Mega-Anistia Do Agronegócio

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18/8/2014 :: Le Monde Diplomatique Brasil :: http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=245 1/3 Imprimir página « Voltar AGRONEGÓCIO A mega-anistia Desde a década de 1980, as dívidas dos produtores agrícolas vêm sendo revistas. Recentemente, uma renegociação promovida pelo governo beneficiou esses latifundiários em R$ 75 bilhões, demonstrando a força do agronegócio, cada vez mais poderoso com a expansão da soja e do etanol por Plínio Arruda Sampaio Pela quarta vez em sete anos, o governo renegociou as dívidas vencidas dos produtores agrícolas. Foram revistos 86% dos 2,8 milhões de contratos faltosos, ou seja, R$ 75 bilhões de um total de R$ 87,8 bilhões. Calcula-se que essa operação custará nada menos que R$ 10 bilhões aos cofres públicos. A renegociação de dívidas é uma forma de subsídio governamental, que consiste numa transferência de renda do conjunto da sociedade para uma parte dela. Lula não é o primeiro presidente a subsidiar a agricultura brasileira. Os governos anteriores também o fizeram das mais variadas formas. O Brasil tampouco é o único país a adotar essa prática. Todas as nações, de uma forma ou de outra, aberta ou veladamente, o fazem. O subsídio, como forma de viabilizar a agricultura, apresenta vários inconvenientes, mas ainda não se inventou um substituto eficaz para garantir um nível de produção aceitável que evite o desabastecimento alimentar e reduza a receita de exportações de produtos do campo. Trata-se, sim, de um indicativo de que a humanidade ainda não conseguiu resolver adequadamente o problema da satisfação de suas necessidades de alimentos e matérias primas. A “Revolução Verde”, tão celebrada nos anos 1960, possibilitou o aumento exponencial da produção. Entretanto, nas últimas cinco décadas, diversos países sofreram com crises de fome aguda, além de verdadeiras catástrofes ecológicas decorrentes da aplicação dos “pacotes tecnológicos” desenvolvidos por essa “revolução”. Isto aconteceu tanto em Estados pobres capitalistas como entre os países socialistas. É verdade que estes últimos conseguiram ao menos alimentar suas populações, diferentemente dos demais. A China de Mao Tsé-tung, por exemplo, conquistou a proeza de eliminar as crises de fome aguda que assolavam periodicamente grande parte da população. Mas, por outro lado, em plena Guerra Fria, a União Soviética viu-se obrigada a importar trigo do Ocidente capitalista e quando o regime caiu, foram descobertos enormes desastres que as tecnologias empregadas haviam causado ao meio ambiente. Não é por acaso, portanto, que nas rodadas da Organização Mundial do Comércio (OMC) a questão dos subsídios aos produtores constitui o principal obstáculo às negociações para liberação do comércio internacional de commodities agrícolas. A raiz da questão está no controle das variáveis que influem no resultado das colheitas. Alterações climáticas imprevisíveis e o surgimento de pragas influem decisivamente no resultado da semeadura. A biotecnologia, que prometia eliminar essas incertezas, está bem longe de ser uma panacéia e tem se mostrado uma faca de dois gumes. No regime capitalista, agregam-se a estes problemas a possibilidade de especulação financeira com as safras. Moralizar as concessões Tudo indica que a solução realmente eficaz do problema da produção e distribuição dos produtos agrícolas exigirá uma revolução tão profunda quanto a que está associada ao início da humanidade. Esta revolução não deverá incidir apenas nas formas de organização social da produção, mas também nas técnicas agrícolas modernas. Sob este aspecto, aliás, vários especialistas têm chamado a atenção para o impasse em que se encontram as agriculturas cujas tecnologias exigem grandes quantidades de água e de agrotóxicos e para a necessidade de desenvolver sistemas agrícolas que utilizem técnicas menos agressivas e que poupem mais os recursos naturais.

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Reportagem sobre o financiamento público ao agronegócio no Brasil.

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AGRONEGÓCIO

A mega-anistia

Desde a década de 1980, as dívidas dos produtores agrícolas vêm sendo revistas. Recentemente, uma renegociação

promovida pelo governo beneficiou esses latifundiários em R$ 75 bilhões, demonstrando a força do agronegócio, cada vez

mais poderoso com a expansão da soja e do etanol

por Plínio Arruda Sampaio

Pela quarta vez em sete anos, o governo renegociou as dívidas vencidas dos produtores agrícolas. Foram revistos

86% dos 2,8 milhões de contratos faltosos, ou seja, R$ 75 bilhões de um total de R$ 87,8 bilhões. Calcula-se que

essa operação custará nada menos que R$ 10 bilhões aos cofres públicos.

A renegociação de dívidas é uma forma de subsídio governamental, que consiste numa transferência de renda do

conjunto da sociedade para uma parte dela. Lula não é o primeiro presidente a subsidiar a agricultura brasileira. Os

governos anteriores também o fizeram das mais variadas formas. O Brasil tampouco é o único país a adotar essa

prática. Todas as nações, de uma forma ou de outra, aberta ou veladamente, o fazem.

O subsídio, como forma de viabilizar a agricultura, apresenta vários inconvenientes, mas ainda não se inventou um

substituto eficaz para garantir um nível de produção aceitável que evite o desabastecimento alimentar e reduza a

receita de exportações de produtos do campo. Trata-se, sim, de um indicativo de que a humanidade ainda não

conseguiu resolver adequadamente o problema da satisfação de suas necessidades de alimentos e matérias primas.

A “Revolução Verde”, tão celebrada nos anos 1960, possibilitou o aumento exponencial da produção. Entretanto, nas

últimas cinco décadas, diversos países sofreram com crises de fome aguda, além de verdadeiras catástrofes

ecológicas decorrentes da aplicação dos “pacotes tecnológicos” desenvolvidos por essa “revolução”.

Isto aconteceu tanto em Estados pobres capitalistas como entre os países socialistas. É verdade que estes últimos

conseguiram ao menos alimentar suas populações, diferentemente dos demais. A China de Mao Tsé-tung, por

exemplo, conquistou a proeza de eliminar as crises de fome aguda que assolavam periodicamente grande parte da

população. Mas, por outro lado, em plena Guerra Fria, a União Soviética viu-se obrigada a importar trigo do Ocidente

capitalista e quando o regime caiu, foram descobertos enormes desastres que as tecnologias empregadas haviam

causado ao meio ambiente.

Não é por acaso, portanto, que nas rodadas da Organização Mundial do Comércio (OMC) a questão dos subsídios

aos produtores constitui o principal obstáculo às negociações para liberação do comércio internacional de

commodities agrícolas. A raiz da questão está no controle das variáveis que influem no resultado das colheitas.

Alterações climáticas imprevisíveis e o surgimento de pragas influem decisivamente no resultado da semeadura. A

biotecnologia, que prometia eliminar essas incertezas, está bem longe de ser uma panacéia e tem se mostrado uma

faca de dois gumes. No regime capitalista, agregam-se a estes problemas a possibilidade de especulação financeira

com as safras.

Moralizar as concessões

Tudo indica que a solução realmente eficaz do problema da produção e distribuição dos produtos agrícolas exigirá

uma revolução tão profunda quanto a que está associada ao início da humanidade. Esta revolução não deverá incidir

apenas nas formas de organização social da produção, mas também nas técnicas agrícolas modernas. Sob este

aspecto, aliás, vários especialistas têm chamado a atenção para o impasse em que se encontram as agriculturas

cujas tecnologias exigem grandes quantidades de água e de agrotóxicos e para a necessidade de desenvolver

sistemas agrícolas que utilizem técnicas menos agressivas e que poupem mais os recursos naturais.

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Estamos bem longe disso, mas o acelerado agravamento das questões ecológicas, assim como a crescente

pressão migratória das populações famintas das regiões pobres para o rico hemisfério norte, nos aconselham a, pelo

menos, pensar seriamente nesse assunto.

No Brasil ainda temos uma tarefa ainda preliminar: moralizar os procedimentos de concessão de subsídios, a fim de

eliminar a “indústria da inadimplência”, que suga periodicamente recursos necessários para outros fins, de modo que

devedores com condições econômicas de saldar seus débitos encontrem meios legais de evitar o pagamento.

Não é incomum que, no final do prazo para pagamento das dívidas, a seguinte cena se reproduza em diversas partes

do país: pequenos e grandes produtores acodem aos bancos a fim de saldar seus débitos; os primeiros pagam

religiosamente; os segundos – devidamente informados por seus competentes lobbistas em Brasília – apenas

aguardam. Faltando alguns minutos para o término do expediente, chega a notícia salvadora: o governo decretou a

renegociação. Os bons pagadores saem do banco mais pobres – alguns até sem sua terra, vendida a preço vil para

honrar o débito – e os maus pagadores saem mais ricos e vão aplicar o dinheiro da dívida prorrogada em títulos

rendosos.

Isto acontece porque as normas da renegociação favorecem indevidamente os grandes produtores. No caso da

Medida Provisória 432, recentemente editada, dos R$ 75 bilhões a serem renegociados, menos de 10% refere-se a

contratos de pequeno valor. Além disso, as cláusulas da revisão dessas dívidas são pouco rigorosas para os grandes

produtores. Enquanto estes poderão prorrogar o pagamento de seus débitos com grandes abatimentos até 2025, os

pequenos só gozarão desta facilidade até este ano.

Os grandes devedores beneficiados com a medida poderão contrair novos empréstimos já no ano que vem, enquanto

os pequenos só poderão bater novamente à porta dos bancos após saldarem totalmente o débito ora renegociado.

Os estímulos para liquidação da dívida estarão disponíveis para os grandes produtores até 2011, enquanto que para

os pequenos, serão aplicáveis somente em 2008.

Qual a lógica dessas diferenças? A única explicação é o lobby dos grandes produtores, solidamente ancorado em

todas as instituições envolvidas na renegociação dos débitos. Basta atentar para o fato de que estes latifundiários

estão prorrogando o pagamento de dívidas contraídas nas décadas de 1980 e 1990 e que já foram objeto de várias

renegociações.

Não se justifica, por critério algum, a concessão de novo benefício para esses maus pagadores. Mas a medida torna-

se escandalosa em um ano em que a elevação dos preços dos produtos agrícolas exportados permitiu-lhes auferir

grandes lucros. Se não pagam suas dívidas quando acontece alguma calamidade ecológica ou uma queda de preços

e tampouco quando conseguem grandes lucros, quando pagarão?

A triste verdade é que o poder de chantagem do lobby agrário, que sempre foi forte, aumentou bastante com a

guinada de Lula em favor da agricultura do agronegócio, voltada especialmente à produção de soja e etanol. Agora,

as ameaças do lobby agrícola não se limitam ao risco de desabastecimento doméstico, abrangem também a queda

da receita de exportações, hoje estratégica para a contenção das pressões inflacionárias.

Na presente renegociação propiciada pela MP 432, os pequenos produtores – que estão renegociando créditos

obtidos para custeio das safras de 2003/2004 e 2005/2006– entram apenas como biombo para ocultar a transferência

de vultosos recursos públicos para uma parcela já privilegiada da população.

Chegamos, assim, a uma situação cômica se não fosse trágica: o brasileiro mais pobre está transferindo mais de R$

50 – do esquálido dinheiro que direta ou indiretamente lhe chega às mãos por vias particulares ou estatais– para

empresas que faturam anualmente centenas de milhões de reais.

Esse despropósito precisa terminar. É inadmissível que o poder público não disponha de meios para determinar com

precisão qual produtor necessita realmente do subsídio e qual o usa para enriquecer ainda mais à custa de toda a

população.

Plínio Arruda Sampaio foi coordenador do plano de ação do governo de São Paulo (1958-62); secretário de negócios jurídicos da

prefeitura de São Paulo; deputado federal; deputado constituinte; candidato a governador de São Paulo (1990 e 2006). Dirige atualmente o

jornal eletrônico Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br) e integra o Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.

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Palavras chave: agronegócio, economia brasileira,