Meditando a Realidade

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MEDITANDO A REALIDADE Apesar de que ela revela suas regras intrínsecas a quem a pratica, existem seguramente tantas formas de meditação quanto há indivíduos. É também vasto o por que da meditação; o “para que?”. Abordarei aqui a meditação, tal como ela pode se configurar, a partir da obra filosófica de Rudolf Steiner. Meditar hoje seria o exercício de aprender a realmente estar onde se está. Isso soa estranho! Mas quem se dedica um pouco a esse pensamento, logo descobre que raramente estamos inteirinhos no que fazemos ou percebemos. Certa vez dirigindo sozinho liguei o rádio e ouvi a seguinte resposta à pergunta “o que é meditação?” “Meditação é estar no meio da ação!” Estou levando o meu filho para a escola, pensando nos problemas da minha empresa. O mundo que poderia revelar-se através do meu filho naquele momento, se eu simplesmente estivesse com ele, se oculta totalmente, nem existe para mim nesse instante. Estar com ele, ouvindo-o, percebendo a sua forma de se expressar para, a partir do seu contexto, vivenciar a sua realidade; estar no meio desse acontecimento me descortinaria o mundo, que nesse momento estava encoberto pelo meu viver nos problemas do passado projetados para o futuro. Vivo a realidade à qual dedico a minha atenção. Posso passar pelo mundo sem ter estado nele, se apenas me dedico aos meus próprios pensamentos. Mas percebo facetas do mundo que antes não existiam para mim quando dedico o meu interesse ao que me rodeia. O caráter e a qualidade da realidade em que vivo depende em alto grau de mim mesmo. Recebo infinitas impressões do mundo à minha volta, mas para que estas façam sentido, tenho que interpretá-las, tenho que explicá-las a mim mesmo: - isto é isto, aquilo é aquilo, etc. Olho pra o mundo através do que eu lhe falo. Quanto mais a ele eu me dedico, mais explicações eu lhe atribuo, mais eu me envolvo com a forma que ele assume para mim. Do outro lado, quando me dedico a mim mesmo, quando me pergunto quem sou eu, vejo quanto sou feito do mundo em que vivi. Quando olho para dentro passo a ver infinitas imagens do mundo que representam o que eu vivenciei, vejo o mundo totalmente envolvido na imagem que tenho de mim mesmo. Querer conhecer o mundo esbarra muito forte na percepção de mim mesmo. Querer conhecer-me a mim mesmo esbarra muito forte na percepção do mundo que nas suas imagens preenche a recordação de

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REALIDADE E MEDITAÇÃO

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MEDITANDO A REALIDADE

Apesar de que ela revela suas regras intrínsecas a quem a pratica, existem seguramente tantas formas de meditação quanto há indivíduos. É também vasto o por que da meditação; o “para que?”. Abordarei aqui a meditação, tal como ela pode se configurar, a partir da obra filosófica de Rudolf Steiner. Meditar hoje seria o exercício de aprender a realmente estar onde se está. Isso soa estranho! Mas quem se dedica um pouco a esse pensamento, logo descobre que raramente estamos inteirinhos no que fazemos ou percebemos. Certa vez dirigindo sozinho liguei o rádio e ouvi a seguinte resposta à pergunta “o que é meditação?” “Meditação é estar no meio da ação!”

Estou levando o meu filho para a escola, pensando nos problemas da minha empresa. O mundo que poderia revelar-se através do meu filho naquele momento, se eu simplesmente estivesse com ele, se oculta totalmente, nem existe para mim nesse instante. Estar com ele, ouvindo-o, percebendo a sua forma de se expressar para, a partir do seu contexto, vivenciar a sua realidade; estar no meio desse acontecimento me descortinaria o mundo, que nesse momento estava encoberto pelo meu viver nos problemas do passado projetados para o futuro.

Vivo a realidade à qual dedico a minha atenção. Posso passar pelo mundo sem ter estado nele, se apenas me dedico aos meus próprios pensamentos. Mas percebo facetas do mundo que antes não existiam para mim quando dedico o meu interesse ao que me rodeia.  O caráter e a qualidade da realidade em que vivo depende em alto grau de mim mesmo.  Recebo infinitas impressões do mundo à minha volta, mas para que estas façam sentido, tenho que interpretá-las, tenho que explicá-las a mim mesmo: - isto é isto, aquilo é aquilo, etc. Olho pra o mundo através do que eu lhe falo. Quanto mais a ele eu me dedico, mais explicações eu lhe atribuo, mais eu me envolvo com a forma que ele assume para mim.

Do outro lado, quando me dedico a mim mesmo, quando me pergunto quem sou eu, vejo quanto sou feito do mundo em que vivi. Quando olho para dentro passo a ver infinitas imagens do mundo que representam o que eu vivenciei, vejo o mundo totalmente envolvido na imagem que tenho de mim mesmo. Querer conhecer o mundo esbarra muito forte na percepção de mim mesmo. Querer conhecer-me a mim mesmo esbarra muito forte na percepção do mundo que nas suas imagens preenche a recordação de minhas vivências. Não sei bem até onde vai o mundo que se me apresentou e onde começa a forma que eu lhe atribuí, mas também não sei bem até onde sou eu mesmo em mim e onde começa o mundo que eu vivenciei. 

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Conhecer-se a si mesmo é, pois, uma forma de melhor conhecer o mundo, mas conhecer melhor o mundo é também uma forma de conhecer melhor a si mesmo.Retirar-se por um instante dos estímulos sensoriais do mundo para perscrutá-lo no próprio interior, não significaria necessariamente abandoná-lo. O elo da relação eu/mundo são as imagens. Tanto as imagens do mundo, quanto as de mim mesmo, ficam gravadas na lembrança. Consigo rever interiormente o que vivi lá fora bem como o que vivi aqui dentro. E, toda imagem recordativa contêm tanto algo do mundo, quanto algo de mim mesmo. A grande dificuldade que hoje enfrenta quem se propõe a meditar é a vasta distração que a nossa cultura nos oferece. Conquistar alguns instantes de concentração e silêncio em meio a balburdia da nossa civilização atual converte-se numa verdadeira batalha. Mas, uma vez desenvolvidos os músculos dessa atividade (que consiste não apenas em reter a invasão da nossa consciência pelos batalhões de imagens, impulsos e desejos advindos da nossa própria organização, mas também em reter a invasão dos exércitos de estímulos externos que na forma dos mais variados ruídos e sons constantemente despencam no nosso interior) uma vez conquistada a concentração devida e o silêncio interior, começam a surgir aos poucos os estorvos mais sutis: nossos hábitos e tendências, nossos preconceitos e expectativas. Por serem juízos feitos antes de uma experiência ou percepção que os justificassem, os nossos preconceitos são verdadeiros prejuízos. Perdemos a possibilidade de vivenciar, ou experimentar originalmente. Mas é muito difícil descobrir o próprio preconceito, pois sou eu justamente quem não sabe que é preconceituoso. Só o convívio com outras pessoas, de preferência bem diferentes de nós mesmos, pode nos ajudar a descobri-lo. Já, as expectativas são tendências que querem antever as vivências e por isso acabam predeterminando-as.  Silenciei as minhas expectativas, se fui capaz de me surpreender. Surpreender-se é a coragem de se abrir para o novo, o desconhecido, o que não vêm para confirmar o que já se sabia, mas para modificá-lo. Ao contrário do esvaziamento total, que caracteriza um tipo de meditação bastante conhecido - muito saudável, porque procura fazer de forma intencional, o que o sono faz naturalmente: reter um pouco o efeito desgastante da consciência sobre o organismo - a meditação que aqui se propõe coloca nesse silêncio uma imagem. A primeira vivência significativa que se faz nesse primeiro momento é a de que essa imagem desaparece repentinamente. Isso não ocorre apenas por

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distração. Também quando ha concentração, a imagem desaparece repentinamente. Depois de repetidas tentativas de trazê-la de volta, pode-se fazer outra descoberta significativa. E assim, a partir desse início, a meditação vai revelando as suas regras, relacionadas, naturalmente, às características específicas daquele que medita, e cada passo que se segue surge como uma necessidade intrínseca. O repentino desaparecer da imagem e a descoberta da força que a faz perdurar são vivências que logo de início podem atuar na gradativa transformação da concepção usual que se tem de realidade. Isso se os mencionados hábitos e tendências não forem demasiado insistentes em permanecer no habitual. O fato de que a imagem simplesmente nos escapa, e a inicial impotência que se experimenta em relação a esse fato, no final das contas, baseia-se na concepção ingênua de realidade que a nossa consciência comum sustenta. Coisa que a filosofia há muito tempo já chamou de “realismo ingênuo” e que a neurociência hoje fundamenta com uma infinidade de experimentos. A consciência comum, no entanto, não se preocupa com concepções filosóficas, nem com os resultados da neurociência, para ela a flor que ela vê é simplesmente a flor que ela vê e pronto! Essa concepção ingênua de realidade é tão forte que queremos também simplesmente “ver” a flor, até mesmo na nossa meditação, onde já não há o correspondente sensorial que sustentaria essa visão. O que nós não percebemos inicialmente na meditação, é o mesmo que nós não percebemos quando estamos lá fora no mundo, que: “ver uma flor”, como já disse Fernando Pessoa, “é também pensá-la”. No momento em que eu me dou conta de que para ver e poder manter a imagem da flor no meu interior, tenho que gerar o seu significado, sustentar os gestos e movimentos que lhe dão coesão e nexo, as forças que unem num todo os seus pigmentos visuais, nesse momento eu não apenas compreendo filosoficamente, mas eu experimento vivamente a minha participação criativa na composição da realidade em que vivo. A vivência de que a imagem só readquire a sua vivacidade e perdura na minha consciência quando eu reformulo intencionalmente o significado que lhe pertence, me demonstra também que recordar não é “tirar da gaveta”, essa é apenas a primeira impressão que eu tenho da recordação. Recordar é a capacidade de recriar. O que sustenta a imagem recordativa é a atividade que produz o seu significado. Recrio o movimento integrador que em mim se estabeleceu abaixo, ou antes, da minha consciência, quando através dos meus órgãos de sentido recebi as impressões sensoriais “desintegradas” do mundo. 

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O sentido que se faz nos órgãos de sentido não é dado por estes, ele é estimulado pela carência de sentido que as suas impressões apresentam. O sentido surge, então, como um complemento integrante, tal como o vermelho gera o seu complementar verde totalizando as três cores básicas. E esse complemento, o sentido, já não é sensorial, pois não é apenas receptivo, como as impressões, é ativo e necessita de um atuante para se manifestar.Atentando para a qualidade da imagem, p.ex. da flor, que consegui manter no meu interior, percebo, é óbvio, que ela é a uma recordação de uma flor específica, individual. Enquanto que se me atenho à força do significado, através do qual consegui mantê-la na sua vivacidade diante dos meus olhos internos, percebo que este tem caráter mais geral, universal. Este é um conteúdo tão fluido, que nele cabem infinitas flores. Se agora procuro me ater a esse referido conteúdo, como se eu pretendesse tê-lo na consciência sem a imagem à qual ele se refere, ocorre novamente aquele curioso desaparecer. Desaparecendo a imagem, esta parece levar também consigo o conteúdo que a sustentava. Perseverando, entretanto, nessa tentativa ocorre algo inesperado. O conteúdo movimentado, fluido, dos gestos que compõe o significado, inicialmente não se deixa manter na consciência sem a imagem específica à qual ele se refere. Mas, de repente, após várias tentativas, pode-se notar uma modificação na própria imagem, esta começa a assumir também um caráter fluido, tal como o conteúdo, começa a transformar-se numa imagem que adquire caráter universal. Antes foi através da intencional reformulação do seu conteúdo que eu consegui sustentar a imagem específica com seus pigmentos sensoriais do mundo na minha consciência, agora é através da adaptação da imagem à fluidez do conteúdo, que eu consigo manter o complemento não sensorial do mundo na minha consciência.Quando eu estava tentando manter a imagem da flor no meu interior, o interesse pelas suas verdadeiras características sensoriais aumentou significativamente, mas estas eu não tenho como encontrar dentro de mim. O mundo torna-se novamente interessantíssimo! Passo a querer observar melhor o que de fato ele me oferece. E, perceber melhor o que realmente os meus sentidos me oferecem, quando estou no mundo, intensifica a atividade complementar que brota de dentro de mim. Essa se fortalece quando o interesse pelo mundo e o silenciar diante das impressões do mundo se confrontam com a carência de sentido que clama pelo seu complemento. É dessa forma que a esperta natureza começa a desenvolver em nós os olhos capazes de contemplá-la de maneira cada vez mais inteira e profunda. Experimentando a nossa participação na complementação do mundo descobrem-se as capacidades inatas e latentes. Somos participantes.

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Exercitar dessa forma, o estar onde se está, é trazer à consciência o que os nossos pés, as nossas mãos  e o nosso coração, já sabem a respeito do mundo.O que antes parecia ser dentro agora é fora e eu começo a reconhecer-me a mim mesmo no mundo. A meditação da realidade traz à vivência o caráter interior do mundo em que vivo. Claudio BertalotEuritmista e violoncelista.