Mauss, Marcel. _22Ensaio Sobre as Variações Sazonais Das Sociedades Esquimós_22 in Sociologia e...

37
Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós Estudo de morfologia social Propomo-nos estudar aqui a morfologia social das sociedades esquimós. Sabe-se que designamos1 por essa palavra a ciência que estuda, não apenas para descrevê-lo mas também para explicá-lo, o substrato material das sociedades, isto é, a forma que elas os- tentam ao se estabelecerem no solo, o volume e a densidade da população, a maneira como esta se distribui, bem como o conjunto das coisas que servem de base para a vida coletiva. Mas o fato de nosso trabalho ter por objeto uma população geográfica determinada não signifi- ca que se deva considerá-lo como um estudo de pura etnografia. Nossa intenção não é de modo al- gum reunir, numa monografia descritiva, as particu- laridades diversas que pode apresentar a morfologia dos povos esquimós. Ao contrário, queremos estab- elecer, a propósito dos Esquimós, contribuições de uma certa generalidade. E, se tomamos como objeto especial de nosso estudo essa notável população,2 é que as relações para as quais queremos chamar a atenção estão ali como que amplificadas, apresen- tando caracteres mais acusados que permitem com- preender claramente sua natureza e seu alcance. Fica-se assim melhor preparado para percebê-las mesmo nas sociedades em que elas são menos ime- diatamente visíveis, em que a trama formada pelos outros fatos sociais as dissimula mais ao observador. Sob esse aspecto, o que faz dos Esquimós um campo de estudo privilegiado é o fato de sua morfologia não ser a mesma nos diferentes momentos do ano: conforme as estações, a maneira como os homens se agrupam, a extensão, a forma de suas casas, a na- tureza de suas instituições mudam completamente. Essas variações, cuja amplitude excepcionalmente considerável veremos mais adiante, permitem estu- dar em condições particularmente favoráveis a maneira pela qual a forma material dos agrupamen- tos humanos, isto é, a natureza e a composição de seu substrato, afeta os diferentes modos da atividade coletiva. Talvez se julgue que uma única população constitui uma base muito estreita para um estudo em que se busca estabelecer proposições que não se aplicam unicamente a um caso particular. Mas, em primeiro lugar, convém não perder de vista que os Esquimós ocupam uma imensa área litorânea, quando não de territórios.3 Há, não uma, mas várias sociedades esquimós4 cuja civilização é bas- tante homogênea para que elas possam ser util- mente comparadas, e bastante diversificada para que essas comparações sejam fecundas. Além disso, é um erro pensar que o crédito que merece uma proposição científica depende estritamente do número de casos em que se julga poder verificá-la. Quando uma relação foi estabelecida num caso, mesmo único, mas metódica e minuciosamente es- tudado, sua realidade é bem mais segura do que quando, para ser demonstrada, ela é ilustrada com fatos numerosos, mas discordantes, com exemplos curiosos, mas confusamente tomados de sociedades, raças, civilizações as mais heterogêneas. Stuart Mill disse alhures que uma experiência bem feita é sufi- ciente para demonstrar uma lei: ela é infinitamente mais demonstrativa do que muitas experiências mal feitas. Ora, essa regra de método aplica-se à sociolo- gia assim como às outras ciências da natureza. Aliás, indicaremos, no final deste trabalho, alguns fatos que mostrarão que as relações que vamos constatar entre os Esquimós não são desprovidas de generali- dade. Ao tratar dessas questões, somos levados a especificar nossa posição em relação aos métodos praticados pela disciplina especial que adotou o nome de antropogeografia.5 Os fatos que ela exam- Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variações Sazonais Das Sociedades Esquimós" In: Sociologia E Antropologia 1

description

Esquimós

Transcript of Mauss, Marcel. _22Ensaio Sobre as Variações Sazonais Das Sociedades Esquimós_22 in Sociologia e...

  • Ensaio sobre as variaes sazonais

    das sociedades esquims

    Estudo de morfologia social Propomo-nos estudar aqui a morfologia social das

    sociedades esquims. Sabe-se que designamos1 por

    essa palavra a cincia que estuda, no apenas para

    descrev-lo mas tambm para explic-lo, o substrato

    material das sociedades, isto , a forma que elas os-

    tentam ao se estabelecerem no solo, o volume e a

    densidade da populao, a maneira como esta se

    distribui, bem como o conjunto das coisas que

    servem de base para a vida coletiva.

    Mas o fato de nosso trabalho ter por objeto

    uma populao geogrfica determinada no signifi-

    ca que se deva consider-lo como um estudo de

    pura etnografia. Nossa inteno no de modo al-

    gum reunir, numa monografia descritiva, as particu-

    laridades diversas que pode apresentar a morfologia

    dos povos esquims. Ao contrrio, queremos estab-

    elecer, a propsito dos Esquims, contribuies de

    uma certa generalidade. E, se tomamos como objeto

    especial de nosso estudo essa notvel populao,2

    que as relaes para as quais queremos chamar a

    ateno esto ali como que amplificadas, apresen-

    tando caracteres mais acusados que permitem com-

    preender claramente sua natureza e seu alcance.

    Fica-se assim melhor preparado para perceb-las

    mesmo nas sociedades em que elas so menos ime-

    diatamente visveis, em que a trama formada pelos

    outros fatos sociais as dissimula mais ao observador.

    Sob esse aspecto, o que faz dos Esquims um campo

    de estudo privilegiado o fato de sua morfologia

    no ser a mesma nos diferentes momentos do ano:

    conforme as estaes, a maneira como os homens se

    agrupam, a extenso, a forma de suas casas, a na-

    tureza de suas instituies mudam completamente.

    Essas variaes, cuja amplitude excepcionalmente

    considervel veremos mais adiante, permitem estu-

    dar em condies particularmente favorveis a

    maneira pela qual a forma material dos agrupamen-

    tos humanos, isto , a natureza e a composio de

    seu substrato, afeta os diferentes modos da atividade

    coletiva.

    Talvez se julgue que uma nica populao

    constitui uma base muito estreita para um estudo

    em que se busca estabelecer proposies que no se

    aplicam unicamente a um caso particular. Mas, em

    primeiro lugar, convm no perder de vista que os

    Esquims ocupam uma imensa rea litornea,

    quando no de territrios.3 H, no uma, mas

    vrias sociedades esquims4 cuja civilizao bas-

    tante homognea para que elas possam ser util-

    mente comparadas, e bastante diversificada para

    que essas comparaes sejam fecundas. Alm disso,

    um erro pensar que o crdito que merece uma

    proposio cientfica depende estritamente do

    nmero de casos em que se julga poder verific-la.

    Quando uma relao foi estabelecida num caso,

    mesmo nico, mas metdica e minuciosamente es-

    tudado, sua realidade bem mais segura do que

    quando, para ser demonstrada, ela ilustrada com

    fatos numerosos, mas discordantes, com exemplos

    curiosos, mas confusamente tomados de sociedades,

    raas, civilizaes as mais heterogneas. Stuart Mill

    disse alhures que uma experincia bem feita sufi-

    ciente para demonstrar uma lei: ela infinitamente

    mais demonstrativa do que muitas experincias mal

    feitas. Ora, essa regra de mtodo aplica-se sociolo-

    gia assim como s outras cincias da natureza. Alis,

    indicaremos, no final deste trabalho, alguns fatos

    que mostraro que as relaes que vamos constatar

    entre os Esquims no so desprovidas de generali-

    dade.

    Ao tratar dessas questes, somos levados a

    especificar nossa posio em relao aos mtodos

    praticados pela disciplina especial que adotou o

    nome de antropogeografia.5 Os fatos que ela exam-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !1

  • ina so claramente, num certo sentido, do mesmo

    gnero que os que iremos abordar. Ela tambm se

    prope estudar o modo de repartio dos homens

    na superfcie do solo e a forma material das so-

    ciedades, e no se poderia contestar sem injustia

    que as pesquisas que ela empreendeu nessa direo

    trouxeram resultados importantes. Portanto, nada

    mais distante de nosso pensamento do que depreciar

    seja as descobertas positivas, seja as sugestes fecun-

    das que devemos a essa brilhante pliade de trabal-

    hadores. Ao conceber as sociedades apenas como

    grupos de homens organizados em pontos determi-

    nados do globo, no cometemos o erro de consid-

    er-las como se fossem independentes de sua base

    territorial; claro que a configurao do solo, sua

    riqueza mineral, sua fauna e sua flora afetam a or-

    ganizao delas. Mas, por serem especialistas da

    geografia, os cientistas dessa escola foram natural-

    mente induzidos a ver as coisas de que se ocupam

    sob um ngulo muito particular; em razo mesmo

    dos estudos aos quais se dedicam, eles atriburam ao

    fator telrico uma preponderncia quase exclusiva.6

    Em vez de estudarem o substrato material das so-

    ciedades em todos os seus elementos e em todos os

    seus aspectos, sobretudo e antes de tudo o solo que

    concentra sua ateno; ele que est no primeiro

    plano de suas pesquisas, e tudo que os diferencia dos

    gegrafos comuns que eles consideram o solo mais

    especialmente em suas relaes com a sociedade.

    Por outro lado, eles atriburam a esse fator

    no se sabe que perfeita eficcia, como se ele

    pudesse produzir os efeitos que, por suas meras

    foras, implica,7 sem precisar concorrer com outras

    que o reforcem ou o neutralizem, em totalidade ou

    em parte. Basta, por assim dizer, abrir os livros dos

    antropogegrafos mais reputados para ver essa con-

    cepo traduzir-se no prprio ttulo dos captulos: o

    solo tratado, sucessivamente, em suas relaes com

    a habitao, em suas relaes com a famlia, em suas

    relaes com o Estado etc.8 Ora, na realidade, o

    solo s age misturando sua ao de inmeros out-

    ros fatores dos quais inseparvel. Para que deter-

    minada riqueza mineral leve os homens a se agrupar

    em determinado ponto do territrio, no basta que

    ela exista; preciso ainda que o estado da tcnica

    industrial permita sua explorao. Para que os

    homens se aglomerem, em vez de viver dispersos,

    no basta que o clima ou a configurao do solo os

    convidem a isso, preciso ainda que sua organiza-

    o moral, jurdica e religiosa lhes permita a vida

    aglomerada.9 Longe de a situao propriamente

    geogrfica ser o fato essencial sobre o qual devemos

    fixar os olhos quase exclusivamente, ela constitui

    apenas uma das condies de que depende a forma

    material dos agrupamentos humanos; e, na maioria

    das vezes, tal situao s produz seus efeitos por

    intermdio de mltiplos estados sociais que ela

    comea por afetar, e que so os nicos que explicam

    a resultante final. Em uma palavra, o fator telrico

    deve ser relacionado com o meio social em sua total-

    idade e sua complexidade. Ele no pode ser isolado.

    Do mesmo modo, quando estudamos seus efeitos,

    em todas as categorias da vida coletiva que devemos

    acompanhar as repercusses.10 Todas essas questes

    no so portanto questes geogrficas, mas propri-

    amente sociolgicas; dentro de um esprito soci-

    olgico que iremos abordar aquelas que so o objeto

    deste trabalho. Se em vez da palavra antropo-

    geografia preferimos a expresso morfologia social

    para designar a disciplina qual pertence este estu-

    do, no por um gosto vo de neologismo; que

    essa diferena de rtulo traduz uma diferena de

    orientao.

    Alis, embora a questo da antropogeografia

    dos Esquims tenha muito freqentemente atrado

    os gegrafos, sempre curiosos dos problemas colo-

    cados pelas regies polares, o assunto que ir nos

    ocupar raramente tratado em seus trabalhos, a no

    ser de forma incidental e fragmentria. As duas

    obras mais recentes so as de Steensby, Om Eskimo

    Kulturens oprindelse (1905), e de Riedel, Die Po-

    larvlker. Eine durch naturbedingte Zge character-

    isierte Vlkergruppe (1902). O primeiro, que tam-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !2

  • bm o melhor, antes um estudo de etnografia; tem

    por principal objeto marcar a unidade da civilizao

    esquim e investigar sua origem, que o autor acredi-

    ta encontrar fora dos prprios Esquims, mas sem

    que a tese se apoie em provas muito convincentes.O

    outro livro mais exclusivamente geogrfico; con-

    tm uma boa descrio, dentre as que nos foram

    dadas at agora, das tribos esquims e de seu

    habitai. Mas nele encontramos, de uma forma ex-

    agerada que no surpreendente numa dissertao

    de aluno, a teoria da ao exclusiva do fator telrico.

    Quanto a outros trabalhos publicados, eles tratam

    quase unicamente do problema das migraes. So

    os de Hassert,11 Boas,12 Wachter,13 Issachsen,14

    Faustini.15 A terceira parte do trabalho de Mason16

    sobre os meios de transporte refere-se mais espe-

    cialmente aos Esquims, mas um estudo sobretudo

    tecnolgico, principalmente dedicado aos meios de

    transporte e de viagem.

    Por fim, Steensby praticamente o nico a

    dar alguma ateno questo especial das variaes

    sazonais da morfologia esquim; para trat-la, por-

    tanto, no teremos outro recurso seno os dados

    imediatos dos observadores.17

    1. Morfologia geral Mas, antes de examinarmos que formas espe-

    ciais apresenta a morfologia dessas sociedades nos

    diferentes momentos do ano, precisamos primeiro

    determinar quais seus caracteres constantes. Apesar

    das mudanas que ocorrem, h certos traos fun-

    damentais que permanecem sempre os mesmo se

    dos quais dependem as particularidades variveis

    que nos ocuparo a seguir. A maneira como as so-

    ciedades esquims fixaram-se ao solo, o nmero,a

    natureza, o tamanho dos grupos elementares de que

    elas so compostas,constituem fatores imutveis,e

    sobre esse fundo permanente que se produzem as

    variaes peridicas que adiante teremos de descr-

    ever e explicar. Portanto, esse fundo que devemos

    primeiro conhecer. Em outros termos, antes de fazer

    sua morfologia sazonal, precisamos constituir, no

    que ela tem de essencial, sua morfologia geral.18

    Os Esquims esto atualmente19 situados

    entre 78 8' de latitude norte (assentamento de Itah,

    es t re i to de Smith na cos ta noroes te da

    Groenlndia)20 e 53 4' ao sul, na baa de Hudson

    (costa oeste), limite extremo que eles atingem regu-

    larmente, mas onde no permanecem.21 Na costa

    do Labrador, vo aproximadamente at 54 e, no

    Pacfico, at 56 44>22 de latitude norte. Cobrem

    assim um espao imenso de 22 graus de latitude e

    cerca de 6o graus de longitude, que se estende at a

    sia, onde tm um assentamento (o de East Cape).

    23

    Mas dessa vasta regio, tanto na sia quanto

    na Amrica, eles ocupam apenas as costas marti-

    mas. Os Esquims so essencialmente um povo

    costeiro. Somente algumas tribos do Alaska habitam

    terras do interior:24 so as que se estabeleceram no

    delta do Yukon e no do Kuskokwim; ainda assim

    podem ser consideradas como situadas na parte

    martima dos rios.

    Mas podemos especificar ainda mais. Os Es-

    quims no so somente povos costeiros; so povos

    de falsia, se empregarmos essa palavra para desig-

    nar toda extremidade relativamente abrupta da cos-

    ta junto ao mar. que, de fato e o que explica a

    diferena profunda que separa os Esquims de todos

    os outros povos hiperbreos25 -, as costas que eles

    ocupam, com exceo dos deltas e praias sempre

    mal conhecidos da Terra do rei Guilherme, tm

    todas um mesmo carter: uma margem mais ou

    menos estreita de terra traa os limites de um

    planalto que se inclina mais ou menos bruscamente

    em direo ao mar. Na Groenlndia, a montanha

    pende sobre o mar, e o imenso glaciar a que se d o

    nome de Inlandsis (gelo do interior) deixa apenas uma faixa montanhosa cuja parte mais larga (larga

    por causa dos fiordes e no por ela mesma) no

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !3

  • mede mais que 140 milhas. Alm disso, essa faixa

    cortada pelos despejos, sobre o mar, das geleiras

    interiores. Os fiordes e as ilhas dos fiordes so os

    nicos lugares protegidos contra os fortes ventos e,

    portanto, com uma temperatura suportvel; s eles

    oferecem campos de pastagem aos animais de caa,

    bem como guas piscosas, facilmente acessveis,

    onde animais marinhos vm alimentar-se e so cap-

    turados.26 Assim como a Groenlndia, a pennsula

    de Melville, a terra de Baffin, as costas setentrionais

    da baa de Hudson apresentam tambm litorais

    muito recortados e escarpados. O planalto interior,

    se no ocupado por glaciares, varrido pelo vento

    e est sempre coberto de neve; praticamente s

    habitvel uma faixa de praias, de profundos vales

    que levam a lagos glaciais.27 O Labrador tem o

    mesmo carter, com um clima interior ainda mais

    continental.28 Os terrenos laurencianos do norte do

    Canad e da Boothia Felix terminam mais suave-

    mente numa certa extenso, sobretudo na enseada

    Bathurst; mas, como nas outras regies, o planalto

    interior reduz a espaos relativamente mnimos a

    extenso que, considerando-se apenas o mapa,

    pareceria dever ser habitvel.29 A costa a leste do

    Mackenzie oferece o mesmo aspecto na extremidade

    das montanhas rochosas at o cabo gelado no estre-

    ito de Behrng. A partir desse ponto, at a ilha de

    Kadiak, limite meridional da zona esquim, esta

    alternadamente constituda pela tundra dos deltas e

    pela queda das montanhas ou do planalto.30

    Mas se os Esquims so povos costeiros, a

    costa no para eles o que si ser comumente.

    Ratzel31 definiu as costas de uma maneira geral

    como "pontos de comunicao entre o mar e a ter-

    ra, ou ento entre esta e outras terras mais

    distantes". Esta definio no se aplica s costas que

    os Esquims ocupam.32 Entre elas e as terras situ-

    adas detrs h geralmente muito pouca comuni-

    cao. Nem os povos do interior vm costa para

    estadias duradouras,33 nem os Esquims invadem o

    interior.34 A costa aqui exclusivamente um habi-

    tat: no um lugar de passagem, um ponto de tran-

    sio.

    Depois de ter assim descrito o habitat dos

    Esquims, precisamos saber como esses povos esto

    distribudos na superfcie que ocupam, isto , de que

    grupos particulares so compostos, qual o nmero, o

    tamanho e a disposio deles.

    Em primeiro lugar, teramos que saber quais

    so os grupos polticos cuja reunio forma a popu-

    lao esquim. So os Esquims agregados de tribos

    distintas ou so uma nao (confederao de tribos)?

    Infelizmente, alm da falta de preciso dessa termi-

    nologia usual, ela , no nosso caso, de difcil apli-

    cao. A composio da sociedade esquim tem,

    nela mesma, algo de impreciso e flutuante, no

    sendo fcil distinguir de quais unidades definidas ela

    formada.

    Um dos sinais mais certos pelos quais se re-

    conhece uma individualidade coletiva, tribo ou

    nao, uma linguagem distintiva. Mas entre os

    Esquims verifica-se uma notvel unidade lingsti-

    ca em espaos considerveis. Quando somos infor-

    mados sobre as fronteiras dos diversos dialetos35

    e isso s acontece excepcionalmente , impossvel

    estabelecer uma relao definida entre a rea de um

    dialeto e a de um grupo determinado. Assim, no

    norte do Alaska, dois ou trs dialetos estendem-se

    por dez ou doze grupos que certos observadores

    acreditaram distinguir e aos quais do o nome de

    tribos.36

    Um outro critrio, distintivo da tribo, o

    nome coletivo que todos os seus membros possuem.

    Mas a nomenclatura manifestamente, nesse ponto,

    de uma extrema indeterminao. Na Groenlndia,

    no nos dado nenhum nome que se aplique a uma

    tribo propriamente dita, isto , a uma aglomerao

    de assentamentos locais ou de cls.37 Quanto ao

    Labrador, alm de os missionrios morvios no nos

    conservarem nenhum nome prprio, os nicos que

    possuamos para o distrito de Ungava (estreito de

    Hudson) so expresses cujo sentido extrema-

    mente vago, e no verdadeiros nomes prprios

    (povos de longe, povos das ilhas etc.).38

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !4

  • verdade que noutros lugares encontramos

    nomenclaturas mais claramente definidas.39 Mas,

    exceto na terra de Baffin e na costa oeste da baa de

    Hudson, onde as denominaes empregadas pare-

    cem ser constantes e so registradas identicamente

    por todos os autores,40 em toda parte h graves

    divergncias entre os observadores.41

    Mesma indeciso no que se refere s fron-

    teiras. por a, no entanto, que mais nitidamente se

    mostra a unidade de um grupo poltico que tem

    conscincia de si. Ora, elas so mencionadas apenas

    uma vez e a propsito de partes da populao es-

    quim que so as menos conhecidas.42 As guerras

    tribais so uma outra maneira, para uma tribo, de

    afirmar sua existncia e o sentimento que tem de si

    mesma; mas tampouco as conhecemos, exceto nas

    tribos alasquianas e centrais que, alis, tm uma

    histria.43

    De todos esses fatos, certamente no devemos

    concluir que a organizao tribal completamente

    estranha aos Esquims.44 Ao contrrio, estamos

    diante de um certo nmero de agregados sociais que

    parecem ter alguns dos traos geralmente consider-

    ados como pertencentes tribo. Mas vimos tambm

    que, na maior parte do tempo, esses agregados tm

    formas muito incertas, muito inconsistentes;

    percebe-se mal onde comeam e onde terminam;

    eles parecem misturar-se uns aos outros e formar

    entre si combinaes proteiformes; raramente vemo-

    los organizarem-se para uma ao comum. Portan-

    to, se a tribo no inexistente, ela com certeza no

    a unidade social, slida e estvel, sobre a qual re-

    pousam os agrupamentos esquims. Ela no consti-

    tui, para falar com exatido, uma unidade territori-

    al. O que a caracteriza sobretudo a constncia de

    certas relaes entre grupos aglomerados e entre os

    quais as comunicaes so fceis, e no o domnio

    de um grupo nico sobre um territrio com o qual

    se identifica e que fronteiras definidas distinguem

    claramente de grupos diferentes e vizinhos. O que

    separa as tribos esquims umas das outras so ex-

    tenses desertas, desprovidas de tudo, dificilmente

    habitveis, cabos impossveis de dobrar em qualquer

    tempo, e a raridade das viagens que disso resulta.45

    significativo que o nico grupo que d a im-

    presso de ser uma tribo propriamente dita seja o

    dos Esquims do estreito de Smith, que circunstn-

    cias geogrficas isolam completamente de todos os

    outros grupos, e cujos membros, embora ocupando

    um imenso espao, formam, por assim dizer, uma

    nica famlia.46

    A verdadeira unidade territorial muito mais

    o assentamento (settlemeni).47 Designamos assim um grupo de famlias aglomeradas unidas por laos es-

    peciais e que ocupam um habitat no qual esto de-

    sigualmente distribudas nos diferentes momentos do

    ano, como veremos, mas que constitui seu domnio

    territorial. O assentamento o conjunto das

    habitaes, dos lugares de acampamento e de caa,

    marinha e terrestre, que pertencem a um nmero

    determinado de indivduos, ao mesmo tempo que o

    sistema de caminhos e trilhas, canais e portos que

    esses indivduos usam e onde se encontram constan-

    temente.48 Tudo isso forma um todo que tem sua

    unidade, com todos os caracteres distintivos pelos

    quais se reconhece um grupo social limitado.

    1) O assentamento tem um nome constante.

    49 Enquanto os outros nomes, tribais ou tnicos, so

    incertos e diferentemente registrados pelos autores,

    este claramente localizado e sempre atribudo de

    forma idntica. Isso poder ser verificado aproxi-

    mando a tabela que oferecemos mais adiante dos

    assentamentos do Alaska que dada por Petroff.

    Essas tabelas (exceto em relao ao distrito dito r-

    tico) no apresentam variaes sensveis, ao passo

    que a nomenclatura tribal de Porter muito difer-

    ente da de Petroff.50

    2) Esse nome um nome prprio; usado por

    todos os membros do assentamento, usado so-

    mente por eles. Em geral um nome de lugar des-

    critivo, seguido do sufixo miut (originrio de).51 3) O distrito do assentamento tem fronteiras

    claramente definidas. Cada um tem seu espao de

    caa e de pesca, em terra e mar.52 Os prprios con-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !5

  • tos mencionam a existncia dessas fronteiras.53 Na

    Groenlndia, na terra de Baffin, no norte do

    Labrador, os assentamentos, localizados estrita-

    mente, compreendem um fiorde com pastagens

    alpestres; noutros lugares, abrangem ora uma ilha

    com a costa defronte, ora um cabo com seu hinter-

    land,54 ora ainda uma curva de rio num delta com

    um trecho de costa etc. Em toda parte e sempre,

    exceto em caso de grandes catstrofes que transtor-

    nam o assentamento, so as mesmas pessoas, ou seus

    descendentes, que se encontram no mesmo lugar; os

    herdeiros das vtimas de Frobisher, no sculo xvi,

    ainda conservavam, no sculo xix, a lembrana

    dessa expedio.55

    4) O assentamento no tem apenas um nome

    e um solo, mas tambm uma unidade lingstica e

    uma unidade moral e religiosa. Se aproximamos

    assim esses dois grupos de fatos, primeira vista

    dspares, porque a unidade lingstica para a qual

    queremos chamar a ateno se deve a causas reli-

    giosas, s noes relativas aos mortos e suas reen-

    carnaes. Com efeito, h um notvel sistema de

    tabu sobre o nome dos mortos entre os Esquims, e

    esse tabu se observa por assentamento; disso resulta

    a supresso radical de todos os nomes comuns con-

    tidos nos nomes prprios dos indivduos [falecidos].

    56 H, a seguir, um costume regular, no assenta-

    mento, de dar o nome do ltimo morto ao primeiro

    a nascer; a criana vista como o falecido reencar-

    nado, e assim cada localidade possui um nmero

    determinado de ilomes prprios que constituem,

    portanto, um elemento de sua fisionomia.57

    Em resumo, com a nica ressalva de que os

    assentamentos so, em certa medida, permeveis

    uns aos outros, podemos dizer que cada um deles

    constitui uma unidade social definida e constante

    que contrasta com o aspecto proteiforme das tribos.

    E assim no se deve exagerar a importncia de nos-

    sa ressalva; pois, se verdade que h trocas de popu-

    lao de um assentamento a outro, essa permeabili-

    dade,58 essa mobilidade relativas tm sempre como

    causas necessidades vitais urgentes, de modo que, as

    variaes sendo facilmente explicveis, a regra no

    parece ser transgredida.

    Aps termos assim mostrado no assentamento a

    unidade que est na base da morfologia esquim,

    precisamos, para ter desta ltima uma representao

    mais exata, saber de que modo os assentamentos

    esto distribudos na superfcie do territrio, qual

    seu tamanho, qual a proporo respectiva dos diver-

    sos elementos de que se compem, do ponto de vista

    do sexo, da idade, do estado civil.

    Nas tribos groenlandesas, sobre as quais es-

    tamos bem informados, os assentamentos so pouco

    numerosos. Em 1821, Graah encontrou apenas 17

    deles do cabo Farvel ilha Graah, e sua expedio

    foi feita em condies bastante boas para que no

    haja motivo de pensar que tenha deixado escapar

    um s.59 No entanto, esse nmero diminuiu ainda

    mais. Por ocasio da visita de Holm, em 1884, quase

    todos haviam desaparecido.

    Atualmente o lugar est praticamente deser-

    to.60 Essa rarefao progressiva o produto de duas

    causas. Primeiramente, desde 1825, os assentamen-

    tos europeus do Sul, por causa dos recursos e da

    segurana maior que ofereciam, atraram os Es-

    quims do Leste a Frederiksdal.61 Depois, os assen-

    tamentos situados mais ao norte se concentraram

    em Angmagssa

    62lik. razovel supor que a retirada dos Esquims

    desde Scoresby-Sund

    retirada que precedeu a chegada de Scoresby

    (1804) deve ter ocorrido do mesmo modo, mas

    desta vez por fora, no apenas por interesse.

    Ao mesmo tempo que pouco numerosos, os

    assentamentos so muito espaados e muito pe-

    quenos. No fiorde de Angmagssalik, num trecho

    considervel de costas martimas, havia em 1883

    apenas 14 assentamentos, compreendendo ao todo

    413 habitantes. O mais povoado, Ikatek, tinha 58;o

    menor (Nunakitit) contava com apenas 14. Alis,

    interessante acompanhar os movimentos da popu-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !6

  • lao que a tabela da pgina seguinte

    reproduz.

    Pode-se ver a o quanto precria

    e instvel a existncia dessa populao.

    Em oito anos, de 1884 a 1892, ela perde,

    seja por morte, seja por emigrao, dois

    teros de seu efetivo. Inversamente, em

    1896, um nico ano favorvel e o confor-

    to devido instalao definitiva dos eu-

    ropeus recompe, num piscar de olhos, a

    situao; o nmero de habitantes passa

    de 247 a 372, com um aumento de 50%.

    Temos, sobre a populao dos as-

    sentamentos da costa ocidental, informaes detal-

    hadas e bastante precisas.64 Mas, como elas so

    posteriores chegada dos europeus, no as levare-

    mos em grande considerao, a no ser para evi-

    denciar as duas seguintes particularidades que se

    observam igualmente em Angmagssalik.65 , em

    primeiro lugar, o ndice elevado da mortalidade

    masculina e, conseqentemente, a proporo con-

    sidervel de mulheres no conjunto da populao. Na

    Groenlndia meridional, em 1861 e 1891, de cada

    100 mortes, 8,3 deviam-se a acidentes de caiaque,

    portanto eram exclusivamente mortes de homens

    naufragados nesses perigosos barquinhos; 2,3 devi-

    am-se a outros acidentes.

    1. Holm: 193-ss. 2. Ryder, Den stgrnlandske Expedi-

    tion, 1891-92,1, Meddel. Gr., XVII, 1895, p. 163-ss. 3. Ry-

    berg 1897-98, XIV: 129, col. 1.0 dirio de Petersen (agente

    da Coroa Real) fornece apenas indicaes sumrias para

    esse ano, data da fundao da estao. A diminuio

    considervel devida sobretudo a uma forte epidemia

    de gripe, posterior ao contato com a expedio Ryder.

    C f . H o l m 1 8 9 3 - 9 4 , X I I : 2 4 7 - s s , I s o g

    Vejrforholdeneetc.,ibid.,XIII:89. 4. Ryberg ibid., col. 2. A

    chegada de 12 indivduos acontecera antes de 31 de

    dezembro de 1894, mas eles no foram contados. 5. Pe-

    tersen, in Ryberg, ibid. O ano de 1895-96 foi particular-

    mente favorvel, ao contrrio do ano 18941895, da o

    pequeno nmero de mortes relativo aos nascimentos, cf.

    p. 118, para o nmero de tendas. 6. Ryberg op. cit.: 170. 7.

    Ryder op.cit.: 144, atribui a ms informaes relativas

    aos nascimentos o desvio entre o re-

    censeamento de Holm e os resultados do

    seu. 8. Ryder ibid., diz que a emigrao

    dirigiu-se para o sul. 9. Os 118 emigrados

    de Ryder eqivalem portanto ao total

    (mortes e nascimentos tendo se equili-

    brado nos quatro anos desde a partida),

    Ryberg loc.cit, p. 119, col. 2. 10. Trs umi-

    ak [embarcao] partiram, e uma outra,

    com vinte esquims, voltou.

    notvel o nmero elevado de mortes

    violentas. Na Groenlndia setentrion-

    al, os ndices eram de 4,3 para mortes

    em caiaque, de 5,3para outras mortes violentas. Em

    Angmagssalik, pode-se calcular, segundo infor-

    maes de Holm e de Ryder, em 25 ou 30% a parte

    das mortes violentas de homens no conjunto da

    mortalidade.66

    O segundo fato para o qual queremos

    chamar a ateno a existncia de movimentos mi-

    gratrios que limitam a populao de cada assenta-

    mento. As tabelas que Ryberg nos transmite e que

    remontam a 1805, para descer at 1890, demon-

    stram esse fato para os distritos setentrionais da

    Groenlndia meridional: os de Gothaab e de Hol-

    stenborg aumentam regularmente em detrimento

    dos do sul. Pode-se observar, a esse respeito, o quan-

    to foi lenta e, finalmente, mnima a influncia da

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !7

  • civilizao europia (referimo-nos civilizao ma-

    terial). De fato, de 1861 a 1891, a mdia da relao

    entre nascimentos e mortes foi de 39/40, passando

    de 33/48 em 1860 a 44 / 35em 1891.67

    Na outra extremidade da rea esquim, no

    Alaska, podemos fazer observaes idnticas. As

    informaes mais antigas de que dispomos e que se

    reportam s tribos do sul informaes que nos vm

    dos primeiros colonos russos no so, verdade,

    nem muito seguras nem muito precisas, e no per-

    mitem mais que apreciaes um tanto vagas, mas no

    dirio de viagem de Glasunov encontramos infor-

    maes mais circunstanciadas; elas se referem aos

    Esquims do delta do Kuskokwim. O mximo de

    habitantes por assentamento era de 250pessoas.68

    De acordo com o recenseamento de Petroff,69

    seguido pelo recenseamento de Porter que veremos

    mais adiante, e que bem superior,70 a densidade

    mxima atingida nessa regio pelos assentamentos

    do rio Togiak. Por outro lado, a tribo dos

    Kuskowigmiut71 a mais forte de todas as tribos

    esquims conhecidas, mas no a mais densa, se

    levarmos em conta a rea onde ela vive. interes-

    sante observar que ela est estabelecida, como os

    Togiagmiut, junto a rios excepcionalmente piscosos,

    escapando assim a certos perigos. Ainda assim no

    devemos exagerar a importncia desses assentamen-

    tos relativamente privilegiados. Das tabelas de

    Porter parece resultar claramente que nenhum deles

    alcanou os ndices considerveis indicados por

    Petroff. O assentamento de Kassiamiut, marcado

    por este ltimo como contendo 605 indivduos,

    parece ser no um assentamento propriamente dito,

    mas um agregado de aldeias,72 e alm disso com-

    preende muitos elementos crioulos e europeus.73

    Uma outra regio onde os assentamentos so igual-

    mente mais considerveis e mais prximos uns dos

    outros a das ilhas situadas entre o estreito de

    Behring e a parte meridional do Alaska;74 no entan-

    to, a densidade, calculada sobre o conjunto das ter-

    ras habitveis (?), permanece ainda muita baixa (13

    por quilmetro quadrado).75

    De todos esses fatos resulta que h uma esp-

    cie de limite natural extenso dos grupos es-

    quims, limite que eles no podem ultrapassar e que

    muito restrito. A morte ou a emigrao, ou as duas

    causas combinadas, os impedem de exceder essa

    medida. da natureza do assentamento esquim ser

    de pequenas dimenses. Pode-se mesmo dizer que

    esse tamanho restrito da unidade morfolgica to

    caracterstico da raa esquim quanto os traos do

    rosto ou os traos comuns aos dialetos por ela fala-

    dos. Assim, nas listas de recenseamento, reconhece-

    se primeira vista os assentamentos que sofreram a

    influncia europia, ou que no so propriamente

    esquims: so aqueles cujas dimenses ultrapassam

    muito sensivelmente a mdia.76 o caso do suposto

    assentamento de Kassiamiut de que falamos h

    pouco; o caso tambm de Port-Clarence, que serve

    atualmente de estabelecimento aos baleeiros eu-

    ropeus.77

    A composio do assentamento no menos

    caracterstica do que suas dimenses. Nele vivem

    poucos velhos e tambm poucas crianas; por difer-

    entes razes, a mulher esquim geralmente s tem

    um pequeno nmero de filhos.78 A pirmide etria

    apia-se portanto numa base estreita, e vai se estrei-

    tando de maneira muito clara a partir de 65 anos.

    Por outro lado, a populao feminina considervel

    e, nesta, a parte de vivas completamente excep-

    cional.79 (Ver Tabela 2) Esse nmero elevado de

    vivas, tanto mais significativo se considerarmos que

    o celibato quase desconhecido e que os Esquims

    desposam vivas de preferncia a mulheres jovens,

    devido quase inteiramente aos acidentes da vida

    marinha. Era importante destacar essas particulari-

    dades, sobre as quais falaremos a seguir.

    Quanto a suas causas, devemos busc-las no

    regime de vida praticado pelos Esquims. No que

    este seja pouco inteligente; ao contrrio, uma apli-

    cao notvel das leis da biofsica e da relao

    necessria de simbiose entre as espcies animais. Os

    exploradores europeus insistiram vrias vezes no

    fato de que, mesmo com todo o equipamento eu-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !8

  • ropeu, no h, nessas regies, regime alimentar e

    procedimentos econmicos melhores que os empre-

    gados pelos Esquims.80 Eles so comandados pelas

    circunstncias ambientais. No tendo, como outros

    hiperbreos, domesticado a rena,81 os Esquims

    vivem da caa e da pesca. A caa consiste em renas

    selvagens (elas se encontram em toda parte),

    boisalmiscarados, ursos polares, raposas, lebres, al-

    guns animais carnvoros peludos, alis bastante

    raros, diversas espcies de aves (lagpodes, corvos,

    cisnes selvagens, pingins, pequenas corujas). Mas

    toda a caa terrestre , de certo modo, acidental e

    provisria, e, na falta de uma tcnica apropriada,

    no pode ser obtida no inverno. Portanto, exceto as

    passagens de aves e de renas e alguns encontros afor-

    tunados, os Esquims vivem sobretudo da caa mar-

    inha: os cetceos constituem seu principal meio de

    subsistncia. A foca, em suas principais variedades,

    o animal mais til; assim, costuma-se dizer que,

    onde h foca, deve haver esquim.82 No entanto, os

    delfindeos (orca, baleia-branca ou baleia-franca) so

    ativamente caados, bem como os rebanhos de mor-

    sas; estes, principalmente na primavera; no outono,

    o ataque dirige-se s baleias.83 Os peixes de mar, de

    gua doce e os equinodermos servem apenas de

    complemento. O caiaque em gua livre, uma espera

    paciente no gelo de terra [gelo aderido terra]

    permitem aos homens lanar seus conhecidos

    arpes sobre os animais marinhos. Sabe-se que eles

    comem a carne desses animais crua e cozida.

    Assim, trs coisas so necessrias a um grupo

    esquim: no inverno e na primavera, gua livre para

    a caa s focas, ou gelo de terra; no vero, um ter-

    ritrio de caa e de pesca em gua doce.84 Essas

    trs condies s se acham combinadas em distn-

    cias variveis umas em relao s outras, e em pon-

    tos determinados, em nmero limitado; ento, e

    somente ento, que eles podem se estabelecer. As-

    sim, nunca os encontraremos nos mares fechados:85

    eles certamente se retiraram de certas costas que

    outrora, ao que tudo indica, eram abertas, mas que

    se fecharam depois.86 a necessidade dessa trplice

    condio que obriga os assentamentos esquims a se

    encerrarem dentro de estreitos limites; o estudo de

    alguns casos particulares ir mostrar por qu.

    Tomemos como exemplo os assentamentos

    de Angmagssalik.87 Angmagssalik est situada no

    litoral oriental da Groenlndia, numa latitude relati-

    vamente baixa. A costa bloqueada pelo gelo at

    70 de latitude norte. Esse acmulo de gelo manti-

    do pela corrente polar que, descendo do Spitzberg,

    vem passar pelo estreito da Dinamarca, at o cabo

    Farvel e o estreito de Davis. Pelo leste, a costa in-

    abordvel; mas a latitude bastante baixa, a luz de

    vero suficientemente forte para que o mar se des-

    obstrua, nesse momento, numa boa extenso, per-

    mitindo a caa. Como se v, essas condies so

    instveis e precrias. O mar volta a ficar obstrudo, a

    caa logo se esgota e, no inverno, no gelo de terra,

    bastante difcil obt-la. Por outro lado, a estreiteza

    da faixa de gua livre, o perigo dos icebergs contin-

    uamente desprendidos do gelo no permitem que os

    grupos se desloquem facilmente para longe dos

    fiordes. Eles so obrigados a manter-se prximos do

    ponto onde esto reunidas todas as condies

    necessrias sua existncia; se algum acidente acon-

    tecer, se um de seus recursos ordinrios vier a faltar,

    eles no podem facilmente buscar um pouco mais

    longe o que necessitam. Precisam imediatamente

    transportar-se a um outro ponto afastado e igual-

    mente privilegiado, e essas migraes longnquas

    sempre envolvem grandes riscos e perdas de home-

    ns. Compreende-se que, nessas condies, impos-

    svel aos agrupamentos humanos atingir dimenses

    mais considerveis. Todo excesso, todo descuido

    imprudente em relao a implacveis leis fsicas,

    toda conjetura azarada do clima tm por conse-

    qncia fatal uma reduo do nmero de habi-

    tantes. Se o gelo na costa demorar a derreter, impos-

    sibilitando a caa aos cetceos na primavera, ou se

    ocorrer um degelo demasiado rpido, ser impossv-

    el sair de caiaque ou caar no gelo de terra; pois as

    focas e as morsas no mais aparecem, assim que o

    degelo comeou. Se eles tentam, sem ter reunido

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !9

  • todas as condies de sucesso, partir para o norte ou

    para o sul, os umiaks, transportando vrias famlias,

    afundam lamentavelmente.88 Se, acuados pela ne-

    cessidade extrema, comem os ces, eles aumentam

    ainda mais a misria, pois mesmo os deslocamentos

    em tren na neve e no gelo tornam-se ento impos-

    sveis.89

    Passemos agora para o ponto mais setentri-

    onal da costa americana, a ponta Barrow;90 l ob-

    servaremos fatos do mesmo gnero. Nesse local o

    mar raramente fechado, mas tambm raramente

    livre. A caa marinha e terrestre, na opinio de to-

    dos os europeus que passaram por l, apenas sufi-

    ciente para o que a populao necessita. Ora, a caa

    apresenta vicissitudes constantes que s podem ser

    conjuradas por meios religiosos; alm disso, oferece

    perigos contnuos que mesmo o emprego de armas

    de fogo no fez desaparecer. O total da populao

    assim limitado pela natureza das coisas. Est to

    exatamente relacionado com os recursos alimentares

    que estes no podem diminuir, por pouco que seja,

    sem que resulte uma diminuio importante no

    nmero de habitantes. De 1851 a 1881, a populao

    caiu pela metade; ora, essa reduo considervel

    vem de que a caa baleia tornou-se menos frutu-

    osa, desde a chegada dos baleeiros europeus."

    Em resumo, vemos, pelo que precede, que a

    limitao dos assentamentos esquims deve-se

    maneira pela qual o ambiente age, no sobre o indi-

    vduo, mas sobre o grupo em seu conjunto.92

    2. Morfologia sazonal Acabamos de ver qual a morfologia geral

    dos Esquims, isto , os caracteres constantes que

    ela apresenta o tempo todo. Mas sabemos que ela

    varia conforme os momentos do ano; precisamos

    saber agora quais so essas variaes. sobretudo

    delas que devemos nos ocupar neste trabalho. Emb-

    ora o assentamento seja, o tempo todo, a unidade

    fundamental das sociedades esquims, ele apresenta

    formas muito diferentes conforme as estaes. No

    vero, os membros que o compem habitam em

    tendas, e essas tendas esto dispersas; no inverno,

    habitam em casas, muito prximas umas das outras.

    Tal a observao geral que todos os autores fizer-

    am, desde os mais antigos,93 quando puderam ob-

    servar o ciclo da vida esquim. Vamos primeira-

    mente descrever cada um desses dois tipos de habitai

    e os dois modos de agrupamento correspondentes.

    Procuraremos, a seguir, determinar suas causas e

    seus efeitos.

    1. A HABITAO DEVERO

    A tenda. Comecemos pelo estudo da ten-

    da,94 j que uma construo mais simples que a

    casa de inverno.

    A tenda tem em toda parte o mesmo nome,

    tupik^ e em toda parte tambm, de Angmagssalik

    at a ilha de Kadiak, apresenta a mesma forma.

    Esquematicamente, pode-se dizer que composta

    de varas dispostas em forma de cone;96 sobre essas

    varas so colocadas peles, na maioria das vezes de

    renas, costuradas ou no entre si, e presas base por

    grandes pedras capazes de suportar a fora geral-

    mente terrvel do vento. Ao contrrio das tendas

    indgenas, as dos Esquims no so abertas no topo,

    porque no h fumaa que seja necessrio deixar

    sair; a lmpada deles no produz fumaa. Quanto

    entrada, ela pode ser fechada hermeticamente. Os

    habitantes so ento mergulhados na escurido.97

    Esse tipo normal apresenta naturalmente

    algumas variaes conforme as localidades, mas elas

    so inteiramente secundrias. Onde a rena rara,98

    como em Angmagssalik e em toda a Groenlndia

    oriental, a tenda feita com peles de focas; ao mes-

    mo tempo, como ali a madeira no abundante, a

    forma da tenda tambm um pouco diferente. Ela

    colocada num local onde a inclinao brusca,99

    de modo que possa se apoiar, ao fundo, no prprio

    terreno; uma espcie de viga, sustentada na frente

    por uma armao angular, enterrada no solo;

    sobre ela que so dispostas as peles e a pequena

    cobertura de varas. curioso observar de que

    maneira, seja em Igloulik,100 na baa de Hudson,

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !10

  • seja na parte meridional da terra de Baffin,101 as

    mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Em

    conseqncia da raridade de madeira,substituda

    por ossos de narval, a tenda tem uma forma singu-

    larmente anloga da de Angmagssalik.

    Porm, mais importante que todos esses de-

    talhes de tecnologia, saber qual o grupo que habi-

    ta a tenda. De uma ponta outra da rea esquim,

    a famlia,102 no sentido mais estrito da palavra,

    isto , um homem com sua mulher ou, se houver

    espao, suas mulheres, seus filhos no casados (natu-

    rais ou adotivos); excepcionalmente ali se encontra

    tambm um ascendente, ou uma viva que no

    voltou a casar, seus filhos, ou ainda, por fim,um ou

    vrios hspedes. A relao to estrita entre a

    famlia e a tenda que a estrutura de uma moldada

    sobre a estrutura da outra. uma regra geral em

    todo o mundo esquim que haja uma lmpada por

    famlia; assim, h geralmente uma nica lmpada

    por tenda.103 Do mesmo modo, h somente um

    banco (ou um leito de folhas e ramagens erguido no

    fundo da tenda) coberto de peles, sobre o qual as

    pessoas dormem; e esse leito no comporta divisria

    para isolar a famlia de seus eventuais hspedes.104

    Assim a famlia vive perfeitamente unida nesse inte-

    rior hermeticamente fechado, e ela que constri e

    transporta essa habitao de vero, feita exatamente

    sua medida.

    2. A HABITAO DE INVERNO

    A casa. Do inverno ao vero, o aspecto

    morfolgico da sociedade, a tcnica do habitat, a

    estrutura do grupo abrigado mudam completa-

    mente; as habitaes no so as mesmas, sua popu-

    lao diferente, e elas esto dispostas no solo de

    uma outra maneira.

    As habitaes esquims de in-

    verno no so tendas, mas casas,105 e

    i n c l u s i ve c a s a s c o l e t i v a s . 1 0 6

    Comearemos descrevendo sua forma

    exterior, para depois mostrar qual

    seu contedo.

    A casa coletiva esquim feita

    de trs elementos essenciais que po-

    dem servir para caracteriz-la; i) um

    corredor que comea no exterior e

    vem desembocar no interior por uma

    entrada em parte subterrnea; 2) um

    banco com lugares para as lmpadas;

    3) divisrias que determinam nesse

    banco um certo nmero de comparti-

    mentos. Esses traos distintivos so

    prprios da casa esquim; eles no se

    verificam, reunidos,107 em nenhuma

    outra casa conhecida. Mas, conforme

    as regies, apresentam particulari-

    dades variveis que originam um certo

    nmero de variedades secundrias.

    Em Angmagssalik,108 a casa tem de 8 a 17 m

    de comprimento por 4 a 5 m de largura. constru-

    da num terreno geralmente muito inclinado. Esse

    terreno escavado de modo que a parede traseira

    atinja aproximadamente o nvel do terreno circun-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !11

  • dante; essa parede um pouco mais larga que a da

    fachada. Essa disposio d ao observador a falsa

    impresso de que a casa subterrnea. As paredes

    so de pedra, de madeira coberta com relva e fre-

    qentemente com peles; suas faces internas esto

    quase sempre recobertas com peles. Na frente, em

    ngulo reto com a parede, desemboca o corredor,

    por uma entrada to baixa que s possvel pene-

    trar na casa de joelhos. No interior, o cho coberto

    de pedras achatadas. Todo o fundo ocupado por

    um banco longo e contnuo, de cerca de um metro e

    meio a dois metros de largura, e erguido a uns 6o

    cm do cho; atualmente, em Angmagssalik,ele se

    apoia sobre pedras e relva, mas outrora, na Groen-

    lndia meridional e ocidental,109 repousava sobre

    estacas, e ainda assim no Mackenzie110 e no Alas-

    ka.111 Esse banco separado em compartimentos

    por uma curta divisria: cada um desses comparti-

    mentos, como veremos, corresponde a uma famlia;

    na parte anterior de cada um deles colocada a

    lmpada familiar."2 Defronte ao fundo, portanto ao

    longo da parede dianteira, estende-se um outro ban-

    co, menos largo, reservado aos indivduos pberes,

    aos no-casados e a os hspedes, quando no so

    admitidos a partilhar o leito da famlia."3 Na

    frente da casa esto os esconderijos com provises

    (carne congelada), os petrechos dos barcos, even-

    tualmente uma casa para os ces.

    No Mackenzie,"4 como a madeira flutuante

    muito comum, a casa feita inteiramente desse ma-

    terial: grandes toros so colocados uns sobre os out-

    ros e encaixados em ngulo reto nos cantos. Alm

    disso, em seo horizontal, ela exibe a forma, no

    mais de um retngulo como a precedente, mas de

    um polgono estrelado. Da uma terceira diferena:

    ela compreende compartimentos claramente distin-

    tos. O banco, um pouco mais elevado do que na

    Groenlndia, guarnece o fundo de cada comparti-

    mento; mas, em vez de um s banco, o comparti-

    mento de entrada possui dois, obtidos na escavao

    e que servem, como o banco dos hspedes na

    Groenlndia, aos hspedes e aos utenslios.115 Por

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !12

  • fim, o corredor, mais rebaixado ainda que na

    Groenlndia, junta-se quele dos compartimentos

    que est orientado para o mar, de preferncia ao sul.

    116

    No Alaska, encontramos um tipo inter-

    medirio entre os precedentes. A forma volta a ser

    retangular,"7 como na Groenlndia, mas com-

    preende geralmente vrios retngulos ligados a um

    nico corredor."8 Como, sobretudo no Alaska

    meridional, a madeira tambm abundante, o piso

    do retngulo central assoalhado. A nica carac-

    terstica exclusiva das casas dessa regio a dis-

    posio do corredor que, em vez de desembocar na

    parede de entrada, abre-se na poro central do

    prprio piso."9

    fcil perceber como essas diferentes esp-

    cies de casas no so seno variantes de um mesmo

    tipo fundamental, do qual a do Mackenzie nos ofer-

    ece talvez a idia mais aproximada. Um fator que

    contribui, em grande medida, para determinar essas

    variaes a natureza varivel dos materiais que o

    esquim utiliza conforme as regies. Assim, em cer-

    tos pontos do estreito de Behring,120 na terra de

    Baffin121 a noroeste da baa de Hudson,122 a

    madeira flutuante rara ou totalmente inexistente.

    123 Empregam-se ento costelas de baleia. Mas

    disso resulta um novo sistema de habitao. A casa

    pequena, pouco alta, de forma circular ou elptica.

    A parede coberta de peles e forrada de relva; e a

    cima das paredes eleva-se uma espcie de domo. o

    que chamam o qarmang, habitao que possui tam-

    bm seu corredor.

    Suponhamos agora que esse ltimo recurso

    do construtor esquim, a costela de baleia, venha

    tambm a faltar, e ento outras formas aparecero.

    Com muita freqncia o esquim recorrer a uma

    matria-prima que ele sabe utilizar perfeitamente e

    que tem sempre mo: a neve.124 Da o iglu ou

    casa de neve, tal como o encontramos na terra de

    Baffin125 e na costa setentri-

    onal da Amrica.126 O iglu

    apresenta, alis, todos os car-

    acteres essenciais da casa

    grande: geralmente mltip-

    lo, compsito,127 isto , dois

    ou trs iglus aglomeram-se e

    vo desembocar num mesmo

    corredor; sempre munido de

    um corredor, cuja sada em

    parte subterrnea; por fim,

    ele contm, no mnimo, dois

    bancos de neve com dois lu-

    gares de lmpadas.128 De

    resto, pode-se estabelecer

    historicamente que o iglu

    um sucedneo da casa retan-

    gular ou poligonal. Em 1582, Frobisher, sobre a

    Meta Incgnita, nos descreve habitaes feitas de

    terra e relva.129 Um pouco mais tarde, Coats en-

    contra mais adiante o mesmo tipo de habitao.130

    Ora, nesse momento o clima e as correntes eram

    diferentes dos que lentamente se estabeleceram en-

    tre os sculos xvi e xvii;131 possvel, portanto, que

    a madeira flutuante, j escassa no sculo xvi, tenha

    se tornado rara a ponto de se reservar seu emprego

    s ferramentas, s armas. Ento, passou-se a con-

    struir, e cada vez mais, qarmang. Em 1829, Parry

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !13

  • encontra aldeias inteiras de casas feitas com ossos de

    baleia.132 Mas essas prprias aldeias devem ter se

    tornado impossveis na medida que os baleeiros eu-

    ropeus devastaram os estreitos e as baas do ar-

    quiplago rtico.133

    Noutras condies, em que a madeira e os

    ossos de baleia eram igualmente escassos, recorreu-

    se pedra. Foi o que aconteceu na tribo do estreito

    de Smith.134 chegada dos primeiros europeus,

    essa tribo encontrava-se num estado lamentvel.135

    A extenso considervel do gelo de terra e a per-

    sistncia, durante quase o ano todo, do gelo de deri-

    va, no apenas impediam qualquer chegada de

    madeira flutuante, mas tambm detinham a baleia e

    impossibilitavam a caa em guas livres s morsas,

    aos focdeos e aos delfindeos.136 Na falta de

    madeira, o arco desapareceu, assim como o caiaque,

    o umiak e a maior parte dos trens. Os desafortuna-

    dos esquims viam-se assim reduzidos a guardar

    somente a lembrana de sua antiga tcnica.137 Da

    a necessidade que sentiram de construir casas exclu-

    sivamente feitas de pedra e de relva. Mas a natureza

    dos materiais obrigou a modificar a forma da casa.

    Como grandes casas de pedra eram muito difceis de

    construir para essa miservel populao, foi preciso

    contentar-se com casas pequenas.138 Contudo, o

    lao de parentesco que as une ao tipo da casa

    grande ainda evidente apesar dessas mudanas.

    Em seus traos essenciais, a casa pequena assemel-

    hasse ainda casa grande groenlandesa, da qual, no

    fundo, no seno uma miniatura: reencontramos a

    entrada enterrada, a abertura no mesmo lugar, o

    banco erguido com compartimentos.139 Enfim, e

    sobretudo, ela geralmente habitada por vrias

    famlias, o que, como veremos daqui a pouco, um

    trao distintivo da casa grande.

    Essa pequena casa de pedra, portanto, no

    seno, para ns, uma transformao da casa grande

    da Groenlndia ou do Mackenzie. J para alguns

    arquelogos, era ela, ao contrrio, que constitua o

    fato primitivo. Mas o nico fato sobre o qual se

    apoia essa hiptese o seguinte: na Groenlndia do

    noroeste, de um lado, na terra de Francisco Jos, no

    Scoresby Sound,140 no arquiplago Parry,141 de

    outro, foram descobertas runas de antigos assenta-

    mentos de inverno que parecem ter sido pequenas

    casas de pedra, semelhantes s do estreito de Smith.

    Mas esse fato nico no de modo algum pro-

    batrio. Com efeito, h noutros lugares um grande

    nmero de runas de casas coletivas e cujo carter

    relativamente uniforme;142 alm disso, nada prova

    que essas runas sejam realmente os mais antigos

    vestgios de casas de inverno que possumos;enfim,

    se a casa pequena fosse o fato inicial, dificilmente se

    explicaria a generalidade e a permanncia, sob

    modalidades diversas, do tipo da casa coletivas.143

    Seria preciso admitir que, num momento dado,

    porm mal determinado, e por causas igualmente

    indeterminadas e difceis de perceber, os Esquims

    teriam passado, no inverno, da famlia isolada para

    a famlia aglomerada.No vemos nenhum motivo

    claro para essa transformao: ao contrrio,

    mostramos, a propsito da tribo do estreito de

    Smith, de que maneira a transformao no sentido

    inverso facilmente explicvel.

    O contedo da casa. Agora que conhece-

    mos a disposio da casa, vejamos qual a natureza

    do grupo que nela habita.

    Enquanto a tenda compreende apenas uma

    famlia, a habitao de inverno, em todas as suas

    formas, normalmente contm vrias;144 o que j

    pudemos perceber na descrio precedente. Alis, o

    nmero de famlias que coabitam varivel. Pode

    elevar-se at seis,145 sete ou mesmo nove nas tribos

    groenlandesas orientais;146 tendo chegado outrora

    a dez na Groenlndia ocidental,147 ele se reduz a

    dois nas menores casas de neve e nas pequenas casas

    de pedra do estreito de Smith. A existncia de um

    mnimo de famlias por casa inclusive to carac-

    terstico do assentamento de inverno esquim que,

    onde quer que vejamos esse nmero diminuir,

    podemos estar certos de que, ao mesmo tempo,

    houve um apagamento da civilizao esquim. As-

    sim, nos recenseamentos relativos ao Alaska, pode-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !14

  • mos dizer, com base na relao entre nmero de

    famlias e nmero de casas, se estamos diante de

    uma aldeia esquim ou de uma aldeia indgena.148

    No interior da casa groenlandesa, cada

    famlia tem seu lugar determinado. No iglu de neve,

    cada famlia tem seu banco especfico;149 ela possui

    seu compartimento na casa poligonal,"sua parte no

    banco com divisrias nas casas da Groenlndia,151

    seu lado na casa retangular.152 H assim uma re-

    lao estrita entre o aspecto morfolgico da casa e a

    estrutura do grupo complexo que ela abriga. To-

    davia, curioso constatar que o espao ocupado por

    cada famlia pode no ser proporcional ao nmero

    de seus membros. Elas so consideradas como

    unidades, equivalentes umas s outras. Uma famlia

    restrita a um indivduo ocupa um espao idntico ao

    de uma descendncia numerosa com seus ascen-

    dentes.153

    O kashim. Alm das habitaes privadas,

    existe porm uma outra construo de inverno que

    merece nossa particular ateno, por colocar em

    evidncia os caracteres particulares da vida que lev-

    am os Esquims durante essa estao. o kashim,

    palavra europia abreviada de uma palavra esquim

    que significa meu lugar de reunio.TM

    verdade que o kashim atualmente no ex-

    iste mais em toda parte. No entanto, encontramo-lo

    ainda em todo o Alaska155 e em todas as tribos da

    costa ocidental americana, at a ponta Atkinson.156

    Segundo o relato que nos chegou das ltimas explo-

    raes, ele existia ainda na terra de Baffin e na costa

    noroeste da baa de Hudson, bem como na costa

    meridional do estreito de Hudson.157 Por outro

    lado, as primeiras misses dos irmos morvios no

    Labrador assinalam sua existncia.158 Na Groen-

    lndia, embora no tenha deixado vestgios nem

    runas (exceto um caso duvidoso),159 nem refern-

    cias nos antigos autores dinamarqueses, a lin-

    guagem160 e alguns contos conservaram-nos sua

    lembrana. Temos portanto boas razes para pensar

    que ele normalmente participava da composio de

    todo primitivo assentamento esquim.

    O kashim uma casa de inverno, mas de

    maior tamanho. O parentesco entre as duas con-

    strues to ntimo que as formas diversas que o

    kashim adquire conforme as regies so paralelas

    que adquire a casa. As diferenas essenciais so

    duas. Primeiro, o kashim tem um fogo central, en-

    quanto a casa no o possui (exceto no extremo sul

    do Alaska, onde a influncia da casa indgena se faz

    sentir). Esse fogo verifica-se no apenas onde ele tem

    uma razo prtica de ser, devido ao emprego da

    madeira como combustvel,"'1 mas tambm nos

    kashim provisrios de neve da terra de Baffin.162 A

    seguir, o kashim quase sempre sem compartimento

    e sem banco, geralmente com assentos.163 Mesmo

    quando construdo na neve, no sendo possvel

    portanto construir um grande domo nico porque

    esse material no se prestaria a isso, a maneira como

    so ligados os domos e abertos os compartimentos

    d finalmente ao kashim a forma de uma espcie de

    salo com pilares.

    Essas diferenas na disposio interior corre-

    spondem a diferenas funcionais. Se no h diviso

    nem compartimento, se h um fogo central, que

    essa a casa comum do assentamento inteiro.164

    Ali se realizam, nos lugares onde temos boas infor-

    maes, cerimnias que renem toda a comunidade.

    165 No Alaska, o kashim , mais especialmente, a

    casa dos homens;166 l que dormem adultos,

    casados ou no casados, separados das mulheres e

    das crianas. Nas casas do sul do Alaska, ele serve de

    sauna;167 mas essa destinao, acreditamos, de

    data relativamente recente e de origem indgena, ou

    talvez at russa.

    Ora, o kashim exclusivamente uma con-

    struo de inverno. Eis o que evidencia claramente o

    trao distintivo da vida hibernai. O que a caracteri-

    za a extrema concentrao do grupo. Nesse mo-

    mento, no apenas vrias famlias se aproximam

    numa mesma casa e nela coabitam, mas tambm

    todas as famlias de um mesmo assentamento, ou

    pelo menos toda a populao masculina, sente a

    necessidade de reunir-se num mesmo local e ali

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !15

  • levar uma vida em comum. O kashim surgiu para

    atender essa necessidade.168

    3. A DISTRIBUIO DOS HABITANTES

    NO SOLO CONFORME AS ESTAES

    o que ir mostrar, melhor ainda, a maneira

    como as habitaes esto dispostas no solo conforme

    a estao. Pois elas no apenas so diferentes em

    forma e extenso, no apenas abrigam grupos soci-

    ais de tamanho muito desigual, como acabamos de

    ver, mas tambm esto distribudas de modo muito

    diferente no inverno e no vero. Na passagem do

    inverno ao vero, iremos v-las ou muito prximas

    umas das outras, ou, ao contrrio, disseminadas em

    largas superfcies. Sob esse aspecto, as duas estaes

    oferecem espetculos inteiramente opostos.

    Distribuio das habitaes de inverno.

    Com efeito, se a densidade interior de cada casa,

    tomada parte, varia, como mostramos, conforme

    as regies, em contrapartida podemos dizer que a

    densidade do estabelecimento, tomado em conjunto,

    sempre a maior possvel, levando em conta obvia-

    mente as facilidades de subsistncia.169 Nesse mo-

    mento, o volume social, isto , a rea efetivamente

    ocupada e explorada pelo grupo, mnimo. A caa

    aos focdeos, que obriga o caador a afastar-se um

    pouco, obra exclusiva dos homens; mesmo assim,

    eles s vo alm de uma determinada costa para

    objetivos determinados ou passageiros; e, seja qual

    for a importncia dos deslocamentos em tren, prat-

    icados sobretudo pelos homens,170 eles no afetam

    realmente a densidade total do estabelecimento, a

    no ser quando h um excesso de populao.171

    H inclusive um caso em que essa concen-

    trao to grande quanto possvel; o de

    Angmagssalik; l, o estabelecimento inteiro reside

    numa nica e mesma casa que compreende, portan-

    to, todos os habitantes da unidade social. Enquanto

    noutros lugares uma casa contm apenas de duas a

    oito famlias, em Angmagssalik atinge-se o mximo

    de onze famlias e de at 58habitantes. Atualmente,

    num trecho de costas de mais de 120 milhas, h

    treze estabelecimentos, treze casas onde se dividem

    os 392 habitantes da regio; ou seja, em mdia trin-

    ta por casa.172 Mas essa extrema concentrao no

    um trao primitivo; certamente o resultado de

    uma evoluo.

    Por outro lado, em todos os outros casos em

    que se observaram casas de inverno isoladas, no

    agrupadas, elas eram, muito provavelmente,

    habitadas por famlias que, por razes diversas,

    haviam sido levadas a separar-se de seu grupo origi-

    nal.173 Alis, as single houses, observadas por

    Petroff no Alaska,174 praticamente desaparecem no

    recenseamento de Porter; em todo caso, o primeiro

    dos grandes recenseamentos dessa regio, o de

    Glasunov em 1924, felizmente feito no inverno,

    menciona apenas aldeias de oito a quinze casas,

    compreendendo de 200 a 400 habitantes.175 Quan-

    to s runas do arquiplago Parry e do N. Devon,

    onde encontramos com freqncia estabelecimentos

    de inverno reduzidos a uma s casa, essa reduo,

    embora parea considervel em relao mdia,

    no deve surpreender se pensarmos que essas runas

    datam evidentemente de uma poca em que os Es-

    quims empobrecidos estavam deixando de habitar

    essas regies.176

    Em resumo, eliminando fatos aparentemente

    contrrios, pode-se dizer, de uma maneira geral, que

    um estabelecimento de inverno compe-se de vrias

    casas, prximas umas das outras.177 Quanto

    maneira como esto dispostas, no nos dito que

    tenha algo de metdico,178 exceto, tanto quanto

    sabemos, em dois casos relativos s tribos meridion-

    ais do Alaska.179 O fato tem sua importncia.

    Essa disposio das habitaes suficiente

    para mostrar o quanto, nesse momento, a populao

    est concentrada. Mas talvez essa concentrao ten-

    ha sido maior outrora. Certamente, a conjetura no

    pode ser demonstrada com rigor, no estado atual de

    nossas informaes; no entanto, ela possui alguma

    plausibilidade. Com efeito, os velhos viajantes ingle-

    ses nos falam de aldeias esquims enterradas no

    solo, como montculos de toupeira, e cujas

    habitaes estavam agrupadas em torno de uma

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !16

  • cabana central, maior que as outras.180 bastante

    provvel que fosse o kashim. Por outro lado, quanto

    s tribos do leste do Mackenzie, eles nos falam ex-

    pressamente de comunicaes entre as casas, e

    mesmo entre as casas e o kashim.m Chegamos assim

    a imaginar o grupo de inverno como tendo podido,

    outrora, ser constitudo por

    uma espcie de grande casa

    nica e mltipla ao mesmo

    tempo. Assim se explicaria

    como puderam se formar esta-

    belecimentos reduzidos a uma

    s casa, como a de Angmagssa-

    lik.

    Distribuio dos habitantes durante o vero. No vero, a disposio do grupo comple-

    tamente diferente.182 A densi-

    dade de inverno d lugar ao

    fenmeno contrrio. No ape-

    nas cada tenda compreende

    apenas uma nica famlia,

    como elas tambm esto muito

    afastadas umas das outras. A

    aglomerao das famlias na

    casa e das casas no interior do

    estabelecimento sucede uma

    disperso das famlias; o grupo

    se dissemina. Ao mesmo tempo, imobilidade rela-

    tiva do inverno opem-se viagens e migraes

    geralmente considerveis.

    Conforme as circunstncias locais, essa dis-

    perso ocorre de maneiras diferentes. O modo mais

    normal a disperso ao longo das costas e no interi-

    or. Na Groenlndia, assim que chega o vero, e ele

    chega depressa,183 as famlias concentradas nos

    iglus do estabelecimento carregam em seus umiak

    (embarcaes das mulheres) as tendas de duas ou

    trs famlias associadas. Em muito pouco tempo,

    todas as casas se esvaziam e as tendas aparecem ao

    longo das margens do fiorde. Em ger-

    al so montadas a distncias relati-

    vamente considerveis umas das out-

    ras.184

    Em Angmagssalik, onde h treze

    casas de inverno (que, como dissemos,

    constituem cada qual um estabeleci-

    mento), vinte e sete tendas se dis-

    tribuem nas ilhas do mar defronte,

    transportando-se depois para os raros

    campos onde pasta a rena, em cerca

    de cinqenta locais aproximada-

    mente. Segundo os bons documentos

    do velho Granz,185 entre o estabelec-

    imento de Neu Herrnhut e o de

    Lichtenfels, a costa era o palco de

    uma disperso igualmente grande,

    uma vez que, para oito estabeleci-

    mentos no mximo, contavam-se no

    menos que vinte e dois locais de ten-

    das e acampamentos; e a contagem

    de Granz, certamente, se enganou

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !17

  • antes para menos do que para mais. Alm dessa

    disperso ao longo dos fiordes,186 h tambm, na

    Groenlndia, excurses s pastagens de renas e ao

    longo dos rios de salmo.187 O mesmo acontece no

    Labrador.188

    Estamos bem informados sobre a expanso

    da tribo de Iglulik, na poca de Parry, graas aos

    excelentes mapas esquims que ele nos transmi-

    tiu189 e nos quais se v como a tribo se dispersa no

    vero. Essa pequena tribo no

    apenas se estende num espao

    costeiro com mais de sessenta

    etapas, mas tambm ao longo

    de rios e lagos interiores; em

    busca de madeira, muitas

    famlias vo at o outro lado

    da pennsula Melville e terra

    de Baffin, chegando mesmo a

    atravess-la. Quando se pensa

    que essas migraes sazonais

    so feitas em famlia, que elas

    exigem de seis a doze dias de

    marcha, entende-se que esse

    modo de disperso implica

    uma extrema mobilidade dos

    grupos e dos indivduos.191

    Segundo Boas,192 os Okomi-

    ut, ao norte da terra de Baffin,

    chegariam a atravessar o estreito de Lancastre na

    poca do degelo e a subir a terra de Ellesmere at o

    estreito de Smith. Em todo caso, certo que os as-

    sentamentos arruinados do Devon setentrional

    tiveram reas de disseminao igualmente extensas,

    uma vez que, para oito estabelecimentos de inverno,

    contam-se trinta runas de estabelecimentos de

    vero num trecho litorneo imenso. Os exemplos

    poderiam ser multiplicados. Mostramos aqui o

    mapa das reas de nomadizao de trs tribos da

    terra de Baffin.

    Ao longo de toda a costa americana,193 os

    mesmos fenmenos se reproduzem com amplitudes

    diferentes; o mximo atingido a dupla viagem

    comercial da tribo da ponta Barrow a Icy Cape, de

    um lado, para obter mercadorias europias ali trazi-

    das, e a Barter Island, para trocar essas mercadorias

    com os Kupungmiut194 de Mackenzie.

    Os trs deltas, os trs esturios so as

    nicas regies onde encontramos mod-

    os de disperso que se desviam um

    pouco do tipo normal; mas cada um

    desses desvios deve-se a circunstncias

    particulares e acidentais que possvel

    indicar. Com efeito, junto aos rios

    Mackenzie,195

    Yukon e Kuskokwim encontramos

    agrupamentos de vero relativamente

    considerveis. Falam-nos de 300 pes-

    soas da tribo do Mackenzie reunidas no

    cabo Bathurst.196 Mas esse agrupa-

    mento, no momento em que foi obser-

    vado, era temporrio;197 uma caa

    excepcionalmente abundante de

    baleias, de baleias brancas em particu-

    lar, que o determinara. Em outros

    momentos, essa mesma tribo foi vista

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !18

  • dispersa durante o vero. Sobre algumas aldeias do

    Kuskokwim, dito que os iglus de inverno so

    habitados no vero; mas eles parecem ser ocupados

    apenas momentaneamente, quando o grupo, aps

    ter ido at o mar efetuar trocas, retorna e se dispersa

    a montante do rio, para a pesca ao salmo, e a

    seguir na tundra, para a caa s renas e s aves de

    passagem.198 Noutros lugares, sobretudo nas

    aldeias dos rios martimos, sucede de a aldeia mon-

    tar suas tendas diante das casas de inverno aban-

    donadas, sem que elas fiquem muito distantes umas

    das outras.199 Mas,200 alm de a densidade da

    populao ser menor que no inverno, h nesse fato

    particular uma razo igualmente particular: que o

    grupo, tanto no vero como no inverno, pratica um

    regime relativamente idntico de ictiofagia; mesmo

    curioso assinalar que, nesse caso no obstante desfa-

    vorvel, a dualidade morfolgica mantm-se, embo-

    ra o grupo permanea no lugar e as razes de sua

    disperso estivai tenham desaparecido.201

    Essa disperso de vero deve ser relacionada

    com um trao da mentalidade coletiva esquim,

    cuja anlise nos permitir compreender melhor o

    que exatamente essa organizao de vero to

    diferente da de inverno. Sabemos o que Ratzel

    chamou o volume geogrfico e o volume mental das

    sociedades.202 O volume geogrfico a extenso

    espacial realmente ocupada pela sociedade em

    questo; o volume mental a rea geogrfica que

    ela consegue abarcar com o pensamento. Ora, existe

    j um significativo contraste entre as humildes di-

    menses de uma tribo esquim e a imensa extenso

    das costas em que ela se dispersa, ou as enormes

    distncias em que as tribos centrais penetram o inte-

    rior das terras.203 Pois o volume geogrfico dos

    Esquims a rea de seus agrupamentos devero.

    Mas ainda mais notvel seu volume mental,isto ,

    a extenso de seu conhecimento geogrfico. Os ca-

    sos de viagem ao longe, de tren, antes do derreti-

    mento da neve na primavera, ou de umiak, pelas

    famlias no vero ou por indivduos no inverno, no

    so to raros. Da haver, entre os Esquims, um

    conhecimento tradicional de lugares extremamente

    distantes, mesmo entre aqueles que no fizeram

    essas viagens; assim todos os exploradores utilizaram

    o talento geogrfico do qual as prprias mulheres

    esquims so eminentemente dotadas.205 Devemos

    portanto imaginar a sociedade de vero no apenas

    como estendida nas reas imensas que ela ocupa ou

    percorre, mas tambm como lanando mais alm,

    muito ao longe, famlias ou indivduos isolados, fil-

    hos perdidos que retornam ao grupo natal quando

    chega o inverno, ou um outro vero aps terem se

    aventurado no inverno; poderamos compar-los a

    imensas antenas que se estenderiam frente de um

    organismo j, por si mesmo, extraordinariamente

    distendido.

    3. As causas dessas variaes sazonais

    bastante difcil reconhecer todas as causas

    que levaram fixao dos diferentes traos dessa

    dupla organizao; pois elas produziram sua ao

    atravs de um desenvolvimento histrico provavel-

    mente muito longo e de migraes de extraordinria

    amplitude. Mas gostaramos ao menos de indicar

    alguns dos fatores dos quais depende esse fenmeno

    nem que seja para mostrar qual a parte correspon-

    dente s causas puramente fsicas e restritas, em

    relao das causas sociais.

    Os observadores geralmente contentaram-se

    com explicaes simplistas. Eles assinalam que a

    casa206 comum e quase subterrnea retm melhor

    o calor, que a presena de um certo nmero de indi-

    vduos sob um mesmo teto suficiente para elevar a

    temperatura, que a aglomerao de vrias famlias

    economiza o combustvel. Portanto, vem nessa or-

    ganizao apenas um meio de lutar contra o frio.

    Mas, se essas consideraes no so desprovidas de

    fundamento, a verdade que elas contm muito

    parcial. Em primeiro lugar, no de modo algum

    exato que os Esquims habitam as regies mais frias

    do mundo.207 Um certo nmero deles esto estab-

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !19

  • elecidos em regies relativamente temperadas, por

    exemplo no sul da Groenlndia e do Labrador, onde

    a oposio maior entre inverno e vero provm

    antes da proximidade dos gelos que descem pela

    corrente glaciar ou do inlandsis, do que de uma real

    inferioridade de temperatura. Em segundo lugar,

    embora habitando em latitudes superiores e em cli-

    mas continentais mais rudes que os de seus vizinhos

    esquims da costa, os ndios do interior do

    Labrador, os Montanheses, os Cree das Barren

    Lands,208 os da floresta alasquiana209 vivem o ano

    todo em tendas; e essa tenda no apenas tem a

    mesma forma que a dos Esquims: sua abertura no

    topo para a sada da fumaa, que os Esquims no

    conhecem, torna-a bem menos eficaz contra o frio,

    mesmo no vero. tambm significativo que os

    ndios no tenham copiado de seus vizinhos uma

    inveno to til como a casa; eis um fato a mais

    contra as teorias que crem explicar uma instituio

    social mostrando de quem ela foi tomada. Em ter-

    ceiro lugar e essa a prova de que a casa de inverno

    faz parte, por assim dizer, da idiossincrasia das so-

    ciedades esquims -, mesmo onde haveria razes

    para alterar sua forma, a alterao no se produziu.

    Assim, nos distritos arborizados do Alaska, algumas

    tribos que penetraram mais alm da parte martima

    dos rios, e cujos assentamentos de inverno esto

    mais prximos dos bosques que das zonas de caa s

    focas, em vez de instalarem um fogo de madeira e

    abrirem seus tetos para deixar sair a fumaa, prefer-

    em comprar dos vizinhos o leo, bastante caro,210

    para suas lmpadas.

    Uma explicao na qual transparece um sen-

    timento mais vivo do problema e de sua complexi-

    dade a que props Steensby.2'1 De acordo com

    esse autor, a civilizao primitiva dos Esquims seria

    do tipo indgena, e mais prxima da que hoje se

    observa entre eles no vero; por outro lado, a forma

    de suas casas pertenceria ao mesmo tipo que a dos

    ndios das Pradarias (dos Mandan at os Iroqueses);

    seria o resultado de um emprstimo primitivo e teria

    se desenvolvido simultaneamente com toda a tcnica

    de inverno, quando os Esquims se aproximaram e

    depois se apoderaram do oceano Glacial. Mas no

    encontramos em parte alguma um nico vestgio de

    Esquims cuja ocupao principal teria sido a caa,

    tendo como nica habitao a tenda. To logo os

    Esquims so vistos como um grupo de sociedades

    determinadas, eles tm sua dupla cultura perfeita-

    mente constituda, e seus mais antigos estabeleci-

    mentos de vero so sempre prximos de antigos

    assentamentos de inverno. Por outro lado, a com-

    parao entre a casa coletiva indgena e a casa es-

    quim relativamente inexata; pois nela no h

    nem corredor, nem banco, nem lugares de lm-

    padas, trs traos caractersticos da casa esquim.

    Descartadas essas explicaes, examinemos

    primeiro como podem se explicar a concentrao do

    inverno e a disperso do vero.

    J tivemos a ocasio de mostrar quo forte

    o apego dos Esquims a seu regime de vida, por

    pobre que seja; eles no imaginam sequer que pos-

    sam levar uma outra existncia. Parecem nunca ter

    feito um esforo para modificar sua tcnica. Nem o

    exemplo dos povos vizinhos com os quais tm conta-

    to, nem a perspectiva certa de uma vida melhor so

    suficientes para despertar-lhes o desejo de mudar a

    sua. Se, como os Atapascanos e os Algonquinos,

    vizinhos com os quais alguns deles mantm um

    comrcio constante, os Esquims do norte da

    Amrica tivessem adotado a raquete para deslizar

    sobre a neve, em vez de seu calado impermevel,

    eles poderiam, em pleno inverno, perseguir por pe-

    quenos grupos a caa que s conseguem pegar no

    vero.212 Mas esto to apegados sua organiza-

    o tradicional que nem sequer pensam em mudar. Em conseqncia dessa tcnica, fenmeno social, h

    um verdadeiro fenmeno de simbiose que obriga o

    grupo a viver maneira dos animais que caam.

    Estes concentram-se ou dispersam-se, conforme as

    estaes. No inverno, as morsas e sobretudo as focas

    renem-se em alguns pontos da costa. Tambm a

    foca tem necessidade do gelo de terra para poder

    abrigar seus filhotes; tambm ela necessita um lugar

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !20

  • onde o gelo de terra esteja livre pelo maior tempo

    possvel, a fim de poder facilmente vir respirar

    superfcie; e o nmero desses lugares, em guas do-

    ces, praias, ilhas, cabos, bastante restrito mesmo

    em grandes trechos litorneos. Nesse momento,

    unicamente nesses pontos que possvel ca-la,

    sobretudo em razo do estado em que se encontra a

    tcnica dos Esquims. Ao contrrio, assim que a

    gua fica livre, assim que os leads [canais em campo

    de gelo] aparecem, a foca se desloca, se dispersa, se

    dirige ao mar, ao fundo dos fiordes, abaixo das

    falsias abruptas, e os caadores devem se dispersar

    para peg-la, dispersa como est; pois ento s

    muito excepcionalmente ela se apresenta em bando.

    Ao mesmo tempo, a pesca em gua doce do salmo

    e dos diversos salmondeos, a caa rena e ao

    gamo213 nas altas pastagens ou na tundra dos

    deltas, convidam vida nmade e disperso atrs

    da caa. No vero, essa disperso to fcil para os

    Esquims quanto para seus vizinhos ndios, que

    ento no precisam de raquetes para perseguir sua

    caa. Quanto pesca de rio, ela se pratica justa-

    mente na proximidade dos locais onde passa a caa.

    214

    Em resumo, enquanto o vero estende de

    maneira quase ilimitada o campo aberto caa e

    pesca, o inverno, ao contrrio, o restringe da

    maneira mais rigorosa.215 E essa alternncia ex-

    prime o ritmo de concentrao e de disperso a que

    se submete a organizao morfolgica. A populao

    se condensa ou se dissemina do mesmo modo que a

    caa. O movimento que anima a sociedade sin-

    crnico aos da vida ambiental.

    Entretanto, por mais certa que seja essa in-

    fluncia dos fatores biolgicos e tcnicos, no quer-

    emos dizer que ela baste para explicar todo o fen-

    meno. Ela permite compreender por que os Es-

    quims se renem no inverno e se separam no

    vero. Mas no explica, em primeiro lugar, por que

    essa concentrao atinge o grau de intimidade que

    j tivemos a ocasio de assinalar e que a continu-

    ao deste estudo ir confirmar; no nos mostra o

    porqu do kashim nem da ntima ligao que ele

    apresenta, em alguns casos, com as outras casas. As

    habitaes dos Esquims poderiam se aproximar

    umas das outras sem se concentrar a esse ponto, e

    sem dar origem vida coletiva intensa que teremos

    a ocasio de observar ao estudar os efeitos dessa

    organizao. Elas poderiam, tambm, no ser casas

    coletivas. Os Esquims poderiam montar suas ten-

    das umas ao lado das outras, cobri-las melhor, ou

    construir casas bem pequenas, em vez de habitar

    sob um mesmo teto por grupos de famlia. Alis,

    convm no esquecer que o kashim, isto , a casa

    dos homens, e a grande casa onde coabitam vrios

    membros da mesma famlia, no so exclusivos dos

    Esquims; encontramo-los noutros povos, no po-

    dendo portanto ser considerados como particulari-

    dades prprias da organizao dessas sociedades

    setentrionais. Eles provavelmente dependem, em

    parte, de alguns caracteres que a civilizao esquim

    possui em comum com outras. Quais so esses car-

    acteres, o que no podemos examinar aqui; a

    questo, por sua generalidade, ultrapassa o quadro

    de nosso es

    tudo. Mas o que o estado da tcnica pode

    explicar o momento do ano em que ocorrem os

    dois movimentos de concentrao e de disperso,

    o tempo que eles duram, a maneira como se suce-

    dem e a maneira definida como se opem um ao

    outro.216

    4. Os efeitos Depois de termos descrito a natureza das

    variaes pelas quais passa, conforme as estaes, a

    organizao morfolgica dos Esquims, depois de

    termos determinado suas causas, precisamos agora

    estudar seus efeitos.217 Vamos examinar a maneira

    como essas variaes afetam tanto a vida religiosa

    como a vida jurdica do grupo. No a parte menos

    instrutiva de nosso tema.

    1. EFEITOS SOBRE A VIDA RELIGIOSA

    Mauss, Marcel. "Ensaio Sobre As Variaes Sazonais Das Sociedades Esquims" In: Sociologia E Antropologia !21

  • A religio dos Esquims submete-se ao mes-

    mo ritmo que sua organizao. H, por assim dizer,

    uma religio de vero e uma religio de inverno, ou

    melhor, no h religio no vero.218 O nico culto

    ento praticado o culto privado, domstico: tudo

    se reduz aos ritos do nascimento219 e da morte,220

    e observncia de algumas interdies. Todos os

    mitos que, como veremos, ocupam, durante o inver-

    no, a conscincia dos Esquims, parecem esquecidos

    durante o vero. A vida como que laicizada.Mes-

    mo a magia, no obstante ser em geral algo pura-

    mente privado, transforma-se numa simples cincia

    mdica,221 cujo cerimonial se reduz a pouqussima

    coisa.

    Ao contrrio, o assentamento de inverno vive,

    por assim dizer, num estado de exaltao religiosa

    contnua. o momento em que os mitos, os contos

    transmitem-se de uma gerao a outra. O menor

    acontecimento requer a interveno mais ou menos

    solene de mgicos, de angekoks.222 O menor tabu

    s levantado por cerimnias pblicas,223 por visi-

    tas a toda a comunidade.224 A todo instante, real-

    izam-se imponentes sesses de xamanismo pblico

    para conjurar a escassez que ameaa o grupo sobre-

    tudo nos meses de maro a maio, quando as pro-

    vises desapareceram, ou esto em mau estado, e a

    caa instvel.225 Pode-se, em suma, conceber toda

    a vida de inverno como uma espcie de longa festa.

    Mesmo o que os velhos autores nos relatam sobre as

    perptuas danas dos Esquims na Groenlndia,226

    danas em sua maioria de natureza certamente reli-

    giosa, muito provavelmente, se levarmos em conta

    erros de observao e de expresso, uma outra pro-

    va dessa continuidade da vida religiosa. A conscin-

    cia religiosa do grupo mesmo levada a tamanho

    grau de paroxismo que, em vrias sociedades es-

    quims,227 as faltas religiosas so ento o objeto de

    uma vigilncia excepcionalmente rigorosa: a misria

    coletiva, tempestades muito longas, a fuga da caa, o

    rompimento inoportuno do gelo etc., tudo atribu-

    do transgresso de alguma interdio ritual. Esta

    deve ser confessada publicamente para que se possa

    paliar seus efeitos. Tal costume da confisso pblica

    marca claramente a espcie de santidade que im-

    pregna toda a vida social de inverno.228 Esa vida

    religiosa, alm de intensa,229 apresenta um carter

    muito particular pelo qual contrasta com a vida de

    vero: ela eminentemente coletiva. Com isso no

    queremos dizer simplesmente que as festas so cele-

    bradas em comum, mas que nelas transpira de todas

    as maneiras o sentimento que a comunidade tem de

    si mesma, de sua unidade. No so coletivas apenas

    no sentido de que uma pluralidade de indivduos

    reunidos delas participam: elas so o assunto do

    grupo, e o grupo que elas exprimem.

    o que j se deduz do fato de elas se re-

    alizarem no kaskim,m sempre que existe um, e,

    como provavelmente se observou, outrora em toda

    parte. Ora, quaisquer que sejam as modalidades do

    kashim, ele sempre e essencialmenteum lu-

    garpblico que exprime a unidade do grupo. Essa

    unidade to forte que, no interior do kashim, a

    individualidade das famlias e das casas desaparece;

    elas se perdem, indistintas umas das outras, na mas-

    sa total da sociedade. No kashim, com efeito, os in-

    divduos esto dispostos, no por famlias ou por

    casas, mas segundo as funes sociais, ainda muito

    indiferenciadas, que cumprem.231

    A prpria natureza das circunstncias e dos

    ritos celebrados durante essas festas traduz o mesmo

    carter. especialmente o caso da festa dita "das

    bexigas", tal como se pratica no Alaska e, em partic-

    ular, entre os Unalit da baa de Saint-Michel.232

    Ela compreende primeiramente numerosas danas

    com mscaras em presena de toda a comunidade

    que canta. No final,