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Medicina Interna Hoje 1 MI ANALISA O FUTURO DOS HOSPITAIS DANIEL DE MATOS Os Internistas não vêm nos jornais, não fazem coisas aparatosas, apenas fazem tudo o resto 16.º CONGRESSO Vilamoura recebe 1200 Internistas Março de 2010 • Ano V • Nº 15 • Trimestral Medicina Interna Hoje

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Medicina Interna Hoje 1

MI analIsa o futuro

dos hospItaIs

danIEl dE Matosos Internistas não vêm nos jornais, não fazem coisas aparatosas, apenas fazem tudo o resto

16.º CongrEssoVilamoura recebe

1200 Internistas

Março de 2010 • Ano V • Nº 15 • Trimestral

Medicina InternaHoje

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de portas abertas

A vez dos hospitaisO 16.º Congresso Nacional de Me-dicina Interna realiza-se de 26 a 29 de Maio em Vilamoura. A reunião magna dos Internistas acontece no momento em que se inicia, por deci-são do Ministério da Saúde, o debate sobre a reforma dos hospitais, da sua organização e funcionamento inter-no. Esta reformulação irá completar o ciclo de reformas em curso que se iniciou com a reestruturação dos cuidados de saúde primários e com o lançamento da rede de cuidados paliativos.Os especialistas em Medicina Inter-na serão, necessariamente, a peça fundamental nesta reforma e o con-gresso vai reflectir o seu interesse e motivação para que deste processo nasça uma rede hospitalar que dê resposta às necessidades do sistema de Saúde.No fim deste ciclo de reformas acre-ditamos que os hospitais vão ser re-colocados com as unidades charneira

ponto por ponto

Faustino Ferreira

4 vox vopPapel do Núcleo de Estudos

sobre Gestão da Doença CrónicaAs patologias crónicas, que requerem

uma gestão contínua ao longo de anos, contribuem com mais de 50 por cento do

peso global das doenças

5 olho clínico16.º Congresso Nacional

de Medicina InternaMais de 1200 participantes

esperados em Vilamoura

6 raio xO futuro dos hospitais visto

pela Medicina Interna

8 alta vozA Medicina Interna na voz de quem a pratica

9 do lado de cáPreconceitos internos

10 uma palavra a dizerO médico que viu o mundo de cima

Daniel de Matos, o “Physico da Corte”

16 primeiros passosConsidero um privilégio

poder ser Internista

17 revelaçõesSaber o máximo em Medicina

18 depois da hora

do Serviço Nacional de Saúde. É nes-se sentido que o congresso vai dar o necessário destaque a assuntos como os “Novos modelos de organização hospitalar”, “A Medicina Interna no sé-culo XXI. Que formas de exercício?”, “O futuro da Medicina Interna na Eu-ropa”, bem como a temas científicos de actualidade, nomeadamente às patologias que afectam a popula-ção, como a diabetes, hipertensão, doenças raras, esteato-hepatite e às doenças vascular cerebrais, áreas em que a intervenção da Medicina Interna é fundamental - chamamos aqui a atenção para o artigo de An-tónio Martins Baptista, nesta edição de MIH, “O futuro dos hospitais visto pela Medicina Interna”.A reorganização da assistência clíni-ca hospitalar é urgente e só pode ser feita com a Medicina Interna. Esta é mais uma razão para que todos es-tejamos em Vilamoura, prontos para contribuir para esta reforma.

Os especialistas em Medicina Interna serão, necessariamente, a peça fundamental nesta reforma e o congresso vai reflectir o seu interesse e motivação para que deste processo nasça uma rede hospitalar que dê resposta às necessidades do sistema de Saúde.

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Papel do Núcleo de Estudos sobre Gestão da Doença CrónicaPor João Guerra, Núcleo de Estudos sobre Gestão da Doença Crónica

As patologias crónicas, que requerem uma gestão contínua ao longo de anos,

contribuem com mais de 50 por cento do peso global

das doenças. À medida que a prevalência destas

doenças aumenta, é maior a atenção dispensada pelos

sistemas de Saúde para identificarem estratégias

que melhorem a sua abordagem.

No processo de resposta dos sistemas de Saúde, a Gestão da Doença emergiu como uma abordagem holística e com-preensiva dos cuidados prestados aos doentes crónicos. Tal abordagem enfa-tiza as intervenções com alto potencial de manutenção da independência e do melhor estado de saúde possível dos doentes crónicos, através da prevenção, detecção e gestão precoces das com-plicações e exacerbações, os principais “cost-drivers” destas doenças. A Gestão da Doença é encarada como uma das soluções efectivas, com uma

voxpop

elevada relação custo-benefício. A evi-dência sugere que, em oposição às in-tervenções isoladas e descoordenadas, os cuidados planeados, proactivos e coordenados podem conduzir a uma melhor qualidade de vida e à redução de cuidados supérfluos.No contexto nacional (e também euro-peu) é notório que a Medicina Interna (MI) não tem evoluído no sentido de adaptar a praxis às alterações sócio-de-mográficas e do padrão epidemiológi-co das doenças. É também consensual que a MI não encontrou ainda a nova “identidade corporativa” enquanto dis-ciplina moderna na prestação de cui-dados de saúde integrados e coorde-nados, na tomada de decisão, na gestão da doença, na epidemiologia clínica e como especialidade médica para do-entes complexos. O traço distintivo da MI é a mestria nos cuidados do doente adulto, especialmente dos que têm do-enças complexas e crónicas. Daí que o Internista moderno, no relacionamento contínuo com o doente crónico, deva assumir-se como um parceiro electivo.Por outro lado, a análise do contexto dos serviços de saúde em mudança fez emergir a necessidade da revisão do conceito de cuidados agudos, porque a proporção maioritária do trabalho nas enfermarias de MI recai, actualmente, sobre as agudizações recorrentes das

doenças crónicas. Este cenário, e, por extensão, o grande tema da gestão da doença crónica, deve ser encarado pela SPMI como um desafio e como uma excelente oportunidade de recuperar a “identidade corporativa”, posicionando-se, assim, na vanguarda da apologia de valores fundamentais da gestão médica moderna, centrada na séria problemá-tica dos aspectos sociais das doenças crónicas.De igual modo, para os casos de doença crónica com co-morbilidades que envol-vem várias especialidades, a MI é a disci-plina que as supervisiona e coordena. A nível europeu há o reconhecimento explícito de que, na perspectiva de um funcionamento eficiente dos Sistemas de Saúde, a gestão de doentes crónicos complexos é uma competência nucle-ar da MI, que transforma os Internistas numa peça-chave para a reorganização das políticas de Gestão da Doença Cró-nica na maioria dos Sistemas de Saúde. Assim, a MI deve assumir o papel de supervisão, ligação e coordenação do fluxo de doentes entre os diferentes contextos dos cuidados. Faz todo o sentido a criação do Núcleo de Gestão da Doença Crónica no âmbito das ac-tividades nucleares da SPMI para que, deste modo, possa contribuir para uma melhoria efectiva da qualidade e dos re-sultados clínicos destes doentes.

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Mais de 1200 participantes esperados em Vilamoura

Estão já confirmados todos os orado-res, nacionais e internacionais, cerca de meia centena no total, numa reu-nião em que a Indústria Farmacêutica marcará presença com oito simpósios satélite.Terão também lugar oito cursos pré-congresso, a 24 e 25 de Maio, sobre temas tão diversos como o suporte avançado de vida (SAV), as urgências no idoso, gestão, bioestatística, investi-gação clínica, ventilação invasiva e não invasiva e Eco FAST.Segundo António Martins Baptista, presidente do congresso, o principal objectivo deste evento é a “definição da Medicina Interna como interlocutor principal da reorganização da assistên-cia clínica hospitalar que urge realizar”.

O 16.º Congresso Nacional de Medicina Interna, que se realiza em Vilamoura, de 26 a 29 de Maio, aguarda este ano a par-ticipação de mais de 1200 congressistas para debater temas ligados ao exercício daquela que é considerada “a mãe de todas as especialidades” em Medicina.Nesta 16.ª edição do congresso, o des-taque irá para assuntos como os “Novos modelos de organização hospitalar”, “A Medicina Interna no século XXI. Que for-mas de exercício?”, “O futuro da Medici-na Interna na Europa” e para os vários te-mas científicos. Entre eles, destacam-se a abordagem e reflexão de determina-das patologias que afectam fortemente a população, como a diabetes, hiper-tensão, doenças raras, esteato-hepatite e doença vascular cerebral.

O principal objectivo deste evento é a “definição da Medicina Interna como interlocutor principal da reorganização da assistência clínica hospitalar que urge realizar”.

olho clínico

16.º Congresso Nacional de Medicina Interna

Para mais informações consulte o site do congresso em http://www.spmi.pt/16congresso/

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6 Medicina Interna Hoje

O futuro dos hospitais visto pela Medicina Interna

diagnóstico e terapêutica, com necessi-dade de treino exaustivo que as torna-vam inacessíveis ao não iniciado. Como referi, todo este processo foi extrema-mente benéfico para a melhoria global dos cuidados de saúde.Contudo, o modo como foram defi-nidos os financiamentos da Saúde no mundo ocidental acabou por favorecer desequilibradamente todas as inova-ções técnicas em desprimor da nobre arte milenar da Medicina de cabecei-ra. Este facto propiciou a migração da maioria dos médicos das especialida-des generalistas para as especializadas e super-especializadas. E é aqui que se começaram a verificar défices previa-mente inexistentes.

O exercício da Medicina tem vindo a sofrer progressivas alterações ao longo da última centena de anos. Estas modificações foram cruciais para a melhoria dos cuidados médicos prestados à população e têm sido as principais responsáveis pela contínua melhoria dos indicadores assistenciais.

O crescimento do conhecimento cien-tífico foi de tal modo galopante que deixou de ser possível existirem apenas os físicos e os barbeiros da Idade Média, ou mais posteriormente os médicos e os cirurgiões do Pós-Renascimento. O pró-prio aparecimento da Medicina Interna, em 1982, em Wiesbaden, foi função da progressiva cientificação que já então se operava com o advento da patologia e da bacteriologia, entre outras disciplinas.Assistiu-se, assim, ao aparecimento de múltiplas especialidades médicas e ci-rúrgicas ao longo de todo o século XX. Cada médico dominava apenas uma parte do conhecimento, permitindo-lhe melhor domínio da mesma. Além disso, muitas delas desenvolviam técnicas de

Se compararmos o Sistema Hospitalar a uma estrela, o fenómeno assemelha-se a um crescimento desmesurado dos raios da mesma (sub-especialistas), à custa de um esvaziamento progressivo do centro do astro (generalistas). Como os doentes têm que circular dentro deste, são muitas vezes obrigados a saltar de raio para raio, por inexistên-cia de uma via generalista no centro, com a consequente desorientação e aumento dos gastos. A evidência deste desequilíbrio é relativamente recente e motivou o reaparecimento de algumas especialidades generalistas, nos países em que a Medicina Interna pura se tinha praticamente extinguido. Os hospitalis-tas nos EUA e a Medicina de Agudos no Reino Unido são bons exemplos deste fenómeno. Mesmo algumas activida-des médicas mais sofisticadas, como o intensivismo, dão mostras de uma reaproximação ao generalismo da Me-dicina Interna. É portanto fundamental, neste contexto, haver uma política con-tida na criação de novas especialidades médicas, de modo a não esvaziar mais a Medicina Interna e rever o sistema de fi-

Por António Martins Baptista, vice-presidente da SPMI

raio x

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nanciamento da Saúde, baseado ainda muito na valorização do acto, avançan-do talvez para um sistema de financia-mento por resultados globais de saúde, numa determinada população.Há, contudo, uma evolução sensível no papel dos hospitais, que é irreversível e pode ser usada em benefício simulta-neamente da redução dos custos e da qualidade assistencial.

1. a Medicina deixou de ser predomi-nantemente curativa para ser maiori-tariamente preventiva.Os médicos do século XXI vão despen-der mais tempo a prevenir doenças do que a curá-las e, se este papel estará centrado nos médicos de ambulatório, a verdade é que a nível hospitalar esta tarefa será seguramente entregue ao Internista do doente.Neste domínio, vale a pena referir que a prevenção não será só da doença, mas também, no que ao hospital diz respeito, cada vez mais da descompen-sação da doença crónica. Começa a ser premente a criação de estruturas de se-guimento dos doentes crónicos, a nível hospitalar, muito mais expeditas do que as actuais consultas externas. Apetre-chadas de meios ao nível da urgência externa (análises, imagiologia, terapêu-tica, internamento curto) e dotadas de médicos a tempo inteiro, embora defendamos que deverão ser rotativos com a enfermaria e o serviço de urgên-cia externa. Apesar da presença de um médico a tempo inteiro, é crucial que cada doente conheça o seu médico In-ternista, o que mais facilmente poderá resolver os seus problemas com conhe-cimento de causa. Estes doentes segu-ramente descompensarão menos, com evidente alívio de parte significativa da afluência aos serviços de urgência.A prevenção a nível hospitalar passará ainda pelo zelo da segurança do do-ente/utente, quer ao nível da redução

drástica dos índices de infecção hospi-talar, quer evitando o erro médico, que tantas vezes é propiciado por erros or-ganizacionais e que o Internista, como supervisor do plano de cuidados do doente, tem obrigação de optimizar continuamente.

2. a enfermaria deverá ser um local onde os doentes terão estada cada vez mais curta. para tal é fundamental:a) Médicos a tempo inteiro.b) Boa articulação com os Cuidados de

Saúde Primários (informática?).c) Rápida resposta dos meios comple-

mentares de diagnóstico.d) Fácil referenciação para as mais di-

versas consultas hospitalares e de ambulatório.

e) Hospital de dia onde os doentes am-bulatórios possam concluir os trata-mentos e determinados exames de diagnóstico, após a estabilização.

f) Medicina domiciliária, com o mes-mo objectivo da anterior, para doen-tes não ambulatórios.

g) Drenagem expedita de doentes com dificuldades sociais.

Este conjunto de medidas proporcio-nará demoras médias de internamen-to entre três e cinco dias, com a con-sequente diminuição do número de camas necessárias em cada hospital e respectivos custos, permitindo paga-rem-se a si próprias e financiarem ainda outros cuidados.

3. desaparecimento da organização das camas hospitalares em serviços.Cada vez mais sentimos a necessidade de haver uma melhor gestão das camas hospitalares, onde as diferentes demo-ras médias de internamento provocam disparidades gritantes na “velocidade” de funcionamento dos diversos servi-ços. A gestão das camas deverá, assim, ser “departamentada”, estando todas as camas ao serviço de todos os doentes.

4. Especialização de tarefas médicas.Todos sabemos que muitas sub-espe-cialidades médicas e cirúrgicas estão assoberbadas de tarefas, que só os próprios têm treino para executar. Este facto ocasiona, muitas vezes, menor atenção aos doentes internados na en-fermaria. Para além do desperdício de meios, esta menor atenção aos doen-tes causa por vezes o constrangimen-to que, quando a Medicina Interna é chamada à cabeceira dos doentes de outros serviços, por descompensa-ção de qualquer patologia que esca-pa ao âmbito da sub-especialidade em causa, a situação está um pouco descontrolada, quando não é tarde de mais. O aumento da idade dos do-entes internados, com a consequente pluripatologia associada, faz com que este cenário tenha vindo a aumentar de frequência.Os doentes das enfermarias ficarão assim ao cuidado dos Internistas, re-cebendo todo o apoio necessário por parte das sub-especialidades médi-cas e cirúrgicas, quer por chamada, quer em rápidas visitas formais, para discussão bi ou trissemanal de cada doente.

5. urgências gerais com turnos de 12 horas.O aumento do número de Internistas por hospital, que as várias tarefas atrás descritas necessariamente implicam, associado à diminuição de afluência pela boa gestão da doença crónica (de preferência com a ajuda de uma melhor resposta dos cuidados de saú-de primários), permitirá o regresso às equipas de “Banco” com turnos de 12 horas, libertando os Internistas para um melhor cumprimento das múlti-plas tarefas que os aguardam no hos-pital do futuro. Assim, haja coragem política para im-plementar este modelo.

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8 Medicina Interna Hoje

alta voz

A Medicina Interna na voz de quem a praticaPor Luís Dutschmann, chefe de Serviço de Medicina e director do Departamento de Medicina do Hospital Fernando da Fonseca

Os casos clínicos que vamos apresentar são

uma curta demonstração da importância do

especialista de Medicina Interna na sua visão

globalizante da Medicina, permitindo desse modo

ser o grande suporte das estruturas hospitalares

do país.

PRIMEIRO CASO

Doente de 75 anos, sem sintomas ante-riores, cerca de 12 meses antes iniciou palpitações esporádicas. Dois meses an-tes, referia dispneia paroxístíca que lhe surgia durante o repouso e que aliviava com a nitroglicerina sublingual. Foi inter-nada com o diagnóstico de insuficiência cardíaca. Notei uma senhora magra, dei-tada sem almofada, assintomática e sem edemas periféricos. O exame objectivo foi inteiramente negativo. O ECG, Rx tó-rax e gasometria arterial normais. Insisti na história clínica e a doente foi veemen-te, persistindo nas suas queixas. Realizou-se, nesse momento, um ecocardiograma que revelou um mixoma da aurícula es-querda. A doente foi transferida para o Serviço de Cirurgia Cardíaca, tendo sido operada com sucesso.

SEGUNDO CASO

Técnica de 49 anos, sempre saudável. Iniciou uns meses antes anovulatórios por motivo de um segundo casamento recente. Em Julho de 2004 tem queixas dispépticas e realizou uma endoscopia alta que foi irrelevante, no entanto uma ecografia abdominal detectou ascite periesplénica que não foi valorizada. Negava hábitos alcoólicos. Recorreu ao serviço de Urgência do Hospital por as-cite sob tensão. Tratava-se de um tran-sudado, estéril, negativo para células neoplásicas. A ascite era refractária à terapêutica. Além da ascite, o exame ob-jectivo revelou hipertrofia das parótidas, secura da pele e mucosas labiais e xerof-talmia – o teste de Shirmer foi positivo. A TC e ecografia abdominal mostraram hepatomegalia heterogénea; o labora-tório revelou aumento significativo das aminotransferases, fosfatase alcalina e bilirrubina total. Na investigação sobre a natureza da hepatopatia, os marcado-res da hepatite A, B e C foram negativos, assim como os anticorpos para cirrose biliar primária e hepatite auto-imune. No entanto, os ANA, anti DNAds, SSA, anti-corpos antitiroideus, anticardiolipina, anticoagulante lúpico e Coomb’s foram positivos. A biopsia hepática, realizada com extrema dificuldade revelou Sin-droma de Budd-Chiari. Uma TC posterior patenteou ausência de circulação das supra-hepáticas. O quadro clínico dete-riorou-se rapidamente, a doente entrou em coma hepático. Foi transferida para

uma unidade de transplantes tendo sido transplantada.

TERCEIRO CASO

Publicitária de 26 anos, internada por pneumonia. Sem antecedentes médi-cos ou psiquiátricos, que 29 meses antes teve um parto de termo, distócico por fórceps. Após o parto instalou-se depres-são, acompanhada de anorexia, emagre-cimento e só menstruou uma vez desde então. O quadro clínico e psiquiátrico manteve-se ao longo desses 29 meses. Entretanto foi acompanhada por diver-sos médicos, nomeadamente ginecolo-gista, endocrinologista e psiquiatra sem que fosse estabelecido um diagnóstico e se conseguisse reverter a evolução do quadro clínico. Com o agravamento dos últimos quatro meses foi internada numa instituição psiquiátrica a fazer Amitriptilina, Cloropromazina, Broma-zepan. Na urgência, além dos sinais de pneumonia, encontrava-se desidratada, com mau estado geral e emagrecimento acentuado. Perante esta história clínica, fornecida pelo marido, foi posta a hipó-tese de Síndroma de Sheehan e a par da resolução terapêutica da pneumonia, fez-se a investigação laboratorial e a compensação hormonal. O laboratório confirmou panhipopituitarismo e a TC revelou sela turca com parênquima hi-pofisário vestigial. Os Internistas do ser-viço de urgência formularam a hipótese diagnóstica e restituíram a doente à sua vida profissional e familiar.

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O internato médico oferecia, este ano, mais de 1000 vagas. Por preencher fica-ram 20 – 11 das quais em áreas essen-ciais para o futuro do Serviço Nacional de Saúde. Há sempre duas formas de olhar para as coisas: para uns, a percen-tagem é pequena e falam, por isso, num copo meio cheio; para outros, o número, por mais irrisório que pareça, deixou o copo meio vazio e veio demonstrar, uma vez mais, que preconceitos internos dis-seminados levam a que, à priori, certas especialidades sejam excluídas.Saúde Pública, Anatomia Patológica, Medicina Geral e Familiar, Patologia Clí-nica e Radioterapia foram as deste ano. Mas o problema é muito mais alargado. E, mesmo nas vagas ocupadas, entre pares, há uma postura de interrogação constante sobre outras áreas como a Medicina Interna. Ao mesmo tempo que a sociedade caminha em muitos outros sectores de actividade para “especia-listas em generalidades”, com todos os problemas que também daí podem ad-vir, na Medicina insiste-se de forma cega em segmentar o corpo humano e em esquecer o todo.E o todo é o doente. Alguém que, quan-

do procura uma unidade de saúde, não merece que os profissionais que ali tra-balham se rotulem como “de primeira” ou “de segunda”. Alguém para quem a figura do Internista é fundamental no diagnóstico precoce de muitas pato-logias e – mais importante ainda – na prevenção, que deverá ser a principal aposta da saúde no século XXI, já que é a única que permite reduzir custos huma-nos, sociais e económicos. Uma das soluções passa por valorizar economicamente os escassos recursos humanos. Mas na Medicina Interna o di-nheiro não é o principal problema. Pro-lifera uma desorganização nos serviços e os profissionais sentem-se “pensos rá-pidos ou remendos”. Falta uma reforma profunda e clara, à semelhança do que foi feito com as unidades de saúde fami-liar nos centros de saúde. Falta unir e dar espaço e liberdade a estes médicos para que se coordenem e deixem a sua marca no sítio em que trabalham. Falta espaço para que quem tem gosto e domina o todo possa ser valorizado e admirado. “Na Medicina o principal estudo é a na-tureza do corpo humano”, dizia Hipócra-tes. É sempre bom lembrar o juramento.

Dados biográficosRomana Borja-Santos tem 23 anos e é natural de Lisboa.Licenciou-se em Ciências da Comu-nicação (variante de Jornalismo) na Universidade Nova de Lisboa - Facul-dade de Ciências Sociais e Humanas (UNL-FCSH), tendo frequentado a Universidad Europea Miguel de Cer-vantes, em Valladolid, no âmbito do programa Erasmus.Trabalha desde Fevereiro de 2008 no jornal Público. Esteve na secção Online até Abril de 2009. Em Maio do ano passado, passou a integrar a secção “Portugal”, dada a fusão da redacção do jornal nos seus for-matos online e papel. Nesta secção, Romana escreve sobre vários temas, incluindo a área da Saúde.

Preconceitos internosPor Romana Borja-Santos, jornalista

do lado de cá

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uma palavra a dizer

Descendente de uma família de médicos, todos

das artes cirúrgicas, Daniel Matos rompeu logo de

início com essa tradição, tornando-se especialista em Medicina Interna. Foi

com esta especialidade que entrou para a carreira hospitalar, mantendo até

hoje uma vaga no Hospital Curry Cabral, em Lisboa,

que, de facto, nunca ocupou, porque há cinco mandatos consecutivos é

o médico do Presidente da República. Na companhia

de Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, o Internista Daniel de Matos

aprendeu a conhecer o mundo de uma

perspectiva diferente do cidadão e médico comum,

em que se vê o mundo noutra perspectiva.

Como começou a sua carreira, até de se tornar no “médico do presidente”?No início dos anos 80 fazia clínica pri-vada e pediram-me para ir ver um do-ente, que comecei a acompanhar, era o Dr. Mário Soares. Quando ele foi eleito Presidente da República, rapidamente percebi que algumas coisas colidiam com a minha carreira hospitalar, como as saídas para o estrangeiro. Nessa al-tura, encontrou-se um mecanismo de requisição ao hospital e passei a estar em Belém, onde aproveitei para montar uma consulta (que ainda hoje existe) para todas as pessoas que lá traba-lham – jardineiros, contínuos... Com isto passaram-se 10 anos (dois mandatos) e, quando estava a pensar em regressar às minhas lides, surgiu outro doente do meu consultório, chamado Jorge Sam-paio, que concorreu e ganhou as elei-ções. São as tais coisas, estatisticamente muito pouco prováveis, que mudam o curso da nossa vida.

Mas essa improbabilidade repetiu-se?Já começava a pensar em como gerir a recta final da minha carreira, com a ida-de da reforma a aproximar-se, e desta vez não tinha como presidente eleito um doente meu. Parecia que estava tudo tranquilo e seguro, quando recebi um telefonema do chefe da Casa Civil a dizer que o Prof. Cavaco Silva pedia para falar comigo. Recebeu-me em casa. Ele é amigo de várias pessoas que, casualmente, eu as-

sisto. Fez-me um grande elogio, que me deixou muito sensibilizado, e explicou-me que o médico que o assistia habitu-almente estava já com uma idade mais avançada e se tinha posto, ele próprio, um pouco de fora do que aí vinha. Dis-se-me que tinha toda a confiança em mim e que gostaria muito que continu-asse nas funções. Fiquei perplexo, na al-tura até disse que estava em Belém por ser o médico do Dr. Mário Soares, não fosse haver ali algum equívoco, mas, de facto, devo dizer que fiquei, se calhar pela primeira vez, orgulhoso. Evidente-mente que percebi que isto foi um aca-so. Ser médico do Presidente não é coisa nenhuma, um dia é-se noutro deixa-se de ser. Desta vez, e porque se tratava de uma escolha feita para uma situação concreta, fiquei orgulhoso.

“PHySICO DA CORTE”

E assim a carreira hospitalar foi de novo adiada?Tudo isto mudou a minha carreira hos-pitalar que, naturalmente, “morreu” de morte natural. No concurso em Santa Maria entrei para uma vaga para o Pu-lido Valente, que não ocupei porque, entretanto, continuava na Presidência. Depois pedi transferência para o meu hospital de sempre, o Curry Cabral, mas nunca cheguei a ir para lá. Neste inter-médio fiz um concurso para Chefe de Serviço, para não deixar a carreira “mor-ta” e parada. Cumpri o dever de ter uma

O médico que viu o mundo de cimaDaniel de Matos, o “Physico da Corte”

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carreira médica hospitalar e cheguei ao topo, que era o meu objectivo. Cos-tumo dizer por graça que qualquer dia mando o curriculum para a Ordem dos Médicos a pedir a admissão por con-senso para uma nova especialidade, a de “Physico da Corte”.

Não teve carreira hospitalar, mas tem uma experiência invulgar na Medicina?A experiência é muito enriquecedora. Trata-se de uma função com matizes complicadas, em que as pressões não são as normais. O Presidente e a família são sempre motivo de interesse, têm um grau de notoriedade muito elevado e é difícil manter a discrição própria nes-tas situações. Há aqui uma directriz que é preciso gerir: é razoável que as pesso-as tenham acesso a alguma informação, porque se trata de figuras públicas. Por outro lado, por serem figuras públicas, não perdem o direito de ter alguma re-serva em relação à sua intimidade.

Foi sempre fácil de gerir essa reserva? Lembro-me que o Presidente Jorge Sampaio esteve doente mais do que uma vez…Com o Dr. Sampaio, até porque o co-nhecia bem, lutei sempre para que as coisas fossem públicas e explicadas. Acho que se inaugurou uma era posi-tiva em relação aos Chefes de Estado. Quando se começam a tratar estas

UMA VIDA DIFERENTE

Cumpridos quatro mandatos em Belém, como ficou a carreira hospitalar? E que balanço faz deste tempo?Já não sou médico hospitalar. Tenho a humildade de dizer isso. É tempo a mais fora do hospital. Não tenho qualquer frustração, e não me sinto nem preju-dicado nem beneficiado, foi uma vida diferente. Achei muita graça a conhecer coisas que, se calhar, não teria conheci-do. Acabei por ver o mundo por cima, o que é muito útil do ponto de vista cul-tural e de compreensão. Deu para ver tudo, para perceber coisas que não teria percebido de outra maneira, para viver momentos históricos cuja intensidade nunca teria vivido. Dou um exemplo: partimos para a Hungria em circunstâncias dramáticas, no dia em que o avião do filho do Pre-sidente Soares caiu na Jamba. Foi uma situação de enorme instabilidade, em que o meu colega Eduardo Barroso foi para a África do Sul e eu acompanhei o Presidente. Nessa altura na Hungria pas-savam-se mudanças no dia-a-dia, era perfeitamente visível – sou do tempo das idas à URSS, em que se tentávamos fugir ao esquema programado era um sarilho; lembro-me também de assistir à posse do Presidente Alwyn, no Chile, com o Pinochet ainda Chefe das Forças Amadas, no estádio do Santiago, local

Por vezes vamos para destinos onde não conto com condições mínimas. Hoje em dia as viagens são mais calmas, mas são sempre momentos de uma enorme complexidade. Levo comigo o material que me parece mais indicado para manter algum grau de autonomia, para tentarmos por nós próprios resolver as questões que possam surgir.Se vou à África profunda não vou sozinho, normalmente peço a um cirurgião que me acompanhe. Se for à Europa,

muitas vezes até acho que não é preciso ir. Acabo por ir porque são comitivas extensas, há sempre alguém que pode ficar doente, e é mais fácil resolver em lugar de recorrer aos serviços de saúde locais. O material varia consoante o país, o clima, ou o tipo de trajectos e percur-sos que vamos fazer. Tudo tem de ser devidamente pon-derado, para se avaliarem riscos e medidas que possam ser eventualmente necessárias. Aqui, como no resto da Medicina, a prevenção continua a ser essencial.

Numa viagem tudo tem de ser devidamente ponderado

pessoas como VIP está tudo estragado. Estas pessoas têm de ser tratadas como “normais”, para não nos desviarmos daquilo que estamos habituados a fa-zer. É preciso coragem, saber dizer não, passar maus bocados e sofrer inúmeras pressões. A intervenção ou sugestão de intervenção de especialistas, nacionais ou estrangeiros, é de tal modo que se corre o risco de perder o fio condutor.

As razões de Estado interferem muito nas decisões do médico?Tento que a decisão clínica não fique in-fluenciada por razões de Estado. Tenho bem arrumado na cabeça que estou a tratar um cidadão igual aos outros, de-pois tenho um pequeno “jogo de cintu-ra” para adaptar isto bem. Não vou dizer que as situações são rigo-rosamente iguais, porque não são. Mas não posso mudar a linha condutora por medo. Quando me perguntam, numa dada situação, se tenho a certeza do meu diagnóstico, se não seria melhor ouvir mais ninguém… é desconfortá-vel. Portanto, é preciso ser inflexível. Peço a aprovação de um especialista exactamente nas mesmas circunstân-cias em que o faço para qualquer doen-te que me procure e sobre o qual possa, eventualmente, ter uma dúvida. Ou seja, não peço opiniões de especialistas para ficar mais confortável ou para sos-segar o doente.

uma palavra a dizer

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de tantas atrocidades. Percebemos que com um pequeno risco de um fósforo rebentava ali uma explosão. São momentos de uma densidade e de um significado enormes, de grande emoção. Sentimos que estamos a viver coisas muito ricas, muito densas, mu-danças nas sociedades a que eu tive o privilégio, nalguns casos, de assistir do primeiro balcão. Nem toda a gente tem esta quilometragem. Deu para perceber que o mundo é diferente, para ver os hospitais dos outros países, uns muitos melhores, outros muito piores… conse-guimos ter uma ideia mais clara do que é a nossa posição no mundo, na socieda-de, e isso é perfeitamente enriquecedor.

Contactou muito com os outros “médi-cos presidenciais”, sentiu as diferenças no modo como nos organizamos?Nestas viagens tive bastante contacto com os meus pares, que têm, normal-mente, estruturas um pouco diferentes. O Marechal Spínola montou o Palácio de Belém como um quartel: médico para a esquerda, barbeiro para a direita. O pri-meiro Presidente eleito a seguir ao Gene-ral Eanes que foi acompanhado por um colega meu militar foi o Dr. Soares e fui eu o escolhido. Foi este o critério, porque não havia nada escrito, definido. Não havia tradição. Em Espanha os meus colegas são 10 médi-cos, que assistem a família real e as estru-turas militares mais especiais. Aqui man-teve-se esta tradição, e como acho que o médico deve ser a pessoa que trata quem está doente e que tem acções pre-ventivas, nunca achei que fosse benéfico dar-lhe um ar de grande importância e dimensão. Não vou dizer que este é o es-quema ideal, mas parto do princípio que as instituições hospitalares têm todo o gosto em dispensar um cirurgião por al-guns dias para acompanhar o Presidente da República.

Perde-se de alguma forma o contacto com a sociedade, com a Medicina e com os hospitais?

O treino pessoal é muito importante. Se não saio do Palácio, sou um incom-petente ao fim de três anos, não tenho sobre isso qualquer espécie de dúvida. Tenho de continuar a fazer uma vida de médico e não de cortesão. E isto é muito complicado para quem é posto nesta situação. A sedução da vida de cortesão deve ser muito grande, porque as pes-soas resvalam com facilidade para aí.

Numa posição destas, o médico está sujeito a uma enorme pressão, como é que lida com essa responsabilidade?Acho que funciono bem com a pres-são, até porque sou um paranóico da pontualidade. Mas é muito difícil, e im-plicou pesados sacrifícios familiares. A sobrecarga das crianças acabava por cair sobre a minha mulher. Muitas vezes não estava cá, e quando estava não via os doentes que era suposto ter visto… a função do médico é complicada, por-que não é outra pessoa que vai fazer esse trabalho. Não podemos querer ter tudo. Hoje mantenho a consulta em Belém, assisto o Presidente e a família quando é necessário, mas quando não estou nessas funções estou felizmente a fazer outras coisas.

Deu para perceber que o mundo é diferente, para ver os hospitais dos outros países, uns muitos melhores, outros muito piores…

A experiência que acumulou a acompa-nhar o presidente ajuda-o, como Inter-nista?Tenho da vida e da Medicina uma visão muito desdramatizadora. Não sou um catastrofista, tenho expectativas sim-páticas em relação às nossas doenças, à vida, a tudo o que se passa. Sou uma pessoa bem-disposta, e acho que isso ajuda a aguentar um ambiente com fortes pressões. Obviamente que já dis-cordei de vários actos dos Presidentes da República que acompanhei, tenho direito às minhas convicções. Algumas vezes me foi pedida a opinião, como amigo, e eu não a deixei de a dar. No fundo, o que é importante é que o Pre-sidente e quem o acompanha sinta que está apoiado. Isso é essencial. Costumo dizer que quando for grande não quero ser Presidente da República, é o pior tra-balho que podemos ter.

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Alguma vez aconselhou os Presidentes, quando decidem sobre a Saúde e a Me-dicina, ou distanciou-se sempre dessa intervenção?Todos os Presidentes têm um conse-lheiro para a área da Saúde. Não dou opinião sobre um decreto-lei que tenha a ver com a Saúde, ou sobre as carrei-ras médicas, ou o que quer que seja. É uma maneira de preservar a minha in-dependência técnica, total e completa. Sempre tive essa preocupação, os pre-sidentes também sempre tiveram essa compreensão e esse rigor. Dou opinião através de uma graça, ou quando sinto que estou à vontade com o nível de co-nhecimento que tenho com a pessoa. Mas, normalmente, não dou opinião pública, como é evidente. Está-se próximo de quem decide, tem-se muitas vezes acesso a informação e tem que se saber ignorar. Tenho sido acicatado para escrever alguns episó-dios desta minha vida e, obviamente, tenho histórias muito engraçadas para contar, mas nunca o fiz, embora gos-tasse de o fazer, porque sou um pouco fundamentalista do sigilo profissional.

Como vê a Medicina Interna hoje?Perdi o pé na luta que a Medicina In-terna tem travado para não morrer como especialidade, o que seria uma enorme asneira. Tenho-me apercebido que os meus colegas, nomeadamente na Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, têm lutado com grande visibili-dade para que a especialidade seja tida na conta que merece. Nós, Internistas, somos sobretudo pessoas com capaci-dade de ouvir. Quando me formei não

havia ecografias, TAC ou ressonâncias. Toda a capacidade de diagnóstico exi-gia grande treino nas técnicas de in-cubatório, apalpação, auscultação… a semiologia era muito valorizada. Com o advento dos novos métodos de diag-nóstico há uma tendência para desvalo-rizar este património. Esta situação tem custos, que não sei se as economias mundiais continuarão a poder suportar. São custos em conhe-cimento, em prática, em desempenho. Houve sempre uma grande preocupa-ção, própria da minha época, porque os recursos do conhecimento não permi-tiam mais, em aprimorar a semiologia, o que nos trouxe a capacidade de procu-rar detectar as situações com o mínimo de recursos. Hoje, a minha geração con-tinua a usar isso, sem prescindir, natural-mente, das inúmeras mais-valias que os novos métodos de diagnóstico trazem. Talvez sejamos um bocadinho mais par-cimoniosos. Os Internistas têm esta cultura, são pes-soas que poupam dinheiro ao Estado, aos cidadãos e à economia do país. Têm um pouco mais de critério. Têm mais reservas em relação aos fármacos do que outras especialidades. O que vem da visão global dos doentes. Nós, Internistas, temos medo dos remédios. E com toda a razão, porque são armas poderosíssimas, que podem fazer mal. E só quem conhece a farmacologia é que tem esta preocupação. Quem não sabe não tem preocupação nenhuma, recei-ta o último antibiótico. Aqui os médicos são muito indisciplinados e os mais disciplinados e confiantes de todos são os Internistas. Quando o Estado ou um

uma palavra a dizer

Ministério percebe isto estima os Inter-nistas, quando não percebe não estima. Porque os Internistas não vêm nos jor-nais, não fazem coisas aparatosas, não transplantam, não operam… apenas fazem tudo o resto.

Os jovens têm menos atracção pela es-pecialidade?Houve uma altura em que ia para Medi-cina Interna quem não conseguia ir para outras especialidades. Se os Internistas são uns românticos? São, mas a Medici-na tem de ser romântica. Se deixa de o ser transforma-se numa coisa mecâni-ca, em que se carrega no botão e sai o diagnóstico. Continuo muito contente por ter escolhido esta especialidade, acho que é a única coisa que me faz ter prazer em fazer Medicina, porque é a única especialidade, na minha óptica, que compreende as pessoas. As outras compreendem um fenómeno. Nos primeiros cinco minutos dos qua-renta que gasto a ver os meus doentes, tento perceber quem é a pessoa que tenho à minha frente. Ainda não sei do que vamos falar, e já outra especialida-de acabou a consulta. A Medicina, por vezes, é muito violenta para as pesso-as, pode ser uma coisa perigosa, e elas sentem-se desamparadas. As pessoas andam de exame em exame, sem que nada se resolva e a gastar fortunas. É preciso ter uma boa gestão dos recur-sos, e a Medicina Interna é, seguramen-te, a especialidade que mais luta para que isso aconteça. Nos hospitais as figuras mais presentes são os Internistas. Tem de se encarar o consumo de tempo médico com o maior dos rigores. Quanto menos tem-po o médico gasta com um doente mais medicamentos receita. O acto corajoso é, talvez, ficar quarenta minutos com o doente e chegar à conclusão que não é necessário tomar remédio nenhum. Mas, também, reconheço que é neces-sário algum estatuto para fazer isso. Senão o doente sai daqui e entra no pri-meiro gabinete médico que encontrar.

Nós, Internistas, somos sobretudo pessoas com capacidade de ouvir. Quando me formei não havia ecografias, TAC ou ressonâncias. Toda a capacidade de diagnóstico exigia grande treino nas técnicas de incubatório, apalpação, auscultação… a semiologia era muito valorizada.

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primeiros passos

Considero um privilégio poder ser InternistaPor Cristina Teixeira Pinto, Interna 1.º ano IC de Medicina Interna, Serviço de Medicina 1 - Hospital de Faro EPE

Depois de muitos meses de espera, a escolha acabou por ser mais fácil do que imaginei. A especialidade já era uma certeza e o local não foi problema. Depois de muitos anos no Porto, acabei por descobrir o meu gosto pela Medici-na Interna em Faro e não me custou a decisão de por cá ficar.A abrangência e a dinâmica da Medicina In-terna, além da ligação médico-doente que proporciona, foram os factores que mais pesaram nesta escolha. A possibilidade de saber sempre mais, de ter qualquer área de interesse aberta à exploração e de olhar o doente como um todo, sem o viés ineren-te a outras especialidades, estimulam-me constantemente, tornam cada caso especial e fazem-me querer mais formação, cursos, mestrado, tudo o que conseguir abraçar.Esta primeira etapa na vida do “jovem inter-nista” não é só vontade de saber e de traba-

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lhar, há muito mais. Existem medos escondi-dos a cada questão que nos fazem, existem ajustes difíceis entre a vida pessoal e as exi-gências cada vez maiores do trabalho, existe a adaptação ao serviço, a planificação cuida-dosa dos próximos anos da nossa vida, resu-mos e apresentações e tão pouco tempo para (di)gerir tudo!Apesar de todo o corropio na minha vida des-de o início desta etapa, tenho dado por mim várias vezes a pensar no quanto gosto do que faço e é aí que sei que escolhi bem.Os avanços em todas as áreas da Medicina têm tido um impacto imenso na maneira como os Internistas trabalham agora e considero um privilégio poder ser Internista nesta época de ajustes, na época de gerir recursos, de renta-bilizar, de saber que exames complementares pedir e quando, e na época de aprender a pa-rar e de reaprender a ouvir.

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Saber o máximo em MedicinaPor Carlos Vasconcelos, Director da Unidade de Imunologia Clínica do Hospital Santo António

Atraiu-me sempre a “quantidade de desconhecido” que cada novo doen-te me pode estimular a conhecer, as perguntas sobre “ciência básica / fun-damental”, que me obrigava a fazer, particularmente em relação ao siste-ma imune.Por outro lado, a dimensão humana nos seus vários aspectos, dos sociais aos económicos, etc., que a Medicina Interna permite abordar não é com-parável à de outras especialidades,

por muito interessante que o sejam (e são, sem dúvida!).Desde Darwin que sabemos que a adaptação é fundamental para a sobrevivência. Também a Medicina Interna tem que adaptar-se às cir-cunstâncias para fazer valer as po-tencialidades da “especialidade mãe” da área médica. A diferenciação do conhecimento médico e subsequente pulverização das especialidades pa-reciam levar à estocada final da Me-dicina Interna e, no entanto, tal não aconteceu.Acredito que nos países em que todos os especialistas médicos são Internis-tas “de base” (e lembremo-nos que ainda no início da década de 80 os internistas portugueses faziam o in-ternato em três anos), o acompanha-mento dos doentes pelos diferentes especialistas seja menos “espartilha-do”, podendo alguém questionar o interesse de manter a especialização em Medicina Interna.No nosso país, sem uma formação de base Internista comum a todos os es-pecialistas da área médica, o Internis-ta continua a ter um papel fulcral na condução do doente com múltiplas

revelações

Comecei o Internato de Medicina Interna

em 1982, seis anos depois de terminada a

licenciatura, e escolhi esta especialidade

porque queria saber o máximo que podia em

Medicina, motivado pela riqueza da experiência

do Serviço Médico à Periferia.

patologias e nos “casos difíceis”. Por outro lado, as circunstâncias de cada região e de cada hospital poderão es-timular a diferenciação dos Internis-tas em diferentes áreas da Medicina.O Internista pratica de uma forma exí-mia todas as técnicas de pensamen-to que podem levar ao diagnóstico, desde a mais simples do gestaltismo “isto encaixa na doença x”, até às mais complicadas, as hipotético-deduti-vas, que se podem assemelhar à in-vestigação policial.É claro que uma excessiva confiança, ou o querer ser demasiado rápido, ou, melhor ainda dizendo, produzir outputs antes de todos os inputs, pode levar-nos a errar. Lembro-me de um caso de uma doente de cor bron-zeada, internada por umas alterações hepáticas, fora de contexto etanólico. A hipótese prontamente levantada foi a de uma hemacromatose. Rapida-mente, a doente que nos ouvia falar do tom de pele esclarecia ter um an-tecessor de raça negra…As estórias são muitas, mas os bons diagnósticos, tal como as grandes descobertas, têm “muito de transpira-ção e pouco de inspiração”.

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I EnContro dE uaVCs do alto MInho09 de abril de 2010Forte de Santiago da Barra, Viana do CasteloUnidade de AVC do Hospital de Santa LuziaInformações: Tel: 258 802 100 (extensão 359) Email: [email protected]

16.º CongrEsso naCIonaldE MEdICIna IntErnade 26 a 29 de Maio de 2010Tivoli Marinotel, VilamouraInformações: Tel: 217 520 570Fax. 217 520 579 Email: [email protected] Curso dE EMErgênCIa da spMI11 e 12 Junho de 2010Hotel Pestana Carlton, FunchalInformações: Tel: 217 520 570 Fax. 217 520 579 Email: [email protected]

5.º EnContro do núClEo IntErno dE MEdICIna IntErnade 18 a 19 de Junho de 2010Local a definir (Braga)Informações: Tel: 217 520 570Fax. 217 520 579 Email: [email protected]

XI Jornadas naCIonaIs dE VIh 25 e 26 de Junho de 2010Hotel Casino de Chaves, ChavesInformações: Tel: 217 520 570Fax 217 520 579 Email: [email protected]

Eventos Médicos

Forbidden Colours reúne as melhores fotografias registadas pelo médico Mi-guel Gonçalves Ferreira nas viagens pelo mundo e pelo país. As imagens captadas pela objectiva do médico retratam pontos do globo tão díspares como o Porto e Ban-gkok ou Florença e Chicago, catalogadas por 10 cores diferentes.Miguel Gonçalves Ferreira nasceu em Gondomar, em Maio de 1968. No primei-ro mês de vida muda-se para Matosinhos, cidade onde vive até hoje. Licenciado em Medicina pelo ICBAS – Universidade do Porto em 1993, é actualmente Assisten-te Hospitalar de Otorrinolaringologia no Hospital de Santo António, Hospital da Arrábida e Ordem do Carmo, no Porto. É, simultaneamente, Assistente da Ca-deira de Otorrinolaringologia do curso

“As duas doenças mais graves do mundo são a intolerância e a indiferença” é a pri-meira frase que se lê no blogue de Fernan-do Nobre, médico fundador e presidente da Assistência Médica Internacional (AMI).Fernando Nobre escreve que “este blogue pretende apenas dar um singelo contri-buto à Democracia e à Paz em Portugal e no Mundo em nome do Ser Humano, lu-tando irredutivelmente pela Liberdade e pela Fraternidade (…). Tudo farei para me manter sempre coerente com os Valores e Princípios que nortearam a minha vida até hoje bem consciente de que, se tenho Direitos inalienáveis, tenho sobretudo De-veres irrecusáveis para com o meu País e o Mundo”.O blogue é centrado em questões como “as crises humanitárias, as guerras, a fome,

Contra a Indiferença

As cores do mundo condensadas num livro

agenda depois da hora

de Medicina do ICBAS - Universidade do Porto desde 2005. A sua dedicação à fo-tografia inicia-se no fim do liceu, com a curiosidade típica dos verdadeiros ama-dores.Ano após ano, foi aprendendo com al-guns livros técnicos e inúmeras revistas da especialidade que compulsivamente consumia. Em 1994 teve a oportunidade de frequentar um curso de verão de fo-tografia na Cooperativa Árvore no Por-to, com o professor Jorge Coelho. Neste curso aprofundou alguns conhecimen-tos técnico-artísticos de fotografia.

a corrupção, a cidadania global, as altera-ções climáticas, a exclusão social e a po-breza, as migrações, os direitos humanos, os povos esquecidos, o voluntariado, os conflitos sociais, o civismo, o alertar cons-ciências, a globalização ética e cultural, a governação ou desgovernação global na política ou nas finanças”. Para Fernando Nobre este é “mais um passo no assumir das minhas responsabilidades de cidadão do mundo atento e activo”.Fernando Nobre não poderia deixar de anunciar a sua candidatura à Presidência da República no “Contra a Indiferença”, onde explica que resolveu “assumir um compromisso com o meu país, Portugal. Serei candidato independente, apartidário e em nome da cidadania, a Presidente da República, nas próximas eleições de 2011”.

http://fernandonobre.blogs.sapo.pt/

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