MATADORES DE GENTE: TRAJETORIA DA PISTOLAGEM · da honra. Não seria demais dizer que a pistolagem...

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- MATADORES DE GENTE: , TRAJETORIA DA PISTOLAGEM A pistolagem é uma das práticas homicidas mais arcaicas da história do Brasil e especificamente do Nordeste brasileiro. Ela vem se transformando ao longo dos tempos: podemos encontrá-Ia nos jornais, nas ruas das cidades, nos ser- tões, na memória coletiva e individual dos sujeitos da nossa sociedade, nas estru- turas, nas relações de po- der e no campo da defesa da honra. Não seria demais dizer que a pistolagem faz parte da cultura, da organização da sociedade brasileira e é um traço de um com- plexo cultural. Ela tem um movimento próprio, que na cultura da violência se expressa com gran- de força simbólica, produzindo imaginários e subjetividades que nos constituem. Quem não ouviu ou já disse as seguintes frases? sentidos, marcando a histó- ria cotidiana dos sertões nor- destinos, no que tange a crime por pistolagem, honra, valentia, medo, produzindo um corpo das capilaridades de práticas de uma econo- mia que traduz as mortes de pistolagem. Essas questões me fizeram mergulhar em tramas subjetivas, pois nasci em Quixadá, cidade locali- zada no sertão central do Estado do Ceará, palco de uma realidade que me fez conviver com a pistolagem. Senti uma grande vontade de desven- dar histórias soterradas, diálogos endurecidos so- bre um assunto que sempre passava ao meu lado, fazendo vizinhança nas minhas lembranças e vivências, aterrorizando-me e deslumbrando-me ao mesmo tempo. Tratava-se das sagas e trajetóri- as de homens que desempenhavam o papel do que chamam no sertão de: "matadores de gente". Como diz Guimarães Rosa em sua imortal obra Grande Sertão: Veredas, Peregrina Fátima Capelo Cavalcante* RESUMO Este artigo apresenta a trajetória de uma pesquisa de campo sobre a prática da pistolagem na Região Jaguaribana, localizada no sertão do Estado do Ceará. O processo histórico cearense é apresentado como pano de fundo, destacando atores que se movem num cená- rio repleto de representações sócias, gramáticas discursivas, perfazendo assim, a cartografia dos tipos de pistolagem e pistoleiros encontrados na atividade investigativa da elaboração etnográfica. * Doutora em Sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC. Fulano de tal morreu de morte matada; Matar de emboscada é covardia; O pistola está acoitado na fazenda de fulano de tal; Se eu pudesse, eu matava; Pela lei não tem jeito de se consertar essa his- tória, mandando matar; Todo mundo sabe quem matou e quem man- dou matar, que ninguém mexe; O vereador está traindo o grupo político a que pertence, qualquer dia vai para a terra dos pés juntos. Percebi que essas frases funcionam como estímulo hermenêutico, gerando um mundo de 84 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2 Sertão é onde manda quem éforte, com as as- túcias. Deus mesmo, quando vier, que ve- nha armado!". "O grande sertão é aforte arma. Deus é um gatilho?"; "Sertão é dentro da gen- te"; "O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão ou sertão maldito nos governa"; "Lugar sertão é onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho da autoridade. Com o objetivo de compreender o "som- brio mundo da pistolagem" não por uma ver- 2002·

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-MATADORES DE GENTE:,

TRAJETORIA DA PISTOLAGEM

A pistolagem é uma daspráticas homicidas maisarcaicas da história do

Brasil e especificamente doNordeste brasileiro. Ela vemse transformando ao longodos tempos: podemosencontrá-Ia nos jornais, nasruas das cidades, nos ser-tões, na memória coletivae individual dos sujeitos danossa sociedade, nas estru-turas, nas relações de po-der e no campo da defesada honra. Não seria demais dizer que apistolagem faz parte da cultura, da organizaçãoda sociedade brasileira e é um traço de um com-plexo cultural. Ela tem um movimento próprio,que na cultura da violência se expressa com gran-de força simbólica, produzindo imaginários esubjetividades que nos constituem.

Quem não ouviu ou já disse as seguintesfrases?

sentidos, marcando a histó-ria cotidiana dos sertões nor-destinos, no que tange acrime por pistolagem, honra,valentia, medo, produzindoum corpo das capilaridadesde práticas de uma econo-mia que traduz as mortes depistolagem. Essas questõesme fizeram mergulhar emtramas subjetivas, pois nasciem Quixadá, cidade locali-zada no sertão central doEstado do Ceará, palco de

uma realidade que me fez conviver com apistolagem. Senti uma grande vontade de desven-dar histórias soterradas, diálogos endurecidos so-bre um assunto que sempre passava ao meu lado,fazendo vizinhança nas minhas lembranças evivências, aterrorizando-me e deslumbrando-meao mesmo tempo. Tratava-se das sagas e trajetóri-as de homens que desempenhavam o papel doque chamam no sertão de: "matadores de gente".

Como diz Guimarães Rosa em sua imortalobra Grande Sertão: Veredas,

Peregrina Fátima Capelo Cavalcante*

RESUMO

Este artigo apresenta a trajetória de uma pesquisa decampo sobre a prática da pistolagem na RegiãoJaguaribana, localizada no sertão do Estado do Ceará.O processo histórico cearense é apresentado como panode fundo, destacando atores que se movem num cená-rio repleto de representações sócias, gramáticasdiscursivas, perfazendo assim, a cartografia dos tiposde pistolagem e pistoleiros encontrados na atividadeinvestigativa da elaboração etnográfica.

* Doutora em Sociologia e professora do Departamentode Ciências Sociais da UFC.

Fulano de tal morreu de morte matada;Matar de emboscada é covardia;O pistola está acoitado na fazenda de fulanode tal;Se eu pudesse, eu matava;Pela lei não tem jeito de se consertar essa his-tória, só mandando matar;Todo mundo sabe quem matou e quem man-dou matar, só que ninguém mexe;O vereador está traindo o grupo político a quepertence, qualquer dia vai para a terra dospés juntos.

Percebi que essas frases funcionam comoestímulo hermenêutico, gerando um mundo de

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Sertão é onde manda quem éforte, com as as-túcias. Deus mesmo, quando vier, que ve-nha armado!". "O grande sertão é aforte arma.Deus é um gatilho?"; "Sertão é dentro da gen-te"; "O sertão não tem janelas, nem portas. E aregra é assim: ou o senhor bendito governa osertão ou sertão maldito nos governa"; "Lugarsertão é onde criminoso vive seu cristo-jesus,arredado do arrocho da autoridade.

Com o objetivo de compreender o "som-brio mundo da pistolagem" não por uma ver-

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- BCd-U;: -:PER/OOJCOS

tente policial, mas sim, sociológica, antropoló-gica, histórica, desenvolvi uma pesquisa por umperíodo de quatro anos em várias localidadesdos sertões nordestinos, (Ceará, Maranhão, Piauí,Paraíba e Rio Grande do Norte). Este trabalhoresultou na dissertação da minha Tese de Dou-torado em Sociologia defendida no programade Doutoramento em Sociologia do Departamen-to de Ciências Sociais e Filosofia da UFC.

Iniciei a minha pesquisa de campo, antesmesmo de formalizá-Ia com projeto de Tese deDoutorado. Através dos jornais, de conversas in-formais, fui desenvolvendo trilhas que, em pou-co tempo colocaram-me em um universo maiscomplexo. As questões iniciais que nortearam omeu interesse pelo assunto foram: o que é apistolagem?, porque existe pistolagem?, como sefaz um pistoleiro?, de onde ele vem?, a pistolagemé ainda uma realidade?, é possível traçar a suacartografia? A pesquisa de campo seguiu os prin-cípios metodológicos de uma observação partici-pante. Durante esse período, pude gravar,entrevistar, anotar, observar e conviver com fa-tos, acumulando um precioso material que serviude base para este trabalho. Foram noventa e trêshoras de gravações, três cadernos de diário decampo, visitas a muitos lugares, além de muitashoras de conversas, com os mais diferentes tiposde pessoas. Muitas amizades foram feitas, muitasconfidências reveladas, muitas lágrimas rolaramcomo desabafos dos medos, dos pavores queemergem do tema dessas histórias, onde a mortese faz anunciada. Lembrava-me constantementeda grande escritora Clarisse Lispector que, em umade suas entrevistas, disse: "morro de pena de meuspersonagens, se eu pudesse, AH! Se eu pudesse,como facilitaria a vida deles, como lhes daria maisanos. Mas nada posso fazer, se não lhes dar espe-ranças, e leves empurrões para a frente. Só háum livro meu em que o personagem morre nofim. A todos os outros eu deixo o caminho aber-to: é só ter força ou querer passar. É com piedadee resignação que os deixo sofrer: que assombro-sa coragem a minha: são filhos meus e no entan-to abaixo a cabeça as suas dores. Por isso adio

tanto em escrever um livro. Já sei como vou sertorturada e castigada, e como muitas vezes mesentirei impotente. Mas nada posso fazer: tudo oque vive sofre!!!".

A região Jaguaribana 1 foi escolhida pormim para centrar a problemática a ser estudada,o seu passado histórico apontava uma grandeimportância, nessa região processaram-se as pri-meiras ocupações do sertão Cearense. A criaçãode gado foi a responsável pela entrada de umvolume populacional significante oriundo prin-cipalmente dos Estados do Rio Grande do Nor-te, Pernambuco, Piauí e Bahia. Foi na ribeiradeste grande rio (Iaguaribe), que aconteceramas guerras centenárias entre famílias de potenta-dos. Atualmente esta região é costumeiramenteassociada à prática da pistolagem.

O primeiro município visitado da região foio de São João do Jaguaribe. Hospedei-me na resi-dência de uma velha moradora do lugar. No perí-odo de minha permanência, tive sensações muitoarcaicas, que foram registradas no meu diário decampo. Elas me faziam sentir como se o meu cor-po estivesse se desmembrando em dois: um queficou no passado e um outro que estava comigo.Nesta idéia de eterno retorno, pensava sempre:"um dia tive que sair do mato mas o mato não saiude dentro de mim". O eterno retorno é o retornodas intensidades, é a repetição de diferenciações,de devires que vibram em estado de virtualidadetrazendo consigo, não o passado empírico enquan-to tal, mas aquilo que vibrou em intensidades, sem-pre desiguais a si. É vida tremulando.

As pessoas assim como a superfície da terratêm suas geografias, topografias e cartografias.Esta imagem estiliza as sensações que carregavadentro de mim ao "entrar em cena", a realidadedos lugares, suas práticas e atores. Pouco a pou-co fui percebendo uma vida que pulsava emsuas multiplicidades, vistas por um olhar queensaiava os primeiros passos de uma cartografiada história local, das pessoas, dos afetos, dossentimentos, dos acontecimentos. Na antropo-logia, a pesquisa depende entre outras coisas dabiografia do pesquisador, das opções teóricas,

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-da disciplina em determinado momento, do con-texto histórico mais amplo e, não menos, dasimprevisíveis situações que se configuram no diaa dia local da pesquisa.

A observação etnográfica como recursometodológico indica que o pesquisador deveráfazer uma imersão na realidade por elepesquisada, usando das estratégias de conviver,sentir e observar as ações dos atores de seu tra-balho. O etnólogo está próximo do romancista,que tenta restituir a intuição de uma totalidadecultural através de suas práticas. Geertz-' advogaque a etnografia é uma descrição densa. Para ele"fazer a etnografia é como tentar ler (no sentidode "construir uma leitura de") um manuscrito es-tranho, desbotado, cheio de elipses, incoerênci-as, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,escrito, não como os sinais convencionais do som,mas com exemplos transitórios de comportamentomodelado". Dar significado ao que parece des-botado é uma das tarefas da descrição densa,enquanto teoria interpretativa da cultura. O quefaz o etnógrafo? Na interpretação de Geertz-", elenão deverá só observar e registrar, mas sim, prin-cipalmente interpretar. "A análise cultural é (oudeveria ser) uma adivinhação de significados, umaavaliação de conjecturas, um traçar de conclu-sões explanatórias, a partir das melhoresconjecturas, e não a descoberta do Continentedos significados4" O papel da etnografia, segun-do o autor, é fornecer um vocabulário no qualpossa ser expresso o que o ato simbólico tem adizer sobre ele mesmo - "isto é, sobre o papel dacultura na vida humana". O objetivo da etnografia,com as características da descrição densa, "é tirargrandes conclusões a partir de fatos pequenos,mas densamente entrelaçados, apoiar amplas afir-mativas sobre o papel da cultura na construçãoda vida coletiva-' ". Baseada nestas contribuiçõesde Geertz, procurei, durante a pesquisa de cam-po, mapear as manifestações microscópicas dapistolagem, os fragmentos, as diversidades e sin-gularidades, compondo assim o que chamo de"cultura da pistolagem". Foquei três grandes reta-lhos de uma mesma realidade, o mundo da

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pistolagem como um gigantesco patchwok é umacolcha de retalhos de constituição infinita, de jun-tura múltipla, formada de pedaços que têm umarelação com o todo. As instituições políticas, eco-nômicas, religiosas, familiares, imaginárias, peda-gógicas ete. são partes de um todo em conexão.Sem entender estes acasalamentos de pequenose grandes mundos em ligações múltiplas, seriadifícil entender o mundo da pistolagem. Para issoreconstituí a história da ocupação territorial, o quechamo de Violência fundante, referindo-me aogenocídio e ao etnocídio indígena, para "limpar"estes sertões, dando lugar às fazendas de criatóriode gado. Constituem-se nesse momento verda-deiros exércitos privados para execução sumáriado indígena da região Jaguaribana, em nome dadecretação da "Guerra Justa", prática assassina le-gitimada pela Coroa Portuguesa em defesa dossesmeiros que iriam produzir riqueza aos cofresimperiais. Localiza-se aí o momento embrionáriodo que hoje chamamos de pistolagem. Cada po-tentado, cada sesmeiro e depois os grandes fa-zendeiros coronéis mantiveram como dispositivoindispensável os seus "cabras, capangas,pistoleiros" para defesa de suas propriedades,honra e interesse político. Uma "máquina de guer-ra" constitui-se em defesa de uma elite agrária,que tinha como proposta o uso da força, seja láqual for, que no nosso caso é a força do bacamarte,lembrando Joryvar Macêdo" no seu clássico livroImpério do Bacamarte.

Rasteando as vozes da comunidade pudeconstituir uma amostra heterogênea de atoressociais, tais como: juizes, promotores, padres,agricultores, jurados de morte, professores, co-merciantes, prefeitos, donas de casa, fazendei-ros, viúvas de pistoleiros, vítimas de pistolagemetc. Cada um desses fizeram parte de uma dobrado tecido social, tendo como alvo a relação co-munidade e pistolagem. As mulheres tiveram umaimportância fundamental no processo da pesqui-sa, o olhar feminino sobre a família, a região, apistolagem possibilitou-me enxergar outros ân-gulos, principalmente no que se refere à intimi-dade das coisas, às vivências cotidianas. Certa vez,

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-em uma pequena cidade da Região ]aguaribana,conversei com um casal sobre as experiências desuas vidas. O homem, ao se referir a sua mulher,falou: "eu sou o pescoço e ela é a cabeça". Essadeclaração reflete a importância desta mulher naestrutura da família, ela (a declaração) fala decomo as mulheres exercem um comando que, namaioria das vezes, é silencioso e escondido. Pas-sar pela família é indispensável para compreen-der a estrutura e as subjetividades dos sertões;parece ser um grande Egito, onde grandes "di-nastias" familiares orquestram os macros e microspoderes. Como por exemplo: com quem as pes-soas devem se casar para manter a unidade fami-liar, em quem devem votar para manter a unidadepolítica, tudo isso construindo uma grande redede trocas de uma economia simbólica 7, do eco-nômico e do não econõmico.

O "Outro" e o "Mesmo ", indicam a maneiracomo os atores da comunidade mesmo não sen-do pistoleiros incorporam uma visão de mundoque, ao falar do pistoleiro parece falarem de sipróprio, dizendo muitas vezes assim: "se algoacontecer comigo a família se vinga"; "só tenhouma palavra, comeu não leu o pau comeu";"ando sempre armado para não perder tempo".Essas questões nos mostram como são tecidasartesanalmente as falas dos atores da comunida-de no que tange à pistolagem, ao pistoleiro e aelas mesmas. Os atores dessa comunidade pro-duzem uma cartografia dos sentimentos, mos-trando como eles retratam as suas "noções demundo" e, ao falarem do outro (pistoleiro epistolagern), utilizando-se de suas experiênciashistóricas e de suas memórias, estão falando desi mesmos. A prática da pistolagem é percebidanessas falas como uma rede de significados queproduz e reproduz não só a ela mesma, mastambém os próprios valores da comunidade. Asminhas indagações no campo de pesquisa nãotinham como objetivo obter respostas precisas,Frias, mas uma qualidade discursiva, através dareconstrução dos fatos, que me possibilitasseobservar outros espaços dos estilos e modos devida dos atores desta pesquisa. Na convivência

com a Velha Família, com os Territórios da Honrae jurados de Morte, foi possível perceber comoos atores comiam, habitavam, trabalhavam, fala-vam de suas angústias e sonhos, de seus valoresetc. Penso que pesquisar dessa forma é objetivaro objeto e objetivar-se, impedindo que se cons-trua um fosso entre o objeto pesquisado e opesquisador. Procurei não me esquecer de ins-crever, nas minhas análises, o lado lúdico docotidiano que mostra como realmente as pesso-as vivem, e como a pistolagem faz parte destacotidianidade. As descrições recorrentes sobre oque é o pistoleiro, encontradas na pesquisa decampo, foram trabalhadas com a intenção deconstruir um tipo ideais, seguindo uma orienta-ção weberiana desse conceito. Para fazê-lo, foinecessário selecionar as características significa-tivas nas realidades e combiná-Ias num quadromental homogêneo. Pistoleiro: homem temido;violento; covarde; frio e calculista; corajoso; matade tocaia; devoto; fervoroso; apaixonado; ma-cho; mulherengo; fiel; tem código de honra, matapor dinheiro e por vingança; rouba; inconfiável.Essa seleção tem um significado epistemológicomais amplo, pois foi encontrado em todas asfases da pesquisa, principalmente quando, fren-te a uma massa de dados, tive que colocar delado alguns deles como sendo de importânciasecundária, ou insignificantes, e guardando osque pareciam importantes ou essenciais. Segun-do Weber, o tipo ideal é precisamente uma des-sas descrições mentais que permitem, nasciências, a mais rigorosa abordagem possível darealidade, mas é sempre limitada a um, ou a unspoucos aspectos dessa realidade. Sua definiçãode tipo ideal não deixa dúvida sobre a questão,na medida em que ele a vê como imagem men-tal pura, ou uma utopia. A construção do tipoideal é um facilitador metodológico, através deleé possível aproximar ou distanciar as questõesde uma determinada realidade social.

Destaco aqui os principais discursos quedão o roteiro da trajetória a ser seguida pelopistoleiro e pela pistolagem, como facilitadorespara a construção de outros tipos ideais:

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-Amparados por poderosos mandantes de cri-mes, surgem os pistoleiros profissionais.Eram antes conhecidos por "cabras", "capan-gas" ou guarda-costas.O pistoleiro atua nas cidades e nas fazendas.É um indivíduo que mata para ganhar dinheiro.Não é homem de lutar, peito a peito, nem paratiroteios.É perigoso, traiçoeiro, astuto, covarde.Atua de tocaia e consegue evadir-se com faci-lidade.Premedita o crime, escolhendo o local.Combina com o mandante, escolhem ambos ahora e o melhor local: o retorno de uma festa,o regresso do trabalho, a casa.Usa automóvel, jipe ou moto.Ingressa no profissionalismo do crime aindajovem.Às vezes, o ingresso se dá após o cumprimentode pena nas cadeias.O pistoleiro oculta-se nas fazendas, à esperade um serviço.Mata o inimigo do seu protetor.É joguete nas mãos dos mandantes ou inter-mediários do crime.É capaz de arriscar a vida pelo patrão.A impunidade é a responsável pela permanên-cia da pistolagem.É determinado no serviço, quando sai paramatar, mata mesmo.

o mandante chamava o pistoleiro para ma-tar; este nem sequer conhecia a vítima.

Surgia o diálogo:

- Vocêvai apagar Fulano hoje, semfalta. Dou-lhe tanto. Faça o serviço bem feito.O pistoleiro respondia:- Só em o senhor dizer que eleprecisa ser apa-nhado, já estou com raiva dele.A falta de medidas enérgicas tomadas pelosdirigentes e pela justiça do nosso país, a açãodos mandantes dos crimes depistolagem seper-petua, cada vez mais organizada por interes-ses políticos, econômicos epela honra.

Cerca de três, quatro pessoas caíram mortasem tiroteios por ocasião das eleições em em-boscadas em plena via pública. O chefepolíticoé apontado. Comenta-se o assunto. Encerra-seo caso.

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O pistoleiro de honra, o mais tradicional, estáacabando.A pistolagem não desapareceu, mas mudoubastante. O pistoleiro tradicional já está aca-bando, hoje existem vários tipos de matadoresde gente.

Observa-se que, na lógica interna das no-meações, encontram-se adjetivações conflituosas,como por exemplo: covarde e corajoso; fiel e trai-çoeiro; frio e apaixonado; religioso e assassino;etc. Esses discursos falam dos caminhos e cruza-mentos os quais o pistoleiro e a pistolagem per-correm e onde se encontram. O pistoleiro fazparte da categoria dos "matadores de gente", comotambém o cabra, o capanga. A produção e a trans-formação dos elementos dessa categoria é aquipercebida pelo movimento da organização socialda qual eles fazem parte. E a percepção dessemovimento possibilita acompanhar a metamor-fose constante à qual o pistoleiro, como matadorde gente, está submetido.

É a flecha do tempo, o "jogo das ternpora-lidades" que indicam o movimento e não a con-tinuidade fria, como diz Balandier? . Na percepçãodo autor, deve-se apreender a sociedade em seumovimento, sua abundância e sua turbulência.Balandier inspira a pergunta: É o pistoleiro umacômoda perturbação? É o pistoleiro uma amálgamadas rupturas e permanências de uma sociedade?O tipo ideal e as falas definidoras do pistoleiroparecem inspiradas nessas indagações. Isso fazlembrar que "tais figuras são instrumentos de or-dem ao mesmo tempo que agentes potenciais dadesordem". Percebi várias vezes que as narrati-vas continham a indicação de um sentido quequalificava o pistoleiro como "um mal necessá-rio", ou "uma cômoda perturbação".

No decorrer da pesquisa de campo, per-cebi a existência e a permanência de três tiposde pistoleiros. O pistoleiro tradicional, opistoleiro avulso e o pistoleiro bandido. Eles sãoa derivação do tipo ideal de pistoleiro. Perma-nece em todos eles um traço comum, matampor vingança e por dinheiro. Explicarei agora ascaracterísticas de cada um deles.

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-o PISTOLEIRO TRADICIONAL

Ser do tipo pistoleiro tradicional significaestar ligado a "um dono", a "um patrão", não ten-do autonomia de praticar crimes de pistolagemsem a ordem do patrão. Esse tipo permanece li-gado ao patrão por laços de fidelidade, existindoentre eles uma troca de favores, e um rígido có-digo de honra, justificando assim quaisquer "ser-viços arbitrários". Esse pistoleiro jamais se ausentados limites geográficos determinados pelo patrão,permanecendo cativo a esse espaço, que, namaioria das vezes, é a fazenda. É interessanteobservar que esse tipo, segundo os meus infor-mantes, encontra-se em extinção, devido à mo-dernização das estruturas dos poderes locais.

O PISTOLEIRO AVULSOEsse tipo se caracteriza por sua autonomia,

funcionando como um prestador de serviço, nãoestando ligado a nenhuma hierarquia de mando.É dono de sua força de trabalho e é seu própriopatrão. Encara a prática da pistolagem como umaprofissão. Seu código de honra está circunscritoao que ele chama de "fazer o serviço bem feito",não existindo laços de fidelidade com um patrãoou dono ..Seu corpo é um corpo móvel e nôma-de, deslocando-se constantemente, não se fixan-do assim num só lugar. A sua trajetória espacial édeterminada pela procura de seus serviços. Sur-ge na vida desse pistoleiro um outro agente - ointermediário, será através dele que o pistoleiroarmará a sua teia de relações e trabalho.

O PISTOLEIRO BANDIDOEsse tipo de pistoleiro possui atividades múl-

tiplas: mata, rouba, assalta, seqüestra, estupra. Eleé um agente de práticas marginais múltiplas, nãose define só como matador. O roubo, prática mar-ginalizada pelo pistoleiro tradicional, é integradaao comportamento do pistoleiro bandido. A no-ção de honra que o pistoleiro adota e o grupoem que ele atua são efêmeros, fazendo-se e des-fazendo-se na velocidade do dia, no jogo dastemporalidades e dos movimentos transitórios. Eleé também chamado de "elemento ", "marginal':"sem-vergonha ", "cabra ruim ". "pervertido ".

"crâpula', Faz parte das cenas das sociedades ru-rais e urbanas. Esse tipo de pistoleiro envolve-seconstantemente com a rendosa "profissão" de as-saltante de bancos e de cargas de caminhão.

O pistoleiro tradicional, o avulso e o bandidooperam em ordens que parecem distintas, apesardisso, existe uma profunda ligadura de permanên-cias, mesmo observando as sucessivas metamorfo-ses. Não serão eles uma incômoda permanênciaou, na maioria das vezes, agentes da manutençãode urna ordem social que insiste em permanecer?

NOTAS

1 É a região cearense cortada pelo Rio Jaguaribe,que tem um curso de 506 km, cuja nascente loca-liza-se na Serra da Joaninha e sua foz localiza-se a15 km da cidade do Aracati, litoral sul do Estadodo Ceará. Esta região divide-se em três sub-regi-ões: Alto, Médio e Baixo Jaguaribe.

2 GEERTZ, Clifford: Interpretação das Culturas, Riode Janeiro, Ed. Guanabara, 1989.

3 GEERTZ, Clifford: 1989.4 GEERTZ, Clifford: 1989.5 GEERTZ, Clifford: 1989.6 MACEDO, Joaryvar: Império do Bacamarta, (uma

abordagem sobre o coronelismo no CaririCearense), Fortaleza, Casa José de Alencar, 1990.

7 BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas Sim-bólicas, São Paulo, Perspectiva, 1982.

8 WEBER, Max: Metodologia das Ciências Sócias,parte 1, São Paulo, Ed. Cortez, 1992.

9 BALANDIER, Georges: A Desordem: elogio domovimento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALANDIER, Georges. A Desordem: elogio do mo-vimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Sim-bólicas, São Paulo: Perspectiva, 1982.GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas, Riode Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.LISPECTOR, Clarice. EntrevistaJornal do Brasil, 13de Maio, 1972.MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte, (umaabordagem sobre o coronelismo no Cariri Cearense),Fortaleza: Casa José de Alencar, 1990.

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