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  • 7/24/2019 Med Medo - Investigao Sobre a Fobia em Freud, Lacan e Autores Contemporneos a Partir de um Caso Clnico

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    gora (Rio de Janeiro) v. XVI nmero especial abr 2013 59-76

    Andr Ehrlich

    Graduado emPsicologia pelaUniversidadeFederal do Parane membro daBiblioteca Freudianade Curitiba.

    Vinicius Anciaes DarribaProfessor adjuntodo Institutode Psicologia/Programa dePs-Graduaoem Psicanlise daUniversidade doEstado do Rio de

    Janeiro (Uer j).

    MED MEDO: INVESTIGAO SOBRE A FOBIAEM FREUD, LACAN E AUTORES CONTEMPORNEOSA PARTIR DE UM CASO CLNICO

    Andr Ehrlich e Vinicius Anciaes Darriba

    RESUMO:A partir de um caso clnico emerge a seguinte questo:a fobia deve ser considerada uma entidade clnica ou uma figura

    clnica a se presentificar em contextos diversos? O presente artigoinvestiga o item nas obras de Freud, Lacan e de dois autores da atua-lidade: Ricardo Diaz Romero e Charles Melman, que reacendem odebate em torno do tema. A psicanlise, como constructo tericoque surge a partir da escuta clnica de Freud, somente mantm seusentido no que continua a nos possibilitar tratar o real da clnicapelo simblico. Neste sentido que, efetuado um percurso terico,retornamos, ao final do art igo, experincia cl nica.Palavras-chave: Fobia, sintoma, castrao, entidade clnica, es-trutura.

    ABSTRACT:Fear fear: an investigation about phobia in Freud, Lacanand other contemporary authors (Diaz Romero and Charles Melman)based on a clinical case.A question emerges based on a clinical case:should phobia be considered a clinical entity or a c linical figure tomake itself present in various contexts? The present art icle inves-tigates this matter in the works of Freud, Lacan and two currentauthors that reignite the debate around the theme. Psychoanalysis,as a theoretical body to emerge from Freuds clinical listening, onlymaintains its reason of being in which it still makes possible forus to handle the real in clinical experience through the symbolic.It is in this sense that, trailing a theoretical path, we return to theclinical experience at the end of the article.Keywords:Phobia, symptom, castration, clinical entity, structure.

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    Assumir a psicanlise como uma prxis implica buscar elementos que nospossibilitem tratar o real da clnica pelo simblico. Ou seja, a pesquisa empsicanlise nasce da experincia clnica e a ela retorna perpassada pelos conceitos

    que nos guiam. No caso clnico que suscitou a presente pesquisa, o paciente, cujodiagnstico parecia inicialmente apontar para uma neurose obsessiva, desenvolveintensa fobia. O relato deste paciente em relao ao seu objeto fbico marcadopor enunciados duros, monolticos, imutveis. Nestas ocasies, qualquer tentativade engaj-lo em processo de associao livre resultava na repetio do enuncia-do de seu relato como um todo em intensa angstia. Em determinada sesso opaciente trouxe um poema de sua autoria, que tinha por refro o verso medo,medo, medo, medo. Com o intuito de implicar o paciente em seu sintoma, oanalista intervm: Med, medo?

    sabido que Freud, j em 1895, nos diz que, em geral, os rituais obsessivos seconstituem sobre um fundo fbico, mas a dureza do discurso do paciente, assimcomo o fato de a fobia vir a intensificar alguns sintomas j presentes remeteu seguinte questo: podemos considerar a fobia uma entidade clnica? Escolhemosnos aprofundar nesta questo, iniciando pela investigao e discusso das ela-boraes de Freud com respeito fobia. Nelas podemos destacar trs momentosdistintos: um primeiro momento, anterior ao caso pequeno Hans; um segundo,como resultado direto do tratamento de Hans; e um terceiro momento, marcado

    pela reelaborao de Freud concernente angstia, apresentada em seu textoInibio, sintoma e angstia (1926).

    Em seguida, nos debruaremos sobre as elaboraes de Lacan, que, emseu seminrio de 1956-57, abordou extensamente o caso pequeno Hans,revisitando-o ainda no seminrio de 1968-69. Completando o mbito terico denossa investigao, dirigiremos nossa ateno s contribuies de autores que, natrilha de Lacan, reacendem o debate em torno da questo do artigo o estatutoa ser gozado pela fobia. Trabalharemos, particularmente, com as elaboraes

    de Ricardo Diaz Romero (1997) e Charles Melman (1994). O retorno ao citadocaso clnico nos propiciar, ento, um dilogo entre as elaboraes tericas eo real da clnica.

    Na medida em que colocamos a pergunta se a fobia pode ser tomada comouma entidade clnica, ou em termos lacanianos, visto seguirmos nesta direo,se h uma estrutura fbica, preciso ter em conta a problemtica do diagnsti-co na psicanlise. Em sua particularidade, ele no baseado na sintomatologia.Portanto, no devemos confundi-lo com o que listado na Classificao Estats-tica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados com a Sade (CID-10)

    entre F 40.0 e F 40.2. Para a psicanlise, o decisivo para o estabelecimento deum diagnstico o que o discurso do paciente revela da economia do desejo.

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    Pensar o diagnstico para a psicanlise coloc-lo, j nos termos de Lacan, naordem de uma estrutura.

    Para Lacan (1957-58), no h definio possvel do campo analtico sem

    que se estabelea a funo estruturante do significante em relao ao sujeito,seu valor constitutivo no sujeito como falante (LACAN, 1957-58/1999, p.526).Deste modo, o simblico, campo do significante, como estrutura, exterior aohomem, maior que ele e o antecede. Da perspectiva do sujeito, a questo que secoloca seu modo estrutural de relao com a totalidade da linguagem, ou seja,seu modo singular de submisso ao simblico. Considerando, como o faz Lacan,o complexo de dipo como processo de simbolizao por excelncia, questionara estrutura do sujeito primordialmente investigar as consequncias que podemser atribudas a acidentes nesse processo.

    Quando falamos de estrutura supomos certa estabilidade. Nas palavras de JoelDor: So semelhantes trajetrias estabilizadas, que chamarei, por assim dizer,traos estruturais. As referncias diagnsticas estruturais aparecem, ento, comoindcios codificados pelos traos da estrutura que so, eles prprios, testemunhasda economia do desejo (DOR, 1994, p.22).

    Em relao clnica, a estrutura nos aponta uma direo do tratamento,entre outras coisas, por tambm nos guiar no sentido das sadas possveis parao sujeito, suas distintas possibilidades de cura.

    A FOBIA EM FREUD

    em seu artigo Psiconeuroses de defesa (1894/1987) que Freud empreendeuma primeira aproximao ao mecanismo psquico na formao das fobias. Nesteartigo, histeria, fobias e obsesses so descritas como afeces cujos mecanismospassam a divergir somente aps o recalcamento de uma representao. A histeriaseria caracterizada pela capacidade de converso, enquanto que na neurose ob-

    sessiva e nas fobias, teramos um mecanismo de transposio (que mais tardereceber o nome de deslocamento). No entanto, Freud abre duas excees: adas fobias vinculadas histeria e a das fobias tpicas, cujo modelo a agorafobiae para a qual no haveria nenhuma representao recalcada.

    J no ano seguinte, no artigo Obsesses e fobias, Freud (1895/1987, p.82)declara: O mecanismo das fobias totalmente diferente do das obsesses.A substituio no mais o trao predominante nas primeiras; a anlise psico-lgica no revela nelas nenhuma representao incompatvel substituda. Assimsendo, as fobias passam a fazer parte da neurose de angstia, ou melhor, so

    uma manifestao psquica da neurose de angstia.

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    A neurose de angstia tem uma origem sexual, mas no se prende a representaes

    extradas da vida sexual; para diz-lo com propriedade, no tem qualquer mecanis-

    mo psquico. Sua causa especfica a acumulao de tenso sexual produzida pela

    abstinncia ou pela excitao sexual no consumada. (FREUD, 1895/1987, p.83)

    A classificao empreendida em Psiconeuroses de defesa confirmada eelaborada mais longamente no artigo Sobre os fundamentos para destacar daneurastenia uma sndrome especifica denominada neurose de angstia, tambmde 1895. Deste modo, temos as fobias de origem traumtica, ligadas histeria;as fobias atpicas, que se baseiam nas obsesses e gozam do mesmo mecanismopsquico destas; e as fobias tpicas, vinculadas neurose de angstia, para asquais Freud no encontra um mecanismo psquico.

    Nesta poca, Freud ainda perseguia o objetivo de fornecer uma base neuro-lgica aos fenmenos psquicos, e isto transparece claramente em sua descrioquanto origem da neurose de angstia. Por outro lado, pela escuta das his-tricas que Freud adentra a tentativa de elucidao dos mecanismos psquicos. neste contexto que compreendemos a declarao: Quando se penetra nomecanismo das duas neuroses (histeria e neurose de angstia) [...] vem tonacertos aspectos que sugerem que a neurose de angstia , realmente, o equiva-lente somtico da histeria (FREUD, 1895/1987, p.111).

    Neste inicio das elaboraes freudianas, as fobias revelam-se como sndro-mes que resistem a uma classificao quanto ao seu mecanismo psquico. Suascaractersticas permitem a Freud situ-las ora entre as neuroses de transferncia(histeria e neurose obsessiva) ora entre as neuroses atuais. Esta caracterstica dasfobias de comparecerem em diversas entidades clnicas pouco a pouco colocadaem segundo plano por Freud a partir do caso pequeno Hans.

    O relato clnico deste clebre caso no foi elaborado por Freud, mas pelopai de Hans. certo que a anlise do pequeno Hans foi orientada por Freud,

    mas o pai de Hans que a conduz, submetendo suas notas avaliao do pai dapsicanlise. Freud se encontra com o pequeno paciente apenas uma vez.Hans vem a desenvolver uma fobia de cavalos, ou melhor, de ser mordido

    por um deles. Para Freud:

    Esta angstia correspondente ao anseio recalcado inicialmente como toda an-

    gstia infantil, sem objeto; ainda angstia (Angst) e no medo (Furcht). A criana

    [inicialmente] no consegue saber do que tem medo e quando Hans, em seu pri-

    meiro passeio com a bab, no quer dizer o que teme, porque ele simplesmente

    no sabe. (FREUD, 1909/1989, p 28, traduo nossa).

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    Freud no nos diz por que a angstia precisa achar um objeto, mas com basena concepo dos processos psquicos que tinha em 1909, podemos especularque a razo seja econmica, pois ao processo de pensamento corresponde uma

    diminuio na quantidade de excitao psquica. Lembrando que o princpio doprazer procura sempre manter esta excitao a um nvel mnimo, ligar a angstiaa uma representao seguiria este princpio.

    Quanto procedncia dos elementos para a eleio do objeto fbico, Freudnos responde: provvel que dos complexos at aqui desconhecidos porns que contriburam para o recalque e mantiveram sob recalque os senti-mentos libidinais de Hans para com sua me (FREUD, 1909/1989, p.37, tra-duo nossa). Evidentemente o cavalo um objeto fobgeno multideterminado.Podemos afirmar, como primeira determinao, que a queda de um cavalo aopuxar uma carroa tem, para Hans, uma relao com o parto, a chegada de suairmzinha. Outra determinao encontramos no j demonstrado interesse deHans por cavalos no contexto de sua curiosidade pelos faz-pipi, em especialo dos grandes animais.

    Adiante, Freud explicita que a gerao da angstia vem do recalque, que a libido recalcada que retorna como angstia. Este posicionamento terico,expresso pela primeira vez em 1895, ir perdurar at 1926.

    Retornando questo central que nos move, ao final da discusso sobre o

    caso do pequeno Hans, Freud cunha o termo histeria de angstia:

    Parece certo que elas (as fobias) s devam ser encaradas como sndromes, que

    podem formar parte de vrias neuroses e que no precisamos classific-las como

    processos patolgicos independentes. Para fobias da espcie a que pertence a do

    pequeno Hans, e que so, na realidade, as mais comuns, o nome de histeria de

    angstia no parece inapropriado. [...] O termo se justifica pela concordncia no

    mecanismo psicolgico desta fobia com a histeria exceto por um nico ponto,

    mas decisivo para a diferenciao. A libido liberada do material patognico atravsdo recalque no convertida do psquico para uma inervao somtica, mas sim

    liberada como angstia. (FREUD, 1909/1989, p.99, traduo nossa).

    Nos prximos anos, Freud retoma repetidas vezes a temtica da fobia. Des-te modo, em Introduo ao narcisismo de 1914, podemos ler: A angstia,nas neuroses de transferncia, pode ser substituda por elaboraes psquicasulteriores, ou seja, por converso, construo reativa e construo de proteo(Schutzbildung) (nas fobias) (FREUD, 1914/1989, p.53, traduo nossa). Esta frase

    denuncia uma mudana de posio em relao a dois aspectos. Primeiro, as fobiaspassam a estar claramente situadas entre as neuroses de transferncia, ou parasermos mais precisos, a histeria de angstia passa a ser a terceira forma de neurose

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    de transferncia. Segundo, a substituio da angstia livremente flutuante poroutra coisa passa a ser uma caracterstica comum s neuroses de transfernciae no mais privilgio da histeria de angstia. Assim, se por um lado as fobias,

    como sndrome, podem se fazer presentes em todas as entidades clnicas, poroutro a histeria de angstia passa a ocupar um lugar independente da histeriade converso, com um mecanismo prprio de defesa contra a angstia. Valeesclarecer que a fobia, para Freud, a srie de evitaes ao objeto fbico.

    Em sua Conferncia 25 (A angstia), de 1917, Freud diferencia de maneiraclara a neurose de angstia, na qual temos uma angstia flutuante, sem objeto,da histeria de angstia. Uma no seria um degrau mais elevado da outra, com-parecendo juntas apenas em casos excepcionais. Alm disso, Freud declara queas fobias, em sua totalidade, devem ser ordenadas histeria de angstia. Freud,portanto, revisa sua posio expressa em 1895 e tambm em 1909. Se oito anosantes, as fobias poderiam comparecer em diversas afeces neurticas (neurti-cas no sentido freudiano do termo), aqui temos praticamente uma coincidnciaentre a sndrome fbica e a afeco histeria de angstia.

    Em 1926, com Inibio, sintoma e angstia, Freud reformula sua teoriasobre a angstia. Podemos resumir as mudanas no pensamento de Freud aodizermos que a) a partir deste trabalho a angstia no mais resultante de umatransformao direta da libido vinculada a uma representao recalcada; b) no

    o recalque que provoca a angstia, mas sim a angstia que leva ao recalque;c) sua sede no est mais no Isso, mas no Eu; e d) em ltima instncia, todaangstia est vinculada a um perigo real.

    Neste texto, Freud passa a fazer uso da diferenciao entre angstia comosinal e angstia automtica. A angstia automtica se justifica quando o su-jeito experimenta uma situao de desamparo psquico, a angstia como sinal produzida pelo Eu quando h ameaa de tal situao de desamparo. A partirda angstia original, surgida na separao do beb de sua me, Freud traa uma

    sequncia de transformaes geradoras de angstia e conclui: A condio deangstia da perda de amor tem na histeria papel semelhante ameaa de castraonas fobias e angstia do Supereu na neurose obsessiva (FREUD, 1926/1989,p.283, traduo nossa).

    Com a mudana de posio de Freud em relao angstia, efetuada emInibio, sintoma e angstia (1926), temos no apenas a confirmao que orecalque seja um mecanismo de proteo diante da angstia como, considerandoa srie exposta no pargrafo anterior (vinculando a fobia angstia de castrao)e o apndice do mesmo texto no qual Freud diferencia as formaes reativas do

    recalque, a colocao, ao menos indiretamente, da eleio de um objeto fbicoem patamar semelhante aos dois mecanismos de defesa j citados.

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    Um ltimo ponto a se observar que Freud deixa claro em sua confernciaAngstia e vida pulsional (1933) que a angstia de castrao no teria lugarnas mulheres. Isto levanta a seguinte questo: haveria uma relao privilegiada

    do sexo masculino com as fobias? Retornaremos a esta questo ao abordarmosa concepo lacaniana com respeito s fobias.

    O essencial em relao questo do artigo , ao final das elaboraes freu-dianas, a histeria de angstia englobar a quase totalidade das fobias. A entidadeclnica seria, portanto, a histeria de angstia, em cujo contexto se presentifica-ria a fobia. Sendo tal entidade clnica um dos modos de retorno do recalcado,conclumos que, para Freud, a fobia, abarcada pela histeria de angstia, figurano mbito das neuroses de transferncia.

    A FOBIA EM LACAN

    Em seu seminrio proferido em 1956-57 (O Seminrio, livro 4) Lacan, ao ela-borar a relao de objeto, revisita o caso do pequeno Hans e formula umateorizao para a fobia. Se, para Freud, a angstia de castrao qual remete afobia denota uma presena excessiva do pai como agente castrador na fantasiada criana, Lacan, pelo contrrio, concebe a fobia como sendo da ordem de umapelo por socorro diante de uma insuficincia paterna.

    A chave para entendermos a conceituao de Lacan quanto fobia est nasltimas elaboraes de Freud com respeito feminilidade. Nestes textos, Freudcoloca que uma das maneiras do sujeito feminino aceder feminilidade pelaequao simblica falo-beb. Ou seja, a maternidade torna-se uma das possveisvicissitudes da relao da mulher com a falta flica e, neste sentido, a crianavem ao mundo para fantasisticamente preencher esta falta da me. Nas pala-vras de Miller: a tese fundamental apresentada por Lacan, nesse Seminrioconsiste em que o determinante para cada sujeito a relao da mulher que se

    encontra como sua me, a relao dessa mulher com a prpria falta (MILLER,1993, p.63).A relao pr-edipiana me-criana conceituada por Lacan em termos de

    uma trade imaginria. Ou seja, na relao da criana com a me, o falo j seencontra inserido. Esta abalada a partir do que Lacan (1957) denomina decep-o fundamental da criana, quando ela reconhece que no o objeto nico dame, mas que o objeto de desejo da me o falo. Ao perceber que a me tambm privada deste objeto, temos um momento crtico, angustiante, pois diantedeste furo da imagem da me a criana est sob a ameaa de se tornar cativa das

    significaes maternas. A sada normatizante, que aponta para a neurose, se dcom a entrada da funo do pai nesta triangulao me / criana / falo, como

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    quarto elemento: o pai como possuidor do falo, aquele que possibilita que a faltado falo assuma seu lugar na ordem simblica.

    Nas palavras de Lacan: Por ocasio de um momento particularmente crtico,

    quando nenhuma via de outra natureza est aberta para a soluo do problema,a fobia constitui um apelo por socorro, o apelo a um elemento simblico sin-gular (LACAN, 1956-57/1995, p.57). Ou seja, diante de uma insuficincia dafuno paterna, o objeto fbico, como elemento simblico singular, vem exercera funo de complementao com relao a um furo na realidade.

    Deste modo, Lacan mantm a relao estabelecida por Freud entre a angstiade castrao e a fobia, mas a castrao em jogo a castrao da me. Este posi-cionamento vem resolver a questo que colocamos em relao s elaboraesde Freud quanto fobia ter uma relao privilegiada com o sexo masculinotornando a angstia de castrao unissex.

    Quanto funo paterna, to mencionada acima, trata-se do pai real. esteque tem como funo transmitir criana seu lugar na ordem simblica. tambm neste sentido que ele castra a criana, pois na ordem simblica quetemos a incidncia da falta como tal.

    Voltando nossa ateno para a eleio do objeto fbico, Lacan (1956-57/1995,p.392) o denomina primeiro cristal de uma cristalizao organizada entre osimblico e o real, um significante em torno do qual, no caso do pequeno

    Hans, vem se expandir o desenvolvimento mtico em que consiste sua anlise.Vemos a uma direo de cura, pois a proliferao mtica se caracteriza pela uti-lizao de elementos imaginrios para o esgotamento de certo exerccio da trocasimblica. Isso que vai acabar por tornar intil este elemento de limiar, isto de primeira estruturao simblica da realidade, que sua fobia (LACAN, 1956-57/1995, p.290). O objeto fbico, como significante, ir servir de suporte para oremanejamento do significado. Finda uma serie de permutaes do significante, de se esperar que o significado saia, ao final, diferente do que era no incio.

    Ao mesmo tempo, o carter simblico do significante mantm o significadopotencialmente aberto. Colocar o sujeito no nvel da questo sua insero naneurose. No fundo, no o que esperamos de todo tratamento analtico?

    Neste seminrio de 1956-57, Lacan retorna repetidas vezes s ltimas duasfantasias do pequeno Hans. Em sua penltima fantasia, Hans casa seu pai coma av e passa a desejar ter crianas imaginrias com a me. uma soluo atpicapara o complexo de dipo e que no o leva a se referenciar funo paterna, isto, que ele prprio aceda um dia a esta posio to problemtica e paradoxal deser um pai (LACAN, 1956-57/1995, p.208). Para Freud, a ltima fantasia, na

    qual o instalador de banheiras troca o pop de Hans por um maior, expressa umdesejo vitorioso que supera sua angstia de castrao. J para Lacan, esta fantasiaexpressa que Hans, em nenhum momento tem que perder seu pnis: No h

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    nenhuma fase de simbolizao do pnis. [...] O que se produz no lhe permiteintegrar sua masculinidade por nenhum mecanismo a no ser a formao daidentificao com o falo materno, que igualmente de uma ordem distinta da

    do supereu (LACAN, 1956-57/1995, p.429). Que o precipitado do complexo dedipo, em Hans, venha a ser de ordem distinta do supereu no deixa de constituirum problema de ordem estrutural ao fim de seu tratamento.

    Como uma primeira formulao quanto ao estatuto das fobias em Lacan,podemos situar estas como uma soluo provisria que possibilita uma passa-gem do instante de olhar ao tempo de compreender. Vale aqui situar queinstante de olhar, tempo de compreender e momento de concluir so astrs escanses do tempo lgico propostas por Lacan em 1945. Deste modo, oobjeto fbico passa da imaginarizao a algum grau de simbolizao que permitepreencher o mundo do fbico de significaes.

    Uma formulao de carter mais conclusivo vir somente em 1969, ocasioem que Lacan mais uma vez retoma o caso do pequeno Hans:

    A fobia no deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clnica, mas sim

    como uma placa giratria. Ela gira mais comumente para as duas grandes ordens da

    neurose, a histeria e a neurose obsessiva, e tambm realiza a juno com a estrutura

    perversa [...] Ela muito menos uma entidade clnica isolvel do que uma figura

    clinicamente ilustrada, de maneira espetacular, sem dvida, mas em contextosinfinitamente diversos. (LACAN, 1968-69/2008, p.298)

    Quais seriam os critrios para se designar uma estrutura, uma entidade clnicaisolvel? Freud no fala em termos de estrutura, mas podemos afirmar que umdos paradigmas por ele utilizado para sua classificao das neuroses (no sentidofreudiano do termo) a transferncia. Como vimos, Freud, ao final de sua obra,conclui que a quase todos os casos de fobia seriam inserveis entre as neuroses

    de transferncia, isolveis sob a denominao de histeria de angstia.Outro paradigma, este colocado por Lacan, mas se referindo diretamente aosensinamentos de Freud: as modalidades de defesa diante da angstia de castra-o. O psictico, em sua relao com a castrao, foraclui, o perverso denega,o neurtico recalca. Quanto fobia, esta caracterizada por uma evitao dacastrao diante da carncia do pai real. Esta modalidade de defesa insinuadapor Lacan em relao ao pequeno Hans. Ele designa a sada de Hans de seuepisdio fbico como atpica e marcada pela carncia paterna. Esta sada podevir a moldar a relao do sujeito ao seu desejo? Em caso afirmativo, isto autori-

    zaria a elevar a fobia ao status de uma estrutura. Se Lacan enfatiza, no entanto,no se tratar de uma entidade clnica isolvel, nos encontraramos frente a umacontradio ao conceber uma evitao da castrao como modalidade de defesa

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    prpria da fobia. Todavia, tal evitao da castrao pode tambm ser interpretadato somente como um modo de manter a questo da castrao em suspenso.Neste caso, a fobia no gozaria, em termos lgicos, da estabilidade necessria

    para ser designada como estrutura. Reportando-se a outros elementos da obralacaniana, os autores que examinaremos a seguir argumentam por um estatutoestrutural para a fobia.

    OUTRAS EXPERINCIAS CLNICAS QUANTO FOBIA

    Quando falamos de psicanlise, estamos falando, em primeiro plano, de umaprtica submetida a uma tica. As tentativas, a partir de Freud, de sistematizaro conhecimento advindo desta prtica, da escuta na clnica, resultam em corpoterico. Se considerarmos que uma teoria, como modelo explicativo, semprerepresentar, em alguma medida, uma reduo do real de seu objeto, podemosconcluir que o real da clnica ser sempre maior que a elaborao terica delaresultante. Deste modo, a clnica, como experincia viva, no s renova a teoria,como prenhe da possibilidade de vir a refut-la. Uma elaborao terica devesempre ser vista como um modelo provisrio.

    A reflexo acima exposta no s autoriza como justifica a extenso de nossapesquisa para alguns autores que, apesar de se posicionarem claramente como

    adeptos dos ensinamentos de Lacan, foram levados por suas experincias clni-cas a elaboraes no coincidentes, como veremos, quanto ao mestre no que serefere fobia.Ricardo Diaz Romero trabalha com a hiptese de ao menos duasexperincias clnicas distintas em relao fobia: haveria fobias que so sinto-mas de crise ou momentos constitutivos em outras estruturas e, por outra parte,haveria outras fobias das quais se poderia dizer que constituem uma estruturadiferencial (DIAZ ROMERO, 1997, p.57). Nas primeiras, em concordncia comLacan, o objeto fbico posto em funo de significante e a fobia constitui uma

    sada provisria diante da no passagem do instante de olhar para o tempode compreender. Nestas, chega-se ao momento de concluir pela via do sig-nificante. No segundo grupo, o objeto fbico no possibilitaria a passagem aotempo de compreender, ou seja: esse objeto no funciona jamais como umsignificante na cadeia (DIAZ ROMERO, 1997, p.42).

    Este autor se pergunta: o que o analista poderia fazer diante destes casos emque o objeto, animal ou coisa (jamais um semelhante, pois neste caso o objetofobgeno nos apontaria para uma estrutura histrica) insiste em ser posto frentedo paciente a cada vez que algo se apresenta como furo na imagem? Diaz Romero

    recorre funo de tela, conceito desenvolvido por Lacan em seu seminriode 1964. A funo de tela nos serve de suporte da significncia, possibilitandoao neurtico uma rpida passagem do instante do olhar ao tempo de com-

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    preender. A hiptese de Diaz Romero que para o sujeito fbico esta funode tela no estaria constituda. A cada vez que estes tm que constituir a funode tela eles o fazem jogando fora, colocando frente de si um objeto qualquer

    e singular para poder ser (DIAZ ROMERO, 1997, p.59). No conseguir arranjaruma soluo deste tipo leva a uma perda dos sentidos, um deixar de ser.

    Para suprir a funo de tela, para lhe possibilitar certa estabilidade, o fbicotece uma malha, mas esta no apresenta a materialidade do interpretvel, ou seja,no tem a materialidade do significante. Para este autor, as frases que constituema malha apresentam uma pura materialidade combinatria, como se os recursosda palavra fossem reduzidos funo de signos.

    Ao ouvir uma fala fora do registro do simblico, a associao psicose imediata, mas Diaz Romero nos adverte que no disto que se trata. A diferena que a suplncia da funo de tela chegaria ao fbico desse limite entre osujeito e o mundo (idem, p.61) e no da impossibilidade de ter corpo. Quanto direo da cura, ao se ver diante do no interpretvel, restaria ao analista, apartir do lugar da voz, ou do lugar do olhar, constituir um perceptum queseja causa da organizao da tela (idem, p.63).

    Se Lacan se atm ao paradigma representado pelo caso do pequeno Hans,Diaz Romero vai alm. Ao fazer sua aproximao problemtica apresentadapela fobia pelo vis da relao de objeto, Lacan aponta-nos, em seu seminrio

    de 1956-57, que se tomarmos a coisa na perspectiva da relao de objeto, ofetiche desempenha, na teoria analtica, uma funo de proteo contra a an-gstia e, coisa curiosa, a mesma angstia, isto , a angstia de castrao (LA-CAN, 1956-57/1995, p.22). Ele nos adverte de que no pelo mesmo vis queo fetiche e o objeto fbico se ligam angstia de castrao, mas logo adiantecoloca que no (podemos) deixar de ver que, tambm aqui, (no fetiche), oobjeto tem certa funo de complementao com relao a alguma coisa que seapresenta como um furo, at mesmo como um abismo na realidade (LACAN,

    1956-57/1995, p.22).Ao conceber a fobia em termos de um momento de passagem (momentolgico, que nada diz da durao cronolgica do episdio fbico), assim comouma placa giratria que tambm realizaria a juno das duas grandes ordensda neurose com a estrutura perversa, Lacan parece nos apontar para pontos deproximidade da fobia com a perverso. J, ao conceber um segundo grupo paraas fobias em que teramos a construo de uma suplncia funo de tela, DiazRomero aproxima as fobias tambm psicose, apesar de nos advertir de queno se trata da mesma coisa. Ao mesmo tempo, confere a este segundo grupo de

    fobias uma estabilidade que o autoriza a design-las de estrutura diferencial.Charles Melman, por sua vez, se prope a elaborar as questes postas pela

    clnica das fobias apoiando-se no n borromeu, ltimo modo de escrita em-

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    preendido por Lacan, a partir de 1972, para representar a estrutura do sujeito.Ao propor um anodamento borromeano diferenciado para as fobias em relaoao proposto por Lacan para as neuroses, Melman, a nosso ver, tambm aponta

    em direo a uma entidade clnica prpria para as fobias, dotada de estabilida-de e, como veremos, do mesmo modo que Diaz Romero, aproxima a fobia daspsicoses.

    Melman inicia sua elaborao isolando duas caractersticas de sua escuta depacientes fbicos: seu modo de relao com seu acompanhante, este duploto procurado e to necessrio sua estabilizao ao possibilitar que o fbicose situe a partir da imagem do semelhante; e o efeito de paralisia sofrido pelofbico quando confrontado com o objeto fobgeno.

    Segundo Melman: O que provoca no fbico seu acesso de angstia um lugardisposto de tal forma que o que se encontra presentificado ali tanto o buracoquanto algo que tem valor de olhar (MELMAN, 1994, p.115). A necessidade queteria um sujeito de supor e eleger um objeto ou lugar que lhe presentifique oolhar nos diz que estamos diante de algum cuja imagem de si prprio no estgarantida em seu status imaginrio-simblico. Esta no garantia pode ser vistacomo indicativa de um tributo simblico que no foi pago ao Outro.

    Para Melman, com a inveno do animal fobgeno, o sujeito fbico est a pagarum tributo ao Outro, mas este tributo no seria de ordem simblica, mas sim

    de ordem imaginria. Nas fobias marcadas pela eleio de um objeto fbgeno como se em torno deste objeto houvesse uma zona mgica, espectro de umburaco desencadeador da angstia, a criatura fobgena vindo tamponar o Imagi-nrio marcado pela dimenso do buraco da castrao. No caso do agorafbico, opagamento viria em forma de uma amputao do espao propriamente dito.

    No n borromeu caracterstico da neurose, o crculo do Real passa por cimado Simblico e, por fim, o crculo do Imaginrio vem assegurar a consistnciado n passando por cima do Real e por baixo do Simblico. Melman (1994,

    p.151) chama o n resultante desta montagem de dito normal. Este autor nosconvida a pensar quais seriam as consequncias se, no caso da fobia, o crculo doReal passasse por cima do Imaginrio e, a partir da, fosse o crculo do Simblicoque se achasse em posio de assegurar a consistncia do n.

    O que aparece na fobia certamente uma relao singular entre imaginrio e

    real: de alguma forma o imaginrio contrariamente ao que acontece no n

    dito normal que parece essencialmente marcado pela dimenso do buraco;

    neste disposit ivo, ns temos o sentimento que a operao da castrao se exerce no

    registro do imaginrio, enquanto que no n dito normal a dimenso da castrao habitualmente mascarada pelo imaginrio. (MELMAN, 1994, p.153)

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    Lacan, ao discutir a sada atpica do pequeno Hans tambm coloca a castrao,em Hans, incidindo no registro do Imaginrio. Uma consequncia da castraoincidir no registro do imaginrio que a distncia, dimenso pertencente a este

    registro, que passa a modular a relao do sujeito com este representante flicoe no os recursos metfora e metonmia, prprios do registro simblico.

    Se a estabilidade um dos critrios para falarmos de estrutura, digno de notaque encontramos existncias perfeitamente organizadas em torno destas limita-es impostas por tal amputao no registro do imaginrio. Melman concebe osmomentos em que o fbico experimenta intensa angstia, como o que precedea eleio do objeto fobgeno; como se um dos trs crculos, o do imaginrio, sevisse soprado. A consequente dissociao dos registros real e simblico levaria apensar em algo da ordem da psicose, mas Melman (1994, p.124) adverte: noh psicose porque tudo leva a pensar que, para o fbico, o recalque originriooperou e que o Real e o Simblico se mantm perfeitamente.

    Se Diaz Romero vai alm do paradigma que representa o caso do pequenoHans, o mesmo no pode ser dito de Melman. Por outro lado, considerandoque o n borromeu um modo de escrita que tem o intuito de representar aestrutura do sujeito, ao falar de uma estabilidade diferenciada alcanada pelosujeito a partir de um episdio fbico como o do pequeno Hans, e proporum anodamento borromeano diferenciado, Melman acaba tambm insinuando

    para o fbico uma estrutura diferenciada em relao s duas grandes ordens daneurose.

    RETORNO AO CASO CLNICO

    A psicanlise, como constructo terico, no apenas surge a partir da escuta clnicade Freud como somente mantm seu sentido no que continua a nos possibilitartratar o real da clnica pelo simblico. no bojo deste movimento dialtico que

    se insere nosso retorno ao caso clnico, uma vez tendo efetuado um percursode investigao terica a partir da interrogao sobre a possibilidade de tomara fobia como uma entidade clnica. Neste percurso, identificamos a posioderradeira de Freud como sendo a de categorizar as fobias como histeria deangstia, a qual seria, ento, a entidade clnica includa entre as neuroses detransferncia. Em Lacan, a afirmao mais categrica toma a fobia menos comouma entidade clnica isolvel do que como uma figura clnica localizvel emcontextos diversos. Por fim, com Diaz Romero e Melman, autores lacanianos,verificamos ser postulado um estatuto estrutural para a fobia.

    Constitudo este panorama, passemos ao caso.Professor em escolas de primeiro e segundo graus, o paciente j se encon-

    trava em anlise h certo tempo quando um aluno seu o ameaou fisicamente.

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    Por consequncia, ele pediu para ser transferido de escola, no que foi atendido.Cerca de trs meses aps assumir as novas turmas, passou a sofrer de intensafobia que resultou em afastamento de suas atividades profissionais. Seu objeto

    fobgeno: alunos, ou melhor, qualquer pessoa que ele identificasse como aluno,independentemente de sexo, idade ou do local onde ele viesse a se defrontarcom seu objeto.

    Rapidamente seu medo se intensificou. Ele agora no s adiava as sadas deseu apartamento, mas raras vezes saa dele. Com o passar do tempo, ele passoua se restringir sala de seu apartamento, evitando a cozinha e seu quarto. Seantes o paciente tinha um ritual para dormir, agora evitava dormir no quarto,pois, quando apagava as luzes, o cho e as paredes desapareciam; ele ficavasuspenso em meio ao nada! Quando era obrigado a sair do apartamento, comfrequncia sofria o que ele denominou de apago quando o paciente noconseguia se recordar do que fez durante vrias horas, acordava no sabendocomo chegou ao local onde se encontrava e sem noo do tempo transcorrido.

    Ao longo das sesses, o paciente conseguiu isolar trs eventos que desen-cadearam a fobia: 1) nos dias imediatamente anteriores a seu afastamento dasaulas, uma parenta sua se hospedara em sua casa; o paciente sentia a presenadesta parenta como um cerceamento de sua privacidade; 2) em uma aula, apartir do momento em que os alunos passaram a se engajar em brincadeiras

    (ou agresses) de claro cunho sexual, ele perdeu o controle da classe; 3) ao serchamado de incompetente e mentiroso por um senhor durante um eventoescolar extraclasse, sentiu-se muito angustiado.

    J h vrios meses em anlise, o paciente revelou que durante a adolescnciafora abusado sexualmente com regularidade por um parente. Apesar de esteabuso ter perdurado por vrios anos, ele afirmava repetidas vezes que nunca teriagostado do que este parente fazia com ele. Por outro lado, no havia deixado deconsiderar este parente um amigo.

    Durante o ano seguinte, o paciente trabalhou muitos sonhos, contou famliado abuso sofrido e, por fim, iniciou um relacionamento. No entanto, este anode trabalho no diminuiu seus medos: em determinada sesso, em que relatavamais uma vez as consequncias de ele ter contado famlia do abuso sofridodurante sua adolescncia, o analista interveio: Voc sempre me disse que nogostava do que ele fazia.... No era a primeira vez que o analista dissera algosemelhante, mas desta vez o paciente irrompeu em um choro intenso. Disse: Euno me lembrava disso! S lembrava das vezes depois! As vezes em que eu diziaque no gostava do que ele fazia. Ai que nojo! Esta reao remete s catarses

    relatadas nos primrdios da psicanlise.

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    A fala do paciente denuncia que desta primeira vez foi diferente. Esta primeiravez foi anterior s vezes em que ele no gostava. Ele acredita que esta cenaantecedeu em alguns anos as antes relatadas.

    Aproveitemos aqui para retomar a lgica do sintoma que nos apresentadapor Freud (1933 e 1937). Esta encontra seu primeiro tempo com a vivncia pelosujeito de uma cena traumtica. Freud (1933) define o trauma como um momentovivido pelo sujeito que no pde ser ligado pelas normas do princpio do prazer,um encontro direto do Eu com uma exigncia libidinal excessiva. A angstiagerada nesse encontro provoca o recalcamento do representante da cena queresulta em uma desvinculao deste representante do afeto correspondente.

    Em Anlise terminvel e interminvel, Freud (1937) de incio expressa a seguinteposio: para que venhamos a ter uma manifestao sintomtica, faz-se necessriauma segunda vivncia traumtica. No decorrer do texto, ele amplia sua posioem relao a este segundo tempo de modo a incluir vivncias que representemum enfraquecimento do Eu, como doena e esgotamento fsico, assim comofortalecimentos pulsionais por meio de novos traumas, imposio de frustra-es e influncias colaterais das pulses entre si (FREUD, 1937/1989, p.367).Ou seja, o sintoma irrompenachtrglich, em um segundo tempo. Para efeito daanlise aqui empreendida, inclumos a vivncia de uma cena que evoque a cenatraumtica entre os fortalecimentos pulsionais.

    No caso de uma fobia, a angstia de castrao recebe outro objeto e umaexpresso transfigurada (FREUD, 1926/1989, p.268) com as vantagens de ofe-recer um desvio do conflito de ambivalncia e sua angstia ser facultativa, poiss aparece na presena do objeto. Ao discutir as condies para eleio do objetofbico, Freud (1909/1989, p.54) escreve: a teoria exige que o mesmo que umavez foi objeto de grande prazer, seja hoje objeto da fobia.

    O caso aqui apresentado parece reunir todos estes elementos. A primeira vezrene todas as caractersticas de um momento traumtico, inclusive sua expulso

    da conscincia. At o momento em que o paciente rememora a cena traumticaele afirma, apesar de tudo, que este parente que dele abusou sexualmente eraseu amigo. J professor, este paciente se orgulhava de ser um professor paizo:dar aulas era uma fonte de prazer. A ameaa sofrida no alterou sua relao comseus alunos. Somente depois, ao presenciar a brincadeira, um tanto agressiva,de cunho sexual de seus alunos que temos a formao da fobia, a eleio doobjeto fbico por deslocamento. Uma cena que ao mesmo tempo que evoca aprimeira vez o poupa da ambivalncia em relao a seu parente.

    Quanto aos demais elementos desencadeadores relatados pelo paciente, estes

    parecem apontar para ganhos secundrios ou, seguindo o raciocnio de Freud(1937) acima exposto, para elementos enfraquecedores do Eu. Sob ambos ospontos de anlise, afastado de suas atividades ele voltaria a gozar de um pouco

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    de privacidade e no correria o risco de outra vez ser chamado de incompetentee mentiroso durante eventos escolares extraclasse. Tudo parece apontar parao diagnstico de uma histeria de angstia, mas o real da clnica no se deixa

    tamponar com tanta facilidade: a fragilidade quanto ao registro do imaginriodo paciente persiste.

    Em uma de suas ltimas sesses, antes de se mudar de cidade, o pacienterelatou que, durante uma visita a um museu, uma das salas evocou a lembran-a de um dos locais em que ele sofreu repetidos abusos. Ele passou a sentir-seangustiado e somente conseguiu se afastar deste ambiente que sente como toameaador tirando fotos. Com os olhos fixos no visor da cmara fotogrficatirou cerca de seiscentas fotos at sentir que sua angstia cedeu. Era necessrioo enquadre de cada imagem para que a dimenso do imaginrio se sustentasse.Como nos diz Melman (1994): esta dimenso s se sustenta se a janela do ima-ginrio se mantiver firme.

    Este caso parece nos apontar duas direes distintas em relao questoque nos move. A eleio do objeto fbico parece ter obedecido lgica do sin-toma em Freud. Teramos, assim, uma fobia de origem traumtica que, comoFreud nos diz, seria ligada histeria: uma histeria de angstia inserida entreas neuroses de transferncia, na estrutura neurtica. Na outra direo, a dosdesfalecimentos (apages), da amputao do espao exemplificada no desapa-

    recimento do cho do quarto, e da engenhosidade de emoldurar o visto comomeio de mitigar a angstia, teramos um trao diferencial, marcado por umarelao com a castrao distinta da que encontramos entre as neuroses: umacastrao simblica evitada.

    No necessariamente estas duas direes para a apreenso deste caso de fobiaso inconciliveis. A princpio devemos colocar que, em comum, tanto nas duasgrandes ordens da neurose, a histeria e a neurose obsessiva, quanto na fobia,o recalque primrio operou de modo satisfatrio. Assim, neste caso, podemos

    caracterizar a fobia por uma relao diferenciada da angstia de castrao, nosmoldes da evitao trabalhada por Lacan em relao ao pequeno Hans,mas que no configura uma entidade clnica isolada, por dispor do recurso aorecalque. o que nos parece atestar a formao de um sintoma no caso clnicoque trouxemos.

    Recebido em 31/5/2010. Aprovado em 31/8/2010.

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