MEDICINA A vacina que protege - Pesquisa Fapesp · 2015. 4. 14. · o coraçao,.." As crianças...

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• CIÊNCIA MEDICINA Começa o ambicioso projeto de combate à febre reumática, que ataca o tecido cardíaco ADILSON AUGUSTO A vacina que protege ,.." o coraçao As crianças são o alvo principal da pesquisa em desenvolvimento no Incor O material está pronto. Se- qüências de proteínas da bactéria responsável por uma reação do organismo que desencadeia a febre reu- mática começarão a ser testadas em labo- ratório e animais experimentais. Elasservirão de base para uma vacina contra as infecções de garganta causadas pelo microrganismo que iniciam essa grave doença. O isolamento das seqüências de proteí- nas é o combustível para a arrancada de um projeto recém-aprovado no âmbito do pro- grama Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) e coordenado por Luiza Guilherme Guglielmi e Jorge Kalil, ambos do Instituto do Coração (Incor) da Universidade de São Paulo (USP). Com investimentos de US$ 3 milhões, em proporções iguais da FAPESP e do Laboratório Teuto-Brasileiro, uma indús- tria farmacêutica nacional com sede em Anápolis (GO) que produz medicamentos 40 • MARÇO DE 2002 PESQUISA FAPESP genéricos, o projeto da vacina aponta para a solução de um mal que em sua forma mais grave ataca o tecido cardíaco, destrói as válvulas mitral e aórtica, atinge predominan- temente populações pobres e pesa nos gastos dos sistemas públicos de saúde. A bactéria fatídica, a Streptococus pyoge- nes, também conhecida como estreptococo do Grupo A, que está na mira da futura vaci- na, é objeto de 12 anos de estudos da equipe do Laboratório de Imunologia do Incor, diri- gido por Kalil.Não causa diretamente a doen- ça, mas desencadeia um processo que faz o organismo voltar-se contra si mesmo - ca- racterística das chamadas doenças auto- imunes, como a febre reumática. Sem tratamento, o que no início é uma simples amigdalite causada pelo estreptococo evolui para estados febris, dores nas articula- ções e, finalmente, ataque ao tecido do cora- ção. A cada ocorrência da infecção, o quadro se repete. Quando partes do tecido cardíaco

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• CIÊNCIA

MEDICINA

Começa oambicioso projeto

de combate àfebre reumática,

que ataca otecido cardíaco

ADILSON AUGUSTO

A vacinaque protege

,.."o coraçao

As crianças são o alvoprincipal da pesquisa emdesenvolvimento no Incor

Omaterial está pronto. Se-qüências de proteínas dabactéria responsável poruma reação do organismoque desencadeia a febre reu-

mática começarão a ser testadas em labo-ratório e animais experimentais. Elasservirãode base para uma vacina contra as infecçõesde garganta causadas pelo microrganismoque iniciam essa grave doença.

O isolamento das seqüências de proteí-nas é o combustível para a arrancada de umprojeto recém-aprovado no âmbito do pro-grama Parceria para Inovação Tecnológica(PITE) e coordenado por Luiza GuilhermeGuglielmi e Jorge Kalil, ambos do Institutodo Coração (Incor) da Universidade de SãoPaulo (USP). Com investimentos de US$ 3milhões, em proporções iguais da FAPESP edo Laboratório Teuto-Brasileiro, uma indús-tria farmacêutica nacional com sede emAnápolis (GO) que produz medicamentos

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genéricos, o projeto da vacina aponta para asolução de um mal que em sua forma maisgrave ataca o tecido cardíaco, destrói asválvulas mitral e aórtica, atinge predominan-temente populações pobres e pesa nos gastosdos sistemas públicos de saúde.

A bactéria fatídica, a Streptococus pyoge-nes, também conhecida como estreptococodo Grupo A, que está na mira da futura vaci-na, é objeto de 12 anos de estudos da equipedo Laboratório de Imunologia do Incor, diri-gido por Kalil.Não causa diretamente a doen-ça, mas desencadeia um processo que faz oorganismo voltar-se contra si mesmo - ca-racterística das chamadas doenças auto-imunes, como a febre reumática.

Sem tratamento, o que no início é umasimples amigdalite causada pelo estreptococoevolui para estados febris, dores nas articula-ções e, finalmente, ataque ao tecido do cora-ção. A cada ocorrência da infecção, o quadrose repete. Quando partes do tecido cardíaco

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Existem três abordagens distintas.''A seqüência 'boa' pode ter combina-ções de peptídios (fragmentos de pro-teínas) que componham a vacina",conta Luiza. "Ou podemos construiruma proteína recombinante, obtidapor meio de uma bactéria inócua, quecontenha essas seqüências." A terceiraalternativa, a menos provável, segun-do Kalil, é a vacina de DNA (ácidodesoxirribonucléico, portador do có-digo genético) por meio de um vetor."Essa possibilidade está conceitual-mente desenvolvida, mas tecnologica-mente não': diz ele. "Ainda não há ne-nhuma vacina de DNA em uso:'

Os pesquisadores estão na fase deescolha das regiões das proteínas. "Te-mos de começar a síntese dos peptí-deos dessas regiões, desenvolver a pro-teína recombinante e implantar ametodologia para uma possível vacinade DNA': comenta Luiza. Tecnologica-mente, o grupo do Incor propõe umavacina ou com fração de proteína oucom o DNA desnudado, sem risco dedesencadear a doença.

já foram destruídas, o paciente podeser salvo somente por meio de uma ci-rurgia - em geral de troca das válvulasmitral ou aórtica, com alto custo epossíveis seqüelas.

Em 1998,90% das cirurgias cardía-cas infantis feitas no Brasil se deveramà febre reumática. Com adultos, esseíndice vai para 30%, ainda considera-do alto. Há um total de cerca de 10 milcirurgias por ano, a um custo de US$8 mil a US$ 10 mil cada. ''A febre reu-mática é uma doença muito cara parao sistema de saúde de qualquer país':diz Luiza. No Brasil, onde se registram18mil novos casos por ano, um pacien-te de febre reumática com problemasno coração custa US$ 10 mil por anoao Sistema Único de Saúde (SUS).

Alvo errado - A reação destruidora doorganismo tem uma lógica. Kalil fazuma analogia bem-humorada com asinvestigações do recente seqüestro dopublicitário Washington Olivetto, noqual estavam envolvidos cidadãoschilenos. Suponha-se que houvesseum sistema de rastreamento telefôni-co capaz de identificar idiomas, masnão sotaques: sem a prisão dos chile-nos, todas as pessoas de fala espanho-la seriam potencialmente suspeitas.No caso da febre reumática, existemno tecido cardíaco proteínas comuma acentuada semelhança com às dabactéria. A semelhança faz as célulasdo sistema imunológico atacarem nãoa bactéria, mas o coração, por umareação chamada mimetismo biológi-co. O organismo estabelece a identifi-cação fatal: passa a atacar não só abactéria, mas também o tecido.

Já que a confusão pode surgir, écrucial barrar o avanço do processo.Isso é normalmente feito com o trata-mento rápido das infecções de gar-ganta com antibiótico - nem semprepossível em regiões carentes de servi-ços de saúde. A solução - radical e de-finitiva - seria evitar o ataque bacte-riano por meio de uma vacina capazde imunizar todas as crianças, as prin-cipais vítimas da doença.

A febre reumática incide em geralsobre a faixa etária dos 5 aos 18 anos,predominantemente em países po-

bres, e atinge universalmente de 3% a4% dos infectados e não tratados. En-tre esses, de 30 a 45%, provavelmentedevido a uma predisposição genética,desenvolvem a forma mais grave dadoença, a que ataca o coração.

O sistema imune ataca o própriotecido de quatro a oito semanas de-pois do início da infecção de gargan-ta, que costuma durar de sete a dezdias, não havendo mais bactérias acombater. Normalmente, o sistemacombate a bactéria ativando célulasdo sangue chamadas glóbulos bran-cos ou leucócitos (sobretudo os linfó-citos T e B), responsáveis pela destrui-ção dos estreptococos.

as cnanças com susce-tibilidade genética,ocorre uma agressão aopróprio tecido, achamada reação auto-

imune. O sistema imunológicoarmazena numa espécie de memória aestrutura da bactéria, que permiteque seja reconhecida caso reapareça.Nessas crianças, ele reconhece estru-turas - pedaços de proteínas - do co-ração, semelhantes às da bactéria.Num mecanismo conhecido comoreação cruzada, essas estruturas pas-sam a ser atacadas. "Essa espécie de'erro biológico' faz com que as doen-ças auto-imunes sejam muito estuda-das': salienta Kalil.

O caminho da equipe para a con-cepção da vacina foi traçado a partirda parede celular do estreptococo.Luiza explica que a bactéria tem umaproteína externa na parede celular,chamada proteína M. É essa proteínaque ocasiona a reação cruzada entreas proteínas do coração e as da bacté-ria, ambas com estruturas semelhan-tes. Mas essa mesma proteína tem re-giões que não desencadeiam essasreações cruzadas e aparentementedão proteção contra a bactéria. "Estu-damos as duas regiões, as que desenca-deiam reações contra o coração e asque não", comenta a pesquisadora. Aequipe do Incor pretende fazer umavacina com as regiões que não desenca-deiem a reação cruzada, mas uma res-posta de proteção.

Os testes - Em qualquer das aborda-gens, a vacina será evidentemente tes-tada em modelos animais antes dechegar aos seres humanos. Serão uti-lizados camundongos de dois tipos:não manipulados geneticamente (iso-gênicos) e manipulados (transgêni-cos). Os do segundo grupo conterãoum gene humano que atua no reco-nhecimento da vacina e é extrema-mente importante para desencadear aresposta do sistema imune.

"Queremos nos aproximar o má-ximo possível do que seria uma res-posta nos seres humanos", explicaLuiza. Essa é a primeira fase. Na etapaseguinte, os pesquisadores passarãopara o ensaio com primatas e, maistarde, com seres humanos. Não con-tam ainda com um modelo primata.O modelo do rato, aliás, o rato Lewis,só foi encontrado no fim de 2001, pordesenvolver a doença cardíaca no casode febre reumática.

A experimentação com animaisdeve durar cerca de cinco anos. De-pois, haverá mais dois a três anos deensaios clínicos com seres humanos.

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o raio de ação da vacina nãoabrange apenas a prevenção dafebre reumática. Luiza salientaque esse é o ponto fundamental,mas o medicamento que deveemergir das pesquisas terá umaação bem mais abrangente. Pri-meiramente, impedirá, de modogeral, as infecções por estrepto-cocos tipo A, como o causadorda infecção de garganta, comumem crianças: um estudo recenterealizado em creches de Curitibamostrou que 24,5% das crian-ças tinham o estreptococo nagarganta. "Como não podemossaber quem vai desenvolver adoença", comenta Kalil, "a vaci-na tem de proteger a todos".

Outra vantagem seria reduzir acarga de antibióticos sobre os pacien-tes de febre reumática. A princípio,bastaria a vacina para impedir novasinfecções mais permanentemente emcrianças que já têm a doença e sãoobrigadas a tomar penicilina (benza-tina em geral) a cada 21 dias. Esse pe-ríodo de medicação com antibióticose baseia no ciclo de desenvolvimentoda infecção de garganta pelo estrepto-coco, que, afinal, anda solto por aí."Todos estamos sujeitos a essa infec-ção, que tem picos de ocorrência: ou-tono, inverno e começo da primavera",lembra a pesquisadora.

O problema é que, nas criançasque já desenvolveram a doença, acada nova infecção causada pelo es-treptococo voltam os problemas - fe-bre, dores articulares e os danos car-díacos. Em casos mais brandos, ocoração não chega a ser atingido, masos pacientes podem desenvolver acoréia, um distúrbio neurológico queprovoca movimentos involuntários ecostuma ser confundido com a cha-mada doença de São Vito. Nesses ca-sos, o diagnóstico é prococe, porqueo problema é bem visível, o que nãoocorre na cardiopatia.

Os pesquisadores do Incor acen-tuam a dimensão social do problema.''A maioria das crianças atingidas",observa Luiza, "é de baixa renda e àsvezes vivem em locais onde falta postode saúde ou o acesso a um deles é difí-

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Streptococus: na membrana, a chave da vacina

cil" Por essas razões, lembra ela, é ele-vado o número de crianças que nãoadere ao tratamento.

Kalil acrescenta: "Há oproblema social, o eco-nômico e o de saúdepública. É uma doençaque atinge mais as po-

pulações pobres provavelmente por-que os ricos tratam mais precocemen-te a infecção de garganta. E há o riscoinerente ao desenvolvimento da vaci-na, o desafio de se conseguir uma va-cina que produza uma resposta boa eeficaz, sem o risco de desenvolvér adoença, já que a mesma proteína liga-da à resposta protetora pode desenca-dear a doença': Enfim, a vacina nãopode causar doença alguma, nemmesmo a infecção de garganta.

O objetivo é fazer a vacina constarentre as obrigatórias, que toda criançadeve tomar em determinada idade.

o PROJETODesenvolvimento de Vacinacontra o Estreptococo BetaHemolítico do Grupo A

MODALIDADEParceria para Inovação Tecnológica

COORDENADORESLUIZA GUILHERME GUGLIELMI EJORGE ELIAS I(ALIL FILHO -INSTITUTO DO CORAÇÃo/U SP

INVESTIMENTOUS$ 1,5 milhão

''Ainda temos de avaliar essaidade, mas seguramente nãoserá antes dos três anos, pois hávacinas às quais crianças muitonovas não respondem bem, so-bretudo as feitas a partir de pro-teínas': diz a pesquisadora.

O grupo começou há 12anos a identificar fatores de sus-cetibilidade à febre reumáticanos pacientes do Hospital dasClínicas da USP.Em seguida, es-tudou o desencadeamento daauto-imunidade - o ataque aopróprio organismo - e em 1995publicou um artigo sobre o as-sunto em Círculation, a publi-cação científica top em cardiolo-

gia. O editorial da revista considerouos achados do grupo um marco nacompreensão dessa doença.

Nesses anos de trabalho, o grupoconquistou outros reconhecimentos.Um deles foi o Prêmio Unibanco deSaúde de 1997. Os pesquisadores atri-buem o resultado à insistência no es-tudo intensivo da descrição da doen-ça. Luiza conta que jamais se esqueceudo encerramento do Congresso Vacinado Futuro, em outubro de 2001, noInstituto Pasteur de Paris, quando secomentou que, apesar dos avanços dedos grupos de estudo em todo omundo, ainda não havia uma fórmulade vacina, mas que à melhor alternati-va chegará quem tiver maior conheci-mento da doença a ser tratada.

Os pesquisadores se apóiam tam-bém em equipamentos de ponta e umlaboratório expandido para uma áreade 750 metros quadrados. Uma parteespecial do projeto envolve o estudodo proteoma: "Quanto mais estudar-mos proteínas, mais poderemos evitara reação cruzada e mais segura será avacina': conclui Luiza. Kalil conta queuma das dez grandes questões não re-solvidas pela ciência, citadas num ba-lanço feito no final do século 20, é sa-ber como ocorre o desencadeamentode uma doença auto-imune.

O acordo do Incor com a empresaprevê que a FAPESP vai receber 3%do faturamento líquido (faturamentobruto menos impostos) gerado pelacomercialização da vacina. •