela a memória se apropria de

aspectos singularizadores que trazem, ao presente, fenômenos que nem sempre são os mais

belos de serem apreciados.

Para Peter Burke (1992, p. 2)27 a memória constitui toda “atividade humana [...]

portadora de uma história”. No caso do romance Cinzas do Norte, a narrativa se propõe a

contextualizar aspectos ligados à história recente do país. É a partir da remissão à história que

o trabalho com a memória vai sendo construído, como vemos mais detalhadamente no

próximo capítulo seguinte. Assim, os links com o tempo histórico são pontuados de maneira

cuidadosa pelo narrador, na medida em que ele demarca o período da história a que remete

suas memórias. A história da cidade de Manaus vem a lume juntamente com a história das

andanças de Mundo e movimentações de Lavo. Assim, o ano de 1961 marca historicamente a

mudança de residência do narrador:

No inicio de 1961, quando nos mudamos para o centro, o Morro da Catita ainda era formado de chácaras e casinhas esparsas no meio de uma mata que começava em São Jorge e se estendia até o limite de uma vasta área militar (HATOUM, 2010, p. 17).

Com a mudança do narrador e de sua família, ocorre um processo de demarcação do

espaço físico da cidade, mostrado no romance como sendo parte de um processo de

urbanização, que foi sendo construído mediante delimitações e critérios políticos, sociais e

territoriais, advindos de acordos tácitos nem sempre claros.

Outro momento também pontuado pela narrativa é o ano de 196028, período em que tem

início a história do rádio FM, no Brasil. Ainda nesse período foi criado o tradicional programa

de rádio, chamado a “Patrulha da Cidade”, que está no ar até os dias de hoje, e que abordava

assuntos policiais. Atualmente, a rádio destaca-se pela cobertura de jornalismo e esporte

(COMPÊNDIO, 2012, p. 18).

Vale ressaltar que existem na narrativa outras pontuações importantes acerca da relação

27 Disponível em: <http://etnohistoria.fflch.usp.br/sites/etnohistoria.fflch.usp.br/files/Burke_Nova_Historia.pdf>. Acesso em: 03/06/2013. 28 Material disponível em: <http://www.abert.org.br/site/images/stories/pdf/AHistoriadoR%C3%A1dionoBrasiVERSaO%2020112.pdf>. Acesso em: 12/08/2013.

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entre história, memória e ficção, que se dão a partir da remissão a datas e episódios históricos

reconhecíveis. Uma relação que vai sendo tecida pelo texto literário diz respeito às datas

como espaços demarcatórios da experiência de cada personagem; como acontece, por

exemplo, com Arana:

o tempo é engenhoso e fez das suas. Luciete Velina morreu e deixou a casa da Ilha pro Alduíno Arana. Isso foi no começo de 1955, antes de eu ir pra Vila Amazônia. Ele deve ter algum talento, mas o charlatão é mais genuíno que o artista. (HATOUM, 2010, p. 77).

Arana pintou o retrato de sua esposa em todos os cômodos da casa para convencê-la a

deixar a herança para ele. A data em destaque, 1955, não somente sustenta a organização da

narrativa como também desencadeia uma reflexão crítica por parte do narrador em relação ao

comportamento de Arana como artista. Essa reflexão comporta a ideia de que a arte não pode

ser confundida com charlatanismo e nem deve ser manuseada por aproveitadores, cujas

virtudes apregoam com exagero, uma vez que o objeto artístico é único, e por ser único, sua

expressividade alcança um universo que transcende o plano material.

A narrativa continua fazendo do tempo um aliado das memórias, com o intuito de nos

propiciar, através da arte, os momentos de maior tensão no processo criativo do artista.

Mundo, quando morou na Europa, escreve a Lavo: ao iniciar a carta, expressa suas angústias

melancólicas no processo de criação e recriação do mundo a partir de suas vivências.

Brixton, Londres 8-18 de outubro, 1977 Malditos papeletes, Lavo! E malditas palavras emperradas, frases travadas... Desenhar é minha sina, escrever é um martírio [...] Se eu não começar a rabiscar agora, nunca mais... Vou escrever em ritmo de conta-gotas, meia página por dia. Europa, três anos aqui e apenas dois amigos [...] (HATOUM, 2010, p. 179).

No fragmento citado, verificamos que o ano em que a carta foi escrita é após a Ditadura

Militar. Daí a dificuldade do personagem Mundo em trazer a código suas memórias, pois é no

período que antecede 1977 que Mundo sofreu suas maiores violências e torturas,

principalmente pela instituição familiar e pela instituição política sustentada pelo regime de

imposição. Com isso, fica evidente o tom melancólico descrito no início de sua carta.

O ano seguinte é marcado pela narrativa em dois momentos. O primeiro, diz respeito às

memórias do narrador em relação a seu tio Ranulfo e as histórias de suas andanças; e o

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segundo, faz referência à memória do narrador sobre os relatos que a personagem Naiá29 faz

da vida de Mundo. De acordo com o narrador, Naiá relata vários dos momentos da juventude

rebelde de Mundo e como os atos de resistência realizados pelo personagem o levaram a um

processo melancólico que culminou em um grande padecimento e pesar pela vida, mas ao

mesmo tempo em uma intensa criatividade. Vejamos alguns fragmentos do romance:

No primeiro domingo de 1978, ao ver Ranulfo sentado na escada que conduz a minha casa, pensei: veio contar a façanha de Arana, da qual todos já sabiam. A serraria e a fábrica de móveis que o artista da ilha estava construindo na surdina [...] (HATOUM, 2010, p. 192), (Grifos nossos). Contou como o “menino” havia sido preso e depois espancado numa delegacia de Copacabana. “Isso foi no fim de janeiro de 1978”, recordou. “A gente passou uma noite toda esperando por ele, e só soube da prisão pelos jornais. Dona Alícia pagou... deu uns dólares para o delegado e um dinheirinho para os policiais. Aí, o menino saiu. Um bagaço de tanta porrada. Sentia tontura, andava bambo, desmaiava. Mas, quando chegou de Londres, vivia falando de Manaus. Queria te ver e mostrar as pinturas... Dois amigos dele enviaram cartas [...]. A patroa nem quis saber, nem avisou que o menino tinha morrido. Mas eu escrevi para os dois, na minha língua. Borrei as palavras de tanto apagar e corrigir, mas contei tudo. Disse que ele morreu de tristeza, no Carnaval... (HATOUM, 2010, p. 212), (Grifos nossos).

Para Burke (1992), a memória pode ser estudada a partir de dois aspectos: o primeiro,

diz respeito ao estudo da memória como fonte histórica; e o segundo, é a memória enquanto

fenômeno histórico. A pesquisa que estamos desenvolvendo, no que tange à história, à

memória, é baseada no primeiro aspecto. Porém alguns recortes são feitos com base no

segundo aspecto. Por exemplo, as obras de arte descritas pelo narrador de Cinzas do Norte

podem ser analisadas a partir de um dado fenômeno histórico, em particular, o da Ditadura

Militar. Esse fato é visualizado a partir do processo de criação e recriação melancólica de uma

arte arrolada em determinadas recordações, as quais os elementos históricos estão atrelados.

De acordo com Burke (1992), “as recordações são maleáveis e necessitamos

compreender a forma como são moldadas e por quem”. Assim, em função das recordações,

são mapeadas situações violentas experimentadas pelo indivíduo ou grupo social. Burke

assinala cinco aspectos, nos quais podemos verificar traços dessas memórias: O primeiro são

as tradições orais transmitidas pelos narradores. São as memórias dessas narrativas

transmitidas pela oralidade que caracterizam o narrador, segundo Walter Benjamin. “Por mais

familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade

viva [...] vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o

narrador se destacam [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 197).

29 Empregada da família Mattoso, que cuidou de Mundo desde seu nascimento.

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O segundo aspecto apontado por Burke é o território do historiador (memória e outros

documentos escritos); o terceiro, corresponde às imagens, pictóricas ou fotográficas, paradas

ou em movimento. Neste aspecto também podemos pontuar as pinturas em objeto concreto ou

a pintura descrita pelo olhar de um narrador, como, por exemplo, o leitor que, ao ler a

narrativa de Cinzas do Norte, observa as pinturas da personagem artista (Mundo). Assim é

possível a nós leitores transformarmos palavras em imagens. O quarto aspecto apontado pelo

autor, diz respeito às ações que transmitem recordações tal como transmitem as práticas, de

mestre a aprendiz. O quinto e último aspecto é o espaço onde são colocadas imagens que

devem recordar algo.

Burke pensa a definição de memória a partir de sua relação com a história, ou seja, as

ações históricas que são recordadas por aqueles que as analisam, e é nesse viés que Aleida

Assmann (2011, p. 143) também discute a memória, pois “o que mais corresponde à história é

‘recordar’; para ela [a história] a memória corresponde mais a ‘esquecer’ do que recordar”.

Diferente de Burke, Paul Ricœur, define a memória como sendo um processo de

adquirir, construir e armazenar informações assimiladas pela mente, mais precisamente

porque a memória “é nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo que

declaramos nos lembrar” (RICŒUR, 2007, p. 40). Jeffrey Barash, ao citar Paul Ricœur,

afirma:

a memória [...] é por analogia “uma coletânea dos traços deixados pelos acontecimentos, que afetaram o curso da história dos grupos referidos e a quem se reconhece o poder de trazer à cena essas lembranças em comum por ocasião de festas, de ritos, de celebrações políticas, etc. (RICŒUR, 2012, p. 68 apud, BARASH, 1990, p. 22-27).

Jacques Le Goff, por sua vez, define a memória como um

[f]enômeno individual e psicológico, [...] [em que] a memória liga-se também à vida social (sociedade). Esta varia em função da presença ou ausência da escrita (oral/escrito) e é objeto da atenção do Estado, que, para conservar os traços de qualquer acontecimento do passado (passado/presente), produz diversos tipos de documentos/monumento, faz apreensão da memória, depende deste modo do ambiente social (espaço social) e político (política): trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos (imaginação social, imagem, texto) que falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo (ciclo, gerações, tempo/temporalidade) (LE GOFF, 2003, p. 419).

De acordo com o autor, a definição de memória é ligada ao conceito de fenômeno, por

se tratar de um aspecto passível de observação em cada segmento da sociedade. Além disso, a

memória se dá pelos acontecimentos do passado em função do tempo, em que este não é o

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mesmo tempo do ocorrido, por isso, ele é apenas representado. É diante do aspecto citado

pelo autor que a memória se dá pela arte como meio de representação, seja de uma nação,

país, sociedade, grupo social, indivíduo, espaço e tempo. A memória se manifesta como

espaço de recordar e refletir.

Para Aleida Assmann (2011, p. 31), “assim como muitos caminhos levam a Roma,

também muitos levam à memória”. Com isso, a autora possibilita ao pesquisador a

apropriação dos diversos campos científicos, entre eles: psicanalítico, filosófico, literário e

artístico. Esses caminhos nos ajudam a compreender como a memória é representada nos

objetos artísticos, mais particularmente no romance com o qual estamos lidando, pois nele

observamos a memória sendo utilizada como uma estratégia ligada aos efeitos melancólicos,

tanto no que diz respeito à constituição da narrativa, dos personagens, espaço e tempo, quanto

nos elementos descritivos da narração produzida pelas referências memorialísticas do

narrador em relação ao protagonista.

Quando Burke nos apresenta os aspectos que estão presentes nas memórias, devemos

ficar atentos ao que ele diz acerca dos espaços em que estão presentes as imagens de coisas

que devem ser recordadas. Essa memória ligada aos espaços – e consequentemente ao tempo,

é alvo das preocupações de vários estudiosos da memória. Pierre Nora (apud POLLAK, 1989,

p. 3) nos fala em lugares de memória, elementos de um patrimônio recordativo, que inclui

espaços e datas comemorativas entre outras referências próprias de certa cultura. Aleida

Assmann reelabora a noção proposta por Nora, dividindo os lugares de memória em duas

possibilidades: os locais memorativos e os locais traumáticos. Enquanto os locais

memorativos estão ligados afirmativamente a uma memória coletiva e nacional, por sua vez,

os locais traumáticos são os locais “em que o sofrimento assumiu caráter exemplar”

(ASSMANN, 2011, p. 348). Essa dimensão da memória está presente em Cinzas do Norte a

tal ponto que atinge consideravelmente a constituição formal do romance, como vemos

adiante. Signos relacionados a certos locais traumáticos são recorrentes a eles e se somam a

perfídia que alimenta tempos traumáticos.

A todo o momento a recordação dos lugares é uma presença e é apartir delas que todo o

processo memorialístico é construído, em associação com as remissões às inúmeras datas que

permeiam a narrativa do romance. Essa estratégia está longe de ser apenas a busca por um

efeito de real, pois se configura na problematização acerca da apreensão do tempo, que como

já dissemos é um tempo marcado pela ruína. Acreditamos que esses elementos ligados à

memória, são fundamentais para compreensão da melancolia criativa, que está no cerne da

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arte produzida por Mundo. Avaliamos que o fato de Mundo ser artista é um aspecto que

merece atenção, pois essa condição está colada à problematização que o romance levanta em

relação à apreensão do tempo e do papel da memória nesse circuito.

3.2. Cinzas do Norte como metaficção historiográfica

Como já observado anteriormente, Cinzas do Norte enquanto narrativa ficcional se

apropria de elementos oriundos de matérias historiográficas diversas. A primeira dessas

matérias historiográficas é a Segunda Guerra Mundial, que emerge no romance a partir da

remissão ao ano de 1945, período em que “[n]o armazém, a juta30 ia passar pela prensa

mecânica para depois ser enfardada e transportada para o batelão Santa Maria, atracado no

Paraná do Ramos. Em 1945 o velho Mattoso comprara de uma firma Japonesa” (HATOUM,

2010, p. 53). Vale ressaltar que a fibra da juta foi importante matéria prima para a fabricação

de artefatos que serviram à economia da guerra de 1939. Além disso, a personagem Trajano

Matttoso “tinha sobretudo um nome muito conhecido, que crescera depois da Segunda Guerra

e ainda reverberava com força de autoridade” (HATOUM, 2010, p. 28).

A segunda matéria ficcional recuperada pelo romance diz respeito à imigração

japonesa31. De fato, no romance, temos que por volta da década de trinta:

Oyama, o pioneiro, homem lembrado por todos, trouxera da Índia sementes de juta. Viera com a família em 1934; mais tarde chegaram dezenas de jovens agrônomos de Tóquio, passaram uns dias na Vila Amazônia e mais viajaram para o rio Andirá, onde fundaram uma colônia. Tinham construído um pequeno hospital, uma escola agrícola e Okayama Ken: uma vila onde até hoje moravam os trabalhadores mais antigos. Durante a segunda Guerra Mundial foram perseguidos e presos; alguns conseguiram fugir e depois voltaram. Tiveram filhos com mulheres daqui: jovens mestiços, metade índios, metade orientais e forçudos. Ainda há vestígios daquela época: ruínas de um hospital, de casas cobertas de telhas e do Kaikan, um pavilhão enorme, todo de madeira erguido por um mestre de obra também japonês (HATOUM, 2010, p. 53-54).

A partir do fragmento citado, visualizamos a maneira como os japoneses foram

perseguidos pelos militares no período que compreendeu a Segunda Guerra Mundial.

Percebemos que o contexto da imigração japonesa está inserido no romance, não apenas como 30 Fibra natural, usada pela indústria têxtil para a construção se sacos, tapetes e outros produtos. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/agronegocios/vida-rural/noticia/2011/12/cultivo-de-juta-na-am-e-resultado-de-trabalho-da-colonia-japonesa.html>. Acesso em: 10/10/2013. 31 Em depoimento cedido a autora da presente pesquisa. Um dado importante referente à imigração japonesa que tem relação com o período a que o romance se reporta, a vinda dos japoneses para a Vila Amazônia, diz respeito ao depoimento da filha de Kotaro Tuji, Julia Tuji, ainda viva. Segundo ela, seu pai, era professor da Universidade de Comércio de Kobe e foi enviado na década de trinta, pelo cônsul japonês, para a Amazônia, com o objetivo de fomentar o cultivo da Juta.

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eco intertextual, mas como forma de evidenciar a violência que esses imigrantes sofrem sob o

jugo de Jano, que no romance é o dono da Vila Amazônia. A relação entre Jano e os

japoneses serve para dar ênfase ao caráter autoritário e explorador de Trajano Mattoso.

Exemplo desse caráter é o fato de Jano contratar um capataz que é ex-cabo da Polícia Militar

para fiscalizar e punir, se fosse o caso, os empregados japoneses. Estes são obrigados a

trabalhar na coleta da fibra de juta dia e noite, em condições de semi-escravidão, mesmo

estando doentes ou fragilizados, imersos na água, pois a juta tem que ser coletada em área

alagada.

O tratamento abusivo destinado aos japoneses e a discriminação que sofrem também

pode ser percebido na forma como ocorre a distribuição arquitetônica da Vila Amazônia. As

casas habitadas pelos japoneses eram chamadas de casebres de Okayama; a casa que pertencia

a Jano era chamada de Palacete. Segundo a narração de Lavo as casas que a “maioria dos

empregados [japoneses] morava[m] [eram] casebres espalhados ao redor de Okayama Ken”

(HATOUM, 2012, p. 54). Já o palacete de Jano, igualmente descrito por Lavo, era luxuoso,

amplo e decorado “na parede da sala, um mosaico de azulejos azuis e brancos ilustrava a

Santa Ceia. Os azulejos e vários objetos de porcelana e prata eram portugueses. Depois Jano

me levou à cozinha e aos seis quartos enfileirados na lateral do casarão” (HATOUM, 2012, p.

52).

Apresentamos alguns registros fotográficos da Vila Amazônia. As fotos nos auxiliam a

observar como o narrador de Cinzas do Norte consolida o relato acerca da imigração

japonesa.

Fig. 1: Instituto Amazônia, construído pelos imigrantes japoneses.

Fonte: Disponível na página da associação Amazon Koutakukai, de Wilson da Rocha Neto.

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Fig. 2: Barracão onde ficava a fibra da juta, na Vila Amazônia

Fonte: Disponível na página da associação Amazon Koutakukai, de Wilson da Rocha Neto32.

Dessa forma, há vestígios da imigração japonesa que estão intrínsecos ao romance e se

estabelecem como aspectos ligados ao caráter violento de Trajano e, secundariamente, ao

conflito entre pai (Jano) e filho (Mundo). De acordo com o narrador Lavo, em umas das

viagens que fez com Mundo para a Vila Amazônia, os dois acompanharam o doutor Kazuma,

único médico daquele lugar. Mundo e Lavo viram e escutaram dos trabalhadores imigrados

relatos de como o trabalho que faziam eram realizados em condições sub-humanas.

Vi vários deles, magros e tristes [...] mostravam [...] doenças de pele, sangramento [...] [crianças doentes com diarreia], ou então diziam: “Sinto dor no espinhaço”; “Meu irmão não consegue andar”; “Minha filha está buchuda” “Meu avô não enxerga mais a luz do mundo”. (HATOUM, 2012, p. 54-55).

A terceira matéria histórica é a da Ditadura Militar presente no romance mediante a

fixação do período que remete ao ano de 1964, como é possível ver no fragmento a seguir:

“só fui tornar a encontra-lo em meados de abril de 1964, [...] depois do golpe militar”

(HATOUM, 2010, p. 9). Nesse trecho, Lavo está se referindo a Mundo, que na data em

questão é aluno do Colégio Pedro II, da mesma forma que Lavo. Nesse mesmo ano, Mundo

não realiza os exames finais e Alícia transfere o filho para o Colégio Brasileiro, mas Jano

queria manter Mundo no Colégio Pedro II, porque nessa escola, segundo acreditava Trajano,

as regras disciplinares eram mais rígidas e mais próximas de um treinamento militar.

sei porque ele quis sair D. Pedro II, [...] a disciplina atrapalhava, [ele] queria passar o tempo todo desenhando. É um vício, uma doença... O grandalhão fez aquela brincadeira com meu filho, não é? Em vez de reagir, de brigar, tomou banho no lago

32 Tanto a figura 1, quanto a figura 2, estão disponíveis no site: <http://www.amazonkoutakukai.com/conteudo.php?ident=25>. Acesso em: 10/10/2013.

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e ficou sentado que nem leso [...] “treinamento militar”, disse Jano [...] “Falta isso pro meu filho”. (HATOUM, 2010, p. 23-25).

Percebemos que os elementos oriundos dessas distintas matérias historiográficas, além

de efetivamente estabelecerem um diálogo intertextual entre ficção e história, servem, na

economia narrativa, para enfatizar o caráter violento de Jano, a sua condição de representante

do poder patriarcal e autoritário. Servem, principalmente, para mostrar e adensar a relação

conflituosa com o filho. Relação essa que já está marcada pelo antagonismo desde a infância

de Mundo. Em Cinzas do Norte a apropriação dessas matérias provoca algo já apontado por

Linda Hutcheon (1991, p.150) no diagnóstico que faz acerca de algumas produções do Século

XX: “esses romances instalam, e depois indefinem, a linha de separação entre a ficção e a

história”.

Como já afirmamos, todos esses elementos ligados à matéria historiográfica, além de

reforçarem o caráter violento de Jano, também problematizam o autoritarismo, não somente o

de estado, mas também o autoritarismo que se faz presente no caráter micrológico da

existência humana. O contrário também é possível de ser dito, ou seja, o comportamento de

Jano espelha valores que se encontram irradiados nesses episódios históricos, agregados ao

romance. Nesse sentido, cabe dizer que o relato de Lavo, enquanto processo memorialístico,

evoca os vestígios desses episódios historiográficos em associação com a história de Mundo e

de sua família, formando um mosaico de recordações em que os domínios macrológicos da

existência se fundem aos domínios micrológicos. Essa arquitetura nos leva a acreditar na

hipótese de que o romance Cinzas do Norte pode ser compreendido como uma metaficção

historiográfica. É justamente essa arquitetura ficcional que permite a nós perceber e

compreender as personagens do romance, como melancólicos, especialmente Mundo, como

veremos mais adiante.

Outro aspecto que nos leva a pensar nessa possibilidade é a composição formal da

narrativa. Observado em outros momentos da pesquisa, a composição formal de Cinzas de do

Norte é complexa e autorreflexiva. Alguns elementos nos levam a essa conclusão. Primeiro, a

oscilação dos narradores, Lavo, Ranulfo e Mundo, são três os narradores no romance, embora

Lavo seja o mais recorrente, pois na verdade é a partir do relato dele que toda a narrativa vai

ser constituída. Ele é uma espécie de narrador editor. Segundo, a oscilação entre formas

textuais: ora a forma romanesca que simulacriza a narrativa de si (relato de Lavo), ora a forma

epistolar (cartas de Ranulfo), ora o texto descritivo (produções artísticas de Mundo). Como já

dissemos o relato de Lavo é o que constitui todos os outros. As cartas de Ranulfo apresentam

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registro gráfico diferenciado em relação ao relato de Lavo e tem especialmente a função

estruturante de inserir algumas informações que Lavo não detém, constituindo assim

verossimilhança à narrativa. Um exemplo disso é o grande segredo do romance: a infidelidade

de Alícia no casamento e consequentemente o fato de Mundo ser filho biológico de Arana e

não de Jano. Além dessa função, as cartas de Ranulfo também servem para povoar a narrativa

com dados oriundos da matéria historiográfica. O trecho a seguir ilustra essa perspectiva

Ai, em agosto de 1944, o homem também sumiu [...] Todos acreditavam que passei cinco meses na Vila Amazônia [...] em novembro de 1955 aparecei no Morro e inventei para Ramira uma história que depois contei em várias transmissões do programa Meia-Noite Nós-Dois. (HATOUM, p. 116; 05; 206).

A seguir citamos um trecho do romance que ilustra como se constituem as relações

entre Ranulfo, Alícia e Jano:

Algisa ficou me olhando; depois foi até a cozinha, voltou com uma garrafa de cerveja, me ofereceu um copo e disse: “Minha irmã é a única mulher do mundo?” [...] Os dois com ciúme de Alícia. Então ela revelou que a irmã não ia dormir em casa [...] Foi então que afogado no corpo de tua tia, que mal conheceste, comecei a odiar teu pai. Senti ódio e ciúme de Jano, e me arrependo de não ter contado tudo pra ti” [...] Alícia aprendeu tudo comigo, e não com Jano, que era virgem, como ela me contou nos depois, rindo, dizendo que o marido não sabia o que na primeira noite, uns dois meses antes do casamento. Ela me contava só pra me deixar mais enciumado: “Eu tive que tirar a roupinha do Jano... ele namorou de olhos fechados, morrendo de vergonha” [...] E ela aprendeu logo, fogosa como nenhuma, queria namorar na mata, na rede, na canoa, até na minha casa, para desprezo de Ramira [...] (HATOUM, 2010, p. 41-119).

Terceiro, uma estrutura mise en abyme33 permite que as cartas de Ranulfo, o relato de

Lavo e as obras de arte produzidas por Mundo estejam agregados ao relato maior de Lavo.

Lavo funciona desse modo como narrador engendrador ou narrador-editor, porque é a partir

da narração dele que esses outros relatos são possíveis. Além disso, ele se torna para a

narrativa não apenas o narrador rememorador, mas também o portador de um arquivo, uma

vez que no final do romance Lavo recebe das mãos de Alícia o conjunto das obras da

maturidade de Mundo.

Essa configuração faz com que a narrativa apresente uma autorreflexibilidade intensa.

Entendemos a autorreflexibilidade, fundamentalmente, como sendo o texto que apresenta

autoconsciência em relação a sua condição de texto. Para Robert Stam (1981, p. 54), a

33 Significa em abismo, onde temos a narrativa principal e outras narrativas dentro de um texto menor que está encaixada em um texto maior, por exemplo, as cartas de Ranulfo e as produções artísticas de Mundo estão dentro da narrativa maior que é a narrativa de Lavo.

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autorreflexibilidade “tornou-se uma espécie de palavra código para referir-se ao romance que

não corresponde à ‘estratégia ficcional’ de escritores como Defoe, nem a ficção rigidamente

burguesa dos grandes realistas do século XIX”. De acordo com Stam, essa relação

autorreflexiva chama atenção justamente pela maneira como os artifícios ficcionais são

utilizados pelas produções artísticas, tornando-as provocativas. Além disso, o autor ressalta

que na arte autorreflexiva, “a mão do artista é, antes de mais nada, visível” (STAM, 1981, p.

55-56). Ainda de acordo com Stam, o romance autorreflexivo tem inicio com Don Quixote,

que se comporta como “uma suma literária do épico, da pastoral, do romance cavaleiresco, do

teatro e da literatura religiosa”.

Em Cinzas do Norte, a autorreflexibilidade ou autoconsciência se apresenta, sobretudo,

a partir de uma estrutura em abyme que promove o encaixe de uma arte no interior de outra, a

exemplo de todo conjunto das produções artísticas de Mundo (desenhos, pinturas e

instalações) que se encontram descritas nos relatos do narrador Lavo e, portanto, encaixadas

no corpo da narrativa de Cinzas do Norte. Além desses aspectos, esse romance também

dialoga com a forma do testemunho e do Künstlerroman – o romance de formação do artista,

diálogo que apresenta repercussões decisivas para as razões críticas que movem essa narrativa

de Hatoum.

Para Hutcheon, a “metaficção historiográfica” pode ser definida a partir daqueles

romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são interessante auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos: A mulher do Tenente Francês, Midnight’s Children (Os filhos da Meia-Noite), Raglime, A lenda de “Legs”, G. Famous Last Words ( As Famosas Palavras Finais) (HUTCHEON, 1991, p. 21-22) .

Com isso, a metaficção historiográfica é a própria linguagem da forma do romance

falando de si mesmo ou uma ficção fundada na elaboração de ficções, que é o que acontece

em Cinzas do Norte: as cartas, as pinturas, as instalações e os desenhos de Mundo podem ser

compreendidas como ficções no interior de outra ficção.

Dessa forma, a metaficção historiográfica apresenta “em muitos romances históricos, as

figuras reais do passado desenvolvidas com o objetivo de legitimar ou autenticar o mundo

ficcional” (HUTCHEON, 1991, p. 152). Ainda segundo a autora, a metaficção historiográfica

realiza a recuperação da matéria histórica, com base em uma recuperação do passado

metaforizada por duas maneiras de representação. A primeira consiste na “ligação ontológica

como um problema: como é que conhecemos o passado? o que conhecemos (o que podemos

conhecer) sobre ele no momento” (HUTCHEON, 1991, p. 152). A segunda se dá pela

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situação enunciativa que envolve “texto, produtor, receptor, contexto histórico e social”

(HUTCHEON, 1991, p. 153). Para sustentar essa posição, Linda Hutcheon, em Poética do

Pós-Modernismo (1991, p. 121-122), afirma que é a partir dos sistemas de significações que

“damos sentido ao passado”, ou seja, eles não estão no âmbito dos acontecimentos, e sim no

âmbito da linguagem, pois são os “sistemas que transformam esses acontecimentos passados

em fatos históricos”.

Para a autora, é a metaficção historiográfica que mantém “a distinção de sua auto-

representação formal e de seu contexto histórico”, em função de sua contextualização é dela

que a escrita proveniente do passado pode “silenciar, excluir, eliminar certos acontecimentos

e pessoas do passado” (HUTCHEON, 1991, p. 142-143). Assim, a metaficção, faz o trabalho

de “desmarginalizar o literário por meio do confronto histórico, e o faz tanto em termos

temático, quanto em formais” (HUTCHEON, 1991, p. 145). Nesse sentido, fica claro que a

recuperação do passado por via da forma do romance não pode ser feita apenas na dimensão

temática, faz-se necessário que essa recuperação venha acompanhada de um exercício

metarreflexivo ou autoconsciente – ou autorreflexivo como pontua Robert Stam, que se faz

embutido na escrita da narrativa.

Feitas essas considerações acerca da metaficção historiográfica, vale ressaltar que o

relato de Lavo apresenta um caráter testemunhal, pois Lavo é não apenas aquele que viu, que

participou daquilo que narra, ele também testemunhou, imerso que estava assim como

Mundo, nos acontecimentos narrados e, portanto, também testemunha acerca dos dados

históricos relatados, pois testemunha “por excelência, é aquela que viveu a experiência, é um

supérstite (superstes) sobrevivente” (SALGUEIRO, 2012, p. 1). É testemunha também aquele

que participa de um relato como testemunha solidária. Nas palavras de Jeanne Marie

Gagnebin:

Testemunha é aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Lavo, como narrador, faz exatamente o que Gagnebin avalia como sendo próprio da

testemunha solidária em relação a sua experiência e a experiência de Mundo. Desse modo,

Cinzas do Norte não contém o testemunho propriamente dito, pois como romance é narrativa

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ficcional. Mas avaliamos que se apropria do caráter testemunhal como modo de problematizar

as matérias historiográficas abarcadas pelo romance. Com isso, observamos que o relato de

Lavo não tem o comprometimento de dar um testemunho de fato, mas de trazer à superfície

aspectos inerentes às matérias historiográficas pontuadas em outro momento deste trabalho.

Nesse sentido, não é apenas o relato de Lavo que apresenta teor testemunhal, mais também os

objetos artísticos produzidos por Mundo.

Ambos fazem o filtro do passado. Lavo o faz a partir de dois mediadores, que são

Trajano e o próprio Mundo. Trajano é a representação da violência e do autoritarismo. Mundo

é a sua face antagônica, pois representa justamente a resistência a essas dimensões. O que

move essa resistência é uma melancolia criativa que o habita enquanto personagem e habita

em sua produção artística. Mundo reelabora o passado a partir dos objetos que produz. Como

se trata de uma reelaboração, o tempo, o espaço e os personagens que fazem parte desses

objetos artísticos se encontram distorcidos, são grotescos, e por isso mesmo falam de maneira

mais lúcida acerca de tempos e experiências agônicas, como veremos adiante.

As obras de Mundo recuperam o espaço e o tempo diante de dois aspectos: as boas

experiências, que são os amigos e os lugares que a personagem em suas viagens conheceu; a

experiência com o mal, que vem a partir da convivência com o pai, pautada na violência, mas

também pelo fato de Mundo ter sido, na juventude, contemporâneo da Ditadura Militar de

1964, episódio histórico que deixa marcas profundas na existência de Mundo. A censura e a

tortura, que marcaram violentamente o período em que ocorreu a Ditadura, são memórias

traumáticas associadas ao processo de vitimização implementado no período citado. As

palavras de Lavo são ilustrativas da agregação desse episódio histórico à narrativa de Cinzas

do Norte: “Lembrei das palavras do Corel ao anunciar a agressão do tio Ran: “capangas ... ou

agente da polícia...] [...] na varanda ouvi gritos e latidos. Quando entrei na sala, vi primeiro

Mundo dizendo para o pai: “Por que não tiras logo o cinturão agora? Por que não me trancas

no porão?” (HATOUM, 2010, p. 149).

Esse contexto se encontra absorvido nas pinturas de Mundo e faz com que as mesmas

realizem um trabalho de revisitação e reelaboração de matérias historiográficas. Em

particular, a imigração japonesa34 e a Ditadura de 1964. Ressaltamos que em grande parte da

obra da maturidade de Mundo predominam elementos referentes à Ditadura de 1964. A

imigração japonesa se encontra contemplada no esboço de um de seus objetos artísticos.

Vejamos o trecho do romance relativo a essa assertiva:

34 O tempo é marcado pela Segunda Guerra Mundial.

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O médico murmurou: É o seu Nilo, o mais velho da Vila Amazônia” [...] Não voltou para o casarão; de manhãzinha, me acordou com estas palavras: “ O velho acaba de morrer”. Sentou no chão pensativo, e começou a desenhar. Anos depois, recebi da Alemanha uma pequena pintura em chapa de Alumínio, com uma cópia ao lado, em papel. Na cópia, o rosto de tinha outra expressão: uma fase se esfumara, e nela se formaram cavidades. O título da obra: O artista deitado na rede. (HATOUM, 2010, p. 55).

Nesse sentido, o trabalho de reelaboração da memória, presente em Cinzas do Norte,

não se faz apenas no nível da forma, mas se dá pela “vida e a arte [que] também se encontram

no nível temático” como afirma Hutcheon (1991, p. 145). É de acordo com está reflexão, que

tanto o metafictício, quanto o historiográfico estão presentes em Cinzas do Norte, que vemos

esta narrativa como uma metaficção historiográfica. Vale ressaltar uma vez mais que o tema

das produções artísticas de Mundo tem como conflito central o confronto entre o pai e o filho,

mas essa relação aponta também para um antagonismo, cujo cerne é a relação entre

autoritarismo versus antiautoritarismo. Essa relação antagônica é alimentada justamente pela

agregação de elementos historiográficos que ampliam consideravelmente uma crítica à

espoliação, à exploração, à violentação do outro.

Como vítima, Mundo assume uma posição resistente ao transpor as suas experiências de

vida para a arte. Não é só a existência individual que se expressa nessa arte, mas também tudo

com a qual Mundo se relacionou ao longo de sua vida. O contato com a violência paterna

ainda na infância. A imersão no universo autoritário da ditadura. As frustrações, os

sofrimentos, as dores, todos esses aspectos emergem no conjunto da produção de Mundo

como reelaboração do passado. Como vestígios atingidos por uma dimensão crítica muito

intensa. O que nos faz pensar dessa forma é o próprio percurso do artista Mundo. A arte

acompanha a trajetória de Mundo desde a infância - e quando ele cessa a sua arte, por não

conseguir sair do luto, ele morre.

Na medida em que Mundo vai fixando sua trajetória como artista, sua arte vai

recebendo influxos da experiência vivida por ele. A massa de experiências constitui sua

formação. Nesse sentido, cabe destacar a dicção fundada entre o romance Cinzas do Norte e a

forma do Künstlerroman – o romance de formação do artista. Conforme já observamos, no

Künstlerroman há um personagem artista que procura entender as experiências da quais faz

parte e que estão pautadas no estabelecimento de conflitos com o mundo que o cerca. O

romance de formação também surge com a necessidade de compreender e dominar sua

própria constituição enquanto estudo das relações funcionais da mente e dos fenômenos

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físicos. No Künstlerroman, tais aspectos repercutem sobre a forma como a produção do artista

é constituída. No romance de Hatoum, a formação de Mundo enquanto artista é uma de suas

tônicas, porque a narrativa nos permite acompanhar o processo de constituição do

protagonista enquanto artista, desde a infância até a morte. Além disso, Mundo, ao utilizar a

arte para elaborar os conflitos entre ele e o pai, provoca na narrativa uma temática que

enfatiza a violência e o autoritarismo. De forma mais especifica, Mundo utiliza suas

produções artísticas para enfatizar as máculas presentes nas relações sociais, possibilitando

uma intensa reflexão acerca da sociedade presente na narrativa do romance.

Em seus primeiros desenhos de infância se nota uma organização dos elementos que

constituem um cenário facilmente identificável. Trata-se do monumento de Abertura dos

Portos do Amazonas ao Comércio Mundial, que se encontra no centro da Praça São Sebastião,

em frente ao Teatro Amazonas35:

[a]o lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o braço do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e movendo a cabeça com maneios de um pássaro. Parei para ver o desenho, um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar, uma faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me encarou como se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão me oferecendo o papel dobrado. (HATOUM, 2010, p. 8), (Grifos nossos).

A seguir apresentamos um registro fotográfico do monumento:

Fig. 3: Abertura dos Portos do Amazonas ao Comércio Mundial.

Fonte: Disponível na página da Revista da UEA, de Jhonatan Martini36.

É importante ressaltar que esses desenhos do artista ainda são criados limpos da 35 Ver artigo: Memórias do Largo de São Sebastião. Disponível em: <http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/comunicacao/comunicacao_pesq_3/Jhonatan%20Martiniano.pdf>. Acesso em: 14/10/2013. 36Disponível em: <http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/comunicacao/comunicacao_pesq_3/Jhonatan%20Martiniano.pdf>. Acesso em: 14/10/2013.

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presença da ruína, da violência e do grotesco. Parecem ser simples transposições de cenários

conhecido de Mundo. Na adolescência as pinturas dos colegas de classe de Mundo possuem

traços grotescos, como é possível observar no trecho a seguir:

Corpos caídos [...] Vimos nossos corpos tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas: o Minotauro, meio monstro e o único sem cabeça, o Delmo com a cara de gafanhoto, e o professor, no centro da quadra, um arlequim atarracado, a cabeça separada do corpo. Os desenhos distorciam e misturavam nossos corpos, reconhecíamos traços de nós mesmos e de outros, de modo que todos se sentiram ultrajados” (HATOUM, 2010, p. 13).

Posteriormente, na maturidade, Mundo constrói uma arte fundamentada na violência

que se funda na acumulação e continuidade do tempo, pois é com base na angústia, na dor e

nos pesadelos que Mundo constrói seu projeto estético. As sequências em que essas

produções artísticas são apresentadas resultam de flashes da memória de Lavo que em

diversos momentos de seu dia-a-dia rememora cenas da vida de Mundo. Um exemplo de

como se dá esse processo recordativo é quando Lavo está lendo um “livro grosso de direito

penal” e lembra da “sacola verde de Mundo” (HATOUM, 2010, p. 129). Segundo a descrição

do narrador nela se encontrava um exemplar do

Manual de Sobrevivência na Selva, o MSS, com anotações de leitura e observações sobre a caça e pesca, instruções a respeito de reconhecimento de pegadas, e camuflagem, uso de bússola, raízes e plantas que contêm água potável. Numa caderneta, os esboços da obra que ele queria fazer no Novo Eldorado e o projeto de um trabalho futuro: Sete desenhos: Pai-Filho-Vila Amazônia-História. Duas caricaturas: a primeira, de um certo general J.-F d’Aisselle – rosto rechonchudo, olhos afundados, de vidro, uma papada de peru de onde escorriam medalhas e cadáveres: a outra ilustrava a cara bexiguenta a apalermada do tenente N. Trevo, que, “depois de contrair malária, tremia e falava fino” e também trechos de um diário: O tenente Trevo via subversivos nas árvores, ouvia um ruído na folhagem e disparava com ferocidade [...] tudo isso por causa da guerrilha de 196737 (HATOUM, 2010, p. 129).

No fragmento, Lavo descreve o momento em que se depara com o projeto artístico de

Mundo, os sete desenhos refletem as instituições: a família, a sociedade e a instituição militar,

amparada pela matéria historiográfica como parte desse processo de composição artística.

Cada caricatura reproduz os momentos de dor e melancolia.

37 Trata-se aqui de uma remissão à Guerrilha do Araguaia (1967-1975). Para informações mais acuradas acerca desse assunto, ver a pesquisa de Durbens Martins Nascimento (2013).

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Por isso, nas pinturas da maturidade de Mundo o grotesco é uma presença constante. De

acordo com Tânia Sarmento-Pantoja (2011)38, em Cinzas do Norte há dois elementos que

desencadeiam a ruína. O primeiro se constitui a partir da “instalação construída por Mundo”

com base na “associação entre os “elementos que remetem à ruína e ao desencanto (“véu de

tule, puído e manchado”)39”. O segundo aparece em função dos “traços animalescos (“focinho

de cachorro, dentes caninos”)”, ou ainda “dois corpos deformados e decompostos”; esses

elementos grotescos, segundo a autora, deixam clara a relação com a ruína (SARMENTO-

PANTOJA, 2011, p. 5).

Todos esses elementos, os personagens e todos os cenários que compõem o conjunto

final das produções de Mundo são constituídos a partir de uma constituição grotesca. Essa

composição grotesca está em sintonia com a ruína que Mundo procura trazer para suas

produções. Para uma melhor compreensão acerca da ideia de ruína voltamos ao texto de José

Alonso Torres Freire (2006), que - como apontado no primeiro capítulo desta dissertação -

trata justamente da ideia de ruína no romance Cinzas do Norte, com base nas identificações e

nas representações do espaço amazônico. Para o autor, é o espaço, ou seja, o lugar, em

particular a Vila Amazônia, o que comporta os principais elementos da ruína, entre estes estão

o impacto do mundo em transformação, a partir das instalações físicas e tecnológicas, a

exemplo da instalação da fábrica de tecelagem para beneficiamento da juta, com o objetivo de

tornar o Brasil autossuficiente na produção de sacos para servir primeiro à economia cafeeira

e depois à economia da guerra.

Com base então nessa visita à fortuna crítica, constatamos que alguns aspectos são

recorrentes nos estudos do romance Cinzas do Norte. Tais como: o espaço, o cenário a

temática ligada à ideia de ruína, os personagens, a memória. Vale ressaltar que não

encontramos nesses trabalhos uma relação direta com a melancolia, apenas alusões a ela.

Nesse sentido, a presente investigação vem também contribuir para a fortuna crítica, na

medida em que tematiza a categoria da melancolia com ênfase na reelaboração estética da

violência.

Os dados que trouxemos da matéria historiográfica servem para pensarmos como a

reelaboração do passado é feita a partir de estratégia ficcional en abyme, a arte no interior da

arte – pinturas, desenhos e instalações, que habitam a escrita do romance. Compreendemos

38 Texto Efeitos de grotesco em Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. Disponível na integra no site: <http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2011/2191.pdf>. Acesso em: 14/10/2013. 39 Esses elementos estão presentes segundo a visão da autora nas páginas (41-42) do romance Cinzas do Norte de Milton Hatoum.

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que as figuras autoritárias presentes na narrativa vêm à escrita a partir de um processo

autorreflexivo extenso, pois é com a presença delas que se estabelecem os diálogos

intertextuais entre a ficção e a história.

Nesse processo, a narrativa reelabora não somente temporalidades, mas também

espacialidades, a partir do trabalho memorialístico de Lavo e das produções de Mundo. Essa

recordação de espaços e tempos é importante porque elas auxiliam na recomposição dos

vestígios do passado. A ideia de um tempo fragmentado, capaz de vir a lume apenas por

resíduos, impregna estruturalmente as produções artísticas de Mundo. Por isso dissemos no

início deste capítulo que as produções de Mundo apresentam uma forma ruiniforme.

A melancolia de Mundo e sua autoconsciência em relação ao sofrimento fazem com que

a sua produção sofram transformações ao longo de sua vida. De início, organizada, clara, com

contornos cujos efeitos apontam para uma visão de mundo mais equilibrada, posteriormente

os cenários e os personagens dessa arte passam a ser marcados pela decomposição, pela

monstruosidade grotesca e pelo esvaecimento dos elementos espaciais. Lembramos aqui

Assmann (2011, p. 174), para quem os espaços podem se tornar representados “de forma

desordenada, confusa e inacessível”, especialmente quando marcados por signos do

sofrimento. Essa reinserção do passado, a partir das chaves da melancolia e da

autorreflexibilidade, nos remete também ao pensamento de Julia Kristeva, que em Sol negro

(1989) afirma ser a melancolia uma das formas de compreender a arte na atualidade. A arte de

Mundo é especulativa, na medida em que contempla o tempo e designa o destino do

protagonista, pois como bem lembra Kristeva, a arte que reflete sobre a própria arte ensina a

filosofar e “filosofar é aprender a morrer” (Kristeva, 1989, p. 12).

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CAPÍTULO 4: Melancolia e resistência: meandros em Cinzas do Norte

“Os raios caem sobre os montes mais elevados, e onde encontram mais resistência é onde provocam o maior dano”.

Miguel de Cervantes40

O presente capítulo tem por objetivo a análise do caráter melancólico presente no

personagem Mundo, bem como as repercussões que essa caracterização traz para a narrativa

de Cinzas do Norte. Em um segundo momento, procuramos mostrar como o tratamento

melancólico destinado a reelaboração do tempo faz de Cinzas do Norte uma narrativa de

resistência.

4.1. Mundo como artista melancólico

A melancolia criativa de Mundo é utilizada pelo personagem para fazer um trabalho de

recuperação da memória. Conforme já dito anteriormente, a melancolia emerge no romance

como um aspecto inerente ao processo de resistência do artista. Assim, as recordações trazidas

por Lavo, estão fundadas em um teor testemunhal, cuja função é a rememoração do espaço

físico e dos objetos que compõem a narrativa, com vistas ao preenchimento da memória a

partir dos vestígios, tais como as cartas e os artefatos das obras de arte descritas pelo narrador.

Essa estratégia ficcional está associada ao processo de metarreflexibilidade do romance,

e dessa forma estabelece com o presente prolematizações oriundas da presença de matérias

historiográficas diversas. A melancolia também está no cerne da constituição estética e ética

das produções de Mundo. Isso porque trata-se de uma produção fundada na contemplação,

capaz de agregar como repositório a memória de tempos em declínio, marcados pelos

traumas.

Nesse sentido, Mundo, na fase adulta de criação artística, ao criar sua primeira obra

chamada Corpos Caídos, descrita anteriormente, nos faz pensar que a arte se torna para a

literatura um objeto que tem, em si, o espaço da recordação41, na medida em que ela é para o

narrador que a descreve, em particular Lavo, o veículo temporal, com vistas às seleções e

atualizações dos eventos traumáticos, materializados pelo tempo e pelas impressões que o

leitor da narrativa poderá construir mediante aquilo que observa. 40 Disponível em: <http://frases.globo.com/miguel-de-cervantes/4327>. Acesso em: 07/07/2013. 41 Este termo é utilizado com vistas nas reflexões do livro de Aleida Assmann (2011).

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Desse modo, os elementos descritos por Lavo identificam, cuidadosamente, a

construção de um espaço com profusão de detalhes, que fazem reviver, visualmente, o

universo de criação artística anunciada por Mundo e que perdura por toda sua vida. Esses

elementos provocam o desencadeamento do processo memorialístico no interior do romance e

culminam com as representações da figura monstruosa do Ditador nos últimos trabalhos

artísticos da personagem artista Mundo.

Assim, a arte de Mundo associa-se aos espaços de onde o tempo precisa ser resgatado, e

Mundo o faz reelaborando esses tempos-espaços. Por exemplo, o mundo particular da

personagem Mundo mostrado por Jano para Lavo: o quarto onde Mundo vivia, no quarto

ainda continha: “Folhas de papel, pincéis, lápis, tubos de tinta, penas de pássaros, plantas

ressequidas e sementes espalhados no chão; num cubo de vidro, cipós enrolados em forma

cômica, e, nas paredes desenhos com símbolos indígenas” (HATOUM, 2010, p. 24).

A narrativa Cinzas do Norte, em suas primeiras linhas, direciona o leitor para alguns

referenciais memorialísticos que se fundam na escrita melancólica. Esses momentos iniciais

mostram a forma como a amizade entre Lavo e Mundo teve início. A melancolia já se faz

presente desde esse momento, a partir do olhar e das memórias que Lavo lança em relação ao

comportamento de Mundo. Uma dessas memórias mostra Mundo sentado de cabeça baixa e

sozinho, em frente ao monumento da Praça São Sebastião: “magricelo, cabeça quase raspada,

sentado nas pedras que desenham ondas pretas e brancas” (HATOUM, 2010, p. 8). Mundo

está em um cenário em que predominam as cores branca, preto e cinza. O uso das cores e o

posicionamento da cabeça de Mundo também podem estar relacionados ao cenário que consta

da pintura de Dürer, descrita anteriormente. Suzana Lages (2007), em sua tese, diz que o

conjunto das pinturas de Dürer representam, alegoricamente, a melancolia. Os indícios da

melancolia criativa estariam fixados no gesto contemplativo das figuras descritas nessas

pinturas. Tal gesto contemplativo implica a posição da cabeça, o olhar direcionado ao cenário,

que contém objetos dispersos em tons de cinzas, além da posição da mão. Tal como acontece

em Cinzas do Norte, pois esse gesto contemplativo está transposto na forma como Mundo é

descrito por Lavo nesse momento inicial do romance, o que prenuncia o comprometimento da

narrativa com a escrita melancólica.

De acordo com as observações do narrador, os indícios de melancolia fazem parte da

história, isto é observado mediante a forma como ele descreve o comportamento do amigo

artista desde a infância, pois como mostrado antes, quando Mundo é ainda menino já

apresenta um comportamento que antecipa sua relação com a arte. Lavo, ao narrar a passagem

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em que Mundo se encontra na praça mirando o monumento, demonstra também que as

referências memorialísticas em relação ao amigo, dizem respeito a um tempo da história do

Brasil. Mundo ao representar os monumentos da praça, projeta em tela, a metáfora da história,

na medida em que o tema abordado pela arte sugere a ideia de que aquela história ainda é algo

recente e precisa ser revisitado pela memória, para fins de reflexão. Uma das reflexões que

trazemos a respeito dessa relação é a ideia de que a memória “te[m] um lugar para colocar as

coisas” (CARRUTHERS, 2011, p. 39), pois, de acordo com a afirmação de Mary Carruthers,

a memória quando pensada em formato de imagem se compõe de dois elementos: a

semelhança e a matéria, esses elementos podem tanto classificá-la, quanto recuperá-la.

Entretanto, existe um momento da narrativa em que Lavo descreve alguns indícios que

atormentam Mundo, um deles são as pinturas de São Francisco Xavier, feitas por um artista

português e trazidas pelo pai de Mundo para a residência da família Mattoso, no período da

Segunda Guerra. Essas pinturas seriam para decorar as casinhas dos empregados japoneses.

No quarto de Mundo, havia duas dessas pinturas. Em uma das noites em que Lavo dormira na

casa de Mundo, o amigo relatou: “disse que aquelas imagens em fundo preto tinham

provocado pesadelos em sua infância. Aliás, tudo naquela casa era detestável: o ambiente, a

decoração pretensiosa [...]”, Lavo descreve que naquela mesma noite Mundo substituí as

pinturas que o pai colocou por uma obra de um velho índio que conhecera na Vila Amazônia,

“uma pintura em casca fina e fibrosa de madeira: cortes fortes e o contorno diluído de ave

agônica” (HATOUM, 2010, p. 52). Esse episódio mostra como os objetos que fazem parte de

terminados lugares são desencadeadores de memória na escrita de Cinzas do Norte, e mostra

também que tudo aquilo que indicia a presença de Jano se transforma em instrumento de

experiência agônica para Mundo.

A presença de Jano atormenta Mundo. Lavo, no ato da narração, mostra que quando

Mundo se ausenta, ele o faz, para se dedicar à criação de seus objetos artísticos, ao mesmo

tempo em que evita o contato entre pai e filho. Um desses momentos é quando Lavo está na

Vila Amazônia, na companhia de Mundo e Jano. Após acordar, na mesa do café, Lavo

observa que o amigo não está presente. Então, Lavo em seu relato, descreve a reação de Jano:

“franzindo a testa: “Olha a arte do teu amigo?”(HATOUM, 2010, p. 60). A ida de Lavo à Vila

Amazônia ainda retém a recordação de que Mundo vê ironicamente o pai como um déspota

autoritário. Vejamos o fragmento do romance: “os desenhos a lápis das casinhas de Okayama

Ken, do armazém e do casarão. Fachadas e perspectivas. No rodapé de cada folha estava

escrito: “Propriedade do imperador Trajano” (HATOUM, 2010, p. 60).

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Verificamos que o desenho descrito por Lavo é intitulado por Mundo como

“Propriedade do imperador Trajano” e esboça reflexões acerca da forma como a memória do

personagem Mundo se constitui enquanto linguagem artística. Pois “compreender a que a

linguagem pode se referir condiciona o alcance do ato de narrar” (GINZBURG 2012, p. 108,

– Grifos nossos), uma vez que os recursos linguísticos servem como mecanismo para que

cada indivíduo possa simbolizar a memória do passado.

De acordo com Ginzburg (2012, p. 110), “o saber melancólico, pautado pela ausência,

pode ser constitutivo de movimentos propositivos”; com base neste viés, a melancolia

mediada pela memória promove, para a personagem Mundo, a criação artística. Essa reflexão

é referendada pela teoria benjaminiana, com base na ideia de melancolia criativa, pois como

já visto no segundo capítulo desta dissertação, a melancolia pode ser o lugar da genialidade e

propulsora de intensos gestos criativos da “personalidade de exceção” (LAGES, 2007, p. 31).

A narração de Lavo e a arte de Mundo materializam o mundo social, político e familiar,

assim como o tempo, que lhe é usurpado, na medida em que o mundo e o tempo vão sendo

substituídos aos poucos pela experiência e contemplação da vida. Há um desenho de Mundo

que repercute bem essa condição a que o tempo está submetido em sua arte. É assim descrito

por Lavo: “foi o primeiro desenho que ganhei dele [Mundo]: um barco adernado, rumando

para um espaço vazio, e toda vez que passava perto da nau Europa, lembrava do desenho de

Mundo (HATOUM, 2010, p. 9). O aporte na experiência e a atitude contemplativa são para

Walter Benjamin condições próprias do melancólico criativo. Para Benjamin (1985, p. 74,

passim), o artista melancólico manuseia a própria insatisfação com os elementos do social e a

usa como meio para expressar o que o enoja, em forma de poesia.

A narrativa de Cinzas do Norte traz a código outros signos de resistência, a exemplo do

que acontece no colégio Pedro II, que durante o regime ditatorial de 1964 é marcado pelas

afirmativas lutas dos estudantes revolucionários42. Outra referência a esse período são os

bedéis, figurações que estão presentes em uma das obras de arte de Mundo. Os bedéis eram os

chefes da disciplina no colégio Pedro II; após o golpe militar,

42 Em seu texto: O colégio Pedro II durante a Ditadura Militar: o silêncio como estratégia de subordinação, Licia Maciel Hauer (2007) comenta acerca do papel importante que os estudantes do Colégio Pedro II teve na luta contra a Ditadura Militar, “principalmente na luta em defesa da escola pública, é quebrar o silêncio sobre um período de medo e resistência”. A autora procura através de sua pesquisa resgatar a memória do Colégio Pedro II, como forma de contribuir para que se mantenha viva uma parte importante da memória coletiva da educação pública brasileira. Disponível em: <http:// www.revistacontemporanea.fe.ufrj.br/index.php/contemporanea/article/download/65/57> Acesso em: 19/09/2013.

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pareciam mais arrogantes e ferozes, cumpriam a disciplina a risca, nos tratavam com escárnio. Bombom de aço, o chefe deles mexia com as alunas, zombava dos mais tímidos, engrossava a voz antes de fazer a vistoria da farda: Bora logo, seus idiotas calados em fila indiana [...]as regras disciplinares o transformaram; mesmo assim o desleixo da farda e do corpo crescia, enraivecendo os bedéis: cabelo despenteado, rosto sonolento, mãos sujas de tinta; a insígnia dourada inclinada na gravata, o nó frouxo no colarinho, ombreiras desabotoadas. Ele usava meia de cada cor, arregaçava as mangas, não polia a fivela do cinturão. Bombom o berrava e ameaçava: preguiçoso, displicente, pensava que filhote de papai tinha vez ali? (HATOUM, 2010, p. 9-10).

Durante o período da Ditadura Militar, “Mundo não respondia: sentava atrás da última

fila, isolado, perto da janela aberta para a praça. Nos dias de chuva forte, passava o recreio em

pé, diante dessa janela, observando as árvores que a tempestade derrubava” (HATOUM,

2010, p. 10). O silenciamento de Mundo representa um ato de resistência ao regime

autoritário de 1964. Lavo, voltou a vê-lo “em meados de abril de 1964, quando as aulas do

ginásio Pedro II ia recomeçar depois do golpe militar” (HATOUM, 2010, p. 9), pois foi

durante as férias que Mundo “trouxe uns desenhos [...] rostos de moradores de um morro

carioca [...] tudo me impressionara: as cores, as figuras humanas, a perspectiva da luz” [...]

“dá uma visão das pessoas e do lugar” (HATOUM, 2010, p. 78-79). De acordo com Maurice

Halbewachs (2003, p. 43), “é difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento em

que nossas sensações eram apenas reflexos dos objetos anteriores”. É com base na afirmação

de Halbwachs, que podemos dizer que as pinturas de Mundo estão imbuídas de um caráter

especulativo que procura espelhar e problematizar o lugar que o artista rememora, com vistas

a promover uma linguagem que transporte aquele que observa sua arte para o lugar de onde se

originou a produção artística. Não podemos perder de vista que nessa mediação existe um

conflito entre Mundo e o meio social em que vive. Conforme enfatiza Maria Rita Kehl (2009,

p. 61), no segundo capitulo, esse conflito é próprio do indivíduo moderno e se centra

justamente no desacordo entre o sujeito e o meio de onde ele emerge. Esse meio gerador do

desacordo é que predispõe o estado melancólico em Cinzas do Norte.

Outro aspecto que podemos recuperar da investigação desenvolvida por Khel diz

respeito à arte poética. Para ela, todo artista tem um talento especial para manusear a mímesis.

Essa habilidade amplia a capacidade desse artista de tornar-se outro, apesar de que tornar-se

outro o faz oscilar perigosamente entre o gênio e a loucura. Essas considerações de Kehl nos

levam a pensar no comportamento de Mundo. A personagem se torna uma espécie de flâneur,

na medida em que está constantemente em trânsito por várias cidades do mundo, ou seja, no

momento em que ele decide sair de meio local em que vive para ir em busca de seus anseios,

ele não é ele mesmo propriamente dito, ele é um outro, distanciado daquilo que foi. Outra

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característica apresentada por Mundo que avaliamos se relacionar com os estatutos do gênio e

da loucura, próprios do comportamento melancólico, é o desenraizamento que a personagem

apresenta. Enquanto o padrão para a maioria dos indivíduos comuns é a fixidez em

determinado local, Mundo opta por se tornar um andarilho até o momento de sua morte.

Observamos que esse comportamento da personagem não só tem a ver com o confronto em

relação ao meio social, mas também está intrínseco às características próprias da melancolia.

A perda e o enlutamento são outras constantes em Mundo. O protagonista está sempre envolto

com um objeto perdido. Esse objeto perdido resulta sempre de suas conflituosas e agônicas

relações familiares e especialmente do conturbado enfrentamento do pai. Como observado no

segundo capítulo, perda e luto são nucleares na constituição do processo melancólico. A arte

produzida por esse personagem procura traduzir essa condição de perda e enlutamento. Esse

mundo observado por ele, ao ser recriado artisticamente, perde alguns elementos que Mundo,

enquanto observador, jamais conseguirá recuperar na totalidade, apenas especular e refletir

acerca da perda, nesse caso, perda que se liga ao processo melancólico de criação, pois é a

partir dela que as imagens contidas na arte de Mundo buscam retratar e revelar os traços da

memória e os conteúdos obtidos pela memória traumática do vivido.

Segundo a narração de Lavo, Jano falava para a mãe de Mundo que “[ele] ria que nem

uma putinha... Jano passou o resto das férias proibindo todo mundo de rir. Meu pai [diz

Mundo] detesta o riso. Agora ele vai ver o filho dele, a putinha, desfilar de farda”

(HATOUM, 2010, p. 92). Nesse fragmento é possível observar condições criadas por Trajano

que infligem em Mundo violência psíquica baseada na humilhação. O objetivo dessa

recordação, cuja reelaboração recebe os influxos da ironia por parte de Mundo (“putinha

fardada”), é criticar o mundo de Jano, que com o passar do tempo ganha amplitude ética na

arte de Mundo, em função da dimensão traumática que o mundo de Jano proporciona ao

mundo de Mundo. Retomando Khel mais uma vez, verificamos que o desacordo entre Mundo

e Jano é marcado pelo confronto de valores. O Bem para Jano é o Mal para Mundo, e vice-

versa, e é justamente nesse limiar entre Bem e Mal que se situa o estado melancólico criativo

do artista. Sua arte emerge de um lugar em que a exceção é constante em função do

direcionamento do meio social. Com isso, Mundo, em sua arte, se apropria de um processo

antagônico muito intenso para elaborar o Mal em desacordo com o Bem. Walter Benjamin já

havia observado que o desacordo entre sujeito e o meio social é algo nuclear na poesia de

Baudelaire. Para o autor, Baudelaire, ao nomear os grupos representantes do meio social,

estabelece uma metáfora de representação do individuo como um sujeito desgarrado de todas

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as formas comunitárias de pertencimento (BENJAMIN, 2009, p. 75, apud, KEHL 2006, p.

285), tal como ocorre com Mundo.

O desacordo entre o Bem e o Mal e a perda do lugar de pertencimento em função do

desenraizamento, são expressos pelo artista Mundo na forma de fragmentos de memória

reorganizados. Esses elementos formam uma espécie de mosaico da vida triste, dorida e

enlutada de Mundo. Nesse percurso, a arte serve como processo catártico, pois dá conta do

luto relacionado ao sofrimento do artista. Esse mosaico tem início com a instituição familiar,

por conseguinte se mantém na instituição escolar, pois é no Colégio Militar que “as punições

eram pesadas” (HATOUM, 2010, p. 99), mesmo com o narrador dizendo que os colegas de

Mundo penavam mais que ele no Colégio Militar.

Outra obra do artista Mundo que vale analisar é uma instalação denominada Campo de

Cruzes. Segundo a descrição do narrador, Lavo, é feita com “uma cruz de madeira queimada

diante de cada casinha do Novo Eldorado; ao todo, oitenta cruzes. Depois [Lavo explica que

Mundo] ia pendurar trapos pretos nos galhos da seringueira no meio do descampado...”

(HATOUM, 2010, p. 109).

Verificamos que a produção descrita acima tinha o objetivo de provocar, denunciar e

chamar à reflexão acerca do desmatamento e a forma como os moradores daquele lugar se

tornaram prisioneiros de um sistema de imposições que violenta o lugar que habitam. Além

disso, a instalação metaforiza mais uma vez o estado de ruína, pois se trata de um espaço

marcado pela destruição e pela passagem do tempo. Além desse caráter temático, a instalação

nasce dos pesadelos e angústias que o artista tivera em sua infância:

Mundo contou que no internato tinha pesadelo com a paisagem calcinada: a floresta devastada ao Norte de Manaus. [Onde] visitara as casinhas inacabadas do Novo Eldorado e andava pelas ruas enlameadas. Casinhas sem fossa, um fedor medonho (HATOUM, 2010, p. 109).

Anteriormente, mostramos que a arte segundo Walter Benjamin (1987, p. 170), é “uma

figura singular, composta de elementos espaciais e temporais”. Daí pensarmos a arte como

uma metáfora da resistência que se materializa pela memória do teor testemunhal de Lavo,

com vistas a problematizar a experiência de um dado histórico. Nesse sentido, as

temporalidades narradas nas produções artísticas, resultam do ato melancólico e

contemplativo de Mundo e do esforço rememorativo realizado por Lavo. Os esboços descritos

por Lavo podem ser lidos como estilhaços e restos de um tempo em que a recordação será

sempre o meio de lembrar-se de nunca esquecer.

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O autoritarismo promove na sociedade a construção de indivíduos abatidos, pois

Mundo, enquanto indivíduo social, se demudou, quando Lavo o descreve “mais magro, cabelo

emaranhado, [...] rosto fatigado” (HATOUM, 2010, p. 157): a fisionomia de Mundo é

resultado da queima pelo pai de sua obra de arte o Campo de Cruzes. A personagem artista

está indignada com que o pai diz: “até a roupa barata que tua tia costurou ele incendiou, não

é? Esse era o homem que queria civilizar a Amazônia” (HATOUM, 2010, p. 157).

As produções artísticas de Mundo também desenham a memória como recordação das

coisas boas que fizeram parte de sua vida. Exemplar dessa condição é uma das cartas que

escreveu a Lavo, em que diz sentir saudades dele e de Ranulfo, junto com a carta ele também

envia a Lavo os “esboços de uma sequência de quadros intitulado Capital na selva, “pinturas

da calçada da Castanhola, retratos de mulheres e meninas que tão cedo não vou ver, ouvir e

nem tocar” (HATOUM, 2010, p. 165).

O romance tem início com a personagem principal já morta, e com o narrador

demonstrando a necessidade de retomar os momentos antes e depois da morte de Mundo.

Assim, quase no final da narrativa, momento em que Lavo comenta acerca dos momentos

póstumos de Mundo, o narrador viaja para o Rio de Janeiro, onde encontra Alícia, mãe de

Mundo. Esse momento é assim narrado por Lavo:

Ele dormiu aqui. Foi preso humilhado, só porque saiu andando nu pela rua. Depois ficou mais de uma semana na clinica, sofrendo... Ela abriu o guarda-roupa e dali retirou aquarelas de desenhos a bico de pena, esboços e pequenos quadros com paisagem e figuras distorcidas de Kreuzberg e de bairros londrinos. Algumas obras, tinta acrílica em chapas de alumínio, com reprodução invertida em papel, eram retratos de amigos: Alexandre Flem e suas identidades, Protesto de um jardineiro na Remnant Street, Mona e a viajem a todos os corpos; Adrian e os quadros cinéticos. De um caixote de carvalho tirou telas enroladas em toalhas. Sete, as duas últimas mais pesadas. Desembrulhou-as e pôs, uma a uma, na bancada em L, como se formasse uma sequência. Mundo me pediu que te mostrasse esses quadros” [...] é o trabalho que ele queria apresentar naquela escola... The Slade. Começou na Alemanha e terminou em Londres. Na primeira pintura uma figura masculina aparece de corpo inteiro, os olhos cinzentos no rosto severo, ainda jovem, terno escuro e gravata da cor dos olhos, as mãos segurando um filhote de cachorro, e, ao fundo, o casarão da Vila Amazônia, com índios caboclos e japoneses trabalhando na beira do rio. Mundo no meio dos trabalhadores olha para ele e desenha. Ele se vê como um daqueles trabalhadores? (HATOUM, 2010, p. 216).

Diante da afirmação do narrador, acerca da ideia de que o artista se vê como um

trabalhador. Com base nessa reflexão, acreditamos que o trabalho de Mundo enquanto artista,

neste caso, está vinculado à realização do registro da matéria historiográfica.

O narrador assume o papel de porta voz das produções artísticas para transmitir ao leitor

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o conteúdo daquela arte, pois quaisquer dos elementos presentes nelas assumem inúmeros

referenciais metaficcionais, que tanto o narrador quanto o leitor terão de fazer ligações

metafóricas associativas da matéria historiográfica ficcional com a memória e a história

recente do país. Ainda na presença das obras, o narrador descreve:

Nas quatro telas seguintes as figuras e as paisagens vão se modificando, o homem e o animal se deformando, envelhecendo, adquirindo traços estranhos e formas grotescas, até a pintura desaparecer (HATOUM, 2010, p. 216). As duas últimas telas, de fundo escuro43, eram antes objetos: numa, pregados no suporte de madeira, os farrapos da roupa usada pelo homem no primeiro quadro, que havia sido rasgada, cortada e picotada; na última, o par de sapatos pretos cravados com pregos que ocupavam toda a tela, os sapatos lado a lado, mas voltados para direções opostas, e uma frase escrita à mão em um papel em branco fixado no canto inferior esquerdo: História de uma decomposição – Memórias de um filho querido (HATOUM, 2010, p. 216-217)

Cada uma dessas produções possui um lugar na recuperação da matéria historiográfica.

Elas servem de base para a construção de um quebra-cabeça formado pela história recente do

país, mais particularmente na Amazônia. Os elementos utilizados por Mundo, para

composição de sua arte, identificam um passado sombrio, triste, melancólico, visto nos

artefatos que compõem sua arte, por exemplo, a roupa que Jano usou no casamento com

Alícia. Para tanto, “os farrapos da roupa usada pelo homem no primeiro quadro”, descritos

por Lavo, são pedaços de panos rasgados, andrajos esfarrapados. Enfim, trata-se de um modo

ruiniforme de composição. Essa forma de compor se coloca como alegoria da memória, que

resultaria nessa costura dos resquícios deixados ao longo da experiência. Daí um dos últimos

quadros ser denominado: História de uma decomposição – Memórias de um filho querido.

A apresentação que Lavo faz dessas produções nos leva a pensar que elas abarcam

profundamente o ressentimento de Mundo. Para David Konstan (2004, p. 15) o ressentimento

enquanto categoria estética está no âmbito dos afetos e da política. E para pensar o

resentimento é preciso considerar: os rancores, as invejas, os desejos de vingança e os

fantasmas de morte ou do luto. Neste sentido, Mundo pode ter sido constituído como um

grande personagem ressentido, além de melancólico. Acreditamos que o cerne de seu

ressentimento pode estar no desafeto em relação à violência exercida pelo pai (Jano) contra o

filho (Mundo), diante das contínuas experiências de hostilidade.

43 A resistência, sendo apresentada pela simbolização das cores, que emanam o sentido de luto e de melancolia.

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4.2. Da melancolia à arte como resistência

Como destacamos em outros momentos deste estudo o ponto alto da análise centra-se

nas obras de arte produzidas por Mundo e também em seus anseios, como artista, ao utilizar a

arte como meio de provocação e confronto em relação aos atos e movimentos das instituições

políticas e sociais, que têm, em seu teor ideológico, imposições autoritárias. A arte de Mundo

é uma arte melancólica, mas a melancolia criativa que o move prefigura uma arte de

resistência, que se vale da contemplação acerca do tempo para revelar uma história sulcada

dos andrajos deixados por seu pai e por metonímia, pelo conjunto de figuras autoritárias que

rodeiam o protagonista. Figuras representativas de tempos agônicos. É a partir dessa ideia de

resistência apresentada por Mundo, em suas obras, que vamos apresentar a concepção de

resistência que fundamenta nossa análise do objeto estudado.

Alfredo Bosi, em Literatura e Resistência (2002, p. 118), afirma que “Resistência é

conceito originalmente ético, e não estético”, em função de estar ligado a uma “força de

vontade que resiste a outra força”. Bosi mostra que a atividade artística não nasce da força de

vontade; ela surge das potências do conhecimento como “a intuição, a imaginação, a

percepção e a memória”. Ainda que a resistência não venha da estética, quando ela se

transforma em uma problematização no interior das produções artísticas, ela ganha uma

formulação estética. Para Bosi (2002), a forma deve acompanhar a vontade de resistência.

Com isso, a ideia de resistência, conjugada à narrativa, para Alfredo Bosi, pode ser

realizada de duas formas. A primeira, “[é] a resistência [que] se dá como tema [e a segunda,

é] a resistência [que] se dá como processo imanente à escrita” (BOSI, 2002, p. 120). A

resistência enquanto tema, conforme diz Bosi, é a resistência formulada com base em temas

provenientes de matérias historiográficas que são apropriados pelo texto literário. É

importante ressaltar que essa tematização se faz apresentar na literatura a partir da inter-

relação entre ficção e história. Para Tânia Sarmento-Pantoja (2010, p. 48), ao “pensarmos a

narrativa de resistência como tema é preciso pensá-la em termos cronológicos ou

historiográficos, porque como tema, nos objetos estéticos, a resistência sempre comparece

vinculada a uma datação historicamente marcada no próprio objeto estético”. Em Cinzas do

Norte, a matéria historiográfica se origina de dados históricos, fixados em um espaço e tempo,

como, por exemplo, a Ditadura Militar, a Segunda Guerra Mundial e a imigração japonesa.

A resistência imanente a escrita encontra-se em produções que capturam os conflitos,

os antagonismos, os processos de opressão e desumanização do homem. Ela transforma todos

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esses elementos capturados do meio social em uma problematização que perpassa inclusive o

nível da escrita. Trata-se de um trabalho ficcional que elabora “não só com a memória das

coisas acontecidas, mas todo o reino possível e do imaginável” (BOSI, 2002, p. 121).

Em Cinzas do Norte este processo também ocorre, pois os objetos artísticos: desenhos,

pinturas, instalações de Mundo, agregados ao relato do narrador Lavo no romance, servem

para problematizar os protótipos de realidade ficcionalizados pela narrativa. Cinzas do Norte

de acordo com o modelo proposto Bosi, se encaixa, então, nas duas possibilidades de

resistência. A narrativa tanto apresenta a resistência como tema, em função dos inúmeros

dados históricos invocados ao longo da narrativa, quanto à resistência imanente à escrita,

tendo em vista o uso de estratégias ficcionais que a partir do rompimento com a forma

convencional do romance também traduz a problematização levantada. Como vimos no

capítulo anterior, a narrativa de Cinzas do Norte é altamente concentrada em uma

autoconsciência que somada às remissões históricas fazem desse romance de Hatoum uma

metaficção historiográfica.

Outro estudo dedicado à categoria da resistência é o texto de Frederico Lorenz,

Resistências,

[“]“Resistir”, desde la etimologia, remite a lãs virtudes militares. Una de sus acepciones es la de “mantenerse firme” [...] la resistencia se construye, también, em la noción de um enfretamiento del fuerte contra el débil, y de la justicia contra la injusticia”44 (LORENZ, 2012, p. 14-15).

Assim, diante de tudo o que foi dito, pensamos a resistência como categoria do

enfrentamento, que dá conta de formulações presentes em várias produções literárias do

século XX e XXI, no Brasil. Vários escritores utilizam o romance como forma de

problematizar o testemunho enquanto forma de reação. A obra Memórias do Cárcere, de

Graciliano Ramos, por exemplo, é apontada por Bosi, como sendo uma narrativa que tematiza

a experiência humana imersa na exceção e, por isso, corresponde à literatura de resistência.

Outro autor que também tematiza a categoria resistência em suas produções é Carlos

Drumonnd de Andrade, pois, em alguns poemas, mais particularmente, os que fazem parte de

A rosa do povo, livro publicado em 1945, o escritor problematiza os regimes totalitários e

belicistas e, com isso, a resistência como tema passa a estar universalizada na cultura (BOSI,

2002, p. 129). 44 Em tradução livre: Resistir, da etimologia, refere-se às virtudes militares. Um dos seus significados é “manter-se firme” [...] a resistência é construída, também, na noção de um enfrentamento forte contra o fraco, e a justiça contra a injustiça.

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Em alguns textos narrativos observamos o espaço e o tempo em que os personagens são

construídos, sendo costurados e alinhavados diretamente com a temática da resistência,

principalmente quando uma das temáticas principais é a oposição aos regimes de exceção. O

romance Quarup (1967), de Antônio Callado, é uma dessas narrativas, em que a ação

transcorre a partir do período entre o suicídio de Getúlio Vargas (1954) e o golpe militar de

1964. Ele mostra, sob a ótica de um padre (Nando) ainda jovem, a realidade social e política

de um Brasil tumultuado.

Cinzas do Norte, embora não tenha sido produzido nesse período, também apresenta um

processo de resistência voltado ao tema, quando observamos situações que problematizam os

regimes autoritários, e uma delas é a relação conflituosa entre pai e filho, em que o pai assume

a posição de autoridade e se comporta como ditador, ditando e impondo as regras e os

caminhos que o filho deve seguir. Outro aspecto, que alinhava a ideia de resistência, é o

período descrito que faz referência ao ano de 196445, citado anteriormente.

Vale ressaltar que, tanto a resistência ligada ao tema, quanto à escrita, são utilizadas no

decorrer deste trabalho em função de sua relação com as temáticas que permitem a arte e a

memória serem vistas como movimentos de resistência. Uma dessas temáticas está

relacionada com as perdas que Mundo sofre no decorrer da vida. Essas perdas o constituíram

como um indivíduo profundamente desanimado e desencantado com o meio social. Como já

dito anteriormente, neste trabalho, o desânimo está no cerne do processo de inibição do

indivíduo desde o Renascimento. Em Mundo, é o desânimo e o desencanto que solidificam

suas produções, por estas duas temáticas problematizarem a resistência.

Um dos aspectos recuperados pela narrativa de Cinzas do Norte é a memória

reelaborada pela arte, quando a arte, através dos primeiros rabiscos ainda na infância de

Mundo, assume o papel de representação metafórica de um mundo construído pelos

fragmentos da memória material e social. É aí que a arte também é produzida a partir de

espaços preenchidos pelo vazio que o trauma não permite mais preencher. No relato de Lavo,

o indizível vem na forma da metáfora do barco à deriva: “foi o primeiro desenho que ganhei

dele: um barco adernado, rumando para um espaço vazio, e toda vez que passava perto da

nau Europa, lembrava do desenho de Mundo” (HATOUM, 2010, p. 9).

Com isso, a melancolia em Baudelaire emerge pelo viés social, mediante sua relação

conflituosa com a sociedade, pois foi através da vida pública representada, principalmente

pelos espaços urbanos da cidade, que Baudelaire procurou o objeto perdido da modernidade. 45 “Só fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964, quando as aulas do ginásio Pedro II iam recomeçar depois do golpe militar [...]” (HATOUM, 2010, p. 9).

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Sua poesia elucida um movimento rumo ao sintoma de dor e sofrimento que roga por uma

tentativa de cura em relação à consciência dessa perda. Tal aspecto é visto como ponto

interessante na análise de Kehl, por ser capaz de diferenciar a melancolia benjaminiana da

freudiana. Em Freud, a perda está ligada ao inconsciente, ou seja, sabe-se que se perdeu algo,

mas não se sabe o que foi perdido. No estudo de Benjamin sobre Baudelaire, a perda é

consciente, uma vez que o objeto perdido se encontra visível nos poemas. Em Cinzas do

Norte as perdas também são visíveis, na medida em que as produções de arte de Mundo,

como objetos simbólicos, traduzem as perdas tanto no nível da experiência, quanto no que diz

respeito às relações com o meio social em que vive.

É diante dessa relação entre experiência e memória que a melancolia surge enquanto

categoria estética e literária, na medida em que o artista reelabora a violência a que esteve

assujeitado, procurando traduzi-la em sua arte. A melancolia, neste caso, emerge como forma

de reação às imposições violentas de alguma forma de poder autoritário, seja ele intrínseco ao

estado de exceção, seja ele um desdobramento do poder patriarcal. Esse processo reverbera na

arte de Mundo, na medida em que o grotesco e a ruína passam a compor as figuras

monstruosas que traduzem a dor, o sofrimento, a violência e a tristeza.

É no segmento, que envolve a representação do sofrimento do personagem, que a apatia

emerge como algo que o paralisa, diferente do que ocorre com o indivíduo melancólico

apontado pela teoria de Walter Benjamin, como já referido neste processo de rememoração do

artista, pois, a melancolia criativa traz a código os elementos do luto, que culminam na apatia

do personagem quando ele age de maneira instintiva e sua fixidez o impede de criar, quando o

personagem diz:

Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre...Sinto no corpo o suor e agonia”, é o que lê pouco antes do fim. Na margem da última página, estas palavras: “meia-noite e pouco. (HATOUM, 2010, p. 7).

As duas últimas palavras, referendadas no fragmento acima, marcam simbolicamente, a

morte da personagem e seu último grito de resistência. Mesmo que o processo tenha sido o

inverso do que esperávamos, sobre a hipótese levantada de que seria da apatia a força motriz

de reação e, por consequente, de resistência. Observamos que se trata justamente do contrário,

pois a apatia emerge no momento que não é mais possível resistir para o personagem, e o

mundo diante de seus olhos aparece em tom de cinzas, metaforizado pelo “teto baixo, paredes

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vazias, ausência de cor e de céu...” (HATOUM, 2010, p. 230). E tudo na vida de Mundo se

torna insuportável de observar, não apenas o espaço físico que no momento agônico de sua

vida ele observa objetivamente. Assim, nem “o sol e o céu do Rio e do Amazonas... nunca

mais... Só [as] paredes, e [o] [...] cheiro insuportável...” (HATOUM, 2010, p. 230 - 231).

O cinza que foi referido é estudado, segundo a visão de Marcia Tiburi, como

a fumaça das coisas mortas pelo fogo [...] a cinza, tornada pó, fim da combustão extrema não permite que se escreva com ela. Ela pertence ao simbolismo do corpo morto, está associada a fumaça, lembra e recria a atmosfera da morte (TIBURI, 2004, p. 162).

Mundo, enquanto indivíduo paralisado, é como esse corpo morto, pois suas habilidades

criativas, que representam a vida, a liberdade e a rebeldia, são suspensas. Essa apatia é assim

sua primeira forma de morrer e antecipa a morte física do protagonista. Tal condição é

confirmada na última carta enviada a Lavo. Ao reelaborar o que está na correspondência,

Lavo destaca, a partir do uso do discurso indireto livre, aquele que seria o último sopro

criativo de Mundo, marcado pela reticência: “Amigo... sou menos que uma voz...”

(HATOUM, 2010, p. 231).

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CONCLUSÃO

Vale ressaltar que as perspectivas consideradas aqui não encerram os estudos sobre a

categoria da melancolia na obra de Hatoum. Acreditamos que nosso trabalho abre inúmeras

possibilidades de sentidos para a arte romanesca, enquanto estética que proporciona uma

reflexão voltada para o campo da ética, tanto no plano subjetivo, quanto nos planos cultural,

social e político, no que tange à observação do modo como tais reflexões se recriam pela arte

na obra hatoumiana, partindo do tempo da Ditadura Militar.

A título de considerações finais, retornamos ao que afirma Peter Burke, acerca dos

traços de memória que transmitem recordações a partir de ações. Verificamos que na narrativa

há um desses traços, o sinal de reticências presente nas últimas palavras de Mundo, uma vez

que as recordações da personagem, devido sua morte, estarão asseguradas apenas na memória

de Lavo e nas obras herdadas pelo amigo. São as recordações transformadas em figurações

nos objetos artísticos que terão a capacidade de (re)significar as vivências e apreensões da

personagem Mundo. Trata-se, nesse sentido, de uma representação da vida, que tanto pode

estar direcionada ao mundo social, quanto ao mundo familiar. Outro dado importante acerca

das recordações é a descrição que o narrador Lavo faz dessas produções artísticas, que servem

como veículo de uma possível reconfiguração dos dados guardados na memória.

Logo, são as obras de arte e esse conjunto de recordações que atrelam a melancolia no

romance Cinzas do Norte, de tal modo que a melancolia enquanto categoria estética

proporciona à literatura “uma função especial da memória humana [...] [apreendidos pelos]

dados históricos” (ASSMANN, 2011, p. 33).

Diante do exposto, constatamos que a narrativa de Cinzas do Norte é provocativa em

relação à revisitação da história através da memória que culmina em uma “possível”

(re)construção dos fatos. O romance de Cinzas do Norte é uma obra de teor testemunhal, que

se valendo da matéria histórica, especula acerca da memória e problematiza várias

possibilidades de debate acerca do passado. Assim, abre novos caminhos para que a arte, por

meio de seu processo de criação, discuta os lugares, o espaço e o tempo advindos do passado,

assim como os modos como o presente recompõe o passado.

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6. REFERÊNCIAS

6.1. Textos literários ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: poesia completa. Rio

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