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    TTULO: Memrias de um mdico (4 de 5). A condessa de Charny (6 de6)

    AUTOR: DUMAS, AlexandreLOCAL DA PUBLICAO: PortoEDITORA: Lello & Irmo,Data da publicao: s. d.

    GNERO: romance histricoCLASSIFICAO: Frana Sculo XIX - FicoCOLECO: Romances para todos n. 59DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR:

    Aventino de Jesus Teixeira GonalvesNovembro de 2005Memrias de um mdico uma srie de obras em que, por assim dizer, se relata ahistria da Frana desde a entrada de Maria Antonieta em territrio francs para secasar com o futuro Lus XVI at sua morte na guilhotina. constituda pelos seguintes ttulos:

    1. Jos Blsamo2. O colar da rainha3. ngelo Pitou4. A condessa de Charny

    5. O cavaleiro da Ca

    sa VermelhaNota do digitalizador

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    CONDESSA DE CHARNY

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    ARTES GRFICAS - PORTO

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    ALEXANDRE DUMAS

    A CONDESSA

    DE CHARNY(romance histrico)VOLUME VILELLO & IRMO EDITORES144, Rua das Carmelitas PORTO

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    A CONDESSA DE CHARNYNuvensPondo de parte a embriaguez dos primeiros olhares,Maurcio ficara muito aqum da sua esperana, narecepo que lhe fizera Genoveva; confiava contudoem que logo que pudesse conseguir estar s com ela,

    lhe seria fcil tornar a ganhar a distncia que tinhaperdido na estrada do seu afecto.Genoveva porm tinha firmado o seu plano de condutae estava resolvida a no lhe dar ocasio para

    falar-lhe a ss, pois bem se lembrava de quanto semelhantesconferncias eram perigosas.

    Maurcio tinha posto a sua esperana na visita dodia seguinte, mas uma parenta, provavelmente avisadade antemo, tinha vindo visit-la tambm, e

    Genoveva pedira-lhe que ficasse.Desta vez no havia motivo de queixa, porquepodia muito bem ser que a culpa no fosse de Genoveva.Quando Maurcio se despediu pediram-lhe que acom-

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    6 MEMRIAS DUM MDICOpanhasse a casa a tal parenta, que assistia na rua dosFosss-Saint-Victor.Maurcio saiu amuado; porm Genoveva sorriu paraele ternamente, e a Maurcio pareceu-lhe antevernesse sorriso uma promessa.

    Mas quanto Maurcio se enganara! No dia imediato,que era 14 de Junho, dia em que Carlota Cordayassassinou Marat, Maurcio despediu o amigo Lorin,que pretendia lev-lo por fora consigo Conveno,e ps de parte os negcios todos para ir ver a suaamada.A deusa da liberdade tinha em Genoveva uma rivalterrvel.Maurcio foi encontrar Genoveva na sua salinha,e como sempre graciosa e amvel; porm tinha consigouma aia, rapariga ainda, com uma touca adornadacom um lao tricolor, a qual estava ocupada em

    marcar lenos num vo de janela e no se tirou doseu lugar.Maurcio franziu os sobrolhos, Genoveva percebeuque ele estava de mau humor, e tornou-se ainda maisatenciosa. Como a sua amabilidade no chegou a pontode mandar embora a jovem oficial, Maurcio perdeua pacincia e saiu uma hora mais cedo do que costumava.Tudo aquilo podia ser obra do acaso, e por issoMaurcio resignou-se; e demais, a situao tinhatomado um aspecto to crtico naquela noite, que chegoua influir no prprio Maurcio, o qual se tinha

    tornado, havia algum tempo, inteiramente alheio poltica.No dia seguinte continuou Genoveva no mesmo sistema;Maurcio prevendo que assim aconteceria, tambmtinha forjado o seu plano; dez minutos depois de

    ter chegado, quando viu que a aia, tendo acabado demarcar uma dzia de lenos, passava a marcar seis

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    dzias de guardanapos, Maurcio, puxou pelo relgio,levantou-se, cumprimentou Genoveva e saiu sem dizeruma palavra.E ainda fez mais; saiu sem olhar uma nica vezpara trs.Genoveva, que se tinha levantado para da janela over atravessar o jardim, ficou durante um Instanteestupefacta, plida e agitada, at que afinal deixou-secair na cadeira, aterrada de ver o resultado da sua diplomacia.No mesmo instante entrou Dixmer.- Maurcio foi-se embora? - perguntou ele admirado.- Foi - balbuciou Genoveva.- Mas tinha chegado agora mesmo.

    - Esteve aqui coisa de um quarto de hora.-. Ento talvez volte?- Duvido.- Deixa-nos, Lrio - disse Dixmer.A aia tinha adoptado este nome de flor, em consequnciado tdio que tinha ao de Maria, com que

    havia sido baptizada e que era o daAustraca tambm.Lrio, assim que ouviu a intimao do amo, levantou-see saiu imediatamente.

    -Diga-me, pois, querida Genoveva - perguntouDixmer - j fez as pazes com Maurcio?- Bem pelo contrrio, meu amigo, parece-me queestamos actualmente mais indiferentes do que nunca.- Quem tem a culpa agora? - perguntou Dixmer.- ele, naturalmente.- Diga-me a razo, para eu poder ajuizar.- Como! - respondeu Genoveva corando - pois aindano adivinhou?- No, por certo. Por que motivo se zangou?- Embirra com a Lrio, segundo penso.

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    8 MEMRIAS DUM MDICO- Pois deveras, isso? preciso despedir a rapariga.No quero, por causa de uma aia, privar-me de

    um amigo como Maurcio.- Oh - disse Genoveva - acho que ele no exigiriaque a desterrssemos para fora de casa, isso talvez

    fosse demasiado, mas que se daria por satisfeito...- Como?- Se eu a banisse do meu quarto.- E Maurcio tem razo - respondeu Dixmer. Elevem visitar a senhora e no a Lrio; acho pois escusadoque a Lrio permanea aqui quando ele entra.

    Genoveva olhou com espanto para o marido.- Porm, meu amigo...- Genoveva, pensei que tinha na senhora umaaliada, que havia de tornar mais fcil a empresa deque me incumbi, e vejo que, pelo contrrio, vai com osseus receios aumentar as nossas dificuldades. Julgueiter convencionado com a senhora h quatro dias, o

    que havia a fazer, mas conheo agora que nada adiantei.Pois no lhe disse finalmente que era indispensvelque Maurcio tornasse a ser nosso amigo mais

    ntimo do que nunca? Oh! meu Deus, que eternoobstculo so as mulheres aos nossos projectos!- Mas, diga-me por Deus! no haver nenhumoutro meio? J lhe disse que muito melhor seria paratodos ns que o sr. Maurcio aqui no voltasse.- Sim, para todos ns pode ser que assim fosse,porm para servir aquela que est acima de ns todos,aquela a quem jurmos sacrificar a nossa fortuna, asnossas vidas, e at a nossa felicidade, preciso queaquele homem aqui volte. Turgy j se vai tornando

    suspeito e est-se tratando de procurar outro serventepara as princesas.- Muito bem, daqui por diante mandarei a Lrioembora.- Valha-a Deus, Genoveva! - disse Dixmer com um

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    A CONDESSA DE CHARNY 9movimento de impacincia, coisa nele to rara; -quenecessidade tem de me falar nisso? Por que motivoprocura atiar o fogo do meu pensamento com o seu?Por que razo est criando dificuldades na prpriadificuldade? Genoveva, digo-lhe unicamente que faa,como mulher honrada e dedicada nossa causa, tudoquanto lhe parecer conveniente; amanh no fico emcasa, vou substituir Morand no cargo de engenheiro.No jantarei portanto consigo, porm ele h-de jantar,porque deseja pedir a Maurcio uma coisa, que

    ele lhe explicar. Lembre-se Genoveva, que o pedidoque ele h-de fazer importantssimo; no o fima que nos dirigimos, mas o meio para o conseguirmos, a derradeira esperana daquele homem to

    bom, to elevado e to fiel; daquele protector deambos ns, por quem nos cumpre dar a vida se precisofor.

    - E prontamente a daria por ele! - exclamou Genoveva.- No sei por que razo no procurou fazer

    com que Maurcio se tornasse amigo do homem, quetanto estimamos, e a quem semelhante amizademuito podia convir.O caso que hoje, visto o mau humor que lhe causou,talvez Maurcio negue a Morand o que este lhe

    h-de pedir, e que precisamos alcanar por todo opreo. Genoveva, quer que lhe diga onde as suas delicadezase sentimentos conduziro Morand?

    - Oh! senhor - exclamou Genoveva de mos postas- por piedade no falemos em tal.

    - Ento - replicou Dixmer beijando a mulher natesta - seja forte e reflicta.E saiu do quarto.

    - Oh! meu Deus! - murmurou Genoveva comAflio - que violncias me fazem para me obrigarema aceitar aquele amor, que eu sinto no fundo do

    corao!...

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    10 MEMRIAS DUM MDICOO dia seguinte era um dcadi (dcimo dia dasemana, segundo o calendrio republicano.)

    A famlia de Dixmer, assim como todas as famliasde burgueses daquela poca, tinha por costume apresentarao domingo um jantar mais lauto e de mais

    cerimnia do que nos outros dias de semana.Maurcio, desde que se tornara ntimo na casa, tinhasido convidado para jantar, uma vez para sempre, enunca havia faltado. Naqueles dias, Maurcio chegavasempre ao meio-dia, se bem que a hora de ir

    para a mesa fosse s duas, usualmente.Genoveva lembrada do modo por que ele se despedira,j no esperava tornar a v-lo.

    E com efeito, deu meio-dia sem que aparecesseMaurcio, e em seguida a meia hora e depois uma:

    seria impossvel descrever o que se passava, duranteeste tempo de espera, no corao de Genoveva.Tinha-se vestido a princpio mui singelamente; masquando viu que ia tardando, movida pelo sentimentode garridice, to natural no corao das mulheres,foi pr uma flor no peito e outra no cabelo, e assimcontinuou a esperar, sentindo que cada vez mais selhe apertava o corao.Eram j quase horas de ir para a mesa e Maurciono aparecia.Faltavam dez minutos para as duas horas, quandoGenoveva ouviu o trote bem conhecido do cavalo queMaurcio costumava montar.

    - Oh! ele a vem! - exclamou ela - o seu orgulhosucumbiu na luta com o amor. Ama-me! Ama-me!Maurcio apeou-se num pulo, e entregou o cavaloao jardineiro, determinando-lhe que esperasse ondeestava. Genoveva, que o estava vendo apear, ficouinquieta por notar que o jardineiro no levava ocavalo para a cavalaria.Maurcio entrou; vinha radiante de beleza. Trazia

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    A CONDESSA DE CHARNY 11casaca preta de abas quadradas e rebuo largo, coletebranco, cales de camura, que deixavam ver emtoda a sua perfeio umas pernas que pareciam modeladaspelas de Apolo, colarinho de cambraia alvssima,e o cabelo penteado de forma que a testa, elevadae lisa, ficava inteiramente descoberta; era ao

    todo um tipo de natureza elegante e vigorosa.Entrou pois; Genoveva, que estava pensando nele,como j dissemos, recebeu-o alegremente.- Ora, ainda bem que chegou! - disse ela dando-lhea mo; - jantar connosco, no assim?

    - No, cidad - respondeu Maurcio; - vinha pelocontrrio, pedir-lhe licena para faltar hoje.- Para faltar?...- Sim, tenho negcios a tratar na seco. Vim aquipreveni-la com receio de que esperasse por mim, poisno queria merecer a acusao de incivil.Genoveva sentiu que o corao, que pouco antes se

    dilatara, novamente se comprimia.

    - Oh! meu Deus! - disse ela - e logo hoje Dixmerjanta fora. Dixmer esperava encontr-lo aqui ao vol-tar para casa, e tinha-me recomendado que no o dei-xasse sair sem ele voltar.

    ] -Ah! agora percebo o motivo por que insiste em,{ que fique, minha senhora. ordem que teve de seumarido. E eu sem adivinhar semelhante coisa. Parece-merealmente que nunca me hei-de emendar de

    tanta fatuidade!-Maurcio!...- Minha senhora, sei que devo guiar-me pelas suaspalavras. Conheo muito bem que a ausncia de Dixmer mais um motivo para eu aqui no ficar. Semelhante

    ausncia faria com que aumentasse o seu cons-trangimento com a minha presena.

    - Por que motivo? - perguntou Genoveva tmida-, mente.

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    12 MEMRIAS DUM MDICO

    - Porque desde que voltei aqui, parece-me que depropsito procura por todos os modos evitar-me; porqueeu tinha voltado por sua causa unicamente, como

    muito bem sabe, e desde que voltei, sempre a tenhovisto acompanhada.- Vamos! - disse Genoveva - no se zangue, meu

    amigo, veja que eu fao quanto posso para lhe agradar.-No, Genoveva, isso no basta, exijo mais, e que me receba como dantes ou que me dispense detodo.- Ora vamos, Maurcio - disse Genoveva com ternura- lembre-se da minha situao, imagine os tormentosque eu sofro, e portanto no seja tirano

    para comigo.Dizendo isto aproximou-se dele olhando com tristeza.Maurcio calou-se.- Mas no me dir que pretende de mim? - continuouela.

    - Pretendo am-la, Genoveva, porque sinto que

    hoje j me no possvel viver sem o seu amor.-Maurcio, por piedade?...- Pois ento, minha senhora - exclamou Maurcio- por que razo no me deixou morrer?- Morrer?- Sim, morrer, ou esquec-la.- E seria possvel que tivesse nimo para se esquecerde mim! - exclamou Genoveva com os olhos arrasadosde lgrimas.

    -Oh! no, no - murmurou Maurcio pondo-se dejoelhos; - no Genoveva, poderia morrer talvez, esquecer,

    isso nunca!- Contudo - replicou Genoveva com seriedade -

    muito melhor seria, Maurcio, porque este amor umcrime.

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    A CONDESSA DE CHARNY 13; -J disse isso mesmo a Morand? - perguntouMaurcio tornando a si vista de to sbita frieza.- O sr. Morand no um louco como o senhor;nunca me foi preciso indicar-lhe o modo como deviaconduzir-se em casa de um amigo.- Aposto - respondeu Maurcio sorrindo ironicamente- aposto que apesar de Dixmer no jantar em

    casa, Morand no saiu? Ah! a est o que deveopor-me para obstar a que eu a ame, Genoveva; poisenquanto Morand aqui estiver, sempre a seu lado, eno a deixando um nico instante - continuou elecom desprezo - oh! no, no, jamais lhe terei amor,ou pelo menos nem a mim prprio confessarei que aamo.- E eu - bradou Genoveva j cansada de to contnuadesconfiana, e apertando freneticamente o

    brao do mancebo - juro-lhe, Maurcio, e digo-lhede uma vez para sempre, e para nunca tornar a repeti-lo,que Morand nunca me teve amor, nem o h-de

    ter nunca: juro-lhe pela alma de minha me!- Oh! meu Deus! - exclamou Maurcio - quantoeu dera para poder acredit-la.- Oh sim!, acredite-me, pobre louco - disse elacom um sorriso, que decerto equivalia a uma eternaconfisso para outro qualquer que no estivesse cegode cime; - acredite-me; e j que preciso dizer-lhetudo, saiba que Morand est apaixonado por umamulher to superior a todas as outras mulheres daterra como as estrelas do Cu esto superiores sflores que nascem nos campos.- E qual ser - perguntou Maurcio - a mulherto superior a todas -as mais, quando no nmero dessas

    existe Genoveva?- Ora diga-me - replicou Genoveva sorrindo-se -no sabe que a pessoa a quem se ama sempre aobra prima da criao?

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    14 MEMRIAS DUM MDICO- Pois bem - disse Maurcio - se no me tem amor,,Genoveva...Genoveva esperou com bastante ansiedade pelo fimda frase.- Se no me tem amor -continuou Maurcio -

    quer ao menos jurar que nunca amar outro?- Oh! se isso que quer Maurcio, juro-lhe de todoo meu corao - exclamou Genoveva contentssimapor ver que Maurcio lhe oferecia um meio de transigircom a sua conscincia.

    Maurcio agarrou nas mos que Genoveva levantouao Cu, e beijou-as com ardor.- Muito bem - disse ele - agora hei-de ser dcil,crdulo e generoso. Quero mostrar-me alegre e serfeliz.- E no exigir mais nada?- Tratarei de no exigir.- Agora - disse Genoveva - parece-me que j no preciso que estejam segurando o cavalo. A secoque espere.- Oh! Genoveva! quisera que o mundo inteiro esperasse,e poder obrig-lo a esperar por sua causa.

    Ressoaram pancadas no ptio.- A nos vm chamar para a mesa - disse Genoveva.E a furto apertaram as suas mos mutuamente.Era Morand que vinha participar que s se esperavapor Maurcio e Genoveva para o jantar.

    Morand tambm se tinha vestido com esmero paraassistir ao jantar domingueiro.Genoveva apoiou a mo no brao de Maurcio eambos se dirigiram para a casa de jantar.Morand seguiu-os.

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    A CONDESSA DE CHARNY 15II

    O pedidoChegados casa de jantar, cada um tomou o seulugar habitual.Morand vestido com tanto apuro, no deixou deexcitar a curiosidade de Maurcio.O janota mais requintado no teria podido notar-lheum defeito no atado da gravata, nas pregas das

    botas, nem na finura da roupa.Contudo, devemos confessar, que no cabelo e nosculos no tinha havido alterao.S ento, to certo ficara com o juramento de Genoveva,Maurcio deu o devido valor aos tais culos

    e cabelo.- Os diabos me levem! - disse consigo Maurcio,indo ao encontro de Morand - se algum dia tornar ater cimes de ti, bom cidado Morand! Podes vestirtodos os dias, se quiseres, a casaca domingueira cor depeito de rola, e se te parecer manda mesmo fazer para

    os dcadis uma casaca de brocado de ouro. De hoje pordiante prometo que s hei-de ter na lembrana o teucabelo e os teus culos, e que nunca mais hei-de acusar-tede amares Genoveva.

    J se v que, depois deste solilquio, Maurcio nopodia deixar de apertar a mo ao cidado Morand commais franqueza e cordialidade do que tinha por costume.Ningum mais havia para jantar alm das pessoaspresentes. Estavam postos os trs talheres em umamesa estreita. Maurcio logo se lembrou que por baixo

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    16 MEMRIAS DUM MDICOda mesa poderia encontrar o p de Genoveva, e queo p continuaria a conversa muda e amorosa que amo encetara.Depois de assentados, Maurcio via de lado Genoveva,que tinha ficado colocada entre a janela e ele;

    o cabelo preto apresentava um reflexo azulado comoas asas de um corvo; estava corada, e com os olhoslanguidamente amorosos.Maurcio procurou e encontrou o p de Genoveva.Buscou ler-lhe na fisionomia o efeito que produzira oprimeiro contacto, e viu que havia corado e que logoem seguida se tornara plida, porm o pezinho permaneceupacificamente entre os dele.

    Morand parecia ter resumido, com a casaca cor depeito de rola, o seu esprito dos dcadis, e a brilhanteconversao que tanto espanto causava s vezes aMaurcio, e a que s faltava a animao dos olhos,que os culos verdes ocultavam.Disse centos de loucuras sem se rir; o que dava

    realce aos gracejos de Morand, e um chiste extraordinrios suas lembranas repentinas, era a seriedade

    imperturbvel que sabia conservar.Aquele negociante, que tinha viajado tanto porcausa dos negcios de pelames de toda a casta, desdeas peles de pantera at s de coelho, aquele qumico,que Maurcio j vira com os braos tintos de vermelho,conhecia o Egipto como Hrodoto, a frica to

    bem como Levaillant, e o teatro italiano e os camarinsdas damas como qualquer janota.

    - Mas com os demnios, cidado Morand - disseMaurcio - vejo que alm de saber muito tambmum grande sbio.

    - Oh! no admira, tenho visto muito e lido aindamais - disse Morand - e demais, preciso ir-mepreparando a pouco e pouco para a vida de descansoe de prazer que tenciono levar logo que tenha adqui-

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    A CONDESSA DE CHARNY 17rido fortuna. J tempo, cidado Maurcio, j tempo!-Ora essa - respondeu Maurcio - est falando

    como um velho; que idade tem?Morand sobressaltou-se com a pergunta, alis to

    natural.- Tenho trinta e oito anos. A tem o resultado que

    tiro de ser um sbio, como me chamou, j no se meconhece a idade.Genoveva desatou a rir, Maurcio fez o mesmo;porm Morand apenas sorriu.- Visto isso, tem viajado muito? -perguntou Maurcioapertando o p de Genoveva, que procurava

    imperceptivelmente retir-lo de entre os seus.- Passei parte da minha mocidade em terras estranhas -respondeu Morand.

    - Deve ter visto, ou por melhor dizer, deve terobservado muita coisa - disse Maurcio - porque umhomem como o cidado Morand, estou crente que

    no v sem observar.- verdade; tenho visto muita coisa, e quase meatrevo a dizer que tenho visto tudo quanto h.- Tudo, cidado! muito asseverar - respondeuMaurcio rindo-se; - talvez, procurando bem...-Ah! sim, tem razo. H duas coisas que nunca vi.

    Verdade seja que estas duas coisas se tornam de diapara dia cada vez mais raras.-Que ? - perguntou Maurcio.- A primeira - respondeu Morand com muita seriedade, um Deus.-Pois ento - disse Maurcio - na falta de Deus,

    cidado Morand, poder-lhe-ei mostrar uma deusa.

    -Como assim? - interrompeu Genoveva.-Sim, uma deusa recentemente criada; a deusa

    Razo. Tenho um amigo de quem me tem ouvidofalar s vezes, o meu caro e valente Lorin, ptimoVol. VI - 2

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    18 MEMRIAS DUM MDICOmoo que no tem seno um defeito, que a maniade fazer quadras e trocadilhos.- E depois?- Depois, acaba de mimosear a cidade de Pariscom uma deusa Razo muito bem acondicionada, eque mereceu geral aprovao. a cidad Artemsia,que foi danarina do Teatro da pera e tem actualmenteloja de perfumarias na rua Martin. Logo que

    deseje v-la de perto, apresent-lo-ei.Morand agradeceu gravemente a Maurcio com umainclinao de cabea e continuou:-A outra coisa, um rei.- Oh! isso h-de ser mais difcil - disse Genovevacom riso forado; - j se acabou.- Por que no tratou de ver o ltimo? - disse Maurcio- agora j no tem remdio.

    - De sorte que - disse Morand - no me possvelformar ideia do que seja uma testa coroada; deve sercoisa muito triste.

    - E com efeito tristssima - respondeu Maurcio - euposso afirm-lo com conhecimento de causa, porquequase todos os meses vejo uma.

    - Uma testa coroada? - perguntou Genoveva.- Ou que, pelo menos - replicou Maurcio - j suportouo incmodo e doloroso peso de uma coroa.

    - Ah! sim, a rainha - disse Morand; - tem razo,sr. Maurcio, deve ser um espectculo bem triste...-E verdade ser ela to formosa e soberba como

    por a dizem? - perguntou Genoveva.- Pois nunca a viu, minha senhora? - perguntouMaurcio muito admirado.-Eu? Nunca... - replicou Genoveva.

    - Na verdade - disse Maurcio - clebre!-Clebre porqu? - disse Genoveva; - vivi naprovncia at 1791; desde ento para c tenho vividona rua Velha de Saint-Jacques, que muito se parece

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    A CONDESSA DE CHARNY 19com a provncia, com a diferena que aqui nunca sev o Sol, e h menos ar e menos flores; sabe a vidaque levo, cidado Maurcio, sempre tem sido a mesma;como era possvel que eu visse a rainha? Nunca seofereceu ocasio para isso.- E penso que no ter desejo de aproveitar a quetalvez se lhe oferea em breve - disse Maurcio.- Que pretende dizer? - perguntou Genoveva.- O cidado Maurcio - replicou Morand - aludea uma coisa que j no segredo.- Que ? - perguntou Genoveva.- H probabilidade da condenao de Maria Antonietae de se efectuar a sua morte no mesmo cadafalsoem que morreu o marido. O cidado quer dizer

    finalmente que decerto no a querer ver sair doTemplo para ser conduzida praa da Revoluo.- Oh! por certo que no! - exclamou Genoveva aoouvir estas palavras, que Morand proferira com omaior sangue frio.

    - Pois ento renuncie a v-la - prosseguiu o qumicosempre impassvel - porque aAustraca est

    bem guardada, e a repblica uma fada que tornainvisvel quem quer.- Confesso, todavia - disse Genoveva - que sempreteria a minha curiosidade de ver aquela pobre

    mulher.- Ora diga-me - perguntou Maurcio, semprepronto a satisfazer os menores desejos de Genoveva -realmente deseja isso muito? Se assim , pronuncieuma palavra e a repblica ser uma fada, visto queo cidado Morand o diz: porm eu, na minha qualidadede membro da municipalidade, sou uma espcie

    de feiticeiro.- E poderia fazer com que eu visse a rainha?- exclamou Genoveva.- Decerto posso.

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    20 MEMRIAS DUM MDICO- E de que maneira? -perguntou Morand fazendoa Genoveva um sinal significativo, em que o mancebono reparou.- muito simples - disse Maurcio. H algunsmembros da municipalidade de quem se desconfia,porm eu, que tenho dado prova da minha adeso causa da liberdade, no sou desse nmero. Alm deque, a entrada do Templo depende conjuntamente dosmembros da municipalidade e dos comandantes dafora. Ora sucede que no dia em que tenho de entrarde servio, tambm l h-de estar o meu amigo Lorin,que julgo destinado a substituir um dia o generalSanterre, pois no espao de trs meses tem galgadodo posto de cabo de esquadra ao de tenente ajudante.Portanto, se quiser, v ter comigo ao Templo no diaem que eu entrar de guarda, isto , quinta-feira quevem.- Ento - disse Morand -est cumprido o desejo.Que mais quer?

    -Oh! no, no - disse Genoveva - no aceito.- Por que razo? - perguntou Maurcio, que tinhaempenho em que se verificasse aquela visita ao Templo,porque era o meio de ver Genoveva num dia em

    que lhe era foroso privar-se de tamanha felicidade.-Porque - respondeu Genoveva - talvez lhe ocasionasse,meu caro sr. Maurcio, algum conflito desagradvel,e no quero por forma alguma concorrer

    para que tenha um desgosto qualquer para satisfazeruma simples curiosidade minha.- Disse muito bem, Genoveva - interrompeu Morand.Hoje em dia desconfia-se de todos, e os melhorespatriotas podem tornar-se suspeitos! renuncie a

    semelhante projecto que na verdade no passa de umacuriosidade frvola.- Parece-me que por inveja que assim fala, Morand,e como nunca viu nem rainha, nem rei, no quer

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    A CONDESSA DE CHARNY 21que os outros os vejam. Em lugar de discutir, acompanhe-mena digresso.

    -Eu! por minha f que no.-J no a cidad Dixmer que deseja ir ao Templo- disse Maurcio - sou eu que lhe peo, e ao

    senhor tambm, que me faam uma visita para distrairum pobre preso, pois logo que passo daquele portopara dentro, fico, posto que seja por vinte e quatrohoras, to realmente preso Como se fora rei ou prncipe.- E em seguida apertando o p de Genoveva, continuou:- V, peo-lho eu.- Ora vamos, Morand - disse Genoveva - decide-sea acompanhar-me?- um dia que perco - respondeu Morand - e paraquem est contando as horas para deixar a vida docomrcio, o tempo precioso...- Pois ento no irei - disse Genoveva.-Porqu? - perguntou Morand.- Por uma razo muito evidente - replicou Genoveva; - porque

    no posso contar com meu maridopara me acompanhar, e se no vier comigo, o senhor,que um homem srio, e j com os seus trinta e oitoanos, eu s no me atrevo a ir arrostar com sentinelasde artilheiros, de granadeiros e de caadores, paraprocurar um membro da municipalidade, que apenastem mais trs ou quatro anos do que eu.- Nesse caso - disse Morand - j que cidad lhe

    parece indispensvel a minha presena...-Vamos, vamos, cidado sbio, seja amvel como

    se fosse simplesmente um homem como os outros -disse Maurcio, e sacrifique metade de um dia esposade um amigo seu.

    - Agora - continuou Maurcio - s lhes peo umacoisa, que discrio. Uma visita ao Templo um

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    22 MEMRIAS DUM MDICOacto muito suspeito, e a menor irregularidade queviesse a resultar de semelhante visita bastaria paranos levar todos direitinhos guilhotina. Os jacobinosno so gente com quem se brinque! Bem sabemcomo eles trataram os girondinos.- Com os demnios! - exclamou Morand - as reflexesque faz o cidado Maurcio so de muito peso;

    declaro que no me agradaria muito retirar-me davida do comrcio por tal maneira.- No ouviu - - replicou Genoveva sorrindo-se - queo cidado Maurcio disse todos?- Todos?!- Sim, todos juntos.- No h dvida - respondeu Morand - a sociedadehavia de ser divertida, porm eu, minha bela

    Sentimental, antes quero viver do que morrer na suacompanhia.- Onde teria eu o juzo - pensou Maurcio - quandome persuadi de que este homem tinha amor a

    Genoveva?- Muito bem, est tudo convencionado - prosseguiuGenoveva; - olhe, Morand, com o senhor que estoufalando, homem distrado e meditabundo, lembre-seque o ajuste para quinta-feira; veja, pois, no selembre na quarta-feira noite de empreender algumaexperincia qumica, que o detenha durante vinte equatro horas como s vezes sucede.- Fique descansada - disse Morand; - e demais,daqui at l favor lembrar-me de vez em quando.Genoveva levantou-se da mesa, Maurcio imitou-a;Morand ia para se levantar tambm e acompanh-lostalvez, quando entrou um dos operrios, que vinha

    entregar-lhe um frasquinho cheio de um lquido, quepassou a examinar com a maior ateno.- Vamos depressa - disse Maurcio para Genoveva,ao sair da casa dejantar.

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    A CONDESSA DE CHARNY 23- Oh! no h que recear - respondeu ela; - temdivertimento para uma hora, pelo menos.E dizendo isto, abandonou-lhe a mo, que ele apertouternamente. Ela sentia remorsos da traio que

    lhe fizera, e para minor-los queria dar-lhe algunsinstantes de felicidade.- Veja - disse ela ao atravessar o jardim, e mostrandoa Maurcio a caixa de mogno com os cravos,

    que tinham sido postos ao ar para ver se era possvelressuscit-los - veja, morreram as minhas flores.-E quem as matou? Foi o seu descuido - disseMaurcio; - pobres cravos!- No foi o meu descuido, foi o seu abandono, meucaro.- Mas, mui pouca coisa bastaria para os animar;uma gota de gua, nada mais; durante a minha ausnciano lhe faltou decerto tempo para tratar deles.

    - Ai - disse Genoveva - se fosse possvel regarflores com lgrimas, os meus pobres cravos no estariam

    murchos.Maurcio envolveu-a nos braos, puxou-a rapidamentepara si, e primeiro que ela tivesse tempo de se

    defender, j ele tinha beijado os olhos que estavamcontemplando a caixa devastada.Genoveva sentia-se to culpada para com ele, que

    no teve remdio seno mostrar-se indulgente.J era tarde quando voltou Dixmer, e veio achar

    Morand, Genoveva e Maurcio no jardim, conversandoem botnica.

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    24 MEMRIAS DUM MDICO

    IIIA ramalheteiraChegou finalmente a desejada quinta-feira, em queMaurcio entrava de servio.Tinha comeado o ms de Junho. O Cu apresentava

    uma cor de azul carregado, e esta tinta sombria

    fazia sobressair a alvura das casas novamentecaiadas.J se ia conhecendo a aproximao do co temvelque os antigos representavam como devorado continuamentepor uma sede, que nada podia saciar, e que,

    segundo dizem os parisienses da plebe, lambe to perfeitamenteas ruas. Paris estava pois limpa como

    uma alcatifa, e os perfumes cados do ar, exaladosdas rvores, emanados das flores, giravam na atmosfera,embriagando os sentidos, como para disfarar

    por alguns instantes o vapor de sangue, que fumegavasem cessar nas praas da capital.Maurcio devia entrar para o Templo s nove horas;

    os seus dois colegas eram Mercevault e Agrcola.s oito j ele estava na rua Velha de Saint-Jacquescom o seu distintivo de cidado municipal, que erauma faixa tricolor atada roda da cintura; tinha idoat casa de Genoveva a cavalo, como sempre costumava,e durante o trnsito tinha recebido testemunhosinsuspeitos de admirao das dignas patriotas,

    que o viam passar.Genoveva estava pronta; tinha vestido um simplesroupo de cassa, uma espcie de manto de tafet muileve, e uma touquinha enfeitada com um lao tricolor.

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    A CONDESSA DE CHARNY 25Apesar deste vesturio to singelo, estava resplandecentede formosura.

    Morand, que a muito custo se tinha resolvido a-acompanhar o rancho, como j vimos, estava vestidocom o seu fato de todos os dias, que era um termomdio entre o trajo burgus e o de artista, e istoprovavelmente pelo receio de se tornar suspeito dearistocrata.Acabava de chegar de fora naquele instante, emostrava na fisionomia sinais evidentes de grandecansao.Afirmou ter trabalhado toda a noite para concluiruma obra de grande urgncia.Dixmer sara apenas o seu amigo Morand voltarade casa.- Ento - perguntou Genoveva - diga o que resolveu,cidado Maurcio? de que maneira conseguiremos

    ver a rainha?- Oua-me - respondeu Maurcio - j formei o

    meu plano. Chego consigo ao Templo, e entrego-osao cuidado do meu amigo Lorin, que quem transmiteas ordens guarda. Em seguida vou colocar-me nomeu posto, e quando for ocasio venho busc-los.- Mas - perguntou Morand; - onde poderemos nsver as presas e como as veremos?- Durante o almoo, ou o jantar, se quiserem, pelaporta de vidraa dos membros da municipalidade.- Muito bem - disse Morand.E dizendo estas palavras, viu Maurcio que Morand

    foi a um armrio e vazou um copo de vinho, que bebeuapressadamente. Ficou admirado, porque sabia queMorand era excessivamente sbrio e no bebia usualmente

    vinho sem gua.Genoveva percebeu que Maurcio olhava para elecom espanto.- Aquele desgraado Morand - disse ela - mata-se

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    26 MEMRIAS DUM MDICO

    com trabalho. Estava capaz de apostar que ainda nocomeu desde ontem de manh.- Ento no jantou aqui? - perguntou Maurcio.- No, anda fazendo experincias fora de casa.Esta advertncia de Genoveva era trabalho escusado.Maurcio, como verdadeiro amante, isto , como

    egosta, apenas havia prestado aco de Moranda ateno superficial com que um homem apaixonadoobserva tudo que no diz respeito mulher de quemgosta.Morand, depois do copo de vinho, cortou uma fatiade po, que num instante engoliu.- Agora - disse ele depois de acabar de comer -estoupronto, meu caro cidado Maurcio; partiremos

    quando determinar.Maurcio, que estava entretido em desfolhar os pistilosressequidos de um cravo murcho, que de passagem

    apanhara, apresentou o brao a Genoveva, dizendo:- Vamos l.

    Saram com efeito. Maurcio quase no cabia emsi de contente, e com dificuldade se continha parano dar expanso felicidade que sentia.Na realidade, que mais poderia desejar? no s elano gostava de Morand, e disso tinha toda a certeza,seno pelo contrrio tinha-lhe amor a ele, pelo menosassim o esperava.Deus tinha presenteado a terra com um dia lindo.O brao de Genoveva descansava no dele, e os cegos,apregoando com grande vozearia o triunfo dos jacobinose a queda de Brissot e dos seus cmplices,

    anunciavam que estava salva a ptria.H na verdade instantes da nossa vida em que o

    corao humano no pode, por demasiado pequeno,conter em si a alegria ou a dor que nele se concentra.- Que belo dia! - exclamou Morand.Maurcio olhou para ele admirado; era a primeira

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    A CONDESSA DE CHARNY 27vez que via aquele ente, sempre distrado e pensativo,dar largas a um impulso do corao.- deveras belssimo - disse Genoveva carregandono brao de Maurcio. Possa ele durar at noitepuro e sem nuvens como est neste momento!Maurcio tomou estas palavras como ditas paraele, e julgou-se ainda mais feliz.Morand olhou para Genoveva atravs dos seus culosverdes com uma expresso singular de gratido;

    era porque talvez tambm tivesse aplicado a si aspalavras que ela proferira.Atravessaram desta sorte a ponte pequena, a ruada Judiaria, e a ponte de Nossa Senhora; tomaramdepois pelo largo do palcio da municipalidade, pelarua Barre-du-Bec e pla de Saint-Avoye. medida que iam andando, Maurcio caminhavamais ligeiro; os seus dois companheiros, pelo contrrio,iam demorando o passo cada vez mais.

    Tinham chegado esquina da rua das Vieilles Haudriettes,

    quando de repente uma ramalheteira lhes tolheuo passo, apresentando-lhes um cesto carregado

    de flores.- Oh! que magnficos cravos! - exclamou Maurcio.- verdade que muito lindos so! - disse Genoveva.Quem os cultivou no tinha por certo nada que

    o preocupasse, porque estes no murcharam.Estas palavras foram reflectir agradavelmente nocorao do mancebo.- Ah! meu guapo municipal - disse a ramalheteira- compra um ramalhete para essa cidad to

    formosa. Est vestida de branco, aqui tens cravosvermelhos muito bonitos; o branco e o vermelho so

    duas cores que se ligam muito bem; o ramalhete serpara ela colocar junto ao corao, e como o coraodela est to chegado tua casaca azul, assim ficaroreunidas as trs cores nacionais.

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    28 MEMRIAS DUM MDICOA ramalheteira era moa e bonita; disse este cumprimentocom muita graa, e demais a mais tinha

    acertado to admiravelmente na escolha de tal cumprimento,que nem de propsito teria sido mais bem

    adaptado s circunstncias.Alm de que, as flores que ela oferecia eram quasesimblicas, por serem cravos semelhantes aos quetinham murchado na caixa de mogno.- Sim, - disse Maurcio - vou compr-los por seremcravos, percebes-me? Detesto todas as outras flores.- Ora Maurcio - disse Genoveva - escusadocompr-los; tenho tantos l no jardim!Apesar porm da recusa que os lbios proferiram,os olhos de Genoveva estavam dizendo que desejavadeveras o ramalhete.

    Maurcio pegou no mais farto de todos, que erajustamente o que lhe oferecia a bonita vendedeirade flores.Constava de vinte cravos de cor escarlate, queexalavam um cheiro acre e suave ao mesmo tempo.No centro e sobranceiro aos mais, como um rei, apareciaum cravo de tamanho descomunal.

    - Toma l - disse Maurcio para a vendedeira, atirandopara o cesto com um assinado de cinco francos;

    - toma l, isto para ti.- Muito obrigado, guapo municipal - disse a ramalheteira; -cinco vezes obrigada!

    E logo se dirigiu para outro grupo de cidados,

    esperando provavelmente que um dia comeado debaixode to felizes auspcios lhe havia de trazer

    bons lucros.Durante esta cena, que aparentemente era muito

    simples, e que apenas havia durado alguns segundos,Morand parecia cambalear e limpava o suor da testa,e Genoveva estava plida e trmula.Apertou convulsivamente com a encantadora mo

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    A CONDESSA DE CHARNY 29o ramalhete apresentado por Maurcio, e levou-o logoao rosto, no tanto para respirar o cheiro que eleexalava, como para disfarar a agitao que dela seapoderara.Andaram alegremente o resto do caminho, isto ,pelo que dizia respeito a Maurcio, pois a alegria deGenoveva parecia contrafeita.Morand, porm, mostrava o seu contentamento deum modo muito clebre; eram suspiros abafados, gargalhadasestrepitosas e motejos pesadssimos dirigidos

    indistintamente aos indivduos que topava.Eram nove horas quando chegaram ao Templo.Santerre estava fazendo a chamada dos membrosda municipalidade.- Eis-me aqui - gritou Maurcio, entregando Genovevaao cuidado de Morand.

    - Ah! bem-vindo sejas - disse Santerre estendendoa mo ao mancebo.Maurcio apertou imediatamente a mo que se

    lhe oferecia.A amizade de Santerre era por certo uma das maisvaliosas daquela poca.Genoveva arrepiou-se e Morand tornou-se plido,quando viram o homem que tinha ordenado o clebrerufo de tambores.- Quem aquela linda cidad - perguntou Santerrea Maurcio - e que vem ela aqui fazer?

    - a mulher do honrado cidado Dixmer; nuncaouviu falar do valente patriota, cidado general?- Sim, sim - respondeu Santerre - um fabricantede curtumes, capito de atiradores na legio Vtor.- Isso mesmo.

    -Bom! bom! Por minha f que bonita mulher.E aquela espcie de mono que lhe d o brao?- o cidado Morand, scio do marido e soldadoda companhia de Dixmer.

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    - Santerre aproximou-se de Genoveva e disse comgalanteria.- Muito bons-dias, cidad.Genoveva fez um esforo sobre-humano e respondeusorrindo:-Muito bons-dias, cidado general.

    Santerre ficou por extremo lisonjeado com o sorriso,e com o ttulo que lhe deram.- E que vens tu fazer aqui, linda patriota? - prosseguiuSanterre.

    - A cidad - replicou Maurcio - nunca viu a vivaCapeto e desejava v-la.- Sim - disse Santerre - quer v-la antes que...E rematou a frase com um gesto atroz.- Tal qual - respondeu Maurcio friamente.- Bem - disse Santerre; - s te recomendo quete arranjes de modo que no a vejam entrar na Torre,porque seria dar mau exemplo: estou certo de queno hs-de cometer imprudncias.

    Santerre apertou outra vez a mo de Maurcio, fezcom a cabea um aceno amigvel e protector dirigidoa Genoveva, e foi tratar de cumprir outros deveresque lhe competia.Depois de terem presenciado numerosas evoluesde granadeiros e de caadores, e algumas manobrasde artilharia, com o fim de incutir nos nimos da vizinhanaum terror salutar, Maurcio deu novamente

    o brao a Genoveva, e seguido de Morand caminhoupara o corpo da guarda, em frente do qual estavaLorin, esganiando-se a comandar o exerccio doseu batalho.- Bom! - exclamou ele - a vem o Maurcio. Safa!

    que traz consigo uma mulher que no me parece m.Dar-se- o caso que aquele sonsinho queira apresentaruma opositora minha deusa Razo? Se assim for,ests perdida, pobre Artemsia!

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    A CONDESSA DE CHARNY 31- Ento ficamos aqui, cidado ajudante! -perguntouum capito.

    -Ah! verdade! sentido! - bradou Lorin - ombrosesquerdos, frente... Bons-dias, Maurcio;, ordinrio...marche!Os tambores rufaram, as companhias desfilarampara ir ocupar as suas posies respectivas, e logoque acabou esta manobra, Lorin foi ter com Maurcio.Tiveram ento lugar os primeiros cumprimentosentre eles.Maurcio apresentou Lorin a Genoveva e ao cidadoMorand.Feito isto, comearam as explicaes.- Sim, sim, percebo - disse Lorin; - queres que ocidado e a cidad possam entrar na Torre; coisafaclima; vou mandar postar as sentinelas, e voudizer-lhes que te deixem entrar com a tua comitiva.Da a dez minutos, Genoveva e Morand entraramna companhia dos membros da municipalidade e foram

    colocar-se por detrs da porta de vidraa.IVRompimentoA rainha acabava de erguer-se naquele instante.Havia dois ou trs dias que estava adoentada, e poresse motivo se demorava na cama at mais tarde doque costumava. Contudo, tendo ouvido dizer cunhadaque o dia estava lindo, quis levar a filha a tomar ar,e para isso mandou pedir licena para passear noterrao, o que logo lhe foi concedido sem dificuldade.Havia ainda outra razo oculta, que a induzia a

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    32 MEMRIAS DUM MDICOsubir Torre. Uma vez, uma nica vez apenas, tinhaavistado do alto da plataforma o filho, que andavabrincando no jardim. Porm, logo ao primeiro acenoque a me lhe fizera, Simo entrepusera-se e levarapara dentro o menino.Mas no importava, vira-o e j era muito. O pobreinocente cativo estava na verdade muito plido emuito mudado. Alm disso estava vestido como umrapaz do povo, com uma carmanhola e de calas grossas.Porm no lhe tinham cortado o bonito cabelo

    louro e anelado, que lhe figurava de roda da cabeauma aurola, que Deus conservou sem dvida noCu quela criana mrtir.Que alegria para aquele corao de me, se elapudesse tornar a ver o filho uma nica vez que fosse!Havia mais outro motivo ainda.- Minha irm - tinha dito a princesa Isabel -achamos, como sabe, no corredor uma palhinha arrumadaao canto da parede, conforme a linguagem dos

    nossos sinais, isto quer dizer que estejamos alertae que est prximo um amigo nosso.- verdade - tinha respondido a rainha, a qual,se bem que no tivesse f nas esperanas que nutriama cunhada e a filha, tratava contudo de no asdesanimar.Depois de preenchidas as formalidades do servio,Maurcio, que a sorte designara para a guarda dodia, dando aos membros da municipalidade Agrcolae Mercevault a da noite, ficou investido do mando nointerior da torre do Templo.Os membros da municipalidade, que tinham sidorendidos, j tinham sado, depois de haverem entregado

    ao conselho do Templo a parte da guarda.- Ora bons-dias, cidado municipal - disse a mulherTison apresentando-se a Maurcio para o cumprimentar -

    pelo que vejo trouxe companhia consigo para

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    A CONDESSA DE CHARNY 33lhe mostrar as nossas pombinhas? S eu, por minhainfelicidade, estou condenada a no tornar a ver aminha pobre Helosa!- So amigos meus - respondeu Maurcio - quenunca viram a viva Capeto.- Pois ento ficaro aqui muito bem colocados pordetrs desta vidraa.- No h dvida - disse Morand.- Sim - disse Genoveva - vamos figurar de gentebrbara, que vem presenciar por fora dos vares deuma grade os tormentos de um pobre preso.- Porque no colocou antes os seus amigos nocaminho da plataforma da Torre, visto que a vivavai l passear hoje com a irm e com a filha, porquea ela deixaram-lhe ficar a filha, ao passo que amim, que no sou criminosa, privaram-me da minha!Oh! estes aristocratas! por mais que se faa, semprepara eles h-de haver favores, cidado Maurcio.- Deixaram-lhe a filha, verdade, mas tiraram-lhe

    o filho - respondeu este.- Ah! se eu tivesse um filho - murmurou a carcereira -parece-me que no havia de ter tantas saudadesda minha filha.

    Genoveva e Morand tinham feito alguns sinais umpara o outro durante esta conversa.- Meu amigo - disse Genoveva para Maurcio -a cidad tem razo. Se nos colocasse no caminho poronde h-de passar Maria Antonieta, antes quiseraisso do que estar a v-la daqui. Repugna-me espreitarassim algum, parece-me isto uma aco humilhantetanto para quem a pratica como para quem

    vitima dela.

    -Boa Genoveva - exclamou Maurcio - como delicada!- Ah! com os diabos - gritou um dos dois colegasde Maurcio, que estava na antessala almoando sal-Vol. VI - 3

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    34 MEMRIAS DUM MDICOsichas com po - se estivesse presa e a viva Capetotivesse curiosidade de v-la no havia de estar comtanta cerimnia, a patifa!Genoveva virou-se rapidamente para Morand paraobservar o efeito que estas injrias produziam nele.Morand estremeceu, os olhos relampejaram, fechouos punhos, mas tudo isto foi obra de um instante, eaqueles sinais de furor desapareceram to depressa,que ningum reparou neles.- Como se chama aquele membro da municipalidade? -perguntou ela a Maurcio.

    - o cidado Mercevault - respondeu o mancebo;- e depois acrescentou, como para desculpar

    a sua grosseria: um mestre canteiro.Mercevault ouviu estas palavras, e olhou de revspara Maurcio.- Vamos! vamos! - disse a mulher de Tison - acabade comer as salsichas e bebe este vinho, para eulevantar a mesa.

    - Olha, por vontade daAustraca no estaria euagora almoando aqui, rosnou o membro; se no dia10 de Agosto ela tivesse podido concorrer para aminha morte, t-lo-ia feito com muito gosto; mastambm no dia em que lhe cortarem a cabea, lhei-de estar a ver o espectculo na primeira fila, efirme como um rochedo.Morand tornou-se plido como um defunto.- Venha da, cidado Maurcio - disse Genoveva; -vamos para o lugar que nos prometeu; aqui parece-meque tambm estou presa, falta-me o ar.Maurcio, saiu, levando consigo Morand e Genoveva;as sentinelas, que j tinham sido avisadas por Lorin,

    deixaram-nos passar sem dificuldade.Foi coloc-los num corredor pequeno no andar superior,de forma que na ocasio em que a rainha, a

    princesa Isabel e -a princesa real subissem galeria,

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    A CONDESSA DE CHARNY 35haviam as augustas cativas de passar forosamenteem frente deles.Como o passeio havia de realizar-se s dez horase apenas faltavam alguns minutos, Maurcio no sficou acompanhando os seus amigos, mas at levouconsigo o cidado Agrcola, para que no pudessehaver a menor desconfiana acerca deste seu procedimento,algum tanto ilegal.

    Deram finalmente as dez horas.- Abra! - bradou entrada da torre uma voz,que Maurcio conheceu ser a do general Santerre.Imediatamente chegou a guarda s armas, fecharam-seas grades de ferro, e as sentinelas apresentaramarmas. Houve ento em toda a torre um rudo

    de ferro, de chaves e de passos, que pareceu causargrande impresso em Morand e Genoveva, pois Maurciopercebeu que ambos tinham empalidecido.

    - Tanta cautela para guardar trs mulheres! -murmurou Genoveva.

    - Sim - - disse Morand fingindo rir-se. Se as pessoas,que tm feito tentativas para as tirar daqui,

    tivessem visto o que estamos presenciando, nuncateriam sonhado em tal.-E na verdade - disse Genoveva - j vou acreditandoque no podero fugir daqui.

    -Assim o espero - respondeu Maurcio.E logo debruando-se sobre o corrimo da escada,disse:- Sentido! A vm as presas.- Diga-me os nomes - disse Genoveva - porqueeu no as conheo.- As duas que vm subindo adiante so a irm e a

    filha de Capeto. A ltima, que traz consigo um cozinho, Maria Antonieta.

    Genoveva deu um passo em frente. Porm, Morand,em vez de olhar coseu-se com a parede.

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    36 MEMRIAS DUM MDICOTinha os beios brancos como a cal da parede.Genoveva, com o seu vesturio branco e lindosolhos to puros, parecia um anjo, que estava esperadas presas para guiar no seu trnsito doloroso e consol-lasde passagem.

    A princesa Isabel e a princesa real passaram, depoisde terem olhado com admirao para o grupo: a primeirapensou provavelmente que eram estas as pessoasa que se referiram os sinais, pois voltou-se de

    repente para a princesa real e apertou-lhe a mo,deixando cair ao mesmo tempo o leno, a fim de prevenira rainha.

    - Tome sentido, minha irm - disse ela - que meescapou o leno da mo.E continuou a subir com a jovem princesa.A rainha abaixou-se para apanhar o leno, que lhetinha cado aos ps, mas primeiro que ela lhe chegassecom a mo, o cozinho apanhou-o, e foi a correrlev-lo princesa Isabel.

    A rainha continuou a subir, e no fim de algunsdegraus deu tambm com Genoveva, Morand e o jovemmembro da municipalidade.- Oh! que flores to bonitas - disse ela: - h muitotempo que estou privada desse gozo. Que cheiro tobom, e quanto feliz por poder possuir flores, minhasenhora.Genoveva, com a prontido do pensamento formuladonestas palavras to tristes, estendeu a mo para

    oferecer o ramalhete rainha. Maria Antonieta entolevantou a cabea para a encarar, e um rubor quaseimperceptvel lhe assomou ao plido rosto.Porm Maurcio, por um movimento natural, proveniente

    do costume da obedincia passiva ao regulamento,estendeu tambm a mo para deter o brao

    de Genoveva.A rainha, vendo isto, hesitou, e olhando para Mau-

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    [ A CONDESSA DE CHARNY 37rcio conheceu que era o jovem membro que j porvezes lhe tinha falado com severidade, mas sem nuncalhe faltar ao respeito.- Tambm isto proibido? - perguntou ela.- No, no, minha senhora - respondeu Maurcio.Genoveva pode oferecer o seu ramalhete.- Oh! obrigada, muito obrigada! - exclamou a rainha,mostrando-se agradecida.

    E cortejando Genoveva com afabilidade, MariaAntonieta estendeu a emagrecida mo, e tirou aoacaso um cravo do meio do ramalhete.- Aceite-as todas, minha senhora, digne-se aceit-las,disse Genoveva timidamente.

    - No - respondeu a rainha com um sorriso encantador- este ramalhete foi-lhe dado talvez por algum

    que muito estima, no quero priv-la dele.Genoveva corou um pouco, e a rainha sorriu novamenteao v-la corar.

    - Ora vamos! cidad Capeto - disse Agrcola -

    siga o seu caminho.A rainha cortejou outra vez, e continuou a subir;porm, antes de desaparecer, olhou para trs, murmurandoestas palavras:

    - Que cheiro to bom que tem este cravo e quebonita aquela mulher!- Ela no me viu - disse Morand, que, tendo ficadoquase de joelhos na penumbra do corredor, no tinhaefectivamente dado na vista rainha.- Mas o senhor viu-a, e Genoveva tambm, no assim? - perguntou Maurcio satisfeito de ter tidoocasio de fazer a vontade aos seus amigos e de obsequiarao mesmo tempo a pobre presa, condescendendo

    com o seu inocente desejo.- Oh! sim, sim - respondeu Genoveva - vi-a muitobem, e agora, ainda que eu viva cem anos, semprehei-de v-la na minha imaginao.

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    38 MEMRIAS DUM MDICO- E que tal lhe pareceu?- Muito formosa.- E o senhor, que diz, cidado Morand?Este juntou as mos sem responder.- Dar-se- o caso que Morand esteja namorado darainha? - disse Maurcio rindo, de modo que s Genovevao ouvisse.

    Genoveva sobressaltou-se; mas logo tornou a si erespondeu, rindo-se tambm:- Na verdade, assim parece.- Ento, Morand - prosseguiu Maurcio - no querdizer-me que tal lhe pareceu?- Achei-a muito plida - respondeu ele.Maurcio deu o brao a Genoveva, para desceremao ptio. Quando iam na escada, que era sombria,pareceu-lhe que Genoveva lhe tinha beijado a mo.- Genoveva - disse Maurcio - que quer dizer issoque acaba de fazer?- Quer dizer que me hei-de lembrar toda a vida,

    que para satisfazer um desejo meu, arriscou a suacabea.- Oh! - respondeu Maurcio - muita exagerao,Genoveva. E demais, no a gratido, como bemsabe, o sentimento que pretendo inspirar-lhe.Genoveva apertou-lhe levemente o brao.Morand seguiu-os a custo, pois ia tropeando pelaescada.Chegaram enfim ao ptio. Lorin foi reconhecer asduas visitas e acompanhou-as at porta do Templo.- Genoveva, porm, antes de se despedir de Maurcio,quis que ele lhe prometesse que no dia seguinte

    jantaria na sua companhia.

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    A CONDESSA DE CHARNY 39V

    Simo, o censorMaurcio voltou para o seu posto com o coraotrasbordando de contentamento, e ao entrar deu coma mulher Tison lavada em lgrimas.- Quem foi que lhe fez mal? - perguntou ele.

    - Estou furiosa: - respondeu a carcereira.- Porqu?-Porque no vejo praticar seno injustias paracom a gente pobre.- Mas enfim?...-O cidado rico: burgus, vem aqui estar umdia apenas, e assim mesmo concedem-lhe licena paraque venham visit-lo raparigas bonitas, que oferecemramalhetes Austraca ao passo que eu, que estouencaixada perpetuamente nesta toca, tenho proibiode ver a minha pobre Helosa.Maurcio meteu-lhe na mo um assinado de dezfrancos.

    - Aqui tem, boa Tison - disse ele - arrecade istoe tenha nimo. AAustraca, se Deus quiser, no h-deviver eternamente!- Um assinado de dez francos - exclamou a carcereira- um mimo muito aprecivel. Contudo eu

    antes quisera um papelote, que tivesse servido minhapobre filha.Simo que vinha subindo, ouviu estas palavras dacarcereira, e viu-a meter na algibeira o assinado queMaurcio lhe dera.Simo vinha do ptio, onde tinha encontrado Lorin.

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    40 MEMRIAS DUM MDICOOs dois homens antipatizavam decididamente um como outro.A antipatia, que havia entre eles no era motivadaunicamente pela cena de violncia, que j contmosaos nossos leitores; era ocasionada principalmente peladiferena de raa, origem eterna das inimizades e dassimpatias a que chamam mistrios, e que tm contudocausa to evidente.Simo era um homem feio; Lorin era bonito. Simoandava muito sujo; Lorin andava sempre asseado.Simo era um republicano fanfarro; Lorin era umpatriota entusiasta, que no se tinha poupado a sacrifcioalgum em favor da revoluo; alm disso, o

    instinto de Simo deixava muito bem adivinhar que,dado o caso de chegarem s mos, o janota Lorinhavia de mimose-lo com um castigo pblico, aplicadocom tanta elegncia como Maurcio lho fizera.Simo, quando avistou Lorin, parou e tornou-sefulo de raiva.

    - Pelo que vejo, temos este batalho outra vezde guarda aqui - rosnou ele.- E ento que tens que lhe dizer? - perguntou umgranadeiro, a quem o dito desagradou - parece-meque este batalho to bom como outro qualquer.Simo tirou um lpis da algibeira da carmanholae fingiu que tomava nota numa folha de papel quaseto enxovalhada como as mos que a seguravam.- Ol! - disse Lorin - tens aprendido a escrever,amigo Simo, desde que foste nomeado mestre doCapeto? Ento no querem ver, est tomando notado que digo; Simo, o censor.Os guardas nacionais que eram quase todos rapazes

    bem educados, desataram numa gargalhada geral,que tornou furioso o miservel remendo.- Bom, bom - disse ele rangendo os dentes e enfiadode raiva - dizem que deixaste entrar pessoas

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    A CONDESSA DE CHARNY 41estranhas na torre, sem licena da municipalidade.Vou j no mesmo instante dar uma nota de ti aomembro da municipalidade de servio.-Pois vai, porque esse ao menos sabe escrever- respondeu Lorin; - sabes quem , vil Simo? Maurcioque tu bem conheces, Maurcio que tem a mo

    to pesada, lembras-te?Era neste mesmo instante que saa Morand comGenoveva.Simo, logo que os viu, correu para a torre, e chegouacima, como j dissemos, na ocasio em que Maurciodava mulher Tison um assinado de dez francos,para a consolar.Maurcio no fez caso do miservel sapateiro, dequem costumava afastar-se instintivamente sempreque o encontrava, como se fora um rptil nojento evenenoso.-Ora anda c! - disse Simo para a mulher Tison,

    que ainda estava enxugando os olhos com o avental; - queres

    por fora ir parar guilhotina?-Eu? - perguntou a mulher Tison -porque dizes

    tu isso.-Porque? Nega, se podes, que recebeste dinheirodos membros da municipalidade para deixares entraros aristocratas que vieram visitar aAustraca.- Eu! - disse a mulher Tison - cala-te, ests louco.! - No me h-de esquecer essa particularidade nomeu relatrio - disse Simo enfaticamente.- No tem dvida, pois eram pessoas do conhecimentodo membro da municipalidade, Maurcio, que

    um dos melhores patriotas de Paris.- Eram conspiradores, digo-to eu; demais, eu darei

    conta municipalidade, e ela ajuizar.- Visto isso, vais denunciar-me, vil espio?- Vou, sim, se tu no preferires denunciar-te a tiprpria, ouviste Tison?

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    - Mas que hei-de eu denunciar? quem pretendes tuque eu denuncie?- Quero que digas o que se passou.. - Como isso possvel, seno houve novidade?- Onde estavam os aristocratas?- Ali na escada.

    - Quando a viva Capeto subiu torre?- Sim.- E falaram-lhe?- Disseram-lhe duas ou trs palavras.- Duas ou trs palavras, a tens! e demais, cheira-meaqui a aristocracia.

    - O cheiro que aqui est de cravo.- De cravo? Donde veio este cheiro de cravo!- De um ramalhete que a cidad tinha na mo.- Qual cidad?- A que esteve vendo passar a rainha.- Olha! a ests tu dizendo a rainha, mulher Tison;a sociedade com os aristocratas vai-te deitando a

    perder. Ento que isto que eu estou pisando? - prosseguiuSimo, abaixando-se.

    - O que h-de ser? - disse a mulher Tison, umaflor, um cravo! caiu provavelmente da mo da cidadDixmer, na ocasio em que Maria Antonieta tirou umdo ramalhete.- A mulher do Capeto tirou uma flor do ramalheteda cidad Dixmer? - perguntou Simo.- Sim, e fui eu prprio quem lho dei, percebes?- disse com voz ameaadora Maurcio, que tinhaestado a ouvir a conversa e j ia perdendo a pacincia.- Muito bem, muito bem, eu c me entendo, e seio que digo - rosnou Simo, apanhando o cravo, que

    havia calcado com o imenso p.- E eu - respondeu Maurcio - entendo uma coisa,e vou dizer-te o que : no tens que fazer aqui natorre; o teu lugar de carrasco l em baixo ao p

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    A CONDESSA DE CHARNY 43do pequenino Capeto: contudo no lhe baters hoje,porque estou eu aqui e probo-te que lhe toques.- Ah! ests ameaando-me, chamas-me carrasco-gritou Simo esmagando a flor entre os dedos; -pois bem, veremos se lcito aos aristocratas... Ento!que histria esta?- O qu? - perguntou Maurcio.- Isto que estou sentindo aqui no cravo. Ah! ah!vamos a ver.E logo vista de Maurcio, que ficou espantado,Simo tirou do clix da flor um papelinho cuidadosamenteenrolado, que tinha sido introduzido engenhosamenteno centro da flor.

    - Oh! - exclamou Maurcio tambm - que isto,meu Deus!- Em breve o saberemos, em breve o saberemos- disse Simo aproximando-se de uma fresta. Ah! oteu amigo Lorin diz que eu no sei ler, pois eu temostro j se sei ou no.

    O que Lorin tinha dito de Simo era uma calnia,sabia ler toda a casta de letra impressa, e mesmo letrade mo, sendo de certa grossura. Porm o bilhete eraescrito em caracteres to midos, que o velho Simoviu-se mas foi na grande necessidade de lanar modos culos.Ps por consequncia o bilhete na borda da frestae comeou a dar busca s algibeiras; mas, enquantoestava entregue a este trabalho, o cidado Agrcolaabriu a porta da antessala, que ficava mesmo emfrente da janelinha, e ocasionou uma corrente de ar,que varreu o papelinho como se fora uma pena, desorte que, quando Simo, passado um instante, conseguiu

    descobrir os culos e coloc-los no nariz, foidebalde que procurou o papel.Simo uivou de raiva.- Estava aqui um papel! - bradou ele - desapa-

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    receu, mas guarda-te, cidado municipal, que eu hei-detorn-lo a achar!E desceu apressadamente, deixando Maurcio bastanteatordoado.

    Dali a dez minutos, entraram na torre trs membrosda municipalidade. A rainha ainda estava na plataforma,

    e tinham dado ordem para que ignorasse tudoquanto acabava de se passar. Os membros da municipalidadeforam ter com ela.

    O primeiro objecto que lhes deu na vista foi o cravovermelho que ela ainda conservava na mo. Olharamuns para os outros como admirados, e chegando-sedepois ao p dela, o presidente da deputao disse:- D-nos essa flor.A rainha que estava longe de esperar semelhanteinterrupo, sobressaltou-se e hesitou.- Restitua essa flor, minha senhora - exclamouMaurcio fora de si.A rainha entregou o cravo.

    O presidente pegou-lhe, e seguido dos seus colegasrecolheu-se a uma sala prxima para o examinar efazer o seu relatrio.Abriram a flor; no ocultava coisa nenhuma.Maurcio respirou.- Esperem, esperem - disse um dos membros daMunicipalidade - o olho do cravo foi arrancado. O alvoloest na verdade vazio, porm j encerrou decerto

    um bilhete.- Estou pronto - disse Maurcio, a dar todas asexplicaes que forem necessrias. Mas primeiro quetudo requeiro ser preso.-Tomamos nota da tua proposta - disse o presidente

    - mas no acedemos a ela. Todos sabem ques um bom patriota.- E estou pronto a afianar pela minha vida aspessoas, que tive a imprudncia de trazer comigo.

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    A CONDESSA DE CHARNY 45- No afiances ningum, cidado Maurcio - respondeuo presidente.

    Neste momento, ouviu-se um grande rebolio nosptios.Era ocasionado por Simo, o qual, depois de terprocurado inutilmente o bilhetinho que o vento arrebatara,tinha ido ter com Santerre para lhe contar

    a tentativa do rapto da rainha, com todos os acessriosque lhe sugeriu a frtil imaginao.

    Santerre acudiu logo; tinha mandado cercar o Temploe render a guarda. Lorin, seriamente despeitado,

    protestou contra a ofensa, que se fazia ao seu batalho.- Ah! malvado remendo - disse ele para Simo,ameaando-o com o sabre; - a ti que eu devo estasensaboria, mas deixa estar que mas hs-de pagar.- E a mim parece-me que s tu quem hs-de pagar; tudo junto nao - respondeu o sapateiro esfre-gando as mos.

    ; - Cidado Maurcio - disse Santerre - conserva-te

    desde j disposio da municipalidade, que h-deproceder a interrogar-te.- Estou s tuas ordens, comandante; porm jrequeri ser preso e ainda insto no meu pedido.- Espera, espera - rosnou Simo com modo sorrateiro- visto teres tanto empenho em ser preso,

    vou tratar de alcanar o que pretendes.E saiu para procurar a Tison.

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    VIA deusa RazoProcurou-se durante todo o dia no ptio do jardime pela vizinhana o papelinho, que tinha sido origemde toda a bulha, e que devia encerrar, segundo todosafirmavam, o plano da conspirao.

    A rainha foi interrogada, depois de ter sido separadada cunhada e da filha; porm nada mais disse

    seno que havia encontrado na escada uma raparigaque tinha um ramalhete na mo; que a rapariga lheoferecera o ramalhete, mas que ela apenas haviatirado uma nica flor.E isto mesmo s depois de ter obtido o consentimentodo membro da municipalidade Maurcio.

    Nada mais tinha que dizer: era a verdade simplese pura.Relataram tudo a Maurcio quando chegou a suavez, e ele confirmou o depoimento da rainha comoexacto em todos os pontos.

    - Visto isso - disse o presidente - sempre existiauma conspirao.- impossvel - respondeu Maurcio - fui eu quemao jantar, em casa da cidad Dixmer, me ofereci paraa trazer a ver a presa, que ela nunca tinha visto.Mas nem havia dia designado, nem tnhamos ajustadao modo por que a havia de ver.- Porm ela vinha prevenida com flores - disse opresidente - o ramalhete tinha sido necessariamentefeito de antemo.- Nada, fui eu prprio que comprei as flores a uma

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    A CONDESSA DE CHARNY 47ramalheteira que no-las veio oferecer esquina darua das Vieilles-Audriettes.- Mas foi talvez a ramalheteira quem escolheu oramalhete?- No cidado, escolhi-o eu entre dez ou doze,

    verdade porm que escolhi o mais farto.- O bilhete foi talvez metido entre as flores duranteo trnsito?- Isso no era possvel, cidado, eu no me tireium minuto sequer do lado da cidad Dixmer, e paraexecutar essa operao que diz, em cada uma dasflores, porque preciso notar que, segundo afirmaSimo, cada uma das flores devia conter um bilheteigual, seria necessrio pelo menos meio-dia.- Mas, finalmente, no seria possvel que tivessemsido introduzidos entre as flores dois bilhetes preparadoscom antecedncia?

    - Foi na minha presena que a presa tirou umaflor ao acaso, mas depois de ter rejeitado o ramalhetetodo.

    - pois de parecer, cidado Lindey, que no existaconspirao alguma?- Pelo contrrio - replicou Maurcio - houve conspirao,e no s o creio mas at o afirmo; o que digo

    unicamente que os meus amigos no entraram naconspirao. Contudo, como desejo dar nao todasas garantias compatveis, ofereo-me em refns e paraisso quero considerar-me preso.- Isso no consinto eu - respondeu Santerre; -seria uma afronta a um patriota to conhecido comotu. Se te entregasses priso como refns da procedimentode teus amigos, ia eu logo pedir que me

    prendessem tambm como garantia da tua conduta.De sorte que o negcio muito simples; no hdenncia alguma positiva, no verdade? Ningumsaber o que se passou. Estejamos todos alerta, e tu

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    mais do que ningum, e assim conseguiremos deso-brir o que houve, evitando a publicidade.- Muito obrigado, meu comandante - disse Maurcio- porm eu responder-lhe-ei o que diria se estivesseno seu lugar. Isto no deve ficar assim,

    preciso tratarmos de descobrir a ramalheteira.

    - A ramalheteira j estar longe daqui a estashoras: mas deixa estar que havemos de procur-la.Tu vigia os teus amigos, que eu vigiarei as correspondncias

    com a priso.Ningum se tinha lembrado de Simo, que todaviatambm tinha o seu projecto.Chegou no fim da sesso, que acabamos de relatar,para saber o que tinha ocorrido, e disseram-lhe qualtinha sido a deciso da municipalidade.- Ah! falta-lhes uma denncia regular - disse ele -para dar seguimento a este negcio; pois esperemque eu j lha trago.- Quem o denunciante? -perguntou o presidente.

    - - respondeu o sapateiro - a valorosa cidadTison, que denuncia as intrigas secretas do partidrioda aristocracia chamado Maurcio, em que tambmse acha implicado um outro falso patriota seu amigochamado Lorin.- V o que fazes, Simo, v o que fazes! Olha note cegue o teu demasiado zelo pelo bem da nao- disse o presidente; - Maurcio Lindey e JacintoLorin tm dado repetidas provas de patriotismo.- Veremos isso l no tribunal - replicou Simo.- Reflecte bem, Simo, olha que um processoescandaloso, que vai ofender todos os verdadeirospatriotas.

    - Que me importa a mim que seja escandaloso ouno? Pensas porventura que eu receie dar escndaloao pblico. o nico meio de sabermos com verdadequem so os que nos atraioam.

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    A CONDESSA DE CHARNY 49--Nesse caso persistes na tua denncia em nomeda cidad Tison?- E hei-de repeti-la esta noite no clube dos Franciscanos,denunciando-te tambm a ti, cidado presidente,se no consentires em ordenar a priso do

    traidor Maurcio.- Pois bem, seja como dizes - respondeu o presidente,que segundo o costume daquele desgraado

    tempo, tremia diante de todo aquele que tinha o arrojode levantar mais a voz. - Seja como dizes, h-de serpreso.Maurcio, enquanto se tomava esta deliberao contraele, tinha regressado ao Templo, onde achou um

    bilhete concebido nestes termos:Tendo sido a minha guarda interrompida por foramaior, no ser provvel ver-te amanh pela manh;vem pois almoar comigo e nessa ocasio me contarso resultado das tramas e conspiraes que mestreSimo descobriu.Dizem-me Que o Simo malvadoUm pobre cravo d como culpado;Eu, que de leve no quero julgar.Vou a minha rosa interrogar.E amanh, quando tu vieres, dir-te-ei a respostada Artemsia.Teu amigo, Lorin".Maurcio respondeu-lhe:No h novidade; dorme descansado esta noitee almoa amanh sem mim, por isso que, atentas asatribulaes do dia de hoje, no sairei de casa naturalmenteantes do meio-dia.

    Vol. VI - 4

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    50 MEMRIAS DUM MDICOMuito desejara neste momento ser zfiro para terdireito de mandar um beijo rosa em quem me falas.Dou-te licena para pateares a minha prosa comoeu pateio os teus versos.Teu amigo, Maurcio.P. S.A conspirao, segundo penso, no passa de umrebate falso.Lorin tinha retirado, com efeito, pela volta dasonze horas com todo o seu batalho, em consequnciada denncia do brutal sapateiro.Para se consolar de semelhante humilhao, tinhafeito a quadra que h pouco vimos, e para cumpriro que dizia a quadra, tinha ido visitar Artemsia.Artemsia ficou contentssima quando viu entrarLorin. O tempo estava lindo, como j dissemos, epara o aproveitar convidou ela Lorin para um passeiopelo cais, ao que ele anuiu.Tinham j atravessado o cais do carvo, e iam

    conversando em poltica. Lorin contava o modo porque tinha sido expulso do Templo e procurava atinarcom o motivo do procedimento havido para com ele,quando chegados altura da rua des Barres, avistaramuma ramalheteira, que tambm seguia como eles amargem do Sena.- Ah! cidado Lorin - disse Artemsia -espero queaproveitars esta ocasio para me ofereceres umramalhete.- Com todo o gosto! - respondeu Lorin - e doismesmo, se lhe aprouver.E alargaram o passo para alcanar a ramalheteira,que ia caminhando apressadamente.

    Chegada que foi Ponte-Maria, a rapariga parou,

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    A CONDESSA DE CHARNY 51e debruando-se por cima do parapeito, despejou ocesto no rio.As flores avulsas redemoinharam um instante noar. Os ramalhetes, porm, sendo mais pesados, caramlogo, e depois, tanto os ramalhetes como as flores,boiando ao cimo da gua, foram seguindo a correntedo rio.- Ora esta! - disse Artemsia olhando para aramalheteira, que acabava de dar extraco suafazenda de modo to clebre - havia de jurar... noh duvida... mas no pode ser... a mesma... extraordinrio!A ramalheteira levou um dedo boca como parapedir a Artemsia que se calasse, e desapareceu.-Que espanto esse? - perguntou Lorin; - diga-mo,minha deusa, conhece aquela mortal?

    - No. Pareceu-me de repente... Mas certamentefoi engano.- Contudo - insistiu Lorin -ela fez-lhe um sinal.

    - Porque andar ela hoje feita ramalheteira? -disse Artemsia como falando consigo.- Ento sempre confessa que a conhece? - perguntouLorin.

    - Sim - respondeu Artemsia - uma ramalheteira,a quem eu compro flores s vezes.

    - Seja qual for - disse Lorin - a tal ramalheteirad sada sua mercadoria de uma maneira muitosingular.E ambos, depois de olharem uma ltima vez paraas flores, que j tinham chegado ponte de madeiraonde a gua lhes dera um novo impulso, continuaramo seu caminho para o stio da Rape, onde tencionavam

    jantar ss.O incidente que acabamos de relatar no teve nenhumaconsequncia naquela ocasio; porm, como

    era extraordinrio e apresentava certa aparncia de

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    52 MEMRIAS DUM MDICOmistrio, ficou gravado na potica imaginao deLorin.A denncia que a cidad Tison havia dado, e queabrangia Maurcio e Lorin, tinha causado grandetumulto no clube dos Jacobinos, e a municipalidademandou ao Templo avisar Maurcio de que a sualiberdade estava em termos de ser ameaada pela

    indignao pblica.Era um modo indirecto de dizer ao jovem membroda municipalidade que se escondesse, caso se sentisseculpado. Porm Maurcio, sabendo em sua conscinciaque estava inocente, no saiu do Templo, e ainda

    se conservava no seu posto quando foram prend-lo.Maurcio foi imediatamente interrogado.Se bem que persistindo sempre na firme resoluode no comprometer os amigos, em quem tinha todaa confiana, Maurcio contudo, que no era homemque se deixasse ficar ridiculamente calado, como umheri de novela, pediu que fosse procurada e processada

    a ramalheteira.Eram cinco horas da tarde, quando Lorin voltou acasa e soube da priso de Maurcio e do requerimentoque este fizera.Logo lhe acudiu lembrana a ramalheteira, quetinha visto na Ponte-Maria deitando as flores ao Sena.Teve uma inspirao repentina. Aquela ramalheteirato singular, a coincidncia dos bairros, a espcie deconfuso de Artemsia, tudo lhe dizia instintivamenteque ali estava a explicao do mistrio, que Maurcioqueria ver revelado.Saltou de um pulo fora do quarto, desceu apressadamenteos quatro andares, e correu sem parar at

    casa da deusa Razo, que estava bordando estrelasde ouro num vestido de cassa azul.Era o seu uniforme de divindade.- Ponha as estrelas de parte, querida amiga - disse

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    A CONDESSA DE CHARNY 53Lorin. Maurcio foi preso esta manh, e eu s-lo-eiprovavelmente esta noite.- Maurcio preso!- como lhe digo! e no para admirar, porqueneste tempo em que vivemos todos os dias sucedemgrandes acontecimentos, e se no do na vista, porvirem todos de tropel. Ora quase todos os grandesacontecimentos tm origem em alguma causa muitotrivial. No desprezemos por consequncia as trivialidades.Quem era aquela ramalheteira que esta

    manh encontrmos, minha querida amiga?Artemsia sobressaltou-se.- Que ramalheteira?- Pois no encontrmos uma, que estava atirandoto prodigamente com as flores ao Sena?- Oh! meu Deus - disse Artemsia - pois deutanto peso quele acontecimento, que ainda se lhepreocupa a imaginao por essa forma.- para mim tanto peso, minha querida amiga,

    que lhe peo me responda imediatamente ao que lhepergunto.- No posso, meu amigo.- Minha deusa, para a senhora no h impossveis.- Estou obrigada pela minha honra a calar-me.- E eu vejo-me obrigado pela minha honra a faz-lafalar.-Mas que motivo tem para assim teimar?- Que motivo tenho?... com todos os demnios! para evitar que cortem a cabea a Maurcio.- Ai Deus meu! Maurcio guilhotinado!... - exclamoua rapariga atemorizada.

    - Isto , no falando em mim, porque na realidade

    no me atrevo a afirmar que a cabea me esteja muitosegura nos ombros.- Oh! no, no - disse Artemsia - deit-la-ia aperder infalivelmente.

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    54 MEMRIAS DUM MDICONaquele mesmo instante o oficioso de Lorin entrouapressadamente no quarto de Artemsia.- Ah! cidado - bradou ele - foge! foge!- Fugir, e porqu? - perguntou Lorin.- Porque se apresentaram agora l em casa osgendarmes, e enquanto estavam ocupados em arrombara porta, fugi pelo telhado para a casa imediata,

    e vim correndo a avisar-te.Artemsia deu um grito terrvel. Gostava deverasde Lorin.- Artemsia - disse Lorin tomando uma atitudetrgica - tem porventura mais valor a seus olhosa vida de uma ramalheteira do que a de Maurcio ea do seu amante? Se assim , desde j declaro que voudeixar de chamar-lhe deusa Razo, e passo a proclam-ladeusa Loucura.

    - Pobre Helosa - exclamou a ex-bailarina dapera; - no por minha vontade que vou atraioar-te!--Bem! muito bem! querida amiga - disse Lorin

    apresentando um papel a Artemsia. - J me fez ofavor de dizer o nome, diga-me agora o apelido ea morada.- Oh! escrev-lo eu, isso nunca: - disse Artemsia; -di-lo-ei visto que assim o exige.

    - Pois diga-mo e fique descansada que no se meh-de escapar da memria.Artemsia - disse Lorin - o apelido e a morada dafingida ramalheteira: chama-se Helosa Tison, e moravana rua des Nonandires, n. 24.

    Lorin, quando ouviu o nome, soltou um grito edeitou a fugir pela casa fora.Ainda no teria chegado ao fim da rua, quando

    veio uma carta para Artemsia.Continha apenas estas palavras:

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    A CONDESSA DE CHARNY 55Nem uma palavra a meu respeito, minha queridaamiga; se souberem quem eu sou, fico perdida infalivelmente.Se quiseres dizer a algum o meu nome,

    espera at amanh, porque esta noite hei-de sair deParis.Tua, Helosa.- Oh! meu Deus! - exclamou a futura divindade -se eu tal adivinhasse esperava pelo dia de amanhpara falar!E correu para a janela para chamar Lorin, mas jera tarde.Lorin tinha desaparecido.VIIA me e a filhaJ dissemos que a notcia do acontecimento se espalhara

    por todo Paris no espao de algumas horas.Havia efectivamente um governo, cuja poltica sediscutia nas ruas.Chegou pois o rumor terrvel e ameaador at

    rua Velha de Saint-Jacques, e duas horas depois dapriso de Maurcio j l a sabiam.Graas actividade de Simo, os pormenores daconspirao tinham sido divulgados em breve parafora do Templo; porm, como todos acrescentavamum ponto ao conto, j ia algum tanto desfiguradaquando chegou ao conhecimento do mestre curtidor:diziam que se tratava de uma flor envenenada, quealgum tinha mandado entregar rainha, e que almde tudo isto tambm tinha havido suspeitas acerca

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    56 MEMRIAS DUM MDICO

    da fidelidade do batalho, que Santerre mandararender.De sorte, que j estavam diferentes vtimas apontadas vindicta do povo.

    Mas a gente da rua Velha de Saint-Jacques no seenganou (por motivos fceis de compreender) a respeito

    da natureza do acontecimento, e tanto Morandcomo Dixmer saram logo cada um para seu lado,deixando Genoveva entregue maior desesperao.Genoveva era, sem dvida alguma, a causa principalda desgraa sucedida a Maurcio.Era ela que, por assim dizer, tinha conduzido ocego mancebo pela mo at ao crcere, em que ia serencerrado, segundo todas as probabilidades, e donde ssairia para caminhar para o patbulo.Mas, em todo o caso, Maurcio no havia de pagarcom a sua cabea a condescendncia que tinha tidopara com Genoveva.Se Maurcio fosse condenado, Genoveva projectava

    ir acusar-se a si prpria perante o tribunal e confessartudo.Tencionava tomar sobre si toda a responsabilidade,sobre si unicamente, e assim, a troca da sua existncia,havia de salvar Maurcio.

    Genoveva no se horrorizava com a ideia de morrerpor Maurcio, sentia, pelo contrrio, uma supremafelicidade quando tal lembrana lhe ocorria.Amava-o e esse amor no era lcito numa mulherque pertencia a outrem.Oferecia-se-lhe pois uma ocasio de entregar aalma a Deus pura e sem mcula tal como a recebera.Morand e Dixmer tinham-se separado ao sair de

    casa.Dixmer encaminhou-se para a rua da Cordoaria,e Morand correu na direco da rua des Nonandires.Este ltimo, quando chegou ao fim da Ponte-Maria,

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    A CONDESSA DE CHARNY 57viu a multido de vadios e de curiosos, que em Pariscostumam parar sempre embasbacados durante oudepois de qualquer acontecimento, no stio em queeste se deu, semelhana de corvos pairando sobreum campo de batalha.Morand, logo que viu to numerosa reunio, estacou,tremeram-lhe as pernas e teve de se encostar

    ao parapeito da ponte.Finalmente, tornou a si, passados alguns minutos,e com admirvel sangue frio, que nunca o abandonavanos lances crticos, meteu-se por meio dos grupos,indagou o que tinha sucedido, e soube que havia

    coisa de cinco minutos tinham ido prender rua desNonandires n. 24, uma rapariga, que decerto eraculpada do crime de que a acusavam, pois se estavaaprontando para fugir.Morand perguntou qual era o clube onde a pobrerapariga tinha ido a perguntas. Sabendo que haviasido conduzida para a seco principal, logo para l se

    encaminhou.Havia enchente no clube.Contudo Morand, a poder de socos e cotoveladas,conseguiu encaixar-se numa galeria.A primeira coisa que se ofereceu vista, foi aelevada estatura e o rosto varonil de Maurcio, quecom ademanes desdenhosos em frente do banco dosrus, fulminava com o olhar o sapateiro Simo, queestava perorando.- Sim, cidados - gritava Simo; - sim, a cidadTison acusa perante vs o cidado Lindey e o cidadoLorin. O cidado Lindey desculpa-se com uma ramalheteira,a quem pretende imputar o crime, porm

    desde j vos previno que a ramalheteira, por maisque a procurem, no h-de ser encontrada; umainspirao urdida pela sociedade dos aristocratas, queesto jogando empurra uns com os outros, como

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    58 MEMRIAS DUM MDICOuma corja de cobardes que so. E demais, bem viuque o cidado Lorin tinha desaparecido de casa quandol foram procur-lo. H-de suceder com ele comosucedeu com a ramalheteira, ningum o torna maisa ver.- Mentes, Simo - bradou uma voz furiosa; - ho-detorn-lo a ver, porque ele aqui est.

    E dizendo isto, Lorin arremessou-se ao meio dasala.- Deixem-me passar - gritou ele, acotovelando osespectadores; - abram caminho!E foi colocar-se ao lado de Maurcio.A entrada de Lorin, efectuada muito naturalmente,sem nfase, mas com toda a franqueza, e com o vigorprprio do gnio impetuoso do mancebo, produziu amaior impresso no pblico das galerias, que logocomeou a aplaudir e a dar bravos.Maurcio sorriu-se e estendeu a mo ao amigo, emar de quem j tinha dito a si mesmo:

    -No hei-de estar muito tempo s no banco dosrus.Os espectadores olharam com visvel interesse paraaqueles dois mancebos to galantes, que o imundosapateiro do Templo acusava como um demnio invejoso.O sapateiro conheceu que a opinio da assembleialhe ia gradualmente sendo desfavorvel. Resolveuportanto vibrar o ltimo golpe.- Cidados! - berrou ele - peo que seja ouvidaa generosa cidad Tison. Peo que ela acuse!- Cidados - disse Lorin - peo que seja ouvidapreviamente a rapariga vendedeira de ramalhetes,que foi agora mesmo presa e que provavelmente vai

    ser aqui conduzida.- No - disse Simo - mais alguma testemunhafalsa, alguma partidria dos aristocratas. E demais,

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    A CONDESSA DE CHARNY 59a cidad Tison deseja dar quanto antes os esclarecimentosnecessrios justia.

    Lorin, durante este tempo, estava conversando emvoz baixa com Maurcio.- Sim - gritou o povo das galerias - sim, venha odepoimento da cidad Tison; sim, aparea a depor!- A cidad Tison est aqui presente na sala? - perguntouo presidente.

    - Est, sim, gritou Simo. Anda, fala, cidad Tison,dize-lhe que ests aqui.- Aqui estou, meu presidente - disse a carcereira;- porm diga-me, se eu depuser, restituem-me aminha filha?- A tua filha nada tem com o negcio de que estamostratando - respondeu o presidente; - faze o teu

    depoimento e depois vai pedir municipalidade que terestitua a tua filha.-Ouves? o cidado presidente ordena-te que deponhas- gritou Simo - fala, pois, sem mais demora.

    - Espera um instante - disse, virando-se para Maurcioo presidente, que estava admirado de ver a placidezdo mancebo, habitualmente to fogoso; - espera

    um instante. Fala tu em primeiro lugar, cidadomunicipal; nada tens que dizer?- No, cidado presidente; digo somente que sdeveria ter procurado informar-se melhor antes de seabalanar a estigmatizar de traidor e cobarde um

    homem como eu.-Que isso que dizes? que isso que dizes?...

    - repetiu Simo no tom de troa, to usual na plebede Paris.- Digo, Simo - respondeu Maurcio com tristeza -

    que te hs-de arrepender amargamente, quando vireso que est para suceder.-E que que est para suceder? - perguntou

    Simo.

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    60 MEMRIAS DUM MDICO- Cidado presidente - replicou Maurcio sem responderao seu hediondo acusador - peo o mesmo que

    o meu amigo Lorin, manda que a rapariga, que foipresa pouco, seja ouvida antes de obrigarem afalar essa pobre mulher, que provavelmente foi insinuadapara vir aqui depor.

    - Ouves, cidad? - gritou Simo, ouves? - estacol dizendo que s uma testemunha falsa!- Eu, testemunha falsa - disse a mulher Tison. -Ah! pois eu te mostro se o sou; espera, espera!- Cidado - disse Maurcio - por caridade, ordenaquela desgraada que se cale.-Ah! j tens medo - bradou Simo - j tensmedo. Cidado presidente, requeiro o depoimentoimediato da cidad Tison.- Sim, sim, o depoimento! - gritaram das galerias.- Silncio! - gritou o presidente; - a vem a municipalidade.Ouviu-se naquele momento o rodar de uma carruagemacompanhado de grande estrondo de armas e de

    vociferaes.Simo, assustado, voltou-se para a porta.- Desce da tribuna - disse-lhe o presidente - jno tens a palavra.Simo desceu.Os gendarmes entraram ento juntamente comuma chusma de curiosos, e abrindo caminho, deixaramver uma mulher, que foi empurrada para dentro dotribunal.- esta? - perguntou Lorin a Maurcio.- , sim, a mesma; - respondeu este. Oh! desgraadamulher! ests perdida!

    - a ramalheteira! a ramalheteira! - murmuravam

    das galerias, onde o povo estava apinhadopara a ver; - acol est a ramalheteira!- Requer primeiro que tudo o depoimento da ci-

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    A CONDESSA DE CHARNY 61dad Tison - uivou o sapateiro; - j lhe ordenasteque depusesse, presidente, e bem vs que est calada.A cidad Tison foi interrogada, e deu uma dennciaterrvel e circunstanciada.Declarou que a principal culpada era a ramalheteirana verdade, porm que Maurcio e Lorin eram

    decerto seus cmplices.Esta denncia produziu no auditrio um efeitoterrvel.Simo j olhava triunfantemente em volta de si.- Gendarmes, conduzi a ramalheteira - bradou opresidente.- Oh! isto horrvel! - murmurou Morand escondendoo rosto com as mos.

    A ramalheteira foi chamada, e veio colocar-se aop da tribuna, defronte da Tison, que no seu depoimentoacabara de acus-la de um crime capital.

    Levantou ento o vu que lhe cobria a cara.- Helosa! - exclamou a Tison - minha filha...

    aqui?...-Sim, minha me - respondeu a rapariga comdoura.- E por que motivo ests tu entre dois gendarmes?- Porque fui acusada, minha me!- Tu... acusada? - gritou a cidad Tison com desespero- e por quem?

    - Por vossa merc mesmo, minha me!Um silncio sepulcral reinou de repente naquelareunio, pouco antes to ruidosa, e o sentimento dolorosode to horrvel cena causou em todos um aperto

    de corao.- Sua filha! - murmuraram vrias vozes - era sua

    filha! que malvada!Maurcio e Lorin olhavam para a acusadora e paraa acusada com expresso de sentimento e profundo d.Simo, apesar do desejo Que tinha de ver o desen-

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    62 MEMRIAS DUM MDICOvolvimento do processo, por esperar que dele resultassealgum comprometimento para Maurcio e Lorin,

    procurava contudo esconder-se das vistas de Tison,que olhava para todos como espavorida.- Como te chamas tu, cidad? - disse o presidente,que tambm estava comovido, olhando para a rapariga,a qual parecia estar conformada com a sua

    sorte.- Helosa Tison.-Que idade tens?- Dezanove anos.- Onde moras?- Na rua des Nonandires n. 24.- Foste tu que vendeste ao cidado municipalLindey, que est assentado naquele banco, um ramalhetede cravos?

    A rapariga Tison virou-se para Maurcio, e depoisde o ter encarado, respondeu:- Sim, cidado, fui eu.

    A Tison olhou para a filha com olhos espantados.- Sabes que dentro de cada um dos cravos haviaum bilhete dirigido viva Capeto?- Sei muito bem - respondeu a r.Houve no auditrio um movimento de horror e deadmirao.- Por que motivo ofereceste tu os cravos ao cidadoMaurcio?

    - Porque vi que levava a faixa tricolor, e logoconjecturei que ia para o Templo.- Quais so os teus cmplices?- No tenho nenhuns.-Como! pois urdiste sozinha a conspirao?

    - Se o que fiz uma conspirao, sou eu a nicaautora dela.- Porm, o cidado Maurcio saberia que as floresencerravam bilhetes?

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    A CONDESSA DE CHARNY 63-No. O cidado Maurcio da municipalidade;podia, querendo, falar a ss com a rainha a toda ahora do dia e da noite. Se o cidado Maurcio quisessedizer alguma coisa rainha, no precisava escrever-lhe,podia falar-lhe.

    - E tu no conhecias o cidado Maurcio?- Tinha-o visto entrar no Templo, s vezes notempo em que eu l vivia com a minha pobre me,mas s o conhecia de vista.- Vs, perverso! - gritou Lorin para Simo comgesto ameaador; - aqui tens a tua obra! O sapateirocabisbaixo e aterrado, por ver a face que o negcioia tomando, procurava retirar-se da sala o mais ocultamentepossvel.

    Todos os olhos se cravaram nele com um sentimentode indignao profunda.O presidente continuou:- Visto teres sido tu que vendeste o ramalhete, evisto teres confessado que sabias do papel que levava

    cada um