Mau Bom Muito Bom “O Remorso de Baltazar Serapião” Festa ... · conta que Pacheco foi abusado...

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ípsilon, 6 de janeiro de 2012 n factualidade possível, desconhecidos – até esta edição. Há dois ou três pormenores discutíveis em “Puta Que Os Pariu!”, o primeiro dos quais poderá ser considerado uma implicação. O livro abre com a reprodução da certidão de nascimento de Pacheco, seguido de algumas palavras de João Pedro George, antes de passar a palavra ao escritor. Depois George pega de novo na narração, descrevendo com admirável minúcia o ambiente social em que Pacheco nasceu. Contudo, em momento algum se diz que Pacheco é natural de Lisboa. Fala-se do parto numa casa da Estefânia, há o trecho em que Pacheco recorda que os pais casaram na casa de Benfica (contextualizando a época), mas falta esse pequeno detalhe que – e isto pode parecer ridículo, mas não o é para quem conhece o país – deixa à toa quem não é de Lisboa: Estefânias há muitas. George opta muitas vezes por uma espécie de enxerto em que, no decurso do seu discurso, entram as palavras de Pacheco – o que faz teoricamente sentido dada a oralidade da escrita do biografado e o muito que ele escreveu sobre si próprio, muitas vezes narrando os mesmos acontecimentos em obras diferentes. Mas isto coloca problemas práticos: quando o cerzir dos discursos de George com o de Pacheco não é particularmente bem conseguido entre travessões, o texto, entre parêntesis (rectos e curvos) e aspas, assemelha-se a um cruzamento com excesso de sinalização. Ademais surgem confusões de tempo e de sujeito. Exemplo simples, da página 40: “Bebé de três meses, ‘ainda me levavam a comida à comida’, Luiz Pacheco (...)”. O mecanismo de inserção da citação de Pacheco é literário, porém ineficaz. Na página anterior há um exemplo mais cabal: “Quando em 1932 ingressou no ensino primário […] quem o levou à escola no primeiro dia foi o pai, ‘um ritual que me faz lembrar o meu pai (….)’”. Neste caso impunham-se dois pontos, para evitar a mudança de narrador. Nenhum livro é imaculado, e estes pormenores não invalidam o que se segue: uma profundíssima investigação que se abeira de todos os aspectos possíveis de todos os momentos da vida de Luiz Pacheco, a que se une uma ponderada reflexão sobre as origens e as circunstâncias da figura e do próprio país (ou do seu meio cultural) na época. Mais do que cronologicamente, George optou por dividir “Puta Que Os Pariu!” em secções (“Primeiros Passos”, “As Mulheres, as Prisões”, “Crítico”, “Editor”, “Escritor: pedincha, alcoolismo e marginalidade”, etc.), decisão que faz todo o sentido mesmo que apresente uma dificuldade maior para quem não conhece a figura, visto por vezes um capítulo acabar num determinado ano e o capítulo seguinte voltar atrás duas décadas para abordar outro aspecto. Ainda assim, a fragmentação existencial de Pacheco justifica de facto a divisão temática. Em “Primeiros Passos”, o ambiente em que Pacheco cresceu é reconstituído com admirável detalhe: a mãe que via Deus seria, possivelmente, sifilítica, condição que lhe teria sido transmitida pelo marido, fruto da sua vida boémia. Pacheco cresce asmático e solitário, distante da mãe e assistindo a terríveis cenas entre os pais. Fica também claro que o pai de Pacheco iniciou um processo de descolagem face ao seu meio social ao ser o primeiro que recusou seguir a via militar, e não há margem para dúvidas que a relação desequilibrada que Pacheco teve com o dinheiro se deve à própria incapacidade do pai em não estourar tudo. Também nos é mostrado que o pai de Pacheco tinha interesse pela cultura, o que terá levado o miúdo Pacheco a devotar-se aos livros. Pacheco inicia-se sexualmente sendo repetidamente violado por um amigo da casa, o que diz bem da falta de atenção a que era votado. A sua experiência sexual seguinte deu- se num bordel. João Pedro George faz notar que a experiência da violação o levou vez após vez a ter sexo com menores, não apenas as mães dos seus filhos mas igualmente outras raparigas e rapazes – o que aliás lhe valeu várias prisões. Alguns dos episódios da vida de Pacheco são caricatos, com o o seu primeiro casamento: o tio de uma empregada lá de casa acusa Pacheco de abuso, pelo que este é forçado a casar com a rapariga; no entanto, quando o tio da moça soube que os Pacheco não tinham dinheiro, quis desistir da queixa e do casamento. Outros, que se passam mais tarde, são simplesmente trágicos: contrariando as suas crenças, Pacheco aceita que uma das mães dos seus filhos faça um aborto, sendo a parteira paga com uma lampreia d’ovos. A descrição é genuinamente pungente. A leitura de “Puta Que Os Pariu!” torna claro que um dos momentos fundamentais da vida de Pacheco foi o abandono do seu emprego no Estado português (uma cunha) para se dedicar exclusivamente à escrita – de certo modo, era como se finalmente ultrapassasse o pai, que nunca tinha conseguido afirmar-se criativamente. Por outro lado, é como se tivesse cumprido esse Biografia Uma autenti- cidade obsessiva “Puta Que Os Pariu!” não é só a notável biografia de Luiz Pacheco: também é um grande livro. João Bonifácio Puta Que Os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco João Pedro George Tinta-da-China mmmmn Não havendo notícia de grande tradição biográfica em Portugal, “Puta Que Os Pariu!” carregava a expectativa de poder ser excepção ímpar no género. Desde logo porque o biografado, Luiz Pacheco, se presta a matéria de fundo: nem aqueles que pouco o leram passaram ao lado de uma ou outra entrevista em que manifestava a sua verve provocadora (capaz de revelar pormenores íntimos dos inimigos ou mesmo dos amigos), da mesma forma que mesmo os que nunca foram leitores da obra pachecal conhecem este ou aquele pormenor rocambolesco da sua vida (no mínimo ouviram falar de gravidezes de raparigas menores, deste ou daquele desvio homossexual, da rara capacidade de pedir emprestado e nunca pagar de volta, fora a mania de ir à rua com pouca roupa). Pacheco foi um caso raríssimo na literatura portuguesa: ao contrário do que é de bom tom, nunca escreveu um romance. A sua obra é composta de textos de raiz diarística e de crítica, sendo que em todos os géneros há uma fortíssima vertente autobiográfica. Foi também um extraordinário editor, que lançou – entre outros – Herberto Hélder, não sendo de descurar a importância que teve na crítica literária: é com ele que acabam os paninhos quentes com que se tratava a literatura menor que os passeantes dos salões culturais produziam. Digamos assim: com ele elevou-se a fasquia. Também esteve preso várias vezes e passou fome – tudo pormenores que sem dúvida contribuiram para a sua aura de “escritor maldito”. Contudo, os pormenores exactos das prisões, da falta de pão e do excesso de álcool permaneciam, pelo menos na “Puta Que os Pariu!” coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Luiz Pacheco ser um produto da sua biografia: no meio das prisões, dos imensos filhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever uma obra com maior fôlego desejo do pai. No livro, é imaculada a reprodução dos esforços de Pacheco enquanto editor, das dificuldades que teve para editar no meio da sua biografia rocambolesca. Também fica bem claro que Pacheco era um bom leitor e um crítico duro, porém justo, que via o meio literário como um conjunto de burguesitos que se afagavam uns aos outros. Não deixa de ser curioso que Pacheco sempre tivesse misturado obra com autor: como João Pedro George faz notar, nunca se ficava apenas pelo que pensava sobre um livro, também tinha de escrever sobre o escritor. George não avança esta hipótese, mas parece haver em Pacheco uma necessidade constante de denúncia do abuso – como se o facto de em Portugal se produzirem obras de baixa qualidade, quase sempre amparadas pela crítica devido a razões de amizade, constituísse para o leitor e para a literatura um abuso. Tendo em conta que Pacheco foi abusado sexualmente, e além disso vítima de abandono pela mãe e de violência psíquica pelos pais, é perfeitamente natural que denunciasse formas de abuso (mesmo que as praticasse). É também muito possível que essa incapacidade de aceitar que autor e livro fossem coisas autónomas tenha ditado a sua escassa produção de ficção. Pacheco era, como diz alguém a dada altura, de uma autenticidade “obsessiva”. João Pedro George coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Pacheco ser um produto da sua biografia: no meio das prisões, dos imensos filhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever algo com maior fôlego, e de facto, lido “Puta Que Os Pariu!”, a hipótese faz todo o sentido. Esta biografia reconstrói a vida de Pacheco com um detalhe verdadeiramente inacreditável – e recria também várias épocas e a sua evolução, sendo igualmente uma admirável composição sobre a família e o meio literário português. Não deixa, no entanto, de estar cheia de histórias que vão do escabroso ao delirante, pelo que o leitor comum terá por certo muito por onde pegar. O cuidado de George com a figura de Pacheco é tal que acaba o livro com um capítulo dedicado à “Produção Social do Maldito”, analisando a crítica à obra de Pacheco, a imagem que ele foi construindo nos jornais, etc. Contudo, e como é notório na introdução e na conclusão que o biógrafo assina, mesmo havendo simpatia e fascínio nunca se esconde o que era esta figura – que muitas vezes se comportou como um pária. Enquanto escritor, Pacheco foi um estilista admirável com uma noção de oralidade notável, capaz de ir onde os outros tinham medo de ir – escreveu páginas notáveis sobre a família, a fome, a sexualidade. Contudo, sempre me pareceu que não se cumpriu inteiramente. Essa ideia não mudou com “Puta Que os Pariu!”, mas agora ponho a hipótese de a sua obra fazer sentido tal como está. Um grande livro faz isto: põe- nos dúvidas. E é isso que é “Puta Que Os Pariu!” é: não apenas uma biografia notável, mas também um grande livro. Ficção Velázquez arranhado “Rixa de gatos” é o mais madrileno dos livros do catalão Eduardo Mendoza. A capital do império agraciou-o merecidamente com o Prémio Planeta 2010. Rui Lagartinho Rixa de Gatos Eduardo Mendoza (Trad. António Pescada) Sextante mmmmn Se Eduardo Mendoza tivesse querido, “Rixa de Gatos” poderia ter sido o equivalente madrileno de “A Cidade dos Prodígios”, a obra mais conhecida do escritor catalão. Mas não foi por falta de ambição que o fresco que retrata Barcelona entre as duas exposições que marcaram a cidade (uma no final do século XIX, a outra nos anos 20 do século XX) não se transpôs para a Madrid de 1936, nos dias que antecederam o eclodir da Guerra Civil Espanhola. Mendoza quis evitar as armadilhas do romance épico: em Mal começamos a esgravatar o postal de cor sépia dos dias em q se empurrava para a frente sem vo de desistir, abrem-se páginas de de

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ípsilon, 6 de janeiro de 2012

28 • Sexta-feira 6 Janeiro 2012 • Ípsilon

factualidade possível, desconhecidos – até esta edição.

Há dois ou três pormenores discutíveis em “Puta Que Os Pariu!”, o primeiro dos quais poderá ser considerado uma implicação. O livro abre com a reprodução da certidão de nascimento de Pacheco, seguido de algumas palavras de João Pedro George, antes de passar a palavra ao escritor. Depois George pega de novo na narração, descrevendo com admirável minúcia o ambiente social em que Pacheco nasceu. Contudo, em momento algum se diz que Pacheco é natural de Lisboa. Fala-se do parto numa casa da Estefânia, há o trecho em que Pacheco recorda que os pais casaram na casa de Benfica (contextualizando a época), mas falta esse pequeno detalhe que – e isto pode parecer ridículo, mas não o é para quem conhece o país – deixa à toa quem não é de Lisboa: Estefânias há muitas.

George opta muitas vezes por uma espécie de enxerto em que, no decurso do seu discurso, entram as palavras de Pacheco – o que faz teoricamente sentido dada a oralidade da escrita do biografado e o muito que ele escreveu sobre si próprio, muitas vezes narrando os mesmos acontecimentos em obras diferentes. Mas isto coloca

problemas práticos: quando o cerzir dos discursos de George com o de Pacheco não é particularmente bem conseguido entre travessões, o texto, entre parêntesis (rectos e curvos) e aspas, assemelha-se a um cruzamento com excesso de sinalização. Ademais surgem confusões de tempo e de sujeito. Exemplo simples, da página 40: “Bebé de três meses, ‘ainda me levavam a comida à comida’, Luiz Pacheco (...)”. O mecanismo de inserção da citação de Pacheco é literário, porém ineficaz. Na página anterior há um exemplo mais cabal: “Quando em 1932 ingressou no ensino primário […] quem o levou à escola no primeiro dia foi o pai, ‘um ritual que me faz lembrar o meu pai (….)’”. Neste caso impunham-se dois pontos, para evitar a mudança de narrador.

Nenhum livro é imaculado, e estes pormenores não invalidam o que se segue: uma profundíssima investigação que se abeira de todos os aspectos possíveis de todos os momentos da vida de Luiz Pacheco, a que se une uma ponderada reflexão sobre as origens e as circunstâncias da figura e do próprio país (ou do seu meio cultural) na época.

Mais do que cronologicamente,

George optou por dividir “Puta Que Os Pariu!” em secções (“Primeiros Passos”, “As Mulheres, as Prisões”, “Crítico”, “Editor”, “Escritor: pedincha, alcoolismo e marginalidade”, etc.), decisão que faz todo o sentido mesmo que apresente uma dificuldade maior para quem não conhece a figura, visto por vezes um capítulo acabar num determinado ano e o capítulo seguinte voltar atrás duas décadas para abordar outro aspecto.

Ainda assim, a fragmentação existencial de Pacheco justifica de facto a divisão temática. Em “Primeiros Passos”, o ambiente em que Pacheco cresceu é reconstituído com admirável detalhe: a mãe que via Deus seria, possivelmente, sifilítica, condição que lhe teria sido transmitida pelo marido, fruto da sua vida boémia. Pacheco cresce asmático e solitário, distante da mãe e assistindo a terríveis cenas entre os pais. Fica também claro que o pai de Pacheco iniciou um processo de descolagem face ao seu meio social ao ser o primeiro que recusou seguir a via militar, e não há margem para dúvidas que a relação desequilibrada que Pacheco teve com o dinheiro se deve à própria incapacidade do pai em não estourar tudo. Também nos é mostrado que o pai de Pacheco tinha interesse pela cultura, o que terá levado o miúdo Pacheco a devotar-se aos livros.

Pacheco inicia-se sexualmente sendo repetidamente violado por um amigo da casa, o que diz bem da falta de atenção a que era votado. A sua experiência sexual seguinte deu-se num bordel. João Pedro George faz notar que a experiência da violação o levou vez após vez a ter sexo com menores, não apenas as mães dos seus filhos mas igualmente outras raparigas e rapazes – o que aliás lhe valeu várias prisões.

Alguns dos episódios da vida de Pacheco são caricatos, com o o seu primeiro casamento: o tio de uma empregada lá de casa acusa Pacheco de abuso, pelo que este é forçado a casar com a rapariga; no entanto, quando o tio da moça soube que os Pacheco não tinham dinheiro, quis desistir da queixa e do casamento. Outros, que se passam mais tarde, são simplesmente trágicos: contrariando as suas crenças, Pacheco aceita que uma das mães dos seus filhos faça um aborto, sendo a parteira paga com uma lampreia d’ovos. A descrição é genuinamente pungente.

A leitura de “Puta Que Os Pariu!” torna claro que um dos momentos fundamentais da vida de Pacheco foi o abandono do seu emprego no Estado português (uma cunha) para se dedicar exclusivamente à escrita – de certo modo, era como se finalmente ultrapassasse o pai, que nunca tinha conseguido afirmar-se criativamente. Por outro lado, é como se tivesse cumprido esse

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Uma autenti-cidade obsessiva“Puta Que Os Pariu!” não é só a notável biografia de Luiz Pacheco: também é um grande livro. João Bonifácio

Puta Que Os Pariu! A Biografia de Luiz PachecoJoão Pedro GeorgeTinta-da-China

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Não havendo notícia de grande tradição biográfica em Portugal, “Puta Que Os Pariu!” carregava a expectativa de poder ser excepção ímpar

no género. Desde logo porque o biografado, Luiz Pacheco, se presta a matéria de fundo: nem aqueles que pouco o leram passaram ao lado de uma ou outra entrevista em que manifestava a sua verve provocadora (capaz de revelar pormenores íntimos dos inimigos ou mesmo dos amigos), da mesma forma que mesmo os que nunca foram leitores da obra pachecal conhecem este ou aquele pormenor rocambolesco da sua vida (no mínimo ouviram falar de gravidezes de raparigas menores, deste ou daquele desvio homossexual, da rara capacidade de pedir emprestado e nunca pagar de volta, fora a mania de ir à rua com pouca roupa).

Pacheco foi um caso raríssimo na literatura portuguesa: ao contrário do que é de bom tom, nunca escreveu um romance. A sua obra é composta de textos de raiz diarística e de crítica, sendo que em todos os géneros há uma fortíssima vertente autobiográfica. Foi também um extraordinário editor, que lançou – entre outros – Herberto Hélder, não sendo de descurar a importância que teve na crítica literária: é com ele que acabam os paninhos quentes com que se tratava a literatura menor que os passeantes dos salões culturais produziam. Digamos assim: com ele elevou-se a fasquia. Também esteve preso várias vezes e passou fome – tudo pormenores que sem dúvida contribuiram para a sua aura de “escritor maldito”. Contudo, os pormenores exactos das prisões, da falta de pão e do excesso de álcool permaneciam, pelo menos na

“Puta Que os Pariu!” coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Luiz Pacheco ser um produto da sua biografi a: no meio das prisões, dos imensos fi lhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever uma obra com maior fôlego

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desejo do pai. No livro, é imaculada a reprodução dos esforços de Pacheco enquanto editor, das dificuldades que teve para editar no meio da sua biografia rocambolesca. Também fica bem claro que Pacheco era um bom leitor e um crítico duro, porém justo, que via o meio literário como um conjunto de burguesitos que se afagavam uns aos outros.

Não deixa de ser curioso que Pacheco sempre tivesse misturado obra com autor: como João Pedro George faz notar, nunca se ficava apenas pelo que pensava sobre um livro, também tinha de escrever sobre o escritor. George não avança esta hipótese, mas parece haver em Pacheco uma necessidade constante de denúncia do abuso – como se o facto de em Portugal se produzirem obras de baixa qualidade, quase sempre amparadas pela crítica devido a razões de amizade, constituísse para o leitor e para a literatura um abuso. Tendo em conta que Pacheco foi abusado sexualmente, e além disso vítima de abandono pela mãe e de violência psíquica pelos pais, é perfeitamente natural que denunciasse formas de abuso (mesmo que as praticasse). É também muito possível que essa incapacidade de aceitar que autor e livro fossem coisas autónomas tenha ditado a sua escassa produção de ficção. Pacheco era, como diz alguém a dada altura, de uma autenticidade “obsessiva”.

João Pedro George coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Pacheco ser um produto da sua biografia: no meio das prisões, dos imensos filhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever algo com maior fôlego, e de facto, lido “Puta Que Os Pariu!”, a hipótese faz todo o sentido. Esta biografia reconstrói a vida de Pacheco com um detalhe verdadeiramente inacreditável – e recria também várias épocas e a sua evolução, sendo igualmente uma admirável composição sobre a família e o meio literário português. Não deixa, no entanto, de estar cheia de histórias que vão do escabroso ao delirante, pelo que o leitor comum terá por certo muito por onde pegar.

O cuidado de George com a figura de Pacheco é tal que acaba o livro com um capítulo dedicado à “Produção Social do Maldito”, analisando a crítica à obra de Pacheco, a imagem que ele foi construindo nos jornais, etc. Contudo, e como é notório na introdução e na conclusão que o biógrafo assina, mesmo havendo simpatia e fascínio nunca se esconde o que era esta figura – que muitas vezes se comportou como um pária.

Enquanto escritor, Pacheco foi um estilista admirável com uma noção de oralidade notável, capaz de ir onde os outros tinham medo de ir – escreveu páginas notáveis sobre a família, a fome, a sexualidade. Contudo, sempre me pareceu que

não se cumpriu inteiramente. Essa ideia não mudou com “Puta Que os Pariu!”, mas agora ponho a hipótese de a sua obra fazer sentido tal como está. Um grande livro faz isto: põe-nos dúvidas. E é isso que é “Puta Que Os Pariu!” é: não apenas uma biografia notável, mas também um grande livro.

Ficção

Velázquez arranhado“Rixa de gatos” é o mais madrileno dos livros do catalão Eduardo Mendoza. A capital do império agraciou-o merecidamente com o Prémio Planeta 2010. Rui Lagartinho

Rixa de GatosEduardo Mendoza(Trad. António Pescada)Sextante

mmmmn

Se Eduardo Mendoza tivesse querido, “Rixa de Gatos” poderia ter sido o equivalente madrileno de “A Cidade dos Prodígios”, a obra mais conhecida do escritor

catalão. Mas não foi por falta de ambição que o fresco que retrata Barcelona entre as duas exposições que marcaram a cidade (uma no final do século XIX, a outra nos anos 20 do século XX) não se transpôs para a Madrid de 1936, nos dias que antecederam o eclodir da Guerra Civil Espanhola. Mendoza quis evitar as armadilhas do romance épico: em

“Rixa de Gatos”, nenhuma geração se espatifa. Tudo ocorre numa semana decisiva, numa Madrid que ferve quando Anthony Whitelands, um inglês especialista em arte espanhola, chega a casa de um fidalgo de antanho, daqueles a quem só restam largos latifúndios em solo andaluz e quadros nas paredes. Anthony vem avaliar um quadro que pode vir a ser sacrificado em nome de um esforço de guerra iminente.

Os dramas de Madrid, capital pobre e dividida com tudo racionado menos a alegria, já foram suficientemente contados. Para a fina ironia e o desconcerto é sempre mais fácil encontrar estômago: ”Anthony debatia-se entre o receio e o escrúpulo. Uma ex-mulher, uma amante, alguns devaneios e um conhecimento completo da pintura maneirista tinham-lhe ensinado a não minimizar a ira de uma mulher despeitada, em especial numa situação como a sua” (p. 263). Os dias madrilenos do especialista em Velázquez dão para escrever o diário de um banana. Azarento. Enleado entre toureiros, fidalgos, filósofos, espanholas de muito pêlo na venta e os políticos do momento. Azaña, Primo de Rivera e Franco são secundários de luxo que povoam a tela madrilena que vai sendo pintada diante do leitor.

A escrita de Eduardo Mendoza sempre foi cosmopolita, aberta à contaminação cultural. Desta vez, para além da auto-paródia a alguns dos seus livros mais ou menos policiais, mais ou menos de espionagem, como “Sin Noticias de Grub”, “La Verdad sobre el Caso Savolta” (nenhum dos quais traduzido para português) ou “O Labirinto das Azeitonas” (difícil de encontrar), e de algum ambiente de comédia de costumes que se aproxima na forma à linguagem do cinema e do teatro italianos do final da Segunda Guerra Mundial, Velázquez e a sua pintura são os protagonistas alternativos deste “Rixa de Gatos”. Sem nos

Mal começamos a esgravatar o postal de cor sépia dos dias em que Madrid se empurrava para a frente sem vontade de desistir, abrem-se páginas de deleite

“O Remorso de Baltazar Serapião” e “A Máquina de Fazer Espanhóis”, do escritor português Valter Hugo Mãe, estão na lista dos melhores livros de 2011 escolhidos pelo caderno “Prosa & Verso” do jornal “O Globo”. “O português Valter Hugo Mãe desembarcou no país em Julho, para a

Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), como um autor praticamente desconhecido entre nós. Saiu do evento consagrado, depois de uma apresentação divertida e comovente (...). Ambos [os romances] exibem a prosa

inventiva que Saramago defi niu como ‘um novo parto

da língua portuguesa’”, escreve o suplemento.

Best of 2011

Espanhóis”, altera 2011o “Prosa obo”. go

(Flip), como udesconhecidevento consapresentaçãAmbos [os r

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11 – 15 Janeiro 2012Cinema City Classic Alvalade

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ORGANIZAÇÃO

Quarta 11 � Sala 1 � 21h45 ALL ABOUT LOVE de Ann Hui

Quinta 12 � Sala 4 � 21h45 BREAK UP CLUB de Barbara Wong

Sexta 13 � Sala 4 � 19h00 CROSSING HENNESSY de Ivy Ho

Sexta 13 � Sala 4 � 21h45 THE DRUNKARD de Freddie Wong

Sábado 14 � Sala 4 � 19h00 LA COMÉDIE HUMAINE de Chan Hing-kai

Sábado 14 � Sala 4 � 21h45 ECHOES OF THE RAINBOW de Alex Law

Domingo 15 � Sala 4 � 19h00 GALLANTS de Derek Kwok

revista ler, janeiro de 2012 jornal público, 9 de janeiro de 2012

jornal público, 26 de novembro de 2011

revista tentações, 2012 revista ler, dezembro de 2011

jornal público, 12 de janeiro de 2012

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TotolotoChave sorteada: 8, 17, 33, 45, 49 + 1

Taça de PortugalSporting arranca empate com o Nacional no último segundo Pág. 29

EscolasObservatório que monotoriza violência está com actividade suspensa Pág. 11

SíriaJornalista francês morto em Homs Pág. 20

Amanhã no ípsilonMiguel Cardina publicaa árvoregenealógicado maoísmo em Portugal

UrgênciasGrupo privado lança campanha low cost para concorrer com SNS Pág. 8

I S S N : 0 8 7 2 - 1 5 4 8

Assuntos temporários

Planos de vida

Pedro Lomba

Na magnífi ca biografi a que escreveu de Luiz Pacheco (editada recentemente pela Tinta da China), João

Pedro George conta que Pacheco planeou várias vezes escrever um romance. Sentia que precisava de escrever um romance para ser reconhecido no meio literário. Por isso, acumulou projectos e ideias, deu-lhes títulos, trabalhou nas primeiras páginas. Mas o tal romance estampado nunca saiu. Nem estampado nem outra coisa. Por indisciplina, porque ele foi sempre um escritor de pequenas prosas, um velocista de curtas distâncias, pela sua crónica falta de dinheiro, tudo isso acabou por contribuir para o grande não-romance de Luiz Pacheco. Planos ele teve. Muitos. Era ambicioso nas intenções e nas necessidades. Mas não chegou ao fi m.

Existem escritores com obra e escritores sem obra, já o sabemos. Mas depois temos este terceiro género difi cilmente classifi cável: os escritores com planos. Os que deixaram livros e romances em projecto, em programa, antecipando aquilo que pretendiam realizar, às vezes deixando as instruções necessárias para que

outros continuassem, como se fossem esboços de pautas por executar. E eis que o último livro do crítico George Steiner se chama precisamente Os Livros Que não Escrevi. Foram vários, ele explica por que não os escreveu. E, no entanto, falar sobre os livros que não se escreveu não poderá ser outra maneira de os escrever?

Quem conhece os volumes de sociologia política de Fernando Pessoa deve lembrar-se que ele também apontou nos seus cadernos uma imensidão de ideias para ensaios e estudos. Chega a descrevê-los e a organizá-los com detalhe. Não acabou nenhum, a não ser que do seu baú sem fundo continuem a sair mais inéditos imprevistos. Além de grande poeta, o nosso Fernando foi também um magistral arquitecto de uma obra, neste caso ensaística, que nunca viu existência. O poeta sonha. A obra é que nem sempre nasce.

Ora, nesta época em que estamos condenados ao pragmatismo resignado, o que eu quero fazer

aqui é uma defesa dos seres humanos, escritores ou não, que superiormente se distinguem por elaborar planos que nunca irão realizar. Os nossos códigos de avaliação não costumam perdoar. Valorizam, e bem, o sucesso e o esforço dos que acabam. Esquecem, e mal, a intenção e a inconsequência de quem só planeou. Acabar é sem dúvida mais doloroso e meritório do que começar. Mas não nos enganemos. Para cada obra terminada, é preciso que muitas mais faleçam à nascença.

Não podemos deixar-nos vencer por um serôdio realismo, de vistas curtas, que nos impeça de orquestrar os planos mais irrealizáveis, quantos mais melhor, de tudo e para tudo. Defendo o realismo na política, mas não na vida. Estamos no princípio de Janeiro, quando nos enchemos de agendas e vontades para o novo ano. Já sabemos que metade da nossa boa vontade fi cará no papel. Pouco importa. O essencial é desde já planear aquele artigo, livro, expedição que muito possivelmente fi cará por fazer.

Longe de representarem frustração e desaire, estes escritores esquemáticos que se limitaram a idealizar ambiciosos projectos jamais concretizados provam que não andamos neste mundo para outra coisa. A vida é apenas um grande plano. Jurista

Existem escritores com

obra e escritores sem obra,

já o sabemos. Mas depois

temos este terceiro género

dificilmente classificável:

os escritores com planos.

Os que deixaram livros

e romances em

projecto, em programa,

antecipando aquilo que

pretendiam realizar

O central brasileiro foi ontem o espelho de uma exibição menos conseguida do Sporting, que só após a expulsão no Nacional conseguiu impor-se. Polga tem culpas no segundo golo sofrido pelos “leões”, que estiveram perto da eliminação mas conseguiram levar a decisão da meia-final da Taça de Portugal para a Madeira com um golo no último momento da partida. (Pág. 29)

Sobe e desce

AndersonPolga

PauloPortas

Alberto JoãoJardim

O presidente do Governo Regional da Madeira pode ter todas as razões do mundo para não assinar um plano de resgate financeiro que considera “inexequível”. Mas mesmo que Alberto João Jardim tivesse razões para não subscrever aquele programa, perdias-as todas quando avança com ameaças de crise política e com o velho fantasma do separatismo. (Pág. 4)

Integrar uma coligação tem destas coisas: o que hoje é verdade amanhã... O CDS, que antes de ser governo era contra a eventual privatização de um canal da RTP defendida já na altura pelo PSD, diz agora que o número de canais com que a RTP deve prosseguir a sua missão de serviço público é uma questão “secundária”. (Pág. 6)

A directora do DCIAP e procuradora-geral adjunta não sai bem na fotografia do caso do dossier da licenciatura de José Sócrates na UnI. Cândida Almeida, na verdade, investigou um eventual caso de falsificação de documentos com fotocópias dos ditos. E nunca procurou junto do Ministério da Educação os originais. (Pág. 10)

CândidaAlmeida