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M E I O A M B I E N T E 12 por Flávia Natércia Desenvolvimento limpo: carbono para comprar e vender A Celulose Irani, empresa de Vargem Bonita (SC) controlada pelo Grupo Habitasul, resolveu apostar na emissão de créditos de carbono. É a primeira do ramo no país a se beneficiar do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), uma das formas de flexibiliza- ção das metas de redução de emissão de gases-estufa que cabem, até 2012, aos 35 países industrializados incluídos no Anexo 1 do Protocolo de Kyoto. Foram investidos R$ 22,5 milhões na adequação energética da produção da Irani. Madeira e celulose passaram a ser usadas na co- geração de eletricidade, e a fábrica se tornou auto-suficiente. Para Péricles Pereira Druck, diretor-superintendente da empresa, a expectativa de retorno do investimento é de 5 anos. "A produção de celulose exige florestas plantadas para suprir a demanda, e a otimização do uso dessas florestas exige o aprovei- tamento da parte nobre da árvore para beneficiamento da madeira sólida (móveis, compensados, lâmina) e dos subprodutos desse beneficiamento e da própria árvore para geração de vapor e energia", explica Druck. Assessorada pela empresa de con- sultoria Ecosecurities, a Irani conseguiu fazer a Shell se interessar por seus cré- ditos. Em 20 meses de operação, a co- geração fez com que 179.397 toneladas de carbono equivalente deixassem de atingir a atmosfera; em 21 anos, proje- ta-se a redução potencial em 3.702 mil toneladas. Druck diz que o desenvolvi- mento de projetos ambientalmente favo- ráveis, como o tratamento de efluentes e a recuperação de produtos químicos, "faz parte da cultura da empresa". Cultura que rende resultados práticos. "Cada vez mais clientes e comunidades estão valo- rizando e reconhecendo esse diferencial nas empresas", diz o diretor. Embora a sigla MDL possa sugerir uma multiplicidade de mecanismos, só existe mesmo um, explica o professor do Programa de Planejamento Energé- tico da Coppe-UFRJ, Roberto Schaeffer: a compra e a venda de créditos de car- bono. Schaeffer é membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU), o único brasileiro a par- ticipar desse grupo que avalia os méto- dos a serem empregados nesse tipo de projeto. "Dá-se grande ênfase às meto- dologias propostas porque se está come- çando a implementar o mecanismo e, para que ele exista, é necessário que metodologias rigorosas possam garan- tir que os projetos sejam avaliados segundo critérios claros e objetivos, que não sejam questionados depois". Como se trata de um mecanismo em imple- mentação, até aqui a maioria dos novos projetos requer adequação ou criação de novas metodologias, uma vez que será o primeiro do seu tipo. "Exemplifico: o primeiro projeto de aterro sanitário teve que desenvolver uma metodologia específica para aterros sanitários, que permitisse a determinação e a escolha da linha de base, a determinação da adi- cionalidade do projeto, o cálculo das reduções de emissão, o cálculo dos pos- síveis vazamentos etc." Com o tempo, os novos projetos vão se enquadrando em categorias de outros já existentes. Apesar de incipiente, o MDL começa a mostrar resultados. Ricardo Esparta, diretor da Ecoinvest, empresa que pres- ta consultoria financeira nessa área, diz que o sucesso de projetos que já emitem créditos é a melhor forma de divulgação da novidade. Para que o interesse nas ações e o alcance dos projetos se ampliem, Esparta sugere a elaboração de "uma proposta clara de uma política nacional sobre mudanças climáticas", além de uma "simplificação dos procedimentos de aprovação". Ele diz que o governo fede- CONSULTORES JÁ OBSERVAM MAIOR INTERESSE E AUMENTO DO NÚMERO DE EMPRESAS INVESTINDO EM CONHECIMENTO SOBRE O MERCADO E NA IMPLEMENTAÇÃO DE PROJETOS MDL

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M E I O A M B I E N T E

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por Flávia Natércia

Desenvolvimento limpo: carbono para comprar e vender

A Celulose Irani, empresa de VargemBonita (SC) controlada pelo GrupoHabitasul, resolveu apostar na emissãode créditos de carbono. É a primeira doramo no país a se beneficiar doMecanismo de Desenvolvimento Limpo(MDL), uma das formas de flexibiliza-ção das metas de redução de emissão degases-estufa que cabem, até 2012, aos35 países industrializados incluídos noAnexo 1 do Protocolo de Kyoto. Foraminvestidos R$ 22,5 milhões na adequaçãoenergética da produção da Irani. Madeirae celulose passaram a ser usadas na co-geração de eletricidade, e a fábrica setornou auto-suficiente. Para PériclesPereira Druck, diretor-superintendenteda empresa, a expectativa de retorno doinvestimento é de 5 anos. "A produçãode celulose exige florestas plantadaspara suprir a demanda, e a otimizaçãodo uso dessas florestas exige o aprovei-tamento da parte nobre da árvore parabeneficiamento da madeira sólida(móveis, compensados, lâmina) e dossubprodutos desse beneficiamento e daprópria árvore para geração de vapor eenergia", explica Druck.

Assessorada pela empresa de con-sultoria Ecosecurities, a Irani conseguiufazer a Shell se interessar por seus cré-ditos. Em 20 meses de operação, a co-geração fez com que 179.397 toneladasde carbono equivalente deixassem deatingir a atmosfera; em 21 anos, proje-

ta-se a redução potencial em 3.702 miltoneladas. Druck diz que o desenvolvi-mento de projetos ambientalmente favo-ráveis, como o tratamento de efluentese a recuperação de produtos químicos,"faz parte da cultura da empresa". Culturaque rende resultados práticos. "Cada vezmais clientes e comunidades estão valo-rizando e reconhecendo esse diferencialnas empresas", diz o diretor.

Embora a sigla MDL possa sugeriruma multiplicidade de mecanismos, sóexiste mesmo um, explica o professordo Programa de Planejamento Energé-tico da Coppe-UFRJ, Roberto Schaeffer:a compra e a venda de créditos de car-bono. Schaeffer é membro do PainelIntergovernamental de MudançasClimáticas da Organização das NaçõesUnidas (ONU), o único brasileiro a par-ticipar desse grupo que avalia os méto-dos a serem empregados nesse tipo deprojeto. "Dá-se grande ênfase às meto-

dologias propostas porque se está come-çando a implementar o mecanismo e,para que ele exista, é necessário quemetodologias rigorosas possam garan-tir que os projetos sejam avaliadossegundo critérios claros e objetivos, quenão sejam questionados depois". Comose trata de um mecanismo em imple-mentação, até aqui a maioria dos novosprojetos requer adequação ou criaçãode novas metodologias, uma vez queserá o primeiro do seu tipo. "Exemplifico:o primeiro projeto de aterro sanitárioteve que desenvolver uma metodologiaespecífica para aterros sanitários, quepermitisse a determinação e a escolhada linha de base, a determinação da adi-cionalidade do projeto, o cálculo dasreduções de emissão, o cálculo dos pos-síveis vazamentos etc." Com o tempo,os novos projetos vão se enquadrandoem categorias de outros já existentes.

Apesar de incipiente, o MDL começaa mostrar resultados. Ricardo Esparta,diretor da Ecoinvest, empresa que pres-ta consultoria financeira nessa área, dizque o sucesso de projetos que já emitemcréditos é a melhor forma de divulgaçãoda novidade. Para que o interesse nasações e o alcance dos projetos se ampliem,Esparta sugere a elaboração de "umaproposta clara de uma política nacionalsobre mudanças climáticas", além deuma "simplificação dos procedimentosde aprovação". Ele diz que o governo fede-

CONSULTORES JÁ OBSERVAM MAIOR INTERESSE E

AUMENTO DO NÚMERO DE EMPRESAS INVESTINDO

EM CONHECIMENTO SOBRE O MERCADO E NA

IMPLEMENTAÇÃO DE PROJETOS MDL

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cotas de emissão por esses mesmos paí-ses, o que os obriga a lidar com o proble-ma. Para empresas de países fora domundo desenvolvido, é a possibilidadede vender créditos de carbono. E, porfora, correm aqueles que, por razão demarketing ou algum sentimento altruís-ta mais nobre, acham que é correto sepreocupar com a questão das mudançasclimáticas", pondera Schaeffer. O espí-rito do MDL é "mostrar que as reduçõesde emissão são reais, mensuráveis e adi-cionais". A atribuição de valores a bensnaturais pode não ser o melhor cami-nho, mas tem funcionado. "É a tentati-va de internalizar, via mercado, as exter-nalidades ambientais", avalia.

O Protocolo de Kyoto, concluído emdezembro de 1997, no Japão, impôs aospaíses industrializados a redução dasemissões dos gases responsáveis peloaquecimento global: gás carbônico (CO2),metano (CH4), óxido nitroso (N2O) e trêsgases à base de flúor (HFC, PFC e SF6).Para que as emissões mundiais fossem5,2% menores em 2012, foram definidas

quotas de redução para 35 paí-ses industrializados. Até essadata, o compromisso não atin-ge países em desenvolvimen-to, que podem, entretanto, nego-ciar, com os poluidores que têmmetas a cumprir, créditos decarbono, que são certificados deredução da emissão, medidaem toneladas de carbono quedeixam de ser lançadas àatmosfera. Para adquiri-los, épreciso implementar projetosque poupem a atmosfera dosprincipais poluentes. Os certi-ficados são emitidos pela con-venção climática da ONU.

PÓS-2012: O DIA DEPOIS DE AMANHÃ

Com a proposta da forma-ção de um fundo mundial para

o combate ao desmatamento em Nairóbi,Quênia, durante a 12ª Conferência dasPartes da Convenção-Quadro das NaçõesUnidas sobre Mudança do Clima, o Brasilconfirmou sua posição de destaque den-tre os países signatários do Protocolode Kyoto. Dentre os que desenvolvemprojetos de negociação de créditos decarbono no mercado internacional, opaís fica em segundo lugar, perdendosomente para a Índia. Até junho de 2006,o Ministério da Ciência e Tecnologia(MCT) havia registrado 160 projetos deMDL em distintas fases de aprovação.

Mas, de acordo com diversos espe-cialistas, o Brasil pode e deve fazer maiscontra as mudanças climáticas que amea-çam tornar o planeta inabitável. Porexemplo, estabelecendo metas própriasde redução e assumindo um papel deliderança, como fez outrora, ao propor,juntamente com o Grupo dos 77 (que con-grega desde os anos 1960 os países emdesenvolvimento) e a China, a criaçãode um Fundo de Desenvolvimento Limpo.A proposta do fundo, que seria alimen-

ral tem atuado de maneira bastante efe-tiva na definição desses procedimentose na negociação no âmbito da Convençãodo Clima. "Por outro lado, medidas pon-tuais existem, por exemplo, em progra-mas de informação e formação de capa-cidade (capacity building) sobre o usodo MDL para aterros sanitários, mas ain-da não identifico um norte para o MDLno Brasil". A Ecoinvest de Esparta asses-sora cerca de 50 projetos no país, dentreos quais: 8 com créditos emitidos, 18registrados, 27 aprovados pelo governoe 33 com solicitação de carta de aprova-ção. Esparta destaca que a ratificaçãogerou "um aumento significativo do inte-resse e, conseqüentemente, um aumen-to do número de empresas investindoem conhecimento sobre o mercado e naimplementação de projetos MDL".

O que tornou a redução de emissõesestratégica, de modo geral, foi a ratifica-ção do protocolo, em 2005 — sem a assi-natura dos Estados Unidos da Américae da Austrália. "Para as empresas dospaíses desenvolvidos, foi a alocação de

Indústrias químicas são alvo

em projetos dedesenvolvimento

limpo

Cíntia Sanchez

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tado por multas infligidas aos paísesque não reduzissem o nível de poluição,não vingou, mas se desdobrou no MDL.

Easier said than done — é mais fácildizer do que fazer — , um ditado que bemse aplica à redução da emissão de gases-estufa. Muitos países industrializadostêm falhado em honrar o compromisso.A Espanha recentemente admitiu teraumentado em 45% as emissões, quandoeram permitidos somente 15%. As previ-sões climáticas projetam um cenário quelembra o do filme estrelado por DennisQuaid, O dia depois de amanhã.Dificilmente as mudanças vão se preci-pitar da noite para o dia, como na tela,mas o mundo em 2100 poderá ser igual-mente catastrófico. No pior cenário, a tem-peratura subirá quase 6o C. A concentra-ção de vapor d'água deve aumentar, e tam-bém as chuvas nas latitudes médias ealtas do Hemisfério Norte, ao passo quea cobertura de neve e gelo vai diminuir.Cumes de gelo em retração, como o doKilimanjaro, vão desaparecer. O derreti-mento das geleiras e a expansão térmicaelevarão o nível do mar —segundo esti-mativas pessimistas, em até 88 cm —levando cidades litorâneas inteiras a desa-parecer.

Ratificado em 2005, o Protocolo deKyoto entrou em uma nova etapa em2006. Segundo Schaeffer, a novidadeestá no início da negociação do "regimepós-2012". Na conferência em Nairóbi,os países em desenvolvimento foramconvocados a somar esforços contra oaquecimento global. Agora podem, tam-bém, comprar créditos de carbono denações industrializadas, ajudando-as acumprir suas cotas. No entanto, envol-ver os países que até então estavam livresde metas tem se mostrado uma árduatarefa. "Infelizmente, está muito difícil,dada a relutância de boa parte dos paí-ses em desenvolvimento para lidar coma questão de, eventualmente, ter queassumir compromissos no futuro",lamenta Schaeffer. A demora no estabe-lecimento de metas terá conseqüênciasfunestas. "A negociação do pós-2012 temque começar urgentemente, sob o riscode os custos das mudanças climáticasse tornarem altos demais no futuro",adverte Schaeffer.

Asel Doranova, pesquisadora doQuirguistão (ex-república soviética daÁsia) que faz doutorado na UniversidadeMerit, das Nações Unidas, diz que espe-ra que se desenvolva uma clara visão das

ações e programas a serem executadosa partir de 2012. "Isso deve fornecer abase para o desenvolvimento de políti-cas que encorajem os países em desen-volvimento a desempenhar um papelmais pró-ativo na mitigação das mudan-ças climáticas", avalia Doranova, que émestre em estudos de política ambien-tal e desenvolvimento. "Além disso, osgovernos federais devem pensar emmelhores políticas promovendo incen-tivos aos atores privados que contribuampara os objetivos de Kyoto, políticasmelhor definidas e programas para atransferência de tecnologia e formaçãode capacidade tecnológica", acrescenta.

Ambientalistas criticam a não-inclu-são do desmatamento no MDL. MasSchaeffer considera a atitude correta."Incluir a chamada avoided deforestation

é permitir que os países industrializa-dos 'Anexo 1' continuem a emitir nosníveis atuais à custa da não-emissão empaíses em desenvolvimento. Usar o MDLpara isso me parece perigoso, além denão ser possível na estrutura atual domecanismo". Para ele, a Convenção doClima já prevê a possibilidade de apoioà redução do desmatamento em paísesem desenvolvimento. Por outro lado,uma matriz energética limpa pode vira dificultar reduções posteriores de emis-são, tornando-se um problema. "Meusestudos mostram que a matriz brasilei-ra tende a se sujar um pouco com o pas-sar do tempo, mas não demais, perma-necendo relativamente limpa se com-parada à maior parte dos países do mun-do", avalia Schaeffer. "No caso do des-matamento, não há escusas. As taxasatuais são injustificáveis e cabe tomarmedidas para coibi-las", diz. Sejamquais forem os compromissos futurosdo país, "se houver vontade política, aredução do desmatamento consegui-rá, com sobras, atender a qualquer metaque o Brasil concorde em assumir", con-clui Schaeffer.

Reserva de Mata Atlântica noParque Nacional de Itatiaia (RJ): preservação de florestas nativas

contribui para a redução da concentração do CO2 na atmosfera

Jefferson Rudy / M

MA

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