MATA, Sergio- O Escandalo Da Religiao

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Texto sobre história da religião

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  • sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014. 191

    O ESCNDALO DA RELIGIO LUZDA PROTOSOCIOLOGIA DE THOMAS LUCKMANN1

    Srgio da Mata2

    I

    Mais que ambiciosa, revoluo uma palavra pretensiosa. A partir de meados da dcada de 1960, porm, quando parte da juventude do mundo, de Berkeley a Pequim, tinha como certa sua capacidade de mudar radicalmente a sociedade e os rumos da histria, quando o sopro da revoluo percorria inclusive as grandes Igrejas crists, uma advertncia como essa fatalmente cairia no vazio. E, no entanto, o aparecimento de um livro como A religio invisvel em 1967 no deixava de espelhar o desejo difuso, bem tpico daquela poca, de se produzir alguma grande novidade3.

    No que seu autor, o socilogo norte-americano de origem eslovena Thomas Luckmann, se pudesse dizer contaminado pelo entusiasmo dos mais jovens. Contando ento com 40 anos de idade, ele pertencia a outra gerao. Uma gerao que Helmut Schelsky caracterizou, num estudo que fez fama, como a gerao ctica: Em sua conscincia e autoconscincia social, esta gerao mais crtica, mais ctica, mais desconfiada, menos crdula ou pelo menos com menos iluses que todas as geraes de jovens anteriores; ela tolerante [...] sem pathos, sem programa e sem palavras de ordem. Trata-se de uma gerao, continua Schelsky, mais ajustada, mais prxima da realidade, mais disposta a intervir e mais segura de seu sucesso que qualquer juventude antes dela4. Luckmann, acredito, concordaria com esta descrio.

    Filsofo de formao e socilogo por puro acaso, Luckmann manteve-se distante de algumas das mais influentes correntes intelectuais das dcadas de 1950-1960. O existencialismo, o neomarxismo frankfurtiano e o funcionalismo parsoniano no lhe diziam muita coisa. Na New School for Social Research, se sentiu atrado pelo pensamento de trs importantes intelectuais judeus imigrados: o socilogo Albert Salomon e os filsofos Karl Lwith e Alfred Schtz. Somente depois de concluir em 1956 seu mestrado sobre a filosofia moral de Albert Camus (que ele havia iniciado sob a orientao de Lwith e veio a concluir sob a orientao de Schtz) que se deu sua passagem sociologia. Um de seus professores, Carl Mayer,

    1 Nesse ano de 2014, quando o leitor brasileiro finalmente tem acesso traduo de The invisible religion, achei que seria justo evocar, ao fim desta minha modesta exposio da protosociologia do religioso de Luckmann, as palavras de outro ilustre representante da gerao ctica, o filsofo Odo Marquard: Ou a filosofia da religio teologia, ou destruio da religio, tertium non datur. Eu acredito, porm, que tertium datur, enim tertium est Thomas Luckmann. MARQUARD, Odo. Religion und Skepsis. In: KOSLOWSKI, Peter (Hrsg.). Die religise Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1985, p. 43.

    2 Doutor em Histria Ibrica e Latino-Americana pela Universitt zu Kln. Professor Adjunto de Teoria e Metodologia da Histria do Departamento de Histria da Universidade Federal de Ouro Preto. E-Mail: .

    3 LUCKMANN, Thomas. A religio invisvel. So Paulo: Olho Dgua; Loyola, 2014.4 SCHELSKY, Helmut. Die skeptische Generation. Dsseldorf: Eugen Diederichs, 1957, p. 488.

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    pretendia por aqueles dias realizar uma grande investigao sobre a situao da religio na Alemanha. Peter Berger faria parte da equipe, mas teve de abdicar por causa do servio militar, de forma que Luckmann acabou assumindo seu lugar por ser fluente em alemo. Desta pura contingncia nasceu sua tese de doutorado, A comparative study of four Protestant parishes in Germany, defendida em 19565. Sete anos mais tarde, em 1963, Luckmann publica na Alemanha seu estudo O problema da religio na sociedade moderna, que, depois de vertido ao ingls pelo prprio autor e rebatizado com um ttulo The invisible religion (sugerido pelo editor norte-americano), produziria um efeito bombstico no campo dos estudos religiosos. Com efeito, o impacto causado pelo aparecimento de seu livro de 1967 impressiona ainda mais quando se pensa que no ano anterior ele j publicara, em parceria com Berger, uma obra que se tornaria um clssico da sociologia do conhecimento6.

    Luckmann est para o estudo da religio como Carl Schmitt para o do poltico. Poucas vezes se explicou e inovou tanto escrevendo to pouco. Com a vantagem que em seus escritos no h qualquer possibilidade de extrair, como em Schmitt, uma justificativa terica para posicionamentos polticos incompatveis com o pluralismo moderno. Diferentemente do jurista alemo, Luckmann pode ser caracterizado como um virtuoso do pluralismo; e sem que isso represente qualquer afinidade seja em relao ao relativismo filosfico, seja ao construtivismo radical. Como veremos adiante, a fundamentao filosfica de suas obras suficientemente firme para resistir s tentaes ou fraquezas da hora.

    A composio sbria e elegante, a densidade e conciso de seus trabalhos faz deles um tipo de joia intelectual rara. So textos que sempre se revisita e redescobre, onde nunca se encontram solues fceis nem prolixidade; que tm a fora de promover o entendimento sem concesses ao gosto pelo impressionismo e pelo paradoxo que tantas vezes se compra e vende como sinnimo de profundidade; escritos cuja clareza no deixa trair a ascendncia de seus mestres Lwith e Schtz. Mas no se trata meramente de uma questo de estilo. Uma declarao feita ao socilogo francs Jean Ferreux alguns anos atrs d a perceber como o trabalho de Luckmann no se desvincula de uma tica da responsabilidade cientfica: O importante que a partir do momento em que [algum] se decide a fazer algo, h uma tica absoluta de preciso, eu quase diria uma tica descritiva. Se voc faz pesquisa, voc tem de ser preciso, voc deve evitar enganar seja a si mesmo, seja aos demais. Infelizmente, o conceito de fraude descreve setores importantes das cincias sociais e da filosofia7.

    Mais do que quaisquer outros, estes dois conceitos conciso e preciso traduzem a essncia do pensamento de Thomas Luckmann. No que segue, tentaremos oferecer ao leitor uma sntese de seu minimalismo funcionalista de

    5 Cf. LUCKMANN, Thomas. Ich habe mich nie als Konstruktivist betrachtet. Gesprch mit Thomas Luckmann. In: HERRSCHAFT, Felicia & LICHTBLAU, Klaus (Hrsg.). Soziologie in Frankfurt: Eine Zwischenbilanz. Wiesbaden: VS Verlag, 2010, p. 345-368.

    6 BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construo social da realidade. 23. ed. Petrpolis: Vozes, 1985.

    7 FERREUX, Jean. Un entretien avec Thomas Luckmann. Socits, vol. 93, n. 3, 2006, p. 50.

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    corte fenomenolgico8, e mostrar o que no s a sociologia, mas tambm a histria da religio tem a aprender com ele.

    II

    Em que consiste a revoluo copernicana produzida por Luckmann nos estudos religiosos? Para que percebamos o sentido mais amplo da mudana de paradigma em questo, talvez o mais indicado no primeiro momento seja evocar um problema, ou antes, um conceito cuja centralidade na sociologia da religio e na histria das religies ainda no foi posto em questo: a secularizao.

    Para Luckmann a secularizao no passa de um mito moderno9. Com efeito, no bastaria um lanar olhar sereno para a realidade que nos cerca para nos darmos conta do esgotamento desta noo?10 Iniciativas estatais de incentivo laicidade, da Frana jacobina ao Mxico de Jurez, da Rssia sovitica Cuba de Castro, sempre produziram resultados pfios. Por toda a parte as formas tradicionais do poltico parecem entrar em crise atualmente, ao passo que a religio mobiliza cada vez mais as pessoas, no apenas no mundo islmico. Ainda esto frescas na memria as grandes manifestaes convocadas em 2013 por lideranas catlicas contra a aprovao da lei que regulamenta o casamento civil de pessoas do mesmo sexo na Frana. A religio, felizmente ou infelizmente, no algo to fcil assim de se eliminar! Visto de uma perspectiva secularista militante, assentada no sonho iluminista de um mundo guiado exclusivamente pela razo, estamos diante de um escndalo: o escndalo da religio11. De fato, o sentimento que desde h muito une ateus, secularistas militantes e agnsticos o sentimento de escndalo. Tal sentimento se origina, no mais das vezes, na incompreenso. Pois quando deixarmos de ver a religio como mera sobrevivncia de pocas passadas, como um fruto da menoridade cognitiva do ser humano, e passarmos a ver nela uma constante antropolgica - ento tudo muda de figura12. essa outra forma de entendimento do fenmeno religioso que nos prope Luckmann.

    Deixemos de lado a metfora weberiana do desencantamento do mundo, bem como os termos descristianizao, laicizao e desclericalizao. Os problemas que os envolvem so anlogos aos que cercam o conceito de secularizao. Tampouco nos interessa aqui o uso poltico-social do conceito de secularizao por autores como Vattimo e Rorty. Antes de tentar intervir de forma pueril em favor de um cristianismo secularizado ou privatizado, seria til... no, seria fundamental diagnosticar com a maior clareza possvel a dinmica que se

    8 Essa expresso a traduo aproximada de um neologismo cunhado por Odo Marquard a respeito do trabalho de Luckmann: religionsphnomenologicher Minimalfunktionalismus. Cf. MARQUARD, Religion und Skepsis, p. 42.

    9 LUCKMANN, Thomas. Skularisierung - ein moderner Mythos. In: __________. Lebenswelt und Gesellschaft. Paderborn: Schningh, 1980, p. 161-172.

    10 Cf. SANCHIS, Pierre. A profecia desmentida. Folha de S. Paulo, 20 abr. 1997.11 BAAL, Jan van. The scandal of religion. In: HONKO, Lauri (ed.). Sciences of religion: studies in

    methodology. The Hague: Mounton, 1979, p. 485-497.12 A fim de evitar a confuso entre a antropologia filosfica de Scheler, Plessner e Gehlen (que a

    tradio a que se filia Luckmann) com a antropologia em sua acepo culturalista anglo-americana, sugerimos ao leitor a leitura da boa introduo de: ARLT, Gerhard. Antropologia filosfica. Petrpolis: Vozes, 2008.

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    estabelece entre modernidade e religio.Max Weber, bom lembrar, seguira os passos de antecessores ilustres como

    Nietzsche, Marx e Comte. H um claro fatalismo histrico-filosfico na sua teoria do grande processo de racionalizao ocidental13. No foi em seu estudo de 1904-1905 sobre a tica protestante, mas apenas no incio da dcada de 1910 que Weber chegou s suas formulaes a respeito. Nelas se l no apenas o fruto de um longo percurso intelectual, mas tambm e sobretudo as marcas do Zeitgeist. A gerao de intelectuais alemes fin-de-sicle a que pertenceu via com pessimismo seno o futuro da religio, pelo menos o das Igrejas. Para aqueles homens, o pertencimento religioso se tornara uma mera conveno social, quando no um atalho no tortuoso caminho que levava ctedra. Georg Simmel considerava irritante a situao do homem moderno, um homem destitudo de vontade suficiente seja para crer, seja para descrer14. Os mais jovens no pensavam de maneira diferente. Em 1936, Plessner referia-se Alemanha como uma das naes mais sedentas de f e ao mesmo tempo mais descrentes de toda a Europa15.

    Um dos poucos que destoaram do pessimismo de Weber quanto s possibilidades da religio na modernidade foi seu amigo e colega na Universidade de Heidelberg, o telogo, socilogo e historiador das ideias Ernst Troeltsch. Num extenso ensaio de 1907 sobre A essncia do esprito moderno, ele afirma que o que caracteriza a modernidade no em absoluto uma dissoluo do religioso, mas o advento do que chama de imanenticidade (Diesseitigkeit). Todavia, a tal expanso da imanncia no corresponderia um encolhimento de todas as formas socialmente organizadas de relao com a transcendncia.

    Para Troeltsch, igrejas e seitas so formas de institucionalizao da vida religiosa tpicas de uma poca que j no mais a nossa. Para alm delas, h toda uma variedade de formas de vida religiosa extra eclesisticas. Tal cultura levaria superao das Igrejas16, na medida em que o indivduo e a imanncia se tornam noes centrais.

    Desde o clssico estudo de Hermann Lbbe sobre a histria do conceito de secularizao, sabemos de duas coisas: a primeira que a palavra teve origem no vocabulrio religioso do sculo XVI e, mais especialmente, no direito eclesistico do sculo XVII; a segunda a sua polissemia, a longa histria de sucessivos investimentos semnticos de que foi vtima17. Trata-se, para Lbbe, de um conceito poltico-social.

    No h consenso entre os estudiosos sobre o que secularizao e muito menos a respeito de quando ela teria se iniciado18. Niklas Luhmann e Reinhart Koselleck,

    13 MATA, Srgio da. A fascinao weberiana: as origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Trao, 2013, p. 55-66.

    14 SIMMEL, Georg. Das Problem der religiosen Lage. In: __________. Philosophische Kultur. Alfred Krner: Leipzig, 1919, p. 206.

    15 PLESSNER, Helmuth. Die Entzauberung des Fortschritts. In: __________. Gesammelte Schriften. Band X. Frankfurt am main: Suhrkamp, 2003, p. 78.

    16 TROELTSCH, Ernst. Das Wesen des modernen Geistes. In: __________. Gesammelte Schriften. Band IV. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1925, p. 330.

    17 LBBE, Hermann. Skularisierung: Geschichte eines ideenpolitischen Begriffs. Freiburg: Karl Alber, 2003.

    18 Luckmann admite a secularizao apenas no sentido estrito e originrio do termo, ou seja, na acepo poltico-jurdica do processo de autonomizao do poder civil ante o poder religioso. A respeito, ver o belo estudo do jurista Bckenfrde. BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang. Der

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    por exemplo, veem na Revoluo Francesa o grande evento que teria tornado a secularizao possvel. Para Koselleck, ela coincide com a gradativa substituio da oposio transcendncia/ imanncia pela oposio passado/ futuro19. Para Luhmann, secularizao consiste na progressiva diferenciao das sociedades modernas em subsistemas autnomos, autorregulados e autolegitimados. Os subsistemas poltica e mercado passam a prescindir do religioso como instncia ltima de doao de sentido20.

    Foi preciso que Hans Blumenberg invertesse a perspectiva at ento dominante e demonstrasse em seu clssico livro de 1966 que secularizao uma categoria produtora de ilegitimidade histrica21. A carreira de sucesso do conceito deve-se basicamente a dois fatores: (a) ele tende a reforar/legitimar uma atitude negativa ante a modernidade, a qual passa a ser percebida a partir da lgica da perda; e (b) desde relativamente cedo se passou a investir o termo com uma forte carga histrico-filosfica. Vale dizer, o conceito de secularizao no mais descreve, ele prescreve. Est imbudo de uma ideia recorrente e poderosa: a de inevitabilidade histrica. As religies, como a famlia tradicional, estariam condenadas ao declnio num mundo sem corao22.

    A secularizao passa a ser entendida, como normalmente o na linguagem cotidiana e mesmo cientfica, como sinnimo de um inexorvel esvaecimento do religioso. O advento de modalidades concorrentes de produo de conhecimento e de sentido seriam corresponsveis por isso. Tanto Simmel quanto Weber duvidavam que sejamos capazes, na modernidade, daquele sacrifcio do intelecto que est na base de toda experincia religiosa autntica. Mesmo para Troeltsch a cincia teria vencido sua batalha contra o dogma e a Igreja, transformando o mundo moderno numa civilizao reflexiva23. Sabemos, porm, que a ideia de um antagonismo insupervel entre cincia e religio no se confirmou. Como demonstrou Arnold Gehlen numa srie de brilhantes escritos, a era da tcnica no per se desfavorvel s representaes e prticas religiosas pelo simples fato de que a tcnica no contradiz, mas antes prolonga a essncia da magia nos contextos modernos: A fascinao do automatismo constitui o impulso pr racional e extraprtico da tcnica, que primeiro se fez sentir na magia, tcnica do suprassensvel, durante milnios, at

    skularisierte Staat. Sein Charakter, seine Rechtfertigung und seine Probleme im 21. Jahrhundert. Mnchen: Carl Freidrich von Siemens, 2006.

    19 KOSELLECK, Reinhart. Zeitschichten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 183. A mudana de perspectiva de Koselleck a respeito da secularizao apenas aparente, como se percebe, alis, nos trabalhos de seu discpulo Christof Dipper. A respeito, ver a sutil crtica de Hbinger. HBINGER, Gangolf. Skularisierung: Ein umstrittenes Paradigma der Kulturgeschichte. In: RAPHAEL, Lutz & SCHNEIDER, Ute (Hrsg.) Dimensionen der Moderne: Festschrift fr Christof Dipper. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2008, p. 93-106. A crtica mais completa e sistemtica viso de Koselleck sobre a secularizao foi feita por Joas. JOAS, Hans. Die Kontingenz der Skularisierung: berlegungen zum Problem der Skularisierung im Werk Reinhart Kosellecks. In: JOAS, Hans & VOGT, Peter (Hrsg.) Begriffene Geschichte: Beitrge zum Werk Reinhart Kosellecks. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011, p. 319-338.

    20 LUHMANN, Niklas. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 284-285, p. 315.

    21 BLUMENBERG, Hans. La legitimacin de la edad moderna. Valencia: Pre-Textos, 2008.22 LASCH, Christopher. Refgio num mundo sem corao. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.23 TROELTSCH, Das Wesen..., p. 313.

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    encontrar nos tempos mais recentes a sua perfeita realizao nos relgios, motores e mquinas rotativas de toda a ordem. Quem observar como psiclogo a atrao que os automveis exercem sobre a nossa juventude no poder duvidar de que nela esto em jogo interesses mais primitivos do que racionais e prticos24.

    III

    A religio pode mesmo refluir, acabar? Luckmann parece-nos ser aquele que ofereceu a melhor resposta a essa questo. Em A construo social da realidade, ele e Berger haviam demonstrado que o conhecimento sempre algo mais do que conhecimento terico. De forma anloga, a religio pode e deve ser vista como algo mais que Igreja. Tal como uma modalidade especfica de conhecimento no esgota o problema do conhecimento em geral, a trajetria de uma modalidade especfica de religio no pode falar em nome do destino da religio tout court.

    Para Luckmann, se por secularizao se entende o esvaecimento do religioso, a secularizao no passa de um mito. No podemos nos livrar da religio porque a ela uma constante antropolgica. As consequncias dessa forma de pensar o religioso no so pouca monta, pois significa admitir, em ltima anlise, que a irreligiosidade no passa de iluso, e que, portanto, onde quer que haja seres humanos haver alguma forma de religio. Como Luckmann fundamenta tal ponto de vista sem cair na metafsica do homo religiosus de um Mircea Eliade? Para tanto, ele pensa o fenmeno religioso em dilogo com a fenomenologia e a antropologia filosfica. Luckmann define a religio como a forma historicamente dada por meio da qual nos relacionamos com a(s) transcendncia(s). Veremos, daqui a pouco, como sua noo de transcendncia no deve ser confundida com as ideias de alm, outro mundo, ganz Andere.

    Antes de mais nada preciso levar em conta que Luckmann dedica-se menos sociologia do que quilo que ele prefere chamar de protosociologia, isto , uma fenomenologia das estruturas invariantes da vida cotidiana, a qual, por sua vez, deve servir de base a toda anlise histrico-social rigorosa25.

    Para se chegar condio antropolgica da religio torna-se necessrio reconstruir o processo de formao social do self. Processo social significa: o self nunca fruto de uma iniciativa totalmente isolada ou independente do prprio indivduo, mas se constitui na interao com os que esto sua volta. Somente assim transcendemos nossa condio de mero organismo e nos tornarmos uma pessoa. Se em parte este processo depende de ns mesmos, por outro ele j se encontra previamente programado: ao nascermos, somos colocados diante de universos de sentido produzidos pelos que viveram antes de ns. mais comum que internalizemos estes universos de sentido que os produzamos por nossa prpria conta e risco. Luckmann chama essas configuraes de sentido abrangentes de vises de mundo. So elas que estabelecem o padro do que ou no uma experincia significativa, determinando nossa orientao diante das coisas, das

    24 GEHLEN, Arnold. A alma na era da tcnica. Lisboa: Livros do Brasil, s./d., p. 24.25 LUCKMANN, Thomas. Phnomenologie und Soziologie. In: SPRONDEL, Walter M.; GRATHOFF,

    Richard (Hrsg.). Alfred Schtz und die Idee des Alltags in den Sozialwissenschaften. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1979, p. 205. Cf. SCHNETTLER, Bernt. Thomas Luckmann. Konstanz: UVK, 2006, p. 73-75.

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    normas sociais e de nossos semelhantes. Uma vez objetivada sob a forma de instituies sociais, a viso de mundo passa a determinar a partir de fora a nossa conduta. A viso de mundo , portanto, uma realidade ao mesmo tempo subjetiva e objetiva: existe dentro, mas tambm fora (e antes) de ns. Sua objetivao se d, num primeiro momento, por meio da linguagem. Ao aprendermos uma lngua, internalizamos um sistema de classificao que lhe prprio. Sem linguagem, no disporamos de um acervo categorial bsico nem do amplo acervo de solues e normas proporcionado pela viso de mundo.

    Em sntese: se nos tornamos um self ao internalizar a viso de mundo, e se por meio deste processo intersubjetivo que transcendemos nossa existncia meramente biolgica, tal ultrapassagem constitui no entender de Luckmann a condio antropolgica da religio. A viso de mundo, por decorrncia, configura a forma social elementar e universal de religio.

    Os elementos que compem a viso de mundo no esto dispostos num mesmo patamar de importncia. H, entre eles, uma hierarquia. Num plano mais baixo encontram-se as tipificaes prprias do mundo da vida (rvore, automvel, comida, casa, etc.). Num plano intermedirio as condutas e rotinas mais bsicas so acrescidas de um contedo moral ou pragmtico e ganham em significao (no devo comer carne na quaresma, emprego o vocabulrio apropriado num ritual acadmico, etc.). H, enfim, um terceiro plano, composto de esquemas interpretativos e modelos de conduta bem mais abrangentes e complexos.

    Pois bem, essa dimenso estruturante que a hierarquia entre os diversos nveis de significncia da viso de mundo se expressa num grupo especfico de representaes. Elas atrelam o conjunto da viso de mundo a uma esfera de realidade distinta uma esfera que goza de significao ltima. Acontece que os nveis mais elementares e cotidianos (rotinas, por exemplo) tendem a ser subordinados aos estratos de significncia que transcendem a vida cotidiana. Para Luckmann, a realidade cotidiana concreta, sem problemas e, digamos, profana26. Por oposio, o domnio que transcende o cotidiano o polo da sacralidade. Em termos mais concretos, pode-se dizer que situaes em que rotinas do mundo da vida so rompidas de forma dolorosa ou traumtica (ao sair do trabalho dou-me conta de que meu carro foi roubado, o mdico me informa que minha mulher est grvida de trigmeos, etc.) normalmente so apreendidas como manifestaes da realidade transcendente na realidade cotidiana. O grau de proximidade ou de distncia entre estas esferas varia histrica e socialmente - da mais estrita segregao interpenetrao quase que total (o folclorista suo Max Lthi chamou a isso unidimensionalidade, algo que Leo Frobenius j havia sugerido para a frica negra tradicional).

    Luckmann denomina cosmos sagrado o campo da viso de mundo que se refere s realidades transcendentes e que, portanto, dotado de significao ltima. A comunicao com (ou a referncia a) este cosmos sagrado intermediada no apenas pela linguagem, mas tambm por meio de cones ou de aes simblicas como os ritos27.

    26 LUCKMANN, A religio invisvel, p. 80.27 Para Luckmann os smbolos so como pontes que permitem a comunicao entre as diferentes

    esferas de realidade. Experincias de transcendncia no podem prescindir deles. Cf. LUCKMANN,

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    Ora, se a viso de mundo pode ser compreendida como uma forma de religio universal e no especfica, a configurao de representaes religiosas que moldam um universo sagrado ser definida como uma forma scio-histrica especfica de religio28. O importante para nossa discusso que esse universo sagrado, ou cosmos sagrado, no necessita de uma base institucional prpria para ser socialmente objetivado. Em sociedades de tipo arcaico, por exemplo, no se observa a existncia de especialistas do sagrado, uma vez que ele perpassa as diversas esferas da vida social: parentesco, diviso do trabalho, poder poltico... Nestes casos, o baixo nvel de diferenciao interna permite que o cosmos sagrado seja homogeneamente distribudo entre os indivduos. Quanto mais diferenciada a sociedade, porm, maior a tendncia especializao institucional. O cosmos sagrado (ou o que se poderia chamar de sua verso oficial) torna-se privilgio, no limite um monoplio, de um corpo de especialistas.

    De que forma o indivduo afetado ao longo desse processo? Da mesma maneira que internalizamos as vises de mundo no processo de interao social, internalizamos tambm o cosmos sagrado. Isso se d por meio de representaes religiosas as quais so dotadas de um grau extremamente elevado de significncia. Consequentemente, a conscincia individual passa a dispor, em seu prprio interior, de um estrato religioso. Este estrato est para a identidade pessoal da mesma forma que o cosmos sagrado est para a viso de mundo: ele legitima e justifica o padro subjetivo de relevncias estabelecidas pelo indivduo. Quanto maior o grau de articulao e diferenciao do cosmos sagrado na viso de mundo, tanto mais claramente a pessoa distingue um estrato religioso em sua prpria esfera de conscincia. A especializao institucional da religio torna-a uma realidade visvel seja do ponto de vista intelectual (teologia), seja social (comunidades religiosas de vida), seja ainda do espacial (edificaes como cemitrios e templos).

    Tudo isso nos d a impresso de um complexo bem pouco suscetvel mudana. No se trata disso. A situao de equilbrio pode se desfazer caso o sistema religioso passe por um processo de perda de plausibilidade. No passado tal processo era geralmente detonado de fora para dentro: a vitria militar de um povo sobre outro era tambm a vitria dos seus deuses (o deus nico dos hebreus sem dvida uma exceo notvel). No passado os deuses no morriam, eles eram mortos.

    Nas sociedades modernas, porm, a perda de plausibilidade detonada a partir de dentro. O que abala uma religio dominante, segundo Max Scheler, no jamais a cincia, mas o esgotamento e a atrofia de seus prprios contedos de f29. A partir de uma leitura radicalizada de Weber, autores como Marcel Gauchet e Gianni Vattimo viram no cristianismo a religio da sada da religio30. A prpria teologia, de Strauss a Renan, de Kierkegaard a Overbeck, da teologia da morte de Deus demitologizao, parece dar testemunho dessa qualidade por assim

    Thomas. Riten als Bewltigung lebensweltlicher Grenzen. Schweizerische Zeitschrift fr Soziologie, vol. 11, n. 3, 1985, p. 545.

    28 LUCKMANN, A religio invisvel, p. 83.29 SCHELER, Max. Die Wissensformen und die Gesellschaft. Bern: A. Francke, 1960, p. 75.30 GAUCHET, Marcel. Le dsenchantement du monde: une histoire politique de la religion. Paris,

    Gallimard, 1985. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo no religioso. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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    dizer autofgica da teologia crist ocidental31.Luckmann v as coisas de uma forma menos espetaculosa. Para ele a religio

    institucionalizada cria problemas para si mesma na medida em que produz um complexo de nfases e leituras divergentes, quando a segregao excessiva do cosmos sagrado leva ao estreitamento da base social daqueles que tem acesso legtimo a ele, ou quando a elite hierocrtica da resultante passa a ignorar sistematicamente as necessidades dos fiis.

    Embora um padro tradicional de religio no reflua de todo, os modelos de conduta e mesmo de experincia religiosa que ele tem a pretenso de impor esto sujeitos a uma perda de plausibilidade. Cresce, na mesma medida, o grau de incongruncia entre religio estabelecida e religiosidade individual. Assim, o que assistimos na modernidade nada mais que a quebra da unidade temtica do cosmos sagrado tradicional. Para Luckmann, isso se deve dissoluo da nica hierarquia de significado na viso de mundo. A segmentao funcional das sociedades modernas leva emergncia de diferentes verses da viso de mundo32. Troeltsch j observara que quem diz modernidade, diz pluralizao33. De fato, estamos postos diante de uma situao histrica em que o indivduo constri no s sua identidade pessoal, mas tambm seu sistema individual de significado supremo34. Nesse plano privado, a religio continua viva e pulsante, em que pese o fracasso ou o sucesso das grandes instituies religiosas.

    Portanto o que temos diante de ns uma individualizao da religio e, ao mesmo tempo, uma inflao no mercado de bens religiosos, mas de forma alguma secularizao naquele sentido convencional que evocamos mais acima.

    Em trabalhos posteriores Luckmann procurou lanar uma nova luz sobre o tema da transcendncia, e que em A religio invisvel se limitava ao processo por meio do qual o ser humano ultrapassa sua existncia puramente biolgica e constitui aquilo que Gehlen chamou de segunda natureza, ou seja, a cultura. O tratamento que Luckmann d questo, como vimos, nada tem de teolgico; trata-se, antes, de uma explorao dentro da boa tradio fenomenolgica35. Pois bem: toda experincia humana remete ou ao ainda-no-experimentado ou ao no-mais-experimentado. Essa capacidade de deslocamento o que est na base do que Alfred Schtz e Luckmann chamam de transcendncia. Sendo ela constitutiva da existncia humana (como vimos no processo de formao do self), pode-se mais uma vez afirmar que o homem , por assim dizer, naturalmente religioso. Tal perspectiva, presente na obra de Luckmann pelo menos desde 1967, permanece central para ele: Defendo que a religio no uma fase passageira da evoluo da humanidade mas que , antes, um aspecto universal da vida humana, um

    31 Desnecessrio dizer que nada disso vale para o cristianismo ortodoxo.32 LUCKMANN, A religio invisvel, p. 118.33 Cf. MARQUARD, Odo. Elogio del politesmo. In: _____. Adis a los princpios: estudios filosficos.

    Valencia: El Magnanim, 2000, p. 99-123.34 LUCKMANN, A religio invisvel, p. 119.35 Cf. KNOBLAUCH, Hubert. Thomas Luckmann. In: KAESLER, Dirk (Hrsg.). Aktuelle Theorien der

    Soziologie. Mnchen: C. H. Beck, 2005, p. 127-146. Num livro bastante interessante, Joas preferiu falar em autotranscendncia, mas a nosso ver permaneceu ainda preso a noes cristocntricas, em especial a de crena. Cf. JOAS, Hans. Braucht der Mensch Religion? Freiburg: Herder, 2007, p. 12-31.

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    componente da conditio humana36.Para onde uma dada forma de transcendncia orientada, como o homem

    a percebe e por que meios simblicos e rituais a evoca, algo que no pode ser respondido a priori, mas somente atravs da anlise de cada caso especfico.

    Schtz e Luckmann falam em trs tipos de transcendncia. Situamo-nos no nvel das pequenas transcendncias quando ultrapassamos nossas experincias imediatas no hic et nunc e o no-experimentado reproduz fielmente o j-experimentado. Lembro-me, ao encontrar a porta de casa trancada, que minha esposa normalmente a deixa debaixo do tapete. Consigo, assim, orientar com sucesso minha ao com base no registro de memria: levanto o tapete e a chave est l. Neste tipo de transcendncia, no preciso abandonar o estado de viglia que caracteriza a experincia da vida cotidiana. Me projeto para o passado por meio das retenes operadas por minha conscincia, bem como para o futuro por meio de pretenses, expectativas ou planos de ao.

    Falamos em mdias transcendncias quando, mantendo-nos ainda na provncia de significado da realidade cotidiana, aquilo que experimentado s o pode ser por meios indiretos. Por exemplo, quando procuro desvendar os sentimentos de um colega de trabalho por meio dos sinais corporais que ele emite. O processo de compreenso do outro sempre requer esse tipo de transcendncia. Finalmente, quando algo vivido como uma espcie de deslocamento rumo a uma esfera de realidade percebida como radicalmente distinta, extra cotidiana, podemos falar em grandes transcendncias. Seu escopo varia do sonho e da meditao ao xtase37.

    Esta tipologia tem para ns uma clara vantagem sobre a perspectiva dicotmica tradicional (hic et nunc versus ganz Andere), pois admite a possibilidade da transcendncia na imanncia. Tomada nesses termos, fenomenologicamente e no teologicamente, tal forma de ver as coisas tende a confirmar a justeza da crtica troeltschiana irreligiosidade do homem moderno. Na perspectiva aqui adotada, repita-se, a religio entendida como a organizao social das relaes com a transcendncia.

    At meados da dcada de 1980, Luckmann parecia inclinado a chamar de religiosas apenas as experincias em que se manifestavam as grandes transcendncias38. Nos anos subsequentes, em face aos desenvolvimentos mais recentes do campo religioso e das pesquisas a respeito, ele passou a aceitar a possibilidade de que tambm se possa falar das mdias e at mesmo das pequenas transcendncias como capazes de suscitar experincias religiosas: algumas

    36 LUCKMANN, Thomas. Reflexiones sobre religin y moralidade. In: ALASTUEY, Eduardo B. (ed.). El fenmeno religioso: presencia de la religin y la religiosidad an las sociedades avanzadas. Sevilla: Centro de Estudios Andaluces, 2007, p. 15. Cf. GUERRIERO, Silas. A natureza humana e o simbolismo religioso: desafios s cincias da religio. Caminhos, vol. 4, n. 1, 2006, p. 13-30.

    37 Esta tipologia foi desenvolvida detalhadamente em: SCHTZ, Alfred & LUCKMANN, Thomas. Strukturen der Lebenswelt. (Band 2). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, p. 147-177. Cf. LUCKMANN, Thomas. ber das Funktion der Religion. In: KOSLOWSKI, Peter (Hrsg.). Die religise Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1985, p. 29-30. LUCKMANN, Thomas. Conoscimiento y sociedade: ensayos sobre accin, religin y comunicacin. Madri: Trotta, 2008, p. 137-140.

    38 LUCKMANN, ber das Funktion..., p. 34, p. 49, p. 56.

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    de suas cristalizaes mais evidentes se do em torno de noes (de carter francamente solipsstico) como realizao pessoal, felicidade ou fama, s quais se somam ou articulam ideias-fora estabelecidas h mais tempo, tais como nao, etnia e libertao. As formas tradicionais do religioso passam a disputar espao com as mais novas. Nestas no h qualquer necessidade de referncia a uma salvao post-mortem. Seu trao comum precisamente aquela imanenticidade de que falava Troeltsch: trata-se de formas privatizadas de religio, em sua maioria orientadas para transcendncias imanentes (diesseitige Transzendenzen)39. Num mercado de bens religiosos desmonopolizado como o das sociedades modernas, um papel fundamental passa a ser desempenhado pelos meios de comunicao de massa. preciso no apenas atrair, mas adequar-se ao gosto do fregus. Igrejas e seitas fazem o que podem para evitar a perda de fiis e a proliferao do flneur religioso, enquanto agrupamentos com baixo nvel de institucionalizao (e por isso mais flexveis e aptos a satisfazer uma religiosidade de tipo on demand) disputam espao com resduos das grandes ideologias seculares do passado, como o nacionalismo e o marxismo40. Luckmann v no fundamentalismo uma reao anti-pluralista que no longo prazo no oferece o perigo que se lhe costuma atribuir. Estruturalmente complexas e marcadas por um fluxo de comunicao que cresce a taxas exorbitantes, as sociedades modernas tendem, mais cedo ou mais tarde, a demonstrar a ingenuidade de se querer reviver, hoje, a era das grandes singularizaes. A alternativa moderna religio, para Luckmann, continua sendo religio. Resta saber apenas, acrescenta ele, se o ncleo duro apocalptico e asctico dos numerosos movimentos ecolgicos de nossos dias se converter, com o tempo, em um desafio mais srio que a opo fundamentalista ao sincretismo privatizado hedonista que parece ter ainda a vantagem no mercado geral das vises de mundo41.

    IV

    Para voltar ao nosso ponto de partida: desencantamento do mundo inegavelmente uma bela metfora. Mas, como toda metfora, ela mais evoca que explica. Se um virtuoso do secularismo como Antnio Flvio Pierucci acerta ao dizer que h, em Max Weber, uma plcida certeza da perda de valor cultural da transcendncia religiosa42, ento o melhor em vista dos desenvolvimentos ocorridos nas ltimas dcadas ento o melhor mesmo seja virar esta pgina da histria das ideias sociolgicas.

    39 LUCKMANN, Thomas. Nachtrag. In: __________. Die unsichtbare Religion. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 181. A verso brasileira, de resto muito bem feita, traduziu essa expresso como transcendncias do aqui-agora (cf. A religio invisvel, p. 151), no muito fiel ao original.

    40 Para evocar apenas dois estudos clssicos: BELLAH, Robert. Civil religion in America. In: McLOUGHLIN, W. G.; BELLAH, R. (eds.). Religion in America. Boston: Beacon Press, 1968. ARON, Raymond. O pio dos intelectuais. Braslia: Editora da UnB, 1980.

    41 LUCKMANN, Reflexiones sobre religin..., p. 23. Em fins da dcada de 1980, Soares fez uma anlise original do que denominou a modalidade fraca de pantesmo dos cultos ecolgicos. Cf. SOARES, Luiz Eduardo. Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecolgico no Brasil. In: __________. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 193.

    42 PIERUCCI, Antnio Flvio. Secularizao segundo Max Weber. In: SOUZA, Jess (org.). A atualidade de Max Weber. Braslia: Editora da UnB, 2000, p. 117.

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    Tal erro de avaliao dificilmente teria ocorrido caso o quadro de referncia fosse a protosociologia de Luckmann. No difcil entender, de outra parte, por que os historiadores e socilogos latino-americanos passaram ao largo de sua obra. Num continente como o nosso, em que o grosso da vida religiosa se organiza em torno das formas institucionais tradicionais da vida religiosa, difcil imaginar que o interesse pela perspectiva luckmanniana pudesse fazer sombra s teorias de Durkheim, Weber ou Bourdieu. Formas tradicionais de vida religiosa pedem uma sociologia da religio igualmente tradicional.

    inegvel que o enorme impacto causado por A religio invisvel se deveu a seu diagnstico do processo de individualizao e privatizao da religio43. Curiosamente, Peter Berger foi um dos primeiros, se no o primeiro, a fazer reparos ao approach de Luckmann. Em 1993, saudando o aparecimento da edio alem do livro, o socilogo suo Ingo Mrth afirmou que Luckmann no dera uma explicao convincente para o processo por meio da qual as novas formas sociais de religio emergem a partir dos novos cosmos sagrados e da conscincia dos indivduos autnomos. No incio do novo milnio deu-se uma acalorada discusso sobre a real dimenso da individualizao religiosa e a definio funcional de religio em A religio invisvel, a qual seria ampla a tal ponto que qualquer fenmeno cultural capaz de produzir socializao e suscitar transcendncias - do esporte ao cinema - poderia ser considerado religioso nos termos de Luckmann44.

    A crtica mais importante foi feita por Jos Casanova em seu estudo Public religions in the modern world. Depois de examinar os casos da Polnia, Brasil, Espanha e Estados Unidos ao longo da dcada de 1980, Casanova conclui que haveria uma ressurgncia geral da religio, ou antes, da dimenso pblica do religioso. Sua tese principal oposta a uma das ideias centrais de Luckmann, na medida em que postula que o que ocorre na modernidade na verdade uma desprivatizao da religio45. Acreditamos, porm, que os dois diagnsticos no so inteiramente antagnicos. Se o que diz Luckmann em A religio invisvel sobre a privatizao descreve mal o que acontece nos Estados Unidos e em sociedades mais fortemente marcadas pelo catolicismo (Brasil, Espanha, Polnia), a anlise de Casanova revela a mesma limitao quando se tenta aplic-la Alemanha, Frana ou aos pases nrdicos. Atento s crticas, Luckmann tem afirmado que as condies sob as quais foram privatizadas a religio e a moralidade na Amrica se diferenciaram muito significativamente daquelas predominantes na Europa, fazendo mais fcil a adaptao das denominaes ao processo que a das igrejas

    43 Cf. WOHLRAB-SAHR, Monika. What has happened since Luckmann, 1960? Sociology of religion in Germany, Austria, and Switzerland. Schweizerische Zeitschrift fr Soziologie, vol. 26, n. 1, 2000, p. 169-192.

    44 BERGER, Peter. El dosel sagrado. Buenos Aires: Amorrortu, 1971, p. 211-213. MRTH, Ingo. ber die Neuausgabe eines wichtigen Buches: Thomas Luckmanns Die unsichtbare Religion. Schweizerische Zeitschrift fr Soziologie, vol. 19, n. 3, 1993, p. 627-634; WOHLRAB-SAHR, Monika & KRGGELER, Michael. Strukturelle Individualisierung vs. autonome Menschen oder: Wie individualisiert ist Religion?. Zeitschrift fr Soziologie, vol. 29, n. 3, 2000, p. 240-244. POLLACK, Detlev & PICKEL, Gert. Religise Individualisierung statt Skularisierung? Eine falsche Alternative. Zeitschrift fr Soziologie, vol. 29, n. 3, 2000, p. 244-248.

    45 CASANOVA, Jos. Public religions in the modern world. Chicago: University of Chicago Press, 1994.

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    europeias institucionalizadas46.Com efeito, h que perguntar: ter Luckmann apostado cedo demais na

    desinstitucionalizao religiosa? Ter trado uma viso demasiado europeia, talvez mesmo demasiado alem, do processo? No ter ignorado formas de religiosidade crist pouco difundidas na Europa central, mas persistentes em outros continentes e sempre com algum nvel de ancoragem junto s grandes empresas de f, como o caso do catolicismo popular? Que dizer do leste europeu, do cristianismo ortodoxo?

    Um dos aspectos mais fascinantes a respeito da histria e sociologia da religio o da recepo e, sobretudo, o do uso que os sujeitos religiosos podem fazer da produo acadmica. Construes sociais da realidade tm por objetivo explicar e compreender os processos de constituio dos fenmenos sociais; mas no raro que os atores se apropriem dessas construes a produo acadmica propriamente dita , seja para emprestar prtica religiosa e doutrina um grau de coerncia antes inexistente (como em muitos casos aconteceu com as religies afro-brasileiras), seja para readequar estratgias de ao a fim de maximizar resultados. E assim, por uma dialtica sem dvida curiosa, o estudo do religioso por vezes se torna um fator religioso.

    O socilogo espanhol Joan Estruch revelou, h alguns anos, que o papa Joo Paulo II leu A religio invisvel e, em consequncia dessa leitura, teria estabelecido como uma das prioridades de seu papado a luta contra a privatizao da religio47. A se confirmar o relato de Estruch, pode-se ento dizer que a desprivatizao foi, ao menos em parte, uma consequncia da privatizao. Em outras palavras: Casanova s pde acertar em seu diagnstico da dcada de 1980 porque Luckmann descrevera corretamente as tendncias dominantes nas duas dcadas anteriores. Nesse meio tempo deu-se uma sensvel mudana nas estratgias de ao da Igreja catlica (a denominao dominante em trs dos quatro casos estudados por Casanova). Uma das razes disso teria sido justamente o livrinho de Luckmann!

    A descrio luckmanniana da situao da religio em contextos modernos certamente no to completa e indubitvel como parecia poca de seu aparecimento, mas no menos certo que, tambm aqui, nos encontramos diante de um mercado no monopolizado de explicaes sociolgicas. Nenhuma delas pode ter a pretenso de, sozinha, oferecer uma anlise suficientemente abrangente, coerente e fidedigna do campo religioso contemporneo; nenhuma delas est em condies de descrev-lo em suas infinitas nuances.

    Tudo isso sem dvida importante, mas no chega a atingir aquelas que acredito serem as duas grandes contribuies de Luckmann: sua teoria das bases antropolgicas do religioso e sua descrio fenomenolgica das transcendncias. Sua obra abriu para os estudiosos da religio uma perspectiva radicalmente nova. Ela nos permite entender por que no vivemos numa era ps-secular, uma vez que a secularizao (naquela acepo histrico-filosfica convencional, teleolgica, habermasiana) jamais existiu48. Ela nos permite ver a religio para alm

    46 LUCKMANN, Reflexiones sobre religin..., p. 24.47 ESTRUCH, Joan. A conversation with Thomas Luckmann. Social Compass, vol. 55, n. 4, 2008,

    p. 539.48 Da que as pesquisas mais recentes tenham falado cada vez menos em secularizao e cada vez

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    das instituies religiosas, inclusive quando os atores sociais negam formalmente qualquer adeso religiosa.

    A religio continuar escandalizando os saudosos do desencantamento do mundo.

    Independente da sorte que venha a ter a tese da privatizao ou a da desprivatizao, a teoria da religio de Luckmann parece-nos manter-se de p no fundamental e preservar todo o seu frescor, como alis sublinhou o socilogo noruegus Gustav E. G. Karlsaune49. A sociologia e a historiografia tradicional da religio no perderam sua relevncia, mas no dispem de categorias capazes de lhes dar acesso s formas para-institucionais do religioso50.

    mais em secularismo. Abandona-se aquele j vetusto pendor teleolgico subjacente ao conceito e portanto o prprio conceito em nome de uma perspectiva decididamente plural. Numa formulao um pouco mais arriscada, poderamos dizer que a anlise sociolgica da religio em contextos modernos avanou, medida em que se tornou mais historicista. Cf. WOHLRAB-SAHR, Monika & BURCHARDT, Marian. Multiple secularities: toward a cultural sociology of secular modernities. Comparative Sociology, vol. 11, n. 6, 2012, p. 875909.

    49 KARLSAUNE, Gustav Erik G. The invisible religion: a mossgrown milestone or a gate to the present?. Tidsskrift for Kirke, Religion, Samfunn, n. 1, 2001, p. 13-33. Agradecemos ao autor pelo amvel envio de cpia de seu artigo, bem como dos textos das conferncias feitas por Luckmann na Universidade de Thonheim em 2000.

    50 Cf. MATA, Srgio da. Histria & religio. Belo Horizonte: Autntica, 2010, p. 144.

    RESUMO

    Para os que ainda acreditam no mito da secularizao, a persistncia da religio nas sociedades modernas um escndalo. Ao pensar a religio como uma expresso da conditio humana, Thomas Luckmann nos permite escapar das aporias em que caram as teorias tradicionais do religioso. Nosso objetivo nesse artigo: oferecer uma sntese de sua perspectiva analtica, e inclusive das crticas a que foi submetida, de modo a mostrar o que os estudos religiosos podem ganhar com sua protosociologia da religio.

    Palavras Chave: Thomas Luckmann; Religio Invisvel; Secularizao; Protosociologia.

    ABSTRACT

    For those who still believe in the myth of secularization, the endurance of religion in modern societies is a scandal. By thinking religion as a feature of the conditio humana, Thomas Luckmann gives us an alternative to the contradictions of the traditional theories of religion. Our aim here: An overview of his approach as well as the criticisms it became, in order to show what religious studies would gain with his protosociology of religion.

    Keywords: Thomas Luckmann; Invisible Religion; Secularization; Protosociology.

    Artigo recebido em 06 abr. 2014.Aprovado em 28 abr. 2014.