Medo, conto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 19 de outubro de 2014 CULTURA D5 Maringá mais uma vez está bem representada no Prêmio Jabuti. Laurentino Gomes, jornalista e escritor maringa- ense radicado em Itu (SP), foi o vencedor do 56º Prêmio Ja- buti na categoria Reportagem com “1889” (Editora Globo). Os vencedores foram divulga- dos pela Câmara Brasileira do Livro na quinta-feira. Os seus outros dois livros - “1808” e “1822” - também foram vencedores do Jabuti em anos anteriores. Resulta- do de três anos de pesquisa no Brasil e nos Estados Unidos, o terceiro livro do maringaense explora o período histórico da República, abordando os últi- mos dias do império brasilei- ro . Com esta obra, ele encer- ra uma trilogia que conta a his- tória da construção do estado brasileiro durante o século 19. “As três datas explicam a forma como nós, brasileiros, nos organizamos como nação independente e soberana ao Wilame Prado [email protected] y Laurentino é o rei do Jabuti LITERATURA O Jornalista e escritor maringaense Laurentino Gomes fatura mais uma vez o Prêmio Jabuti O Com “1889”, sobre o advento da República, autor venceu o prêmio na categoria Reportagem romper os nossos vínculos com Portugal. Portanto, para entender o Brasil de hoje é preciso estudá-las”, afirmou Gomes para O Diário quando lançava “1889”. Romance, conto e poesia Na categoria Romance do 56º Jabuti, o maringaense Mar- cos Peres, 28, também foi fi- nalista, mas não levou o prê- mio maior. Com seu livro de estreia “O Evangelho Segun- do Hitler” (Editora Record), Peres obteve a nota de 26,50 al- cançando a quinta colocação entre dez finalistas. O melhor romance, segundo o Jabuti, é “Reprodução” do autor cario- ca Bernardo Carvalho. Em segundo lugar ficou “A maçã envenenada”, de Michel Laub; e em terceiro, “Opisanie Swiata”, de Veronica Stigge. Na categoria Contos e Crô- nicas, o consagrado escritor de romances, novelas e con- tos policiais Rubem Fonse- ca venceu com o livro “Amál- gama”. Em segundo, aparece “Você verá”, de Luiz Vilela, e em terceiro, um empate: “Nu, de botas”, de Antonio Prata, e “Um solitário à espreita”, de Milton Hatoum. Na categoria Poesia, o ven- cedor é Horácio Costa, com o livro “Bernini – poemas 2008-2010”. Em segundo ficou Marcus Vinicius Quiroga, com “Jardim das delícias”, e em ter- ceiro Zuca Sardan, com o livro “Ximerix”. Premiação Nesta 56.ª edição, foram ins- critos 2.240 livros publicados em 2013. No ano passado, concorreram 2.050 obras. O primeiro colocado ganha R$ 3.500 e o troféu. Os outros dois ganham apenas o troféu. A cerimônia de premiação do Prêmio Jabuti será no dia 18 de novembro, no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, quando serão revelados os vencedores do Livro do Ano Ficção e Livro do Ano Não Ficção, que paga mais R$ 35 mil. A organização ainda dis- cute se os três vencedores su- birão ao palco - decisão que pode agilizar a longa festa, mas também esvaziá-la. HISTÓRIA. Laurentino , em sua casa em Itu, no interior de SP: premiado mais uma vez —FOTO: DIVULGAÇÃO TAVARES y [email protected] Sérgio Tavares Ed estava num estado penoso. O corpo emagrecido, opaco. Tinha perdido o cabelo, a pele, cascorenta, havia sido tomada por manchas. Tentou sorrir, conseguiu um mero aceno. Eu insinuei me aproximar, mas fui bloqueado pelo meu pai Medo s festas lá em casa sempre extrapo- lavam o cerco familiar. Era como se as ondas sonoras que se derrama- vam dos altos falantes em máxima potência criassem um campo magnético irre- sistível para vizinhos, conhecidos e anônimos. Um a um ia cruzando o portão, e logo estáva- mos congregados a uma legião de forasteiros que se revezava no saque à mesa e à geladei- ra, descontraindo o corpo para chacoalhar ao ritmo das paradas de sucessos das rádios efê emês. Um desses bicões era Ed. Na verdade, não tão intruso assim. Ed era o que meu pai poderia chamar de irmão de criação. Órfão de mãe, pas- sava os dias na casa da minha avó que o prepa- rou para a vida de fato. Um negro alto e robusto, com o tórax à mostra e música nos pés. Cantava a plenos pulmões, puxava as mulheres (e os ho- mens) para sambar. Liderava a fuzarca. A gurizada o adorava. Com um copo de cer- veja na mão, entrava no três-toques, brincava de pique-lata. Sempre disposto a pular o muro da casa da dona Tuti, que tinha fama de ras- gar as bolas. Às vezes, voltava com mangas caídas pelo quintal. No carnaval, era de gar- galhar suas fantasias de mulher. Descalço, de saia justa, sutiã e batom vermelho. Não havia quem escapasse de seus beijos estalados de marcar a bochecha. Ed era uma presença empolgante, até que inexplicavelmente desapareceu. Anoitecia, naquele dia. Minha mãe tinha uma regra de, ao vir o escuro, retornar à casa, lavar- se e jantar. Quando passei pela varanda, entre- vi meu pai conversando com um sujeito enco- lhido numa das cadeiras estampadas. Foi ape- nas quando chamou meu nome, que me dei conta de que era Ed, ou algo tracejando o Ed. Estava num estado penoso. O corpo emagre- cido, opaco. Tinha perdido o cabelo, a pele, cascorenta, havia sido tomada por manchas. Tentou sorrir, conseguiu um mero aceno. Eu insinuei me aproximar, mas fui bloqueado A pelo meu pai, que mandou retomar a marcha rumo ao banheiro. Terminei o banho e a mesa ainda não estava posta, como de costume. Minha mãe agia es- tranhamente, incomodada. Passaram-se alguns minutos, meu pai surgiu, conversaram ao pé do ouvido, então os pratos foram pouco a pouco ar- rumados. Ed se arrastou até um dos assentos, onde desabou, extenuado. Minha mãe o serviu, comida e suco de groselha, depois os demais. Porém meus pais não comeram. Havia uma ten- são na mesa que eu não conseguia traduzir. Eles olhavam fixamente para Ed. O esforço tremen- do para direcionar o garfo até a boca, a mastiga- ção bovina, os grãos de arroz que lhe pingavam dos lábios. Sequer me reprimiam por empurrar a comida com os dedos para a concha da colher. Logo que Ed se foi, minha mãe ordenou que eu tomasse outro banho. Meus pais tomaram banho, na sequência. Assistimos um pouco de tevê, calados, depois fui para meu quarto. Es- tava na cama, quando notei a claridade laranja bruxulear pelo vidro da janela. Minha mãe esta- va no quintal, posicionada diante de uma peque- na fogueira. Segurava uma embalagem de álco- ol. Por entre as saias da cortina, eu pude divisar um prato, um copo e um garfo de refeição, em meio às labaredas dançantes. Ed morreu algumas semanas depois daquela visita. Mas custou vinte anos para que eu en- tendesse o que era aquele mal que sugou sua energia, o vírus que envenenava seu sangue. Foi também o tempo necessário para decifrar aquela noite. O porquê do clima de apreensão, do segundo banho, dos objetos queimados fora da casa. Medo. Minha mãe tentava nos pro- teger do medo. Uma tarefa que o fogo nunca seria capaz de cumprir. A Editor: Jary Mércio Tel. (44) 3221-6609 Email: [email protected] Jary, com o programa de computação Pollock

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Conto Medo, de Sérgio Tavares, publicado n'O Diário do Norte do Paraná, em 19 de outubro de 2014

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 19 de outubro de 2014 CULTURA D5

Maringá mais uma vez está bem representada no Prêmio Jabuti. Laurentino Gomes, jornalista e escritor maringa-ense radicado em Itu (SP), foi o vencedor do 56º Prêmio Ja-buti na categoria Reportagem com “1889” (Editora Globo). Os vencedores foram divulga-dos pela Câmara Brasileira do Livro na quinta-feira.

Os seus outros dois livros - “1808” e “1822” - também foram vencedores do Jabuti em anos anteriores. Resulta-do de três anos de pesquisa no Brasil e nos Estados Unidos, o terceiro livro do maringaense explora o período histórico da República, abordando os últi-mos dias do império brasilei-ro . Com esta obra, ele encer-ra uma trilogia que conta a his-tória da construção do estado brasileiro durante o século 19.

“As três datas explicam a forma como nós, brasileiros, nos organizamos como nação independente e soberana ao

Wilame Prado [email protected] y

Laurentino é o rei do Jabuti LITERATURA

Jornalista e escritor maringaense Laurentino Gomes fatura mais uma vez o Prêmio Jabuti Com “1889”, sobre o advento da República, autor venceu o prêmio na categoria Reportagem

romper os nossos vínculos com Portugal. Portanto, para entender o Brasil de hoje é preciso estudá-las”, afirmou Gomes para O Diário quando lançava “1889”.

Romance, conto e poesia Na categoria Romance do 56º Jabuti, o maringaense Mar-cos Peres, 28, também foi fi-nalista, mas não levou o prê-mio maior. Com seu livro de estreia “O Evangelho Segun-do Hitler” (Editora Record), Peres obteve a nota de 26,50 al-cançando a quinta colocação entre dez finalistas. O melhor romance, segundo o Jabuti, é “Reprodução” do autor cario-ca Bernardo Carvalho.

Em segundo lugar ficou “A maçã envenenada”, de Michel Laub; e em terceiro, “Opisanie Swiata”, de Veronica Stigge.

Na categoria Contos e Crô-nicas, o consagrado escritor de romances, novelas e con-tos policiais Rubem Fonse-ca venceu com o livro “Amál-gama”. Em segundo, aparece “Você verá”, de Luiz Vilela, e em terceiro, um empate: “Nu,

de botas”, de Antonio Prata, e “Um solitário à espreita”, de Milton Hatoum.

Na categoria Poesia, o ven-cedor é Horácio Costa, com o livro “Bernini – poemas 2008-2010”. Em segundo ficou Marcus Vinicius Quiroga, com “Jardim das delícias”, e em ter-ceiro Zuca Sardan, com o livro “Ximerix”.

Premiação Nesta 56.ª edição, foram ins-critos 2.240 livros publicados em 2013. No ano passado, concorreram 2.050 obras. O primeiro colocado ganha R$ 3.500 e o troféu. Os outros dois ganham apenas o troféu.

A cerimônia de premiação do Prêmio Jabuti será no dia 18 de novembro, no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, quando serão revelados os vencedores do Livro do Ano Ficção e Livro do Ano Não Ficção, que paga mais R$ 35 mil. A organização ainda dis-cute se os três vencedores su-birão ao palco - decisão que pode agilizar a longa festa, mas também esvaziá-la. HISTÓRIA. Laurentino , em sua casa em Itu, no interior de SP: premiado mais uma vez —FOTO: DIVULGAÇÃO

TAVARES

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[email protected]

Sérgio Tavares

Ed estava num estado penoso. O corpo emagrecido, opaco. Tinha perdido o cabelo, a pele, cascorenta, havia sido tomada por manchas. Tentou sorrir, conseguiu um mero aceno. Eu insinuei me aproximar, mas fui bloqueado pelo meu pai

Medo s festas lá em casa sempre extrapo-lavam o cerco familiar. Era como se as ondas sonoras que se derrama-vam dos altos falantes em máxima

potência criassem um campo magnético irre-sistível para vizinhos, conhecidos e anônimos. Um a um ia cruzando o portão, e logo estáva-mos congregados a uma legião de forasteiros que se revezava no saque à mesa e à geladei-ra, descontraindo o corpo para chacoalhar ao ritmo das paradas de sucessos das rádios efê emês. Um desses bicões era Ed. Na verdade, não tão intruso assim. Ed era o que meu pai poderia chamar de irmão de criação. Órfão de mãe, pas-sava os dias na casa da minha avó que o prepa-rou para a vida de fato. Um negro alto e robusto, com o tórax à mostra e música nos pés. Cantava a plenos pulmões, puxava as mulheres (e os ho-mens) para sambar. Liderava a fuzarca. A gurizada o adorava. Com um copo de cer-veja na mão, entrava no três-toques, brincava de pique-lata. Sempre disposto a pular o muro da casa da dona Tuti, que tinha fama de ras-gar as bolas. Às vezes, voltava com mangas caídas pelo quintal. No carnaval, era de gar-galhar suas fantasias de mulher. Descalço, de saia justa, sutiã e batom vermelho. Não havia quem escapasse de seus beijos estalados de marcar a bochecha. Ed era uma presença empolgante, até que inexplicavelmente desapareceu. Anoitecia, naquele dia. Minha mãe tinha uma regra de, ao vir o escuro, retornar à casa, lavar-se e jantar. Quando passei pela varanda, entre-vi meu pai conversando com um sujeito enco-lhido numa das cadeiras estampadas. Foi ape-nas quando chamou meu nome, que me dei conta de que era Ed, ou algo tracejando o Ed. Estava num estado penoso. O corpo emagre-cido, opaco. Tinha perdido o cabelo, a pele, cascorenta, havia sido tomada por manchas. Tentou sorrir, conseguiu um mero aceno. Eu insinuei me aproximar, mas fui bloqueado

A

pelo meu pai, que mandou retomar a marcha rumo ao banheiro. Terminei o banho e a mesa ainda não estava posta, como de costume. Minha mãe agia es-tranhamente, incomodada. Passaram-se alguns minutos, meu pai surgiu, conversaram ao pé do ouvido, então os pratos foram pouco a pouco ar-rumados. Ed se arrastou até um dos assentos, onde desabou, extenuado. Minha mãe o serviu, comida e suco de groselha, depois os demais. Porém meus pais não comeram. Havia uma ten-são na mesa que eu não conseguia traduzir. Eles olhavam fixamente para Ed. O esforço tremen-do para direcionar o garfo até a boca, a mastiga-ção bovina, os grãos de arroz que lhe pingavam dos lábios. Sequer me reprimiam por empurrar a comida com os dedos para a concha da colher. Logo que Ed se foi, minha mãe ordenou que eu tomasse outro banho. Meus pais tomaram

banho, na sequência. Assistimos um pouco de tevê, calados, depois fui para meu quarto. Es-tava na cama, quando notei a claridade laranja bruxulear pelo vidro da janela. Minha mãe esta-va no quintal, posicionada diante de uma peque-na fogueira. Segurava uma embalagem de álco-ol. Por entre as saias da cortina, eu pude divisar um prato, um copo e um garfo de refeição, em meio às labaredas dançantes. Ed morreu algumas semanas depois daquela visita. Mas custou vinte anos para que eu en-tendesse o que era aquele mal que sugou sua energia, o vírus que envenenava seu sangue. Foi também o tempo necessário para decifrar aquela noite. O porquê do clima de apreensão, do segundo banho, dos objetos queimados fora da casa. Medo. Minha mãe tentava nos pro-teger do medo. Uma tarefa que o fogo nunca seria capaz de cumprir.

A Editor: Jary MércioTel. (44) 3221-6609 Email: [email protected]

Jary, com o programa de computação Pollock