Matos, Olgária. Walter Benjamin a Citação Como Esperança

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  • 15/05/2015 Ctedra / PUC-Rio

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    Revista SEMEAR 6

    WALTER BENJAMIN: A CITAO COMOESPERANA

    Olgria Chain Fres MatosUSP

    "No tinha rplica", escreveu Balzac em Le Cousin Pons. "Era feito como (pea) nica para Mme.Pompadour." Trata-se de um esplndido leque pintado por Watteau que Sylvain Pons, colecionadorobsessivo, oferece a sua prima. Cada objeto se associa a uma constelao de signos: seu passado, ahistria de sua aquisio, seu preo, a lista de seus antigos proprietrios, sua data de fabricao, seumodo de produo. Impregnado por um acrscimo de alma ou de aura, preserva sua especificidade; no seinscreve em nenhuma srie e cria uma ordem indita que indica um tempo diverso de sua simples presena;alegoria do passado, tambm, recordao ntima.

    A citao condensa toda a filosofia de Walter Benjamin, da crtica literria epistemologia, do surrealismo fotografia, da tarefa do tradutor do historiador, da faculdade mimtica ao conceito de histria. O filsofoestabelece com a citao um double bind.

    Criadora de descontinuidades, a citao introduz na leitura a questo do duplo: o "estranho", o"surpreendente", o "perturbador". Aprendemos com Freud que o sentimento do que "perturbante" alia-seao "perptuo retorno do sempre igual", a uma repetio. Uma das ocasies de temor pnico constitui-se naduplicao de si por obra de um ssia: o duplo pe aos pedaos a identidade de algo, usurpando-lhe oscaracteres e o destino. O familiar e o estranho no so estados sucessivos, mas simultneos:

    [] assim, o autmato dos Contos de Hoffmann inquietante na medida em que otomavam a princpio por um ser vivo; o demente, na medida em que a princpioparecia sensato; o criminoso, na medida em que nada o designava a priori como talquando vai ao encontro daquele que projetava assassinar.[1]

    Em sentido prximo, a citao repetio sem ser coincidncia, refgio na dimenso do mesmo e apelode um outro. Em "A Imagem de Proust", com as idias "semelhana" e "correspondncia", compreende-seque a citao se coloca fora da lgica da identidade uma e una. Alegrica, ela torna manifesta ainadequao entre o contexto original e o atual, entre o objeto e sua representao; isto porque amemria involuntria "pertence ao repertrio da pessoa privada" cujo passado, porm, entre em conjunocom o passado coletivo".[2] A memria inintencional, como a denominou por sua vez Freud, possui funohermenutica e transformadora. Citare "pr em movimento", "trazer para si", "chamar": "a RevoluoFrancesa se entendia como uma Roma recomeada. Ela citava a antiga Roma exatamente como uma modacita uma vestimenta de outrora".[3] No a histria que, hegelianamente indicia os homens em seu tribunalcom seu poder de veredicto; so os homens que julgam a histria:

    Nada de tudo que acontece deve ser considerado perdido para a Histria. to-somente a uma humanidade liberada que pertence plenamente seu passado. Spara ela, cada um de seus momentos se tornou citvel. Cada um dos instantes queviveu, torna-se uma citao l'ordre du jour.[4]

    Citao "fora motriz":

    [...] seu sentido encontra-se no acidente e no choque

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    [...]. preciso contar com sua potncia e cuidar para que no se a neutralize, poiseste poder mobilizador a citao tal como em si mesma, antes de o ser paraqualquer outra coisa.[5]

    A citabilidade supe eternidade da obra ou permanncia das virtualidades de um acontecimento dopassado, eternidade que no um "tempo infinito", mas relao entre o passado e sua renovao; nahistria escrever citar, conferir uma "fisionomia s datas". Assim os revolucionrios de julho de 1830, naFrana, qual "novos Josus", interromperam o tempo histrico, revelando que um destino inteiramente outroteria sido possvel: "a revoluo de Julho comportou um incidente em que essa conscincia histrica pdefazer valer seus direitos. noite do primeiro dia de combate, verificou-se que em lugares diversos de Paris,independentemente e ao mesmo tempo, (os revolucionrios) atiraram nos relgios pblicos", como seprocurassem "parar o dia".[6] Essa figurabilidade se faz pela correspondncia entre um "exterior visvel" eum "interior escondido", como a histria de um rosto no qual o fisiognomista e os instantneos fotogrficos,a igual ttulo do colecionador, adivinham a alma e pressentem seu destino. Estes ludistas do tempo nos doa conhecer o que ainda hoje faz viver cartomantes, quiromantes e astrlogos:

    [...] eles sabem colocar-nos em uma dessas pausas silenciosas do destino, asquais, s depois, percebemos que continham o grmen de um destino inteiramenteoutro daquele que nos foi reservado.[7]

    Tambm a traduo anloga citao. Esta "opera maneira da citao, uma vez que porta, numprimeiro momento, desorganizao, desestruturao do original"[8]. E assim a relao com a lnguaestrangeira. Benjamin cita Gide:

    [...] no aprendizado das lnguas, o mais importante no aquela que se aprende,mas abandonar a sua. Eis o decisivo. S ento que se a compreendeverdadeiramente.

    Se citar deslocar, traduzir deslocar-se tambm de nossa prpria lngua. Citar abandonar o contextofamiliar pelo estranho, transformar o estranho em familiar e o familiar em estrangeiro. Traduzir um "atomgico" de apropriao do Outro que tambm um Mesmo, pois, como o sabem todos os msticos, umtexto requer uma busca de sentido ao infinito. Por isso o tradutor torna-se escritor.

    Citao, choque e silncio (como o mutismo em "Experincia e pobreza" ou o silncio sublime de "Afelicidade do homem antigo") dizem respeito ao mtodo de investigao. Este mais um decurso que umcurso. alegrico, contrape-se lgica da identidade, da adequao do conceito coisa. E ainda o maiselevado carece de nomeao e de figura. O que no pode ser nomeado constitui o oximoro de uma"imaginao sem imagem", o que pode ser um eco. Seria este a experincia do sentido histrico das coisase acontecimentos?

    No se deveria falar de acontecimentos que nos atingem na forma de um eco, cujaressonncia parece ter sido emitida em um momento qualquer na escurido da vidapassada? Alm disso, acontece que o choque com que um instante penetra emnossa conscincia como algo j vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma deum som [...]. Estranho que ainda no se tenha buscado o ssia deste xtase; ochoque com que uma palavra nos deixa perplexos tal qual uma luva esquecida emnosso quarto. Do mesmo modo que esse achado nos faz conjecturar sobre adesconhecida que l esteve, existem palavras ou silncios que nos fazem pensarna estranha invisvel, ou seja, no futuro que se esqueceu junto a ns.[9]

    Benjamin est falando de uma experincia do tempo como dj vu. Paradoxo essencial, experincia que dizrespeito viso, por sinestesia remete metfora sonora: o eco. O dj vu uma modalidade derepetio, de duplo do tempo que no atribui qualquer inferioridade ontolgica ao presente ou ao passado.Pode tanto j ter acontecido quanto se apresentar pela primeira vez.

    Um sentido prximo pode ser encontrado no ensaio "A Imagem de Proust". Em carta a Scholem de 14 dejaneiro de 1926, Benjamin escreve que seu ttulo poderia ser "Traduzindo Proust" e no apenas porque sededicava traduo da Recherche para o alemo mas porque a traduo supe a compreenso das"interrupes do tempo" no aprendizado de uma lngua - tempo necessrio para ingressar na intimidade dalngua e na da obra. Em uma passagem de Proust traduzida por ele (do volume II de la Recherche duTemps Perdu, "Le Chemin de Guermantes") -, Proust refere-se ao novo artefato tecnolgico - o telefone -para falar da intermitncia de vozes e distncias (Benjamin retomaria este tema no fragmento "Telefone" deInfncia Berlinense):

    [...] assim que nosso chamado toca, na noite cheia de aparies sobre a qualapenas nossos ouvidos se abrem -, um leve rudo - um rudo abstrato - o dadistncia suprimida - e a voz do ente querido que se dirige a ns. ele, sua vozque nos fala, quem est l. Mas como est longe! Quantas vezes s pude escut-la cheio de angstia.

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    Se, para Proust, o telefone uma personagem parte na Recherche, por simbolizar a presena de umaausncia, Benjamin acrescenta-lhe o significado histrico de uma inveno que ultrapassa destino etristezas individuais vindo a corporificar o prprio tempo presente. O telefone, de relegado aos recantosmais esquivos do apartamento burgus do oeste de Berlim, como simples aparelho domstico, acaba poruma entrada triunfal nas peas luminosas, antes de colocar-se a servio da guerra moderna, indiferente salegrias ou tristezas dos dias. Quando tocava, perturbando a tarde e a sesta de seus pais, o telefonesoava como um "sinal de alarme [...] na poca da histria do mundo em meio qual eles a faziam". Sinal dealarme e choque, portanto, que nos levam a retomar o trabalho da citao.

    A citao toca a alegoria, o duplo sentido, o Trauerspiel: "jogo lutuoso", o luto que se converte emldico. assim que Benjamin pde escrever acerca do olhar de Proust: "no eram olhares felizes mas nelesestava a felicidade, como no jogo ou no amor".[10] A felicidade mora em olhares infelizes, o jogador temsempre um "peso no corao". Mas o jogo, como o amor, produzem, ao mesmo tempo ouentrecruzadamente, bem-estar. Circunstncia assim enunciada por Benjamin: "os mdicos foram impotentesdiante da doena de Proust. Mas no (ele) que a colocou a servio do plano de sua obra

    [...]. A asma entrou em sua arte, se que no foi criada por ela. Suasintaxe imita continuamente o ritmo de sua angstia de sufocamento".[11] Circunstncia que pode ser detectada em uma entrevista sobreleitura publicada nos Cahiers Cline.[12][...] tenho uma biblioteca s minha e que eu no recomendo. Eu memexo muito durante o dia e noite gosto de descansar no meu cantocom meus livros. meu refgio [...]. H livros de todo tipo, mas sevoc for abri-los, vai se espantar. Esto todos incompletos; alguns sguardam dentro da encadernao algumas poucas pginas. Sou deopinio que se deve fazer com comodidade o que se faz todos os dias;ento eu leio com tesoura na mo, me desculpe, cortando tudo o queme desagrada. Tenho assim leituras que nunca me cansam. Do Homemdos Lobos, conservei dez pginas; um pouco menos de Viagem aoFundo da Noite. De Corneille Polieto inteiro e uma parte do Cid. De meuRacine no suprimi quase nada. Guardei de Baudelaire uns 200 versos ede Victor Hugo um pouco menos. De La Bruyre o captulo "Docorao"; de Saint Evremond, a conversao do Padre Canaye com oMarechal de Hocquincourt. De Madame Sevign, as cartas sobre oprocesso de Fouquet; de Proust o jantar na casa da duquesa deGuermantes; "a manh de Paris" de A Prisioneira.

    Nisto encontra-se o carter limite da leitura, a exemplo de um autor que Benjamin conhecia to bem.Trata-se de Valry que l como quem espreita: "leio com rapidez, na superfcie, prestes a cingir a minhapresa".[13]O leitor, como o historiador, um flneur que captura instantneos do atual, instantneos que marcam aforma nova do pensar e do agir, reconciliando o homem consigo mesmo e com suas esperanas utpicas. Oque hoje desaparece, no so as utopias, pois estas como "os deuses no morreram: o que morreu foi anossa viso deles. No se foram: deixamos de os ver".[14]

    Notas:

    1 Pierre Clment, La Philosophie du Pire, Paris, Gallimard, 1971, p. 105.

    2 "A Imagem de Proust", in: Magia e Tcnica, Arte e Poltica, So Paulo: Brasiliense, 1986.

    3 Tese n. 14, "Sobre o conceito de Histria", in: Magia e Tcnica, Arte e Poltica, op. cit.

    4 Tese n. 3, op. cit., p. 223.

    5 Compagnon, A. La Seconde Main ou Le Travail de la Citation, Paris, Seuil, 1979, p. 44.

    6 Cf. tese n. 15, "Sobre o conceito de Histria", in: Magia e Tcnica, Arte e Poltica, op. cit.

    7 Benjamin, "Sobre o que predizem os adivinhos", in: Illuminationen, 1980, p. 301-2.

    8 Susana Kampff Lages, Leituras de Benjamin, So Paulo, Iluminuras/Fapesp, 1999, p. 50.

    9 "Infncia Berlinense", in: Rua de Mo nica, So Paulo, Brasiliense, 1994.

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