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MEDITAÇÕES SOCIAIS E FILOSÓFICAS H. Eliseu Sueia Maputo, 11 de Junho, 2020 • N.º 003 E stá a ler a terceira edicção do “Meditações Sociais e Filosóficas”, uma Publicação em formato digital, da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia (FCSF) da Universidade Pe- dagógica de Maputo (UPMaputo). Em tempos de Pandemia COVID -19, que atirou estudantes e docentes para fora da sua esfera habitual, a sala de aulas, esta publicação procura trazer algumas reflexões, textos, não necessariamente artigos científicos e, contribuir no enriquecimento de lei- turas em casa. Nesta altura em que o MCTESTP aventa a possibilidade de retorno às aulas pre- sencias nas instituições de ensino superior (IES), em 29 de Junho de 2020, uma vez observadas todas as condições de Biossegurança, avaliada a evolução epidemiológica e posterior autorização pelo Conselho de Ministros, trazemos aqui, em 26 páginas, quatro textos que vale a pena ler em casa. “EDUCAÇÃO, CAPITAL HUMANO E ECONOMIA, em tempos de Covid-19, em moçambique”; Jorge Ferrão, Ivan Collinson e Carlos Lauchande - Pág. 02 “CARTA A UMA MÃE EM TEMPOS DE CONFINA- mento ou distanCiamento soCial”; Timó- teo Papel - Pág. 08 “A NOSSA CAPACIDADE SANITARIA DE DIAG- nóstiCo da Covid-19”; Bernardino Cordeiro Feliciano - pág. 13 “PARA EDUCAR UMA CRIANÇA É PRECISO uma aldeia: a Contribuição da ÁfriCa na CONSTRUÇÃO DA ALDEIA EDUCATIVA GLO- bal”; Padre Ezio Lorenzo Bono - pág. 18 Boa leitura, fique em casa. nota de abertura

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Meditações sociais e FilosóFicas

H. Eliseu Sueia

Maputo, 11 de Junho, 2020 • N.º 003

está a ler a terceira edicção do “Meditações Sociais e Filosóficas”, uma Publicação em formato digital, da Faculdade de Ciências

Sociais e Filosofia (FCSF) da Universidade Pe-dagógica de Maputo (UPMaputo). Em tempos de Pandemia COVID -19, que atirou estudantes e docentes para fora da sua esfera habitual, a sala de aulas, esta publicação procura trazer algumas reflexões, textos, não necessariamente artigos científicos e, contribuir no enriquecimento de lei-turas em casa. Nesta altura em que o MCTESTP aventa a possibilidade de retorno às aulas pre-sencias nas instituições de ensino superior (IES), em 29 de Junho de 2020, uma vez observadas todas as condições de Biossegurança, avaliada a evolução epidemiológica e posterior autorização pelo Conselho de Ministros, trazemos aqui, em 26 páginas, quatro textos que vale a pena ler em casa.

“educação, capital HuMano e econoMia, em tempos de Covid-19, em moçambique”; Jorge Ferrão, Ivan Collinson e Carlos Lauchande - pág. 02

“carta a uMa Mãe eM teMpos de conFina-mento ou distanCiamento soCial”; Timó-teo Papel - pág. 08

“a nossa capacidade sanitaria de diag-nóstiCo da Covid-19”; Bernardino Cordeiro Feliciano - pág. 13

“para educar uMa criança é preciso uma aldeia: a Contribuição da ÁfriCa na construção da aldeia educativa glo-bal”; Padre Ezio Lorenzo Bono - pág. 18

Boa leitura, fique em casa.

nota de abertura

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A Hora e Vez da Educação

o Covid-19 tem impactado, de diferentes for-mas, nas esferas da economia e da edu-cação, no mundo e em Moçambique, em

particular. Quase todas as economias tiveram de rever em baixa as suas taxas de crescimento, e o número de empresas que encerram não pára de crescer. Se a pandemia chegou, de forma si-lenciosa e mortífera, o desemprego e a falta de esperança tem andado juntos, com ruídos muito estrondosos. Até os funerais, curiosamente, fo-ram vítimas da pandemia.

Em cerca de 160 países do mundo, o sector da educação paralisou suas escolas primárias e se-cundárias, bem como as suas instituições de En-sino Superior, e calcula-se que mais de 1.7 bilhões de estudantes ficaram em casa, para além de 63 milhões de professores que se viram privados de, presencialmente, contribuir para o aumento da curva de conhecimento dos jovens e das crian-ças, com implicações gravíssimas aos ganhos dos últimos anos, em especial, no que se refere à equidade (UNESCO, 2020).

Em Moçambique, são cerca de 8.4 milhões de alunos dos diferentes subsistemas de ensino (ge-ral, formação de professores e técnico-profissio-nal), pouco mais de 14 mil escolas paralisadas e um total de mais de 156 mil professores que não

podem dar a sua contribuição e aguardam, de for-ma paciente, para a retomada, quando tiver que acontecer (DIPLAC, 2019). Estes indicadores são, ainda, agravados pelas cerca de 1175 empresas encerradas e mais de 12 mil postos de trabalho perdidos, em apenas 30 dias (segundo o CTA, citado pelo jornal O País em Abril 2020). Natural-mente, uma economia em recessão tem impacto directo na educação e no normal funcionamento das escolas.

O impacto do encerramento das Instituições de Ensino

O encerramento compulsivo e integral destas instituições foi a medida mais eficaz adoptada pelo mundo e por Moçambique, em particular, mesmo que alguns estudos questionem a eficá-cia desta medida (Spaull, 2020), enquanto exis-tem também instruções sobre como e quando fazê-lo (UNESCO, 2020). Na realidade, estas me-didas, sem precedentes, sequer equacionaram os danos e as consequências para um sector tão sensível como o da educação, que depende da estabilidade e de economias funcionais. Por isso, se diz que depois da II guerra mundial, nada se-melhante havia sido testemunhado e, portanto, as consequências serão imprevisíveis.

O decrescimento da curva de conhecimento vai

educação, capital HuMano e econoMia, eM teMpos de Covid-19, em moçambique

Por: Jorge Ferrão, Ivan Collinson e Carlos Lauchande

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ser assinalável. Muito antes da crise do Covid-19, o sector da educação já experimentava uma crise de acesso e qualidade, e mostrava algum tipo de fadiga, quer nos métodos, como no financiamen-to, colocando sob pressão a mais básica planifi-cação. Com efeito, só na África subsaariana, cer-ca de 53% das crianças, com 10 anos ou menos, não conseguia ler e escrever, apesar dos sucessi-vos investimentos. Uma realidade que, igualmen-te, afecta Moçambique, com cerca de 2.5 milhão de crianças, até a terceira classe onde, segundo a última avaliação, só 4, em cada 100 crianças, con-seguiam ler e escrever (INDE, 2016). Portanto, nos encaixamos, de uma e outra forma, numa pande-mia que não encontrou antídoto.

A maior crise, todavia – e aqui faz-se referência aos relatórios da UNESCO (sem dúvida, muitíssi-mo actualizados e referência sem igual, durante esta crise!), do Banco Mundial e ao relatório da conclusão da reunião dos Ministros da Educação da segunda semana de Maio do corrente ano, onde estiveram presentes mais de uma cente-na – continua centrada na própria formação de professores pois, na África subsaariana, 50% dos professores primários e 64% dos professores se-cundários, não possui formação mínima e condig-na para leccionar. Portanto, o maior drama passa por formar e rever a formação destes professores e dota-los de ferramentas mais modernas para

enfrentarem os desafios da educação. Em Moçambique, esta fasquia de professores

não qualificados se situa bem abaixo dos 20%, po-rém, se questiona as competências da formação providenciada pois, uma grande percentagem dos professores primários possui um máximo de 10 anos de escolaridade e, subsequentemente, um ou dois anos de formação, o que se manifesta insuficiente para reverter o quadro da qualidade de educação.

A Covid-19 e as Inovações no Sistema de Ensino

A Covid-19 tem estado a impulsionar uma ino-vação sem precedentes para assegurar a conti-nuidade do ensino e aprendizagem, através de meios alternativos. Plataformas digitais, recurso a televisão e a rádio e outras tecnologias de co-municação foram accionadas e outras resgata-das. Apesar de tudo, esta inovação se tem re-velado como um factor crítico, com os próprios professores e técnicos, liderando esta revolução, muitas vezes, sem o preparo suficiente, agra-vado pelos problemas elementares de acesso à energia eléctrica, de conectividade e, ainda, por um massivo número de alunos sem estes meios e recursos. Portanto, estes elementos, conjuga-dos, não dão qualquer garantia de que o processo de ensino e aprendizagem esteja a ser célere e

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universal. Aliás, este é outro desafio aos sectores responsáveis pela qualidade de ensino: como ga-rantir qualidade, num contexto de emergência?

Esta nova abordagem e, talvez, até o uso abu-sivo da TIC que, de repente, é a tendência, colo-cando o Ensino Superior no mesmo diapasão, pode se revelar enganosa e sem a robustez que seria de desejar. Não se pode fazer de conta que transmitimos conhecimento e, simultaneamente, que adquirimos esses conteúdos e melhoramos a curva do conhecimento.

Mesmos nos países desenvolvidos, o ensino, através das TIC, está a apresentar desafios. Um Inquérito realizado recentemente pelo Progra-ma de Avaliação Internacional de Estudantes da OCDE (OECD, 2020), mostra que a maioria dos sis-temas educativos, que participam na mais recen-te administração do PISA (realizado em 2018), não estão preparados para oferecer, à maioria dos es-tudantes, oportunidades de aprender “online”. Os dados baseiam-se em amostras representativas de 79 sistemas educativos, envolvendo mais de 600.000 alunos, com 15 anos de idade. Conclui-se então que, as TIC (algumas vezes mal confundida com o “digital”) não poderão ser as únicas res-postas. Há que combinar recursos, tecnologias diversas, experiências até, tendo sempre como base o saber do aluno/estudante e sua condição para a aprendizagem, neste caso concreto, expe-riência e acesso a recursos.

O Ensino à Distância e o uso de Plataformas

Os problemas fundamentais, apresentados pelos gestores dos sistemas educativos, no uso de plataformas, relacionam-se com a dificuldade de assegurar continuidade da aprendizagem aca-démica dos alunos, dificuldade em apoiar alunos que carecem de capacidades para um estudo independente, o desafio de garantir a integrida-de da avaliação da aprendizagem dos alunos e problemas em orientar os pais para que possam apoiar a aprendizagem dos alunos. Adicionalmen-te, apontam para a dificuldade que os professores têm de identificar objectivos curriculares prioritá-rios, face à realidade da disrupção do sistema de ensino presencial. Isto é, problemas em definir o que deve ser aprendido durante o período de dis-tanciamento social (Reimers, & Shleicher, 2020).

Numa pesquisa1 recente sobre avaliação de impacto das medidas de contingência determi-nadas pela declaração do estado de emergência nas cidades de Maputo e Matola, mostra que so-mente metade dos alunos tem algum contacto com as plataformas. A pesquisa envolveu 1054 ci-dadãos com idade igual ou superior a 18 anos, dos quais 14% são estudantes, mostrou que 56%, (ver o gráfico 1), dos alunos tem algum contacto com os professores através das plataformas. Entre os restantes, 31% estuda através de trabalhos para casa (TPC) e 12% estão praticamente sem activi-dade escolar alguma. Pela idade dos inquiridos, superior ou igual a 18 anos, o mais provável é que grande parte deles estejam no ensino superior ou no ensino médio.

È importante realçar que, caso nas outras pro-víncias o inquérito fosse aplicado, provavelmente, os resultados deste não seriam melhores, consi-derando que Maputo tem com o maior de acesso as TICs comparativamente a outras províncias. Portanto, o número de estudantes sem alguma actividade escolar deve ser superior a 12%. Igual-mente, o número de jovens com acesso a traba-lhos de casa deve ser também superior ao obser-vado em Maputo.

Figura 1 Tipo de actividade dos estudantes

Fonte: NIAFS – UP Maputo, em parceria com INS e CMCM, 2020.

É também de destacar, que o termo trabalhos para casa (TPC), refere-se ao que vulgarmente é designado por fichas de trabalho. Os conteúdos

1A pesquisa foi realizada pelo Núcleo de Investigação em Actividade Física e Saúde (NIAFS) – UP Maputo, em parceria com Instituto Nacional de Saúde (INS) e o Conselho Munici-pal de Maputo (CMC), em Maio de 2020.

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destas, na melhor das hipóteses, referem-se aos temas em que os estudantes estão familiariza-dos. Nos casos em o tema é completamente novo a probabilidade do estudante ter um bloqueio na aprendizagem deverá ser enorme pois grande parte dos estuantes não tem capacidades para um estudo independente.

O grande risco está associado ao acesso e a responsabilidade que temos de prover a mesma informação para todos os matriculados. Verdade que existem cursos à distância. Alguns já com tradição e outros, mas nem por isso. Numa avalia-ção feita em finais de 2015, os cursos à distância eram de longe os que tinham os resultados mais sofridos e as notas mais baixas (CNECE, 2016). Um outro factor são as acções de formação dos docentes e discentes, em matérias de TIC, onde tudo assume cariz alternativo e imediato: “ensino à distância não é sinónimo de aula online”.

Portanto, muito mais do que o debate sobre o pagamento ou não das propinas das escolas e de outras instituições privadas que domina o viés e o cerne da questão, a sustentabilidade de todo um sector terá de ser equacionada e, certamente, as famílias já empobrecidas pela crise, não poderão

ficar reféns de uma pequena parte do bolo, mas do conjunto de consequências pós Covid-19, que estão longe de ser determinadas.

Por outro lado, esta crise mundial evidenciou a importância de um grande actor: a família que, de repente, é o novo professor alternativo, ou seja, professor acidental. Em Moçambique, o IOF 2014-2015 revelou que pelo menos 70,2% da população possui algum tipo de instrução, sendo de desta-car que 40,9% concluiu o primeiro ciclo do Ensino Primário, enquanto apenas 1,2% o Ensino Supe-rior. Ora, esta realidade ilustra que grande parte dos alunos, depende principalmente deste grupo de pais e encarregados de educação, em teoria, sem preparo algum para docência. A rede de Al-fabetização e Educação de Adultos já instalada no País (262.641 alfabetizandos e pós-alfabeti-zandos, de acordo com a DIPLAC, 2019), poderia ser explorada como meios de suporte ao ensino comunitário.

Os financiamentos, a Educação e os riscos Associados

Nos últimos anos se tem abordado, com relati-

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06va frequência, o conceito de pobreza na aprendi-zagem (Learning Poverty), na perspectiva de que se aprende pouco e as competências não têm sido atingidas, porém esta discussão terá de ser mais abrangente para incluir uma não redução de activos para a educação e a obrigatoriedade de se contratarem novos docentes e formar a todos que não tiveram a oportunidade de o fazer.

Ainda não parece muito claro como a magnitu-de das perturbações do Covid-19 se vai manifes-tar na formação de capital humano, no mundo e em Moçambique, em particular, sobretudo, para as famílias mais vulneráveis e para as jovens mu-lheres. À redução das taxas de matrículas, o corte nos investimentos que já estavam em regressão e a dificuldade na contratação de novos docen-tes, poderão criar situações disruptivas em todo o sistema educativo, em Moçambique, com efei-tos persistentemente nefastos no longo prazo. Existe um temor de que os níveis de desistência e o absentismo voltem a ganhar espaço. Mas, a educação da rapariga pode ser a mais afectada e, consequentemente, a própria estabilidade da sociedade, que continua longe da normalização e da paz efectiva. Na realidade, estudos sobre o impacto do COVID-19 sobre a pobreza global, re-vela um facto assustadoramente surpreendente: pela primeira, desde 1990 (ano de publicação do primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano), a incidência da pobreza baseada na renda sofrerá um aumento, ou seja, o número de pessoas que vivem na pobreza poderá aumentar em 420-580 milhões, em relação ao ano de 2018 (Sumner, Hoy & Ortiz-Juarez, 2020).

Existe uma incerteza sobre o que sucederá com os orçamentos e com a quantidade e dispo-nibilidade de escolas, sobretudo, privadas e co-munitárias, que poderão ser coagidas a encerrar ou operar sob condições pouco favoráveis, com impacto no PIB (o ensino privado contribuiu em cerca de 3%-4% para o PIB2016). Para Moçam-bique, o risco de os parceiros reduzirem os seus apoios para à educação não pode deixar de ser, nunca, equacionado. Aliás, o número de países que financiam à educação não só reduziu, como houve cortes significativos no apoio directo ao sector da educação. Mas, se estes apoios não forem garantidos, o próprio desenvolvimento sustentável, que tem sido advogado e apregoa-do pelas Nações Unidas e outras agências inter-nacionais, será comprometido, tal como todos

os objectivos do desenvolvimento sustentável e, consequentemente, o aumento das desigualda-des, invertendo décadas de muito, e notável, pro-gresso social.

Com rigor, precisamos de repensar como o Co-vid-19 se repercutirá neste e nos próximos anos. Parece ser altura para todos actores públicos, privados e comunitários, se unirem para apre-sentar soluções viáveis e longe de suportes or-çamentais do Estado, para salvar essa população estudantil que, demograficamente, não para de crescer, considerando as projecções de cresci-mento populacional em Moçambique, propostas pelo INE (124% até 2040), associado à uma taxa de fecundidade de 5,0, entre outras razões, como por exemplo, o aumento da esperança de vida (59 anos de idade, em 2017).

No leque de questões a serem debatidas, as principais terão a ver com o que vai acontecer com o ano académico de 2020: Como efectivar as avaliações e quais as competências que ainda podem ser providenciadas aos alunos e estudan-tes? O que terá sobrado do ensino à distância e como será reorganizado o calendário escolar até ao final do ano, considerando os vários exames e os compromissos para 2021? Claramente, será impensável submeter os estudantes às provas completas de avaliação, tomado por base, ape-nas, as aulas providenciadas pelas plataformas digitais ou pelas questionadas teleaulas.

Na essência, este conhecimento não foi pas-sado para todos, aliás, mais de metade da popu-lação estudantil, não beneficiou destas aulas, e pode não ter tido o devido acompanhamento de seus familiares.

Os Cenários Possíveis

Sem os exames de avaliação, as classes sem exames vão avançar com lacunas extremas, mas assim terão de fazer para dar espaço aos novos ingressos para as classes e níveis subsequentes, e este é um dilema à planificação escolar (ex. a 1ª classe recebe cerca de 1.6 milhões de alunos/ano, segundo a DIPLAC, 2019). Já as classes com exa-mes terão maiores dificuldades em fazer os exa-mes e garantir que as competências requeridas foram alcançadas, de modo a cumprir a função classificatória, inerente aos exames.

O ideal (num cenário em que se atravesse para o segundo semestre de 2020 com as actuais res-

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07trições) seria re-calendarizar o ano de 2021, pre-vendo um período de consolidação (trimestre), de modo a consolidar conhecimentos e competên-cias que deveriam ter sido adquiridas a validadas ao longo de um ano lectivo, combinado ao apri-moramento no uso de tecnologia e formação téc-nica para os docentes, que podia até ser interpre-tado como “repetição do ano”, porém, teria uma duração inferior, implicando um exame geral, logo após este período. Uma outra alternativa de es-tender este período de consolidação por um se-mestre, implicaria a re-organização de conteúdos oferecidos hoje trimestralmente, para semestre, com impacto ao calendário escolar e estrutura curricular. Há que considerar, porém, o seguinte: o ano escolar iniciou a 04 de Fevereiro e a 01 de Abril foi decretado o Estado de Emergência, por-tanto, as aulas foram leccionadas em cerca de um mês e catorze dias! O uso e recurso à tecnolo-gia parece ser irreversível, porém, não podem ser improvisados e nem implementados ad hoc.

Poderia ser um ano especial de consolidação de conhecimento de base e de aprimoramento dos instrumentos que vão conduzir à implementação do novo sistema nacional de educação. Os pro-fessores e gestores escolares, sobretudo, teriam aqui uma oportunidade suprema de estudarem a fundo o nosso SNE e eliminar todas as dúvidas e imperfeições que ainda se observam. As univer-sidades públicas poderiam apoiar neste esforço, em particular, a UP-Maputo e as novas UniRios, cujos cursos estão associados a educação.

O mesmo deverá acontecer para o subsistema de Ensino Superior pois, para além de reforçar as competências tecnológicas, poderia colocar os estudantes dos primeiros anos num processo de consolidação das suas capacidades intelectuais e formativas. Seria, por outras palavras, um ano (ou semestre) zero ou propedêutico. Os restantes terão de apertar o calendário e a programação, cortar as férias e ficar até ao começo do próximo ano nas salas de aula. Enquanto se reflecte sobre como se ultrapassar esta fase de enorme inde-finição e desafio aos sistemas, também há que reflectir sobre o pós-COVID 19, designadamente, sobre o regresso às aulas, vindos de um ambien-te no qual o distanciamento social é/era a norma, com desigual acesso à recursos pedagógicos e outras tantas diferenças.

Estas são algumas das questões que passa-rão para o mainstream. Como nos preparamos e

criarmos uma base sólida para enfrentar os pró-ximos tempos, parece ser uma pergunta que vale um milhão de dólares e que não tem resposta imediata. Fica claro, porém, que há domínios que merecerão toda a atenção, designadamente, 1- planificação escolar (calendário e legislação apli-cável), 2- infra-estrutura de apoio ao ensino (TIC, fichas, rádio, TV e outros), 3- formação (professo-res, alunos/estudantes e até pais/encarregados de educação), 4- financiamento e 5- desenvolvi-mento adaptativo dos curricula.

De modo particular, e embora possa ser impor-tado para o ensino geral e técnico-profissional, as propostas de retoma (vide figura abaixo) para o ensino superior parecem ser menos críticas do ponto de vista de pressão à selecção e imple-mentação, diferentemente do ensino geral, espe-cialmente se se considerar, por exemplo a taxa de participação no ensino superior em Moçambique que é de 7% (UNESCO, 2018).

Adaptado de E. J. Maloney & J. Kim (2020)

Na curva de conhecimento e gestão huma-na, o momento se revela crucial, sobretudo de-pois de décadas de um crescimento significativo de acesso e ingresso ao sistema de educação e criação de capital humano. Uma mudança nas relações humanas e na interacção entre os se-res humanos parece ser eminente. Esta é a nova ordem mundial que substituirá a ordem do Bre-ton Woods. Nesta nova ordem não haverá países pobres e ricos ou com recursos e sem recursos. Existirá uma educação disruptiva e que chega-rá a todos. A tecnologia 5G será imprescindível. Uma educação com smartphones e redes digi-tais acessíveis e estáveis. Uma nova ordem que impõe restrições, cuidados sanitários extremos e um novo projecto económico que terá de res-gatar milhões de trabalhadores do desemprego, para que essa mesma educação possa progredir e prosperar.

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Querida Mãe!

escrevo-te na solidão e na escuridão do meu quarto onde nem a luz do sol, muito menos a luz da lua se faz sentir. Os dias são monó-

tonos. As noites quentes tornaram-se frias, sem vida nem graça. Mas como a esperança é a última coisa a morrer, luto para continuar vivo mesmo sem vida para viver. Na verdade tudo o que fazia sentido deixou de o fazer por causa desta situa-ção de quarentena, distanciamento social ou sei lá isolamento, no cumprimento escrupuloso de medidas de prevenção e combate ao covid-19 ou Coronavírus. Diz-se que é um vírus que vem da China. Imagina, mãe? Agora de lá não vêm apenas aqueles sapatos, chinelos, brincos e outro tipo de produtos que pela sua natureza não duram mui-to. Mãe deve lembrar-se daqueles baldes, calças

e sapatos que comprou naquele chinês dali na esquina que nunca fizeram nem sequer um mês. Lembra! Não lembra mãe? Pois é.

Todavia, apesar de toda essa nostalgia ao pas-sado, mãe, a anterior vida que levávamos que já não era grande coisa, pois vivíamos afastados por conta das tecnologias que nos consumiam o tem-po, o amor a família, aos irmãos, amigos e tudo o que era útil e deveríamos sempre ter presente, a situação actual só é chata, porque nos é imposta por uma autoridade cuja sua não obediência auto-riza-se por si a usar o seu ius imperium. Uma im-posição que nem era necessária, porque deveria ser normal a convivência das pessoas em família. As pessoas deveriam amar-se mais e aproveitar todos que estão em seu redor. As tecnologias não deveriam nunca ter substituído o outro que está bem ali diante dos seus olhos. Os outros chamam

carta a uMa Mãe eM teMpos de conFinaMento ou distanciaMento social

Por: Timóteo Papel

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09isso de modernidade líquida (Bauman) ou hiper-modernidade (Lipovetsky) ou ainda Pós-moderni-dade (Lyotard). Mas será que tudo isso é alguma coisa para nós mãe? A nossa tradição não será maior e melhor que tudo isso, embora pela situa-ção em que nos encontramos hoje não possamos sentarmo-nos a volta da fogueira para ouvir as mais lindas histórias dos nossos antepassados?

Lembro-me quando me chamavas para buscar sal na cozinha, cortar tomate, pilar o alho, tempe-rar a carne ou cortar a couve, ou ainda lavar folhas de batata-doce, que aqui chamam de cissito e eu com meu celular na mão fingia não ouvir ou sim-plesmente pedia mais uns minutinhos só para po-der colocar um like na foto de um amigo ou uma amiga; responder uma mensagem num grupo de WhatsApp ou escrever alguma coisa que com certeza atrasava mais o nosso almoço ou jantar.

Não falo de pequeno-almoço, isso dizias que era para gente que respirava com os dois pulmões. E respirar com os dois pulmões para ti, mãe, ou o indivíduo deveria estar na política ou deveria ser um empresário ligado ao partido no poder. Aquele que fazia negócios com o partido ou Estado. Pois, não se sabia ao certo, quem era o partido e quem era o Estado, porque quem comandava o Estado, comandava também o partido. Era assim que as coisas funcionavam e ainda funcionam por aqui. E nós que nem num lado nem noutro estávamos, só podíamos respirar com um pulmão e viver graças a providência divina, pois há dias que nem tal al-moço ou tal jantar existiam. Aliás nem sei porque chamo de almoço ou jantar. Será porque passá-vamos tais refeições as 12 horas ou as 20 horas?!

O tal estar na política para ti mãe, não deveria ser um estar por estar. Deveria a pessoa fazer de tudo de modo a ascender aos patamares mais al-tos da política. Daí que muitos passaram a usar o lema maquiavélico “não importam os meios, mas os fins”. Entretanto, o que batia mesmo e ainda bate é ser deputado. Porque os deputados tra-tam-se como militares ou prisioneiros. Para eles durante a legislatura ficam desintegrados das suas comunidades e dos seus hábitos. Por isso, no final devem ser reintegrados. Alguns questio-nam: que reintegração quê? É mesmo necessária uma reintegração? Talvez seja necessária mãe. Como não reintegrar alguém que passou cinco ou mais anos a andar de fato e gravata; a comer de garfo e faca; a tomar os melhores vinhos que na

sua comunidade ou seu círculo eleitoral jamais to-mara? Como não reintegrar alguém que viveu de borla e passou cinco ou mais anos a bater palmas e a tomar chá no parlamento? Como não reinte-grar alguém que se esqueceu de andar de calças rotas e beber nipa na zona? Portanto, para alguns aquilo é uma autêntica prisão. Um tipo de vida de que não estavam habituados nem deveriam ser submetidos. Como se o processo de selecção para aquele órgão pelos partidos políticos não fosse voluntário.

Por isso, vendo como era e ainda sou, pois não mudou muita coisa em mim, sempre disseste: filho não te metas na política. Aqueles não são honesto. Apenas usam o povo para satisfazer os seus interesses. É melhor morrer pobre, mas com dignidade. É melhor passar a fome do que tossir sempre ao comer de tanto seres falado. Esses sempre foram os teus conselhos mãe. Hoje en-tendo o seu alcance. Na verdade somos apenas um povo para votar. Um povo icónico como dizia Friedrich Müller. Um povo que é mais importante no período eleitoral que num período de pande-mia. Pois, se esse Coronavírus tivesse aparecido num ano eleitoral estariam todos os partidos po-líticos atrás de nós não só a distribuir camisetas e capulanas, mas também a distribuir comida, máscaras, sabão e outros produtos essenciais para prevenirmo-nos da pandemia.

Mas essas eram apenas entrelinhas, mãe. Dei-xe-me, contar-te agora um pouco sobre a minha morte lenta. Disse-te no início desta carta que as noites são frias e os dias monótonos. Sim, mãe. São e muito. Na verdade este distanciamento que se impôs entre nós é mais do que uma prisão. Pois, um condenado sabe quando poderá estar junto da sua família. E nós? Quando poderemos trocar beijos e abraços no calor do dia? Quando poderemos sentarmo-nos e comer no mesmo prato a nossa xima de mandioca com thodwe ou com madjembe frito, quando temos óleo, porque quando não tivéssemos assávamos no carvão de olhos bem abertos para não queimar e perder o gosto.

Ahhh ligou-me ontem a mana Inês, desespera-da e cansada. Entre lágrimas e soluços contou-me que começou a arroz novo. Chorei. Chorei. Chorei feito uma criança quando está com fome ou sede. Chorei, porque como sabes e bem me conheces adoro o aroma do arroz novo, sobretudo quando

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10feito por ti naquela tua panela de barro acompa-nhado com aquele peixe ndowe ou mukadje com leite de coco grosso. Também sabes que adoro matago e madduguddo. Coisas que me ensinaste a comer e a gostar. No entanto, nesses tempos de distanciamento nem o cheiro de longe posso sentir. Pior ainda, não podes mandar como fa-zias quando eu fosse estudar longe de casa. Por isso, mãe, a minha tristeza não tem fim. As pa-redes cansaram-se de consolar-me, as toalhas cansaram-se de enxugar as minhas lágrimas e o remote então, já não tem teclado, pois na busca constante de canais de informação sobre tal pan-demia só vejo noticiários sobre mortes na Ásia, Europa, América, agora África, o tal continente de jovens que pelas suas condições de vida, pa-recem mais velhos que os velhos daqueles velhos continentes.

Querida mãe, não perguntarei como estás, pois sei que não estás nada bem. Qual mãe es-taria bem sem os abraços dos seus filhos, netos e bisnetos? Como estarias bem se nem podes sair de casa para ir ao velório das tuas amigas e vizinhas que dia-a-dia sucumbem desta vida e a participação agora é por convite como em festas de gala? Como estarias bem se nem podes ir à comunidade rezar com as tuas amigas, vizinhas e conhecidas pelo fim desta miséria humana que Marx outrora a chamou de miséria da Filosofia? Como estarias bem se a humanidade está doente e nem a ciência pode salvar-nos agora?

Será o Coronavírus a nova serpente, a mes-ma que no passado dizimou o povo de Israel no deserto? Questiono-me na minha angústia, mas não encontro resposta plausível, pois, também me disseram o tempo todo, durante a minha in-fância em casa e na catequese que Deus é Bom, é Misericordioso, é Benevolente, é Compassivo. Portanto, alguém em quem não habita maldade alguma.

Ou será o Coronavírus o prenúncio de uma nova ordem mundial como diz Nataniel Ngomane na carta à Chiziane? As respostas e os comen-tários que se ouvem de todos os lados do mun-do são várias e vários. Alguns procuram culpar o culpado; outros procuram inocentar o culpado; outros procuram encontrar o culpado; outros ain-da dizem que a humanidade pecou demais. Deus está demasiadamente cansado e zangado con-nosco. Há outros que dizem que chegou o apo-

calipse. O fim dos tempos. Será mãe? O certo é que tudo está parado. As crianças já não vão à escola; as igrejas estão fechadas; os adultos tra-balham em regime de escalas; as pessoas não se aproximam, pois são orientadas a ficar mais de um metro de distância; as empresas estão a falir; pessoas estão a morrer; os empregados estão a ficar desempregados; estamos confinados. Pelas nossas fronteiras e as dos outros, ninguém entra, ninguém sai; a ordem foi simples e clara: cada um fica onde está. E eu como estava no meu quar-to, aqui estou até agora esperando novas ordens como um prisioneiro em cela aguarda pela sua li-berdade e libertação.

Agora lavam-se mais as mãos que os alimen-tos; lava-se mais a roupa que o rosto. O sofrimen-to é mundial; a dor não é de uma única pessoa apenas. O mundo está doente. Sinto cá de den-tro. Nunca vi os homens tão desesperados assim mãe. A angústia é tanta que às vezes fingimento algum pode apagar. Será que devemos acreditar na narrativa da Paulina Chiziane segundo a qual quem consegue atravessar e vencer a barrei-ra da dor, torna-se mais forte e mais habilitado a dar suporte necessário a quem nunca passou por uma tal experiência? E se não atravessarmos como os egípcios não conseguiram atravessar o Mar Vermelho?! Será que depois dessa experiên-cia do Coronavírus a humanidade voltará a ficar mais unida? Os ricos e poderosos perceberão que a saúde é mais importante e a maior riqueza que a humanidade tem? Os políticos investirão mais em rede sanitária pública para que também nós os pobres tenhamos onde ser tratados com dig-nidade e como humanos ou continuarão a priva-tizar tudo para que apenas eles que têm posses tenham mais saúde e vivam mais?

E, diante disto, ainda nos resta alguma alter-nativa como humanos? Se calhar essa seria a tua pergunta agora se pudéssemos estar juntos. Perguntarias a mim, porque mandaste-me a es-cola e por teimosia fui até a universidade fazer um curso superior, que na verdade só me tornou mais inferior. O curioso nisso e para a tua surpre-sa, provavelmente não terias nenhuma resposta vinda de mim, porque fui à universidade fazer um curso que ajuda apenas a pensar como se esti-vesse num país onde o pensamento e a reflexão são valorizados.

Aliás, reza a história que o primeiro Presidente

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do país após a independência baniu-o. Vejo agora como teria problemas com ele se ainda estives-se vivo. Pois, os dois cursos de que gosto, por ele foram banidos. Seria um autêntico antipatriota, mãe. Se é que já não sou assim considerado. Por-que pensar diferente por aqui já te torna um ci-dadão da oposição; um antipatriota; alguém em quem não se deve confiar. Mas isso não me preo-cupa, mãe. Desde quando um filósofo ou um poe-ta tem posição? Desde quando um filósofo ou um poeta diz o que as pessoas querem ouvir? Quan-do muito não se torna esse incompreensível?

Disse-te que o curso me tornou inferior nem mãe? Sim, tornou-me nisso. Um ser inferior, pois passei a pensar que sei muito enquanto na prá-tica, sei nada. Passei a comentar sobre tudo no WhatsApp, Facebook, Twitter, Instagram e mais algumas coisas que chamam de sociais por aqui. E por causa disto, alguns amigos passaram a chamar-me de tudólogo. Sabichão, nas costas. E riem-se de mim na minha ausência. Aliás, tais coisas que chamam de sociais, no fundo de so-cial têm nada. As pessoas interagem, dialogam, elogiam-se, curtem-se. No entanto, tudo é feito na falsidade. Poucos, mas muito poucos mesmo agem com sinceridade.

De vez em quando na solidão e na escuridão do meu quarto, lembro-me quando me dizias que

o silêncio era mais valioso que as palavras. E brin-cavas dizendo que há pessoas que não ouvem, fi-lho. Tu podes gritar e dizer tudo o que sentes, mas ninguém levará em conta.

Agora vejo que ninguém leva mesmo, mãe. Há gente que fala e fala bem. Aponta os problemas todos que o país tem até as suas possíveis solu-ções. Infelizmente, os que têm poder para tomar as decisões certas, tomam as decisões que lhes convém. Daí que, ainda há mais miseráveis que pobres, mais pobres que ricos. Dos quase 30 mi-lhões que somos, apenas menos de 1 milhão leva uma vida de gente. Nós os outros vivemos abaixo da linha de pobreza, ou seja, se almoçamos, não jantamos. Se jantamos, não almoçamos. Por isso, quando o Presidente decretou o Estado de Emer-gência os mais corajosos fizeram greve. Nem foi por coragem, mãe. O que um ser humano não faz por fome? Quem aceita morrer de fome em casa enquanto pode fazer táxi, vender couve no pas-seio da cidade e ter o que comer no fim do dia?

Diziam alguns que via pela televisão que fica em casa quem tem tudo. Quem tem comida aci-ma de tudo. As pessoas preferem morrer por esse vírus que morrer de fome. E têm razão mãe. Porque noutros países, onde as pessoas foram obrigadas a ficar em casa, o Governo passou a dar assistência alimentar as famílias mais caren-

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12ciadas. Há quem diga que nós por aqui não temos capacidade.

Será? Essa é provavelmente a questão que muitos se fazem, também te fazes mãe. Porque sempre que podes, vês pela televisão empresá-rios de sucessos e ouves sobre quantidades de dinheiro que nem podem caber num papel por algarismo. Parece que aqueles empresários que sempre viajam com chefe são apenas para via-gens. Talvez para mostrar ao mundo lá fora que também nós temos homens que sabem andar de fato e gravata. Homens que sabem comer a garfo e faca e que também podem ter amantes bran-cas. Até parece que estamos a vingarmo-nos do colono que abusava das nossas tias sem dó nem piedade.

Querida mãe, tenho muita vontade de contar-te tudo o que passo neste meu quarto que outrora era confortável e prazeroso de se estar. Todavia, não quero que os baldes todos de casa se en-cham com as tuas lágrimas e te afogues nelas. Partir-me-ia o coração saber que o motivo da tua precoce partida fora esta minha carta.

No princípio, pensei como muitos que essa si-tuação era apenas para homens brancos, aque-les que mandam no mundo. Não só brancos, mas também velhos e cansados, porque lá onde é na terra de brancos não é problema ter 90 ou mes-mo 100 anos de idade. O que quer dizer que até os velhos de cá estavam isentos ou pelo menos imunes a essa pandemia. No entanto, a coisa co-meçou a mostrar-se diferente quando ouvi que também crianças, jovens e adultos poderiam ser contaminados. Aí comecei a perceber que aquele vírus não olha para idade nem raça, muito menos faz distinção entre ricos e pobres.

Os meus primeiros dias deste distanciamento foram os mais críticos, mãe. Sabes que sou des-de pequeno uma pessoa apaixonada pela leitura e escrita, mas ao longo desses dias todos a mi-nha mente não funcionou para muita coisa. Não consegui terminar os livros que estava a ler nem escrever no ritmo que me é comum. Apenas con-segui forçosamente terminar um livro de poesia que deveria mandar a uma amiga para fazer o prefácio e um projecto de Mestrado em Jornalis-mo e Mídias Digitais, cujo prazo já havia vencido. Também li pequenos artigos nos momentos em que as minhas séries acabavam ou ficava sem in-ternet.

Não sei se a essas alturas que te escrevo esta carta estou habituando-me a esse confinamen-to, distanciamento ou sei lá isolamento social. O certo é que a situação ainda é desoladora quer no mundo fora quer internamente. Aliás, ontem mesmo ouvi pela rádio que os 39 casos positivos, que tenho certeza que mãe também ouviu, dos quais 8 já estão recuperados, até um, aquele que diziam que não era positivo veio admitir publica-mente que foi um dos primeiros recuperados, fa-la-se que em 6 meses podemos chegar a 20 mi-lhões de infectados pelo Coronavírus.

Fiquei perplexo, pois 20 milhões é muita gente, mãe. Aliás, mais da metade da população. Então inclinei-me a pensar que tratava-se apenas de 20 mil, mas quando ouvi que eram necessários 34 mil milhões de meticais para fazer face a situa-ção, então não tive outra opção se não acreditar. Pois era muito dinheiro para cuidar apenas de 20 mil pessoas.

A ser verdade mãe, só posso chorar, pois se com malária e cólera não conseguimos, será que conseguiremos com este Coronavírus?

Portanto, se não receberes mais uma carta minha, não chores. Talvez terei partido, não para aquele partido de oportunidades que distribui capulanas e camisetas descartáveis em tempos de campanha. Mas, para o além. E como não po-derás pedir um exame para saber do que morri, ficarás com o que puderem diagnosticar que será uma febre, tensão, cólera, malária, ou mesmo que fui envenenado na bebedeira ou que aquela me-nina que me queria e eu não a queria enfeitiçou-me, só para justificar a minha morte, já que entre nós a morte deve sempre ter um culpado mesmo que tenha chegado a vez de partir que no fundo todos sabemos que um dia, tarde ou cedo, chega, embora, fujamos sempre da partida. E para fingir a nossa felicidade fazemos de contas que a parti-da está longe ser partida. Quando assim suceder, não chores mãe. Talvez será esta a única forma de libertar-me das correntes deste mundo impie-doso e sacrificador.

Um forte abraço do teu filho!

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a nossa CapaCidade sanitÁria de diaGnóstiCos da Covid-19

Por: Bernardino Cordeiro Feliciano

Introdução

A pandemia do novo coronavírus constitui uma ameaça para diferentes povos do mundo, com principal destaque para os países em desenvol-vimento, por causa de suas deficiências e baixos investimentos sanitários. Os dados divulgados e actualizados diariamente pela Organização Mun-dial da Saúde (OMS), a principal agência sanitária a nível internacional, revelam que o continente Áfricano e Moçambique, em particular, apresen-tam números relativamente baixos de infecções e mortes pela Covid-19, doença causada pelo co-

ronavírus. Os números registados, além de evi-denciarem a eficiência das medidas adoptadas pelo governo moçambicano, pelas instituições de tutela e pela sociedade, eles expressam a capaci-dade limitada das nossas instituições e recursos de realizar testes de diagnóstico devido aos seus custos elevados, tal como referiu o funcionário do Ministério de Saúde na revista de imprensa no fi-nal de Abril. No contexto da globalização, as desi-gualdades socioeconómicas e políticas (Sassen, 2008; Stiglitz, 2003) acabam transpondo para a esfera sanitária, o que ajuda a explicar a capaci-dade dos países de ter o número real de infecta-

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INFORMAÇÃO EDITORIALPropriedade: Faculdade de Ciências Sociais e FilosofiaDirector: Bento Rupia Jr.Editor: Jorge Fernando JairoceCoordenação: Jorge Fernando Jairoce e Eliseu SiueiaLayout: Danúbio Mondlane - GCI

Contacto: Avenida de Moçambique, Km1, Campus de Lhanguene, Bloco E, 2º Andar, Telefone: +258 84 202 2161E-mail: [email protected]: Shutterstock

dos e fazer face a distintos focos de dissemina-ção e propagação da doença.

Globalização da covid-19 e seu efeito multi-es-calar

O conceito de globalização envolve variado e amplo espectro de abordagens e de posições, por isso, não reúne consenso entre estudiosos, assumindo o carácter controverso. A definição referente a globalização como “a intensificação das relações sociais em escala mundial, que li-gam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por even-tos ocorrendo à milhas de distância e vice-versa” (Giddens, 1996: 69), reveste-se de alguma actuali-dade diante da difusão da covid-19 em diferentes áreas do globo. Aquilo que era uma doença locali-zada numa parte do mundo – Wuhan, região cen-tral da China – em pouco tempo se tornou uma pandemia com efeitos multiescalares sem prece-dentes na história humana.

Historicamente, a humanidade registou dife-rentes crises sanitárias causadas por doenças infecciosas e pandemias que assolaram “nações no passado, dizimando suas populações, limitan-do o crescimento demográfico, e mudando, mui-tas vezes, o curso da história” (Rezende, 2009: 73). Pandemias como a peste bubônica que afec-tou a Europa no século XIV, a cólera no início do século XIX, a gripe espanhola (que nada tem de espanhola além do nome) no início do século XX, só para citar alguns exemplos. Apesar de terem influenciado o curso da história humana, as pan-demias precedentes nunca tiveram uma dimen-são global no verdadeiro sentido, na medida em que ocorriam em partes localizadas do mundo e ao mesmo tempo.

Saskia Sassen (2007) refere que um dos desa-fios para a consideração de “um fato global”, para além de “instituições, processos discursivos, prá-ticas e imaginários”, consiste da multiescalarida-de e simultaneidade do fenómeno para além de sua “exclusividade das fronteiras particular dos Estados, habitantes, instituições e territórios na-

cionais” (Sassen, 2007: 3 – tradução livre). Neste caso, diferentemente das pandemias anteriores, a Covid-19 se tornou verdadeiramente uma pan-demia global, além de se estender em diferentes regiões do globo, seu alastramento teve o efeito de paralisar o mundo e colocar a humanidade em sintonia sobre suas causas, formas de transmis-são e estratégias de mitigação.

A nível mundial, muitos países, em simultâneo, adoptaram estratégias universalmente difundi-das: (i) o distanciamento físico entre as pessoas, (ii) a implementação de medidas de higiene pes-soal para a desinfecção das mãos com uso do ál-cool gel a 70% e (iii) uso de máscaras em locais públicos e aglomerações, entre outras medidas. Contudo, apesar de todos apelos governamen-tais, assiste-se nas cidades periurbanas e urba-nas da Cidade e Província de Maputo mobilidades ou movimentações constantes de pessoas; uso parcial de medidas de desinfecção das mãos com uso de álcool de gel e assiste-se igualmente, o mau uso da máscara em locais públicos e aglo-merações.

Os dados divulgados pela OMS, tal como mos-tra a tabela 1, revelam diferenças percentuais do número de casos de infecção registados até ao dia 06 de Junho em diferentes continentes:

Tabela 1: total de casos diagnosticados e de mortes pela COVID-19 registados em África, América, Europa e sudeste asiático.

Fonte: Elaborado pelo autor de acordo com dados atualiza-dos pela OMS em 6 de Junho de 2020.

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15Os dados do gráfico acima revelam que do total

de 6.663.304 casos de infecção e 392.802 mortes registadas no mundo inteiro até o dia 6 de junho, o continente americano, actual epicentro da pan-demia lidera o número de infecções com 47,4%, seguida da Europa com 33,8%, Ásia com 5,6%, África com 1,9% e outros 11,3 % divididos entre o pacifico ocidental e o mediterrâneo oriental.

Em relação as taxas de mortalidade, revelam que 46,3% se registaram na Europa (cuja actual tendência é decrescente), 44,8% da América (que regista a redução de casos nos EUA e aumento no Brasil), 1,7% na Ásia (a situação está sob contro-le), 0,8% em África (caracterizado pelo aumento de caso) e os restantes 6,5% divididos entre o pa-cifico ocidental e o mediterrâneo oriental (OMS, Junho de 2020).

No continente Áfricano, a África do Sul regis-ta o maior número de casos com 26% das taxas de infecção e 16% de mortalidade; Moçambique, por sua vez, regista 0,2% das taxas de infecção e somente 2 obitos até 06 de Junho (OMS, 2020). Como se observa, os dados do número de in-fectados e mortes no continente Áfricano e em Moçambique, em particular, estão abaixo de 1%, então como explicar que a situação da Covid-19 em Moçambique esteja aparentemente sob con-trole?

Aquando da eclosão, ou melhor, da divulga-

ção dos efeitos catastróficos sanitários causa-dos pela Covid-19 na Europa (Itália e Espanha, sobretudo) e, pouco antes da actual propagação da doença no continente americano, a OMS aler-tou sobre a vulnerabilidade que corriam os países Áfricanos por causa da vulnerabilidade dos seus sistemas sanitários e capacidade de controle de suas fronteiras. Portanto, apesar do carácter glo-bal e os efeitos multi-escalares e multidimensio-nal da Covid-19 em diferentes países, ela segue a tendência de outras dimensões da globalização e seu ônus para os países em desenvolvimento, uma vez mais o “efeito devastador que a globali-zação pode ter sobre países em desenvolvimento e, especialmente, sobre os pobres desses países” (Stiglitz, 2008: 11).

As assimetrias socioeconómicas e políticas implícitas ao processo de globalização se trans-põem na esfera sanitária visibilizada com a pan-demia da Covid-19, tal como demonstram os da-dos apresentados pela OMS. De maneira implícita, o factor económico repercute, na medida em que os países desenvolvidos, com investimentos no sector sanitário, tem maior capacidade de regis-tar, controlar e intervir por via médica na compra de ventiladores, aumento do número de leitos, actualização de dados diários e adopção de me-didas pontuais nos focos de maior propagação.

O caso da África do Sul, país vizinho de Moçam-

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16bique e maior economia do continente Áfricano, regista maior número de infectados e de mortes pela Covid-19 no continente. O factor económi-co influencia na capacidade de fazer diagnóstico massivo, o que revela que, uma vez mais, face ao carácter global da pandemia,o poder da cada país influenciar o rumo dos eventos ficou escancara-do com a difusão da Covid-19. O desenvolvimento económico e tecnológico dos países desenvolvi-dos mostrou-se ineficiente nas suas formas de prevenção e capacidade das instituições sanitá-rias evitarem o elevado número de mortes.

Manuel Castells (1999), ao se referir sobre a restruturação económica e mudanças nas for-mas de acumulação e regulação, o capital tec-nológico, além de ser estruturante das relações de poder, passou a desempenhar papel relevante nos processos de integração social. Para Castells, a posse ou acesso da tecnologia constitui factor estruturante na nova ordem social e elemento que “modifica substantivamente a operação e o resultado dos processos produtivos, experiência, poder e cultura” (Castells, 1999: 497).

A abordagem de Castells (1999) pode constituir a chave explicativa para a situação de Moçambi-que, ligada a capacidade de testagens por dia no país. Actualmente, o país possui somente um centro de testagem localizado no Instituto Nacio-

nal de Saúde e o Laboratório de Biotecnologia da Universidade Eduardo Mondlane complementa e auxilia as actividades do instituto. Os casos diag-nosticados e registados em todas as províncias, a maioria são considerados de transmissão local e outros importados e em alguns casos se des-conhece as causas de transmissão da Covid-19; o que pode mostrar as limitações existentes em termos de capacidade de pesquisar as fontes de contactos ou canal de transmissão epidemológi-ca, e providenciar um número de camas disponí-veis (em caso de eclosão da doença).

Admais, outro factor, não menos importan-tes, prende-se com a exiquidade de equipamen-tos especializados para os exames, carencia de meios para a colheita de amostras para testagem e inexistência da formação direccionada para o uso deste equipamentos, apesar de existência de técnicos qualificados e infraestruturas adequa-das.

Outro elemento que importa referir, tem a ver com os custos financeiros em diferentes escalas de controle da Covid-19. As informações revela-das pelo Ministério da Saúde no início do mês de Maio colocam o valor financeiro – custos – para cada categoria de sujeitos submetidos ao teste da Covid-19 e fases procedentes:

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17De elementos de custos, a primeira catego-ria é aquela categoria de um indivíduo que nós suspeitamos, vamos testar e ele têm resultados negativos, este indivíduo tem o custo mais baixo, custo pertence a este indivíduo, isto é uma suspeita, nós vamos testar, este indivíduo em termos de custos em dólar seria 171,6 utilizando o câmbio de hoje em meticais; só uma pessoa custa 11.668, 8 meticais (...); a segunda categoria seria um doente assintomático; assinto-mático é aquele que faz o teste, ele é po-sitivo, mas não tem sintomas, este doente assintomático custa cerca de 40.772 meti-cais; um doente com sintomas graves cus-ta 158.518 meticais e um doente, no dia em que nós tivermos um doente nos cuidados intensivos e que seja crítico, ele custa 181. 053 meticais pelo período de internamen-to que ele lá estiver (extrato do diário de imprensa apresentado pelo Ministério da Saúde, Maio de 2020, destaque livre).

Como se observa, a pandemia da Covid-19 im-plica investimentos adicionais no sector da saú-de e aumenta ainda mais as despesas do Esta-do no sector que antes da difusão da doença já se ressentia da insuficiência de recursos. Esta

constatação explica, de algum modo, as ques-tões ligadas a identificação de focos, factores da transmissão e o número de testes diários, o que envolve investimento financeiro, consubstancia o investimento na saúde preventiva ao se focar na estratégia de comunicação e mobilização social em relação a prevenção da Covid-19.

A interpretação dos dados disponíveis torna-se uma tarefa pontual e uma ferramenta analíti-ca que as Ciências Sociais têm para se afirmar no contexto onde a legitimidade sobre a pandemia da covid-19 tem se reduzido a área biomédica e política, por isso, em jeito de encerramento, esta reflexão toma como ponto conclusivo as palavras de Joseph Stiglitz, economista norte-america-no, que durante a crise económico-financeira de 2008, (que se pensava ser a maior crise até en-tão), em tom profético a crise actual, como ilustra o título do seu livro, “O mal estar na globalização”, ligado aos acordos/limites/capacidades interna-cionais impostos aos países “em desenvolvimen-to” pelo processo de globalização, Stiglitz (2008) sugere que se deve ir para além da ideologia [e político], abordar os problemas desapaixonada-mente e deixar os factos tomarem à dianteira – mais do que os interesses ou crenças das pes-soas que mandam.

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“para eduCar uma Criança É preCiso uma aldeia inteira”A cONTRIbuIÇÃO DA ÁFRIcA NA cONsTRuÇÃO DA ALDEIA EDucATIvA GLObAL.

Por: Ezio Lorenzo Bono

suMÁRIO

Em vista do evento mundial sobre a educação lançado pelo Papa Francisco e programado para o mês de Outubro de 2020, o Dicastério da Educação da Santa Sé, elaborou um Instrumentum Laboris onde apresenta o Projecto, o Contexto, a Visão e a Missão do Pacto Educativo que naquela ocasião será assi-nado pelos grandes da terra. Partindo deste Instrumentum, tentamos uma releitura do pensamento Áfri-cano sobre a educação à luz da tradição educativa da África, uma tradição milenar antecedente à invasão colonial e à implementação das escolas europeias em terra Áfricana.

O lançamento deste evento foi realizado em nome de um provérbio da sabedoria Áfricana, e além dis-so, muitos dos valores apresentados neste documento pertencem desde sempre à cultura Áfricana. Poe estas e outras razões concluímos que a África poderá contribuir em modo significativo na construção da Aldeia Educativa Global.

PALAVRAS CHAVE: Educação, Pacto Educativo, Pedagogia Áfricana, Aldeia Educativa Global.

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é a partir deste proverbio Áfricano “Para Educar uma criança é preciso uma aldeia inteira”, que o Papa Francisco lançou em

12 de Setembro do ano passado a celebração de um evento mundial a realizar-se neste ano 2020 em Roma cujo tema será: “Reconstruir o pacto educativo global”1. Para educar é neces-sário construir esta Aldeia educativa que se fundamente sobre os pressupostos da frater-nidade humana2. Por este motivo o Papa con-vida a Roma3 os operadores no campo educa-tivo seja a nível disciplinar que de pesquisa, e as personalidades publicas que a nível mundial se preocupam pelo futuro das novas gerações, a fim encontrar soluções e aviar processos de transformação olhando com esperança ao fu-turo.

A África também é chamada a participar neste grande evento, contribuindo grandemen-te graças à sua tradição educativa milenar.

Como todas as pedagogias, também aque-la Áfricana se assenta sobre uma determinada antropologia cujos traços podemos encontrar na “Religião Tradicional Áfricana” (RTA), jun-to com a ética, religião, economia, sociologia, etc. Áfricanas. Por RTA de facto não se enten-de somente a religião mas todo o mundo so-cial-económico-histórico-cultural-espiritual da África, ou seja aquele patrimônio cultural que educou milhões de Áfricanos por muitas gerações até aos nossos dias. É muito signifi-cativo que o Papa ao lançar este Pacto Educa-tivo Global parta de um provérbio da sabedoria popular Áfricana, ou seja da uma ideia tipica-mente Áfricana de educação entendida como acção comunitária e não individual. Esta ideia será retomada mais tarde também pelo gran-1Papa Francisco, Mensagem do Papa Francisco para o lançamen-to do pacto educativo http://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2019/documents/papa-francesco_20190912_messaggio-patto-educativo.html2 Papa Francisco sobre os pontos fundamentais desta fraterni-dade humana remanda ao histórico documento assinado em Abu Dhabi em 4 de Fevereiro 2019 com o Grande Imam di Al-Azhar Ah-mad Al-Tayyeb, Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum, http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-fran-cesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html3Este evento inicialmente programado para 14 de Maio 2020 foi adiado devido à pandemia do coronavirus, para o 15 de Outubro de 2020.

de pedagogo brasileiro Paulo Freire “ninguém se educa sozinho. Os homens se educam em comunhão”4.

INsTRuMENTuM LAbORIs

Papa Francisco confiou à Congregação para a Educação a tarefa de organizar este encontro. Esta elaborou um Instrumentum Laboris para orientar a preparação e realização deste evento. O Documento está dividido em quatro pontos: O Projecto; o Contexto; a Visão; a Missão.

I. O PROJEcTO

1. Qual é o Projecto? (Introdução): O Papa Fran-cisco convoca, em Roma, os representantes da Terra para assinarem um compromisso comum, com o objetivo de reconstruir o pacto educativo global.

2. Em que consiste este pacto? (O pacto): Con-siste em estreitar uma aliança educativa que va-lorize a unicidade de cada um, graças a um com-promisso contínuo na formação. Isso pressupõe o reconhecimento do outro como outro e portanto o respeito da diversidade. (não se trata portanto de uma proposta de uma acção educativa nem de um programa educativo).

3. Qual é o objectivo? (A fraternidade original): Educar todos ao principio da fraternidade não entendido só como um dever moral, mas como identidade objetiva do gênero humano e de toda a criação (algo de ontológico). Para os crentes trata-se de reconhecer-se como filhos de um úni-co Pai e, portanto, irmãos chamados à recíproca benevolência e à reciproca custódia. 5

II. O cONTEXTO

Quais as características do contexto actual?

1. Ruptura da solidariedade intergeracional: falta de diálogo entre os velhos (que se tornam a maioria da população, pelo menos no ocidente)

4 Sobre o aspecto comunitário da educação veja: FREIRE P., Peda-gogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 200234

5Cfr. Declaração de Abu Dhabi sobre a Fraternidade Humana, o.c.

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e os jovens. A egolatria (idolatria do eu) que ca-racteriza o nosso tempo, trata com indiferença os velhos e não oferece mais espaço à vida nascen-te. Assim como gera fracturas entre ricos e pobre, masculino e feminino, economia e ética, homem e natureza. • No lugar da “egolatria” que tudo separa, deve-

mos educar à palavra “juntos” que tudo salva e realiza.

2. Tempos tecnológicos: Os tempos educativos (mais lentos e naturais) são diferentes dos tem-pos tecnológico (mais rápidos e complexos). Em relação às novas tecnologias devemos evitar a constante denúncia e a total absolvição. • Portanto educar hoje significa saber discernir

os aspectos positivos, e não temer a complexi-dade do real mas “habitar” esta complexidade e humanizá-la.

3. Desintegração psicológica (<<E-ducar>> a demanda): diante desta grande riqueza de estí-mulos que leva porém a uma “desintegração psi-cológica” e a uma pobreza de interioridade, é ne-cessário educar os jovens às grandes demandas sobre as grandes questões e os grandes desejos

que levem a uma serena relação consigo mesmo e à busca do transcendente.

Educar para despertar o sentido das coisas e da própria existência, e o sentido religioso nas no-vas gerações.

4. Fragmentação da identidade (Reconstruir a identidade): a nossa época está marcada pela cultura do descartável, que atinge especialmente os velhos (que não produzem mais) e as crianças (que ainda não produzem). Isso provoca uma rup-tura da identidade pois esquecemos a memória, as raízes, e nos fechamos ao futuro, à esperança. • Devemos educar os jovens para reconstruir a

identidade, ou seja reconstruir os laços quebra-dos com o passado e com o futuro, para uma identidade presente mais serena.

5. Crise ambiental como crise relacional: da degradação humana e social consegue a degra-dação ambiental, pois não há uma ecologia sem uma antropologia adequada, tudo esta interliga-do. Esta também, mais que moral, é uma questão ontológica e antropológica.• É necessário portanto promover uma educação

ecológica integral, porque o que está em jogo é

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21o futuro das novas gerações e do próprio pla-neta.

III. A vIsÃO

Este projecto exige uma nova visão, um modo novo de pensar que se fundamenta nestes pon-tos:

1. Valorizar as diferenças (Unidade na diferen-ça: um novo pensar): um grande obstáculo à fra-ternidade é o medo da diversidade. As diversida-des porem não são obstáculo à fraternidade mas o seu horizonte de possibilidade. No centro deve ser colocada a pessoa na sua dimensão necessa-riamente relacional, capaz de diálogo. • Para construir um novo humanismo precisa

educar a um novo pensamento capaz de unir diversidade e unidade, igualdade e liberdade, identidade e alteridade. Isso será possível atra-vés de uma educação a um diálogo amplo, onde o próximo não é considerado um inimigo ou um adversário a eliminar, mas um irmão que deve ser acolhido e respeitado na sua diversidade.

2. Colocar a relação educacional no centro (re-lação no centro): o que educa em modo frutífero não é tanto a preparação do professor ou a capa-cidade do aluno, mas a qualidade da relação esta-belecida entre eles. • em todo processo educacional portanto pre-

cisa colocar sempre no centro a pessoa que é relação, abrindo os olhos para a situação real da pobreza, do sofrimento, da exploração, da negação de possibilidades, em que se encontra boa parte da infância mundial.

3. Mudar o mundo (O mundo pode mudar): os eventos culturais, históricos e económicos que acontecem à nossa volta, por maiores que sejam, não devem ser interpretados como fatos incon-testáveis, determinados por leis absolutas. • O Papa convida assim a todos aqueles que têm

responsabilidades políticas, administrativas, reli-giosas e educacionais para ouvirem o clamor que nasce do fundo do coração de nossos jovens. É um grito de paz, de justiça, de fraternidade, de in-dignação, de responsabilidade e de compromisso de mudar, contra todos os frutos perversos gera-dos pela atual cultura do descartável.

Iv. A MIssÃO

1. Ter a coragem de colocar no centro a pes-soa humana (Educação e sociedade): Colocar no centro a pessoa e educa-la segundo a sã antro-pologia indicada, leva necessariamente a encon-trar outros modos de compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso, ou seja leva a uma revisão e renovação da sociedade. No compromisso educacional não são beneficiadas somente às crianças e jovens, mas à sociedade como um todo que dialoga para um objetivo co-mum: a construção uma “cidadania ecológica” que visa uma sociedade mais acolhedora e atenta ao cuidado do outro e da criação.

2. Ter a coragem de oferecer à educação as melhores energias (O amanhã exige o melhor de hoje): as forças mais propositivas e criativas hoje em dia estão colocadas ao serviço da produção e do mercado e as mentes mais brilhantes são co-locadas ao serviço de empresas lucrativas mais do que do bem comum. É necessária portanto uma radical inversão de rota investindo as me-lhores energias numa educação que transforme positivamente a sociedade.

3. Ter a coragem de formar pessoas disponí-veis para se colocarem a serviço da comunidade (Educar para servir, Educar é servir): O verdadei-ro serviço da educação é a educação ao serviço e como serviço (voluntariado, Service Learning, etc.). Esta pode ser uma metodologia na trans-missão e aquisição dos conhecimentos e habili-dades.

Antes de relermos estes quatro pontos à luz da ideia Áfricana de Educação, apresentamos al-gumas reflexões sobre a Educação e Pedagogia Áfricana.

EXIsTE uMA PEDAGOGIA ÁfricaNA?

Por muito tempo a Filosofia Áfricana ficou are-nada sobre a questão se existe ou não uma filo-sofia Áfricana, perdendo assim muito tempo em diatribes desgastantes (sobre a etnofilosofia, a crítica da etnofilosofia, a crítica da crítica, etc.) e muitas vezes estéreis. Hoje em dia a Filosofia Áfricana encontrou a sua dimensão e a sua iden-tidade, mesmo com algumas questões episte-

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22mológicas a serem ainda resolvidas. A Filosofia Áfricana contemporânea que teve notoriamente início com Placide Tempels,6 começou o seu ca-minho original com a elaboração de uma metodo-logia própria da Sage Philosophy de Oruka Ode-ra7 onde a sageza dos sábios locais foi tomada como ponto de referência para a elaboração de um pensamento Áfricano. A Teologia Áfricana, a nosso modo de ver, seguiu um percursos mais “saudável” em relação à Filosofia Áfricana, pois não desgastou muitas energias em diatribes so-bre a existência o não da Teologia Áfricana, mas tentou desde o início caminhos novos de reflexão originais.

No que diz respeito à Pedagogia Áfricana, não podemos ainda afirmar que exista uma Pedago-gia Áfricana no sentido estrito. Existem na diás-pora Áfricana percursos pedagógicos como o da Pedagogia Afrocentrada e da Pretagogia no Bra-sil, assim como da Áfrican-centered Pedagogy nos Estados Unidos, mas se trata de propostas com um intento mais prático-político do que teó-rico-pedagógico.

Em África, reflexões mais interessantes sobre a educação provém mais dos filósofos, políticos, religiosos8 do que dos mesmos pedagogos os quais parecem mais preocupados em adaptar fi-losofias estrangeiras à realidade Áfricana do que elaborar uma pesquisa teórico-pedagógica origi-nal. Entre as propostas mais estritamente teóri-co-pedagógicas Áfricanas, sublinhamos aquelas da Muntugogia e da Bantugogia que mesmo com diferentes perspectivas, ambas tentam construir uma pedagogia Áfricana partindo da ontologia bantu. 9

Se não podemos ainda afirmar que existe uma Pedagogia Áfricana, podemos afirmar que existe uma Educação Áfricana que, como a Sage Philo-

6TEMPELS P., La Philosophie Bantoue, Bruxelles, 1945 (tradução portuguesa: Filosofia Bantu, Paulinas, Maputo, 2019).7ODERA, H.O., Sage Philosophy. Indigenous Thinker and Modern Debate on Áfrican Philosophy, Leiden, E.J.Brill, 1990.8Somente para citar alguns nomes significativos: Molefi Kete Asante, Edward W. Blyden, James Áfricano Bede Horton, Julius Nyerere, o movimento contra o “Bantu Education Act”, José Cas-tiano, Severino Ngoenha, Brazão Mazula, Adriano Langa, Amaral Bernardo Amaral, Ezequiel Gwembe, etc.9Neste propósito veja os artigos de BONO E.L., Muntugogia. Pistas para uma Pedagogia Áfricana, em Revista GUTI Vol. II (em fase de publicação) e de BANZE D.J., A Ontologia Bantu como base para a construção da Bantugogia, em Amo logo existo. Conferência Internacional sobre o Personalismo, Editora UniSaF, Maxixe, 2019, pp. 159-166.

sophy para a Filosofia Áfricana, se torna o ponto de referência para a elaboração de uma original Pedagogia Áfricana. A salientar que esta educa-ção tradicional era muito antecedente à chegada dos colonos e da consequente introdução das es-colas europeias.

Uma reflexão teórico-pedagógica Áfricana deve portanto partir da Antropologia Áfricana, ou seja da ideia de homem Áfricano (Muntu) que é tal porque está em relação com os outros (fa-mília, comunidade...) e com Deus (antepassados, espíritos...). Esta reflexão encontra o seu suporte numa nova epistemologia (com uma nova ideia de razão e de linguagem) que justifica esta refle-xão como um discurso científico e não parenético ou folclórico. Em seguida, a ontologia de referên-cia será necessariamente aquela do Muntu (ou do Bantu) cuja ideia do ser é o da “Força Vital”: educar para tudo aquilo que promove a vida, ao passo que tudo o que enfraquece ou mata a vida é deseducativo. Os conteúdos a serem ensinados se encontram na axiologia Áfricana (entre eles o valor da hospitalidade, da escuta, do encontro, da alegria, da esperança etc.). E por fim a pedagogia Áfricana deverá saber actualizar as característi-cas da Educação Tradicional Áfricana (educação faseada, teocrática, homocêntrica, faseada, par-ticipativa, etc.)10 à realidade do terceiro milénio.

A cONTRIbuIÇÃO ÁfricaNA

À luz de quanto vimos em relação à Pedagogia Áfricana, retomamos alguns pontos cruciais do Instrumentum Laboris.

I. O Projecto

Logo à partida foi dito claramente que o Pacto Educativo Global não quer indicar nenhuma acção educativa e nenhum programa mas somente es-timular e renovar o empenho de todos para com a educação. Portanto a África não deve interpretar este pacto global como uma surreptícia tentati-va de nova colonização depois da luta, não ainda acabada, pelo deslinking epistemológico e con-ceptual em relação a educação ocidental,11 pois se trata simplesmente de um convite a renovar 10Cfr. BONO E.L., o.c.11A esta temática é reservada boa parte da reflexão de J.P.Cas-tiano, em CASTIANO J.P., Referenciais da Filosofia Áfricana. Em busca da intersubjectivação, Ndjira, Maputo, 2010.

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por parte de todos os responsáveis o seu com-promisso com a educação, e o apelo vai especial-mente aos governos para que invistam mais ener-gias nas políticas educativas. Cada nação tem os seus projectos educativos e conteúdos próprios a propor aos seus concidadãos, no respeito dos valores e direitos universais dos homens. A Áfri-ca como vimos acima, tem uma tradição milenar educativa e portanto nãos somente encontra em si os conteúdos fundamentais a serem transmiti-dos aos seus povos mas pode também tornar-se fonte de inspiração para outros países e culturas. 12

Na África existe desde sempre um pacto edu-cativo entre os membros da comunidade. Na al-deia Áfricana todos os homens e todas as mulhe-res são pais e mães das crianças que aí vivem e todos têm a tarefa de educar e chamar atenção de qualquer crianças, mesmo que não sejam suas. Cada homem e cada mulher vêm chamados pelas crianças Áfricanas de papá e de mamã. Conforme o provérbio Áfricano citado, é a aldeia inteira que educa a criança e não somente os seus pais ou os seus professores.

Também a ideia de fraternidade universal so-bre a qual insiste muito Papa Francisco, é um va-lor ontológico (e não moral) que pertence desde sempre aos povos e culturas da África condensa-do no aforismo I am because we are, and since we are, therefore I am. 13

Este Projecto portanto não foge daquilo que a África encarna desde sempre na sua tradição a respeito da educação.

II. O cONTEXTO

1. Solidariedade intergeracional: na África há um conjunto de provérbios que indicam como na sabedoria popular o ancião é tido em grande con-sideração. Ex. “Quando morre um ancião é uma biblioteca que queimou”; “O jovem caminha mais rápido de um velho, mas é o velho que conhece o caminho”, etc. Mesmo assim, nos últimos tem-pos, também na África se introduziu uma ruptura

12Como por exemplo inspirou a reflexão pedagógica de Paolo Freire. Pensamos que a experiência feita por Paulo Freire na Áfri-ca (lusófona) foi mais de aprendizagem para ele do que de ensino, cfr. FREIRE, P.; GUIMARÃES, A África ensinando a gente/África teaching people, Paz e Terra, São Paulo, 2003.13 Este é o famoso aforismo de John Mbiti contido na sua obra: MBITI J., Áfrican Religions and Philosophy, 1969

geracional. Os velhos se queixam de que os jo-vens já não querem saber da tradição; os filhos se revolta contra os pais acusando-os as vezes de feiticeira, etc. Apesar do individualismo, a egola-tria, o capitalismo, a cultura Áfricana fica porém ainda bem ancorada nos seus valores tradicionais da comunidade, onde o “juntos” vem antes do “eu” (se trata de uma opção ontológica originária, antes de uma opção moral).

2. Tempos tecnológicos: nos últimos 20 anos assistimos na África a uma grande difusão das novas tecnologias. A rede telefónica móvel teve um grande sucesso porque permitiu alcançar com rapidez e a custos menores distâncias enormes quais impossíveis de alcançar através da telefo-nia fixa. Ligada à telefonia móvel teve uma grande expansão também a rede internet que permite à África de coligar-se ao resto do mundo. No cam-po da educação a revolução digital para a África é uma grande ocasião para conectar as suas uni-versidades com os centros de pesquisa e biblio-tecas digitais do mundo inteiro. Infelizmente esta grande oportunidade não está ainda sendo apro-veitada como deveria, devido não só a políticas educativas que ainda não compreenderam este grande potencial, mas também devido aos mes-mos docentes e administradores universitários que não sendo expertos na utilização das novas tecnologias não estão a desfrutar desta grande chance.14 Somente agora, devido à emergência do coronavirus, se redescobriu a importância da utilização das tecnologias para o processo de en-sino e aprendizagem.

Na África há ainda uma serie de dificuldades a serem superadas para que a revolução digi-tal possa transformar as universidades: a falta de uma rede internet mais potente e acessível a todos com preços baixos; disponibilidade de computadores e tablets a preços adequados à realidade económica Áfricana; formação dos do-centes na utilização das plataformas digitais; a

14Em Moçambique por exemplo, nos anos passados, o Magnifi-co Reitor da Universidade Pedagógica Prof. Rogério Uthui tinha lançado um programa de distribuição de milhares de tablets aos estudantes do Ensino a Distância da sua universidade. O pro-grama teve um sucesso somente parcial pois varias dificuldades impediram o alcance dos objectivos: redes de Internet precárias; docentes não somente não práticos na utilização destas plata-formas mas também pouco confiantes na eficácia desta nova metodologia; estudantes não suficientemente consciencializados; etc.

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24aprendizagem da língua inglesa nos países não anglófonos, sendo a maioria das informações on-line nesta língua, etc. Precisa também evitar o fenômeno do digital divide causado não só pela falta de infraestruturas e limitações económicas, mas também pelo analfabetismo informático de que falamos acima. Deste modo a revolução di-gital, que deveria tornar-se ocasião de desenvol-vimento de todos os povos, se tornaria mais um motivo de divisão e discriminação entre os povos e dentro os povos (digital apartheid).

A África, depois de ter perdido o comboio da industrialização não pode permitir-se de perder também o comboio da digitalização, se não vai correr o risco de ficar a pé para sempre e ser cor-tada fora do resto do mundo.

3. Desintegração psicológicaAs crianças Áfricanas quando nascem (espe-

cialmente no passado) são carregadas por dois anos na costas da mãe num contacto físico pele a pele. E na infância elas vem educadas dentro de uma concepção holística do mundo, numa ordem natural salvaguardada pela tradição. A Religião Tradicional Áfricana imprime na mente e no co-ração dos Áfricanos a ideia que tudo esta interli-gado: o homem, com os outros, com a divindade, com a natureza, com os vivos e com os mortos. O filosofo-teólogo John Mbiti chega a definir o ho-mem Áfricano ontologicamente religioso. Mesmo que em alguns sectores já está infiltrando-se a secularização dos costumes, a maioria dos Áfri-canos (também as novas gerações) ainda estão ligados aos valores tradicionais.

4. Fragmentação da IdentidadeUma das questões recorrentes no debate Áfri-

cano dos últimos decênios dizem respeito à re-lação entre a tradição e a modernidade. Foram celebrados também seminários e conferencias sobre a modernização das tradições. A nova iden-tidade a ser reconstruída deve saber conciliar a memoria (o passado, os velhos, as raízes) com a utopia (o futuro, os jovens, as esperanças). Como dito acima, mesmo que a vida moderna introduziu mudanças significativas na cultura tradicional, a identidade Áfricana esta ainda muito definida e defendida. Quando a identidade, a “ordem” da co-munidade vem perturbada por acontecimentos desestabilizadores, esta vem restaurada através

de rituais prescritos.15 Uma questão recorrente no debate actual é como ser autenticamente Áfri-cano no terceiro milênio?16

5. Crise ambiental como crise relacionalOs Áfricanos sempre tiveram uma relação es-

trita com a natureza pois dela depende as suas vidas (alimentação, água, sol, animais, oceanos e rios...) e a sua morte (malária, inundações, ci-clones, secas, etc...). A África é um maravilhoso e imenso continente verde com diferentes ecos-sistemas, flora e fauna únicas, mas muitas vezes este património é atacado pela exploração selva-gem das sua riquezas naturais. Além de ecologis-mos românticos que consideram a África como o jardim do Eden na terra, e além de vitimismos fáceis que consideram a África vítima de explo-ração externas da quail não se sabe defender, a África também precisa reforçar a educação eco-lógica integral para recuperar a sua relação sa-grada com a natureza e consequentemente a sua relação com a humanidade.

III. A vIsÃO

A nova visão, o novo modo de pensar proposto pelo Instrumentum Laboris, consiste em colocar no centro a pessoa na sua dimensão necessaria-mente relacional, capaz de diálogo.

Colocar no centro a pessoa, não significa colo-car no centro o individuo, pois a pessoa é tal se e somente se in relação com os outros, é eterorre-ferencial, aos passo que o indivíduo está desvin-culado de qualquer relação com os outro, é autor-referencial.

Notoriamente a cultura Áfricana coloca no centro a comunidade, a família, como sublinham o ubuntuismo e o bantuismo, mas é errado pen-sar que estas correntes excluem a importância da pessoa. De facto o famoso aforismo acima citado I am because we are, since we are, therefore I am começa com a afirmação do eu “I am” o qual é eu porque em relação com os outros “We are”. Tam-bém o Muntuismo vai nesta direção, pois o Muntu (pessoa) é tal se e somente se está em relação

15Cfr. BONO E., Muntuismo. A ideia de pessoa na filosofia Áfricana contemporânea, Paulinas, Maputo, 20152, pp.21-22.16Cfr. BONO E.L., A tradição Áfricana como utopia crítica e empen-ho para uma nova racionalidade. O horizonte existencial do Muntu face ao terceiro milênio, comunicação na Conferência Interna-cional Alberto Viegas “Modernizando as tradições”, UP Nampula, 2015.

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com os outros (comunidade, família, etc.) e com Deus (antepassados, espíritos, etc.). Daqui o afo-rismo do Muntuismo: I am because I believe and love : sem o amor e a relação com Deus e com a comunidade não temos o Muntu (pessoa) mas somente um indivíduo.17

Por isso colocar no centro a pessoa significa colocar no centro a relação. Uma das maiores (se não a maior) características marcantes da perso-nalidade Áfricana é o valor da hospitalidade.18 A acolhida do outro revela uma visão do outro con-siderado não inimigo, mas próximo para acolher e socorrer. Desde a criancice os Áfricanos vem educados pelos pais a abrir a porta ao estrangei-ro, a acolher o hospede oferecendo água e comi-da e o que for necessário. Em outros cantos do mundo, ao contrário, as crianças vem educadas a não abrir a porta a ninguém, e não conversar com quem não se conhece, a desconfiar do outro. São visões diferentes. Por isso muitos Áfricanos ficam apavorados quando vão em outros países e nin-guém abrem a porta a eles e são rejeitados.

A África poderá portanto dar a sua grande contribuição na mudança desta visão e ajudar a pensar diferentemente, vendo o outro não como inimigo o adversário a ser combatido, mas como irmão, como um ser humano de igual dignidade.

Iv. A MIssÃO

A África está pronta para acatar este desafio 17BONO E., o.c., p.19718 Valor que sintetizamos na famosa expressão do povo guitonga que deu depois o nome a sua terra: Bela khu nyumbani, Entra em casa! Cfr. Idem, p.207 e também a nota 474.

lançado pelo Papa e terá a coragem de colocar no centro a pessoa, de investir as melhores energias na educação e educar para o espírito de serviço.

O grande desafio para a África é melhorar sem-pre mais a qualidade da educação pois sabe que a sua grande riqueza é a juventude, e investir na ju-ventude é investir no desenvolvimento e no futuro do próprio país. Hoje em dia não é mais suficien-te instruir para saber ler e escrever, mas precisa educar para desenvolver a capacidade crítica, a utilização das novas tecnologias, a comunicação e cooperação, a criatividade, o empreendedoris-mo, etc. Portanto a formação dos docentes é a prioridade das prioridades pois da qualidade dos formadores depende a qualidade dos formandos.

A justa preocupação inicial para com a massifi-cação do ensino deve evoluir agora na preocupa-ção para a qualificação do mesmo.

A ALDEIA EDucATIvA GLObAL cOM uM ROsTO ÁfricaNO

A educação de qualidade é um bem que deve ser acessível a todos, assim como uma vacina contra um vírus deve ser acessível a todos e não satisfazer a ganância de uma nação ou de uma casa farmacêutica.

Uma educação de qualidade com custos aces-síveis a todos é possível. A África não tem recur-sos para construir grandes infraestruturas come campus imensos ou bibliotecas mastodônticas com milhões de livros, mas pode construir edifí-cios mais modestos mas funcionais e investir nas bibliotecas digitais, com gastos menores e com

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26resultados maiores pois as pesquisas feitas atra-vés de recursos digitais são mais rápidas, abran-gentes e mais fáceis a serem partilhadas.

Se os autores de manuais e obras cientificas colocassem a disposição gratuitamente on-line as suas obras, as suas pesquisas... se todas as revistas científicas fossem a disposição de todos assim que os pesquisadores com poucos recur-sos possam beneficiar e se formar neste inter-cambio.

O mundo precisa de homens grandes e gene-rosos como Jonas Salk e Albert Bruce Sabin que nunca patentearam as suas descobertas, bene-ficiando assim milhões de pessoas no mundo; ou como o jovem hebreu americano de 17 anos Avi Schiffman que para não especular sobre a tragédia do coronavirus, nestes dias renunciou a um compenso de 8 milhões de dólares. Homens como estes nos fazem acreditar na humanidade.

A ideia de educação transmitidas pelas gran-des universidades do mundo onde os estudantes gastam dezenas e dezenas de milhares de dó-lares para a sua formação, é de que a educação de qualidade seja algo de elitário, somente para

poucos, alimentando assim a ideia de que as dife-renças no mundo são algo de natural: os ricos, os privilegiados podem tudo e os pobres não podem nada. A educação de qualidade em vez, pode ser para todos e não só para uma minoria.

A África ensina ao mundo que os bens que temos a disposição devem ser partilhados com todos, que não podemos ser felizes sozinhos ou beneficiar de algo sem ajudar os outros. A moral cristã também ensina que quem tem, tem para partilhar.

Como numa aldeia Áfricana, todos os homens e as mulheres sabem que devem cuidar de todas as crianças da aldeia, mesmo dos filhos dos ou-tros, assim todos os homens e mulheres da terra deveriam ter a mesma preocupação para com to-das as crianças e jovens do mundo inteiro. A maior contribuição que a África poderá dar na constru-ção da Aldeia Educativa Global será de transmitir ao mundo o maior principio educativo da própria tradição: cada homem é pai e cada mulher é mãe de todas as crianças da terra. Deste modo, a Al-deia Educativa Global terá um rosto Áfricano.