Mata cavalo o sagrado e a identidade quilombola

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Mata Cavalo: o sagrado e a MATA CAVALO: O sagrado e a identidade quilombola. Silvânio Paulo de Barcelos 1 (Coleção Anais Eletrônicos – ANPUH MT: VI Encontro Regional de História: História, Natureza e Fronteiras & Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras – 2010, páginas 484 à 489) As relações do sagrado na Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo constituem num dos fatores de manutenção de suas identidades singulares permeadas sempre pelo sentimento de pertença ao seu território, espaço de negro constituído ideologicamente pelas vias da recordação e da memória de seus ancestrais. .Segundo Silva e Reis, 1989, foi no interior do ambiente das senzalas que o sincretismo religioso criou raízes profundas que repercutem ainda hoje nas comunidades negras contemporâneas. Utilizando-se dos recursos da imaginação e notável plasticidade, os escravos mesclaram a religião adventícia ao que lhes era mais caro, a herança do sagrado, memória viva da África que nos terreiros permanecia ativa através dos cantos, das rodas, do batuque e da alegria. 1 Universidade Federal de Mato Grosso Mestrando em História – Bolsista CNPq Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz 1

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Mata Cavalo: o sagrado e aMATA CAVALO: O sagrado e a identidade quilombola.

Silvânio Paulo de Barcelos1

(Coleção Anais Eletrônicos – ANPUH MT: VI Encontro Regional de História: História, Natureza e Fronteiras & Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras – 2010, páginas 484 à 489)

As relações do sagrado na Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata

Cavalo constituem num dos fatores de manutenção de suas identidades singulares

permeadas sempre pelo sentimento de pertença ao seu território, espaço de negro

constituído ideologicamente pelas vias da recordação e da memória de seus

ancestrais. .Segundo Silva e Reis, 1989, foi no interior do ambiente das senzalas que o

sincretismo religioso criou raízes profundas que repercutem ainda hoje nas comunidades

negras contemporâneas.

Utilizando-se dos recursos da imaginação e notável plasticidade, os escravos

mesclaram a religião adventícia ao que lhes era mais caro, a herança do sagrado, memória

viva da África que nos terreiros permanecia ativa através dos cantos, das rodas, do batuque

e da alegria.

No Mata Cavalo, uma sociedade predominantemente católica, a herança e os ecos

da religiosidade africana manifestam-se em forma de tradições conservadas, por exemplo,

através da Dança do Congo e das festas de santos. As imagens de Santo Antonio, São

Benedito e a Virgem Maria ocupam posição de destaque na vida e no imaginário dessa

gente simples, constituindo-se em fator de representação de uma religiosidade única,

adoração, fervor e fé. Não precisa muito esforço para compreender a importância da

preservação da memória afro-referenciada para os homens e mulheres do quilombo que

1 Universidade Federal de Mato GrossoMestrando em História – Bolsista CNPqOrientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz

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lutam pela conservação da identidade quilombola e, conseqüentemente, pelo

reconhecimento, via jurídica, da propriedade de suas terras.

Numa entrevista realizada com o senhor José Gregório da Comunidade de

remanescentes do Quilombo Mata Cavalo em 8 de junho de 2008, constatamos a

importância do sagrado nesta sociedade, num contexto de fé que mescla tradição ancestral

Africana com a religião católica. Durante nossa conversa, ao relembrar estas práticas, seu

olhar se ilumina pelas lembranças do passado de lutas, de solidariedade e do modo coletivo

de vida.

Impossível não reconhecer o valor e a função da fé e do imaginário religioso no

cotidiano desta gente simples, que não conheceram outra forma de vida senão como luta

constante pela superação dos obstáculos no seu dia-a-dia. Esse homem simples - que

carrega no semblante as marcas de uma vida sofrida sem perder o brilho da esperança faz

questão de ostentar colares, terços, cruzes de madeira e outros objetos místicos, símbolos

de sua religiosidade e de suas crenças - revela de forma muito clara uma sabedoria secular

herdada de seus antepassados: formas do viver, negociação constante de espaços

delimitados pela alteridade. Muito cedo, percebe-se, aprendeu o seu lugar no mundo e nele,

com paciência e alegria, transita com desenvoltura e liberdade.

No final da década de 1950, fugindo às perseguições de alguns fazendeiros que

tinham interesses fundiários naquela região, chega a esta Capital as primeiras famílias que

partiram do Mata Cavalo em busca de uma nova vida. Parte desses imigrantes mudou-se

para o Capão do Negro, atual Bairro Cristo Rei na cidade de Várzea Grande – MT. A outra

parte, entre eles a família do Sr. Crescêncio Gregório de Almeida, pai de José Gregório,

recebeu em forma de doação, na época da administração do então Governador Arnaldo

Estevão de Figueiredo, uma área de terra medindo 47 hectares localizados na antiga “Gleba

Despraiado”, atual bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá – MT. Apesar da distância física

que separa as pessoas da comunidade do “Mata Cavalo” dos seus imigrantes, o sentimento

de pertença destes últimos àquele território não foi esquecido nas malhas do tempo, nem

tampouco reduzido em intensidade, pelo contrário, esse mesmo tempo encarregou-se de

sua maturação.

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Símbolos e signos sagrados constituem centros de força “centrífuga” capazes de

promover sua agregação enquanto comunidade. Os integrantes dessa comunidade, ainda

nos dias de hoje, carregam os traços característicos que os identificam com os antigos

grupamentos rurais negros do município de Livramento. Segundo Dantas, em sua

dissertação de mestrado defendida no ano de 1995, essas características remontam a um

período mais afastado historicamente, o que explica a forte influência da Cultura Africana

presente no seio destas sociedades. Conforme a autora:

Constituição histórica desses grupamentos rurais negros em Livramento

remonta à época da transição do trabalho escravo para o trabalho livre,

quando famílias de negros unidas pelo parentesco, passaram a

desenvolver um modelo específico de vida, se comparado àquele que

norteava as relações sociais da sociedade de classe em construção.

(DANTAS, 1995 : 30)

A constituição do espaço, um lugar onde viver, para as comunidades formadas

pelos descendentes de escravos constituíam na possibilidade da perpetuação e coesão do

grupo ao mesmo tempo em que possibilitava sua reprodução demográfica, social e cultural.

O ambiente ressignificado com as marcas de uma africanidade singular possibilitou a

manutenção da práxis cultural e da identidade relacionada ao ser negro no interior de uma

sociedade claramente marcada pelo preconceito. De acordo com essa autora:

Se no passado as diferenças de classe podiam aparecer dissimuladas [...]

as relações entre brancos e negros eram claramente racistas, mesmo

quando filtradas pela afetividade. [...] Os negros buscaram a construção

de sua identidade étnica ancorada nos pilares da espacialidade: ser

negro, parente, partilhando a propriedade coletiva. (DANTAS, 1995 :

45).

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As formas de resistências dos integrantes da Comunidade de remanescentes do

Quilombo Mata Cavalo fortaleceram os elos de ligação do grupo, determinando a

construção de uma identidade própria, aqui traduzida como quilombola. No caso dos

imigrantes que vieram para o atual Bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá, as práticas

culturais foram mantidas através dos ritos religiosos, das rezas e benzeções, além das

relações familiares e também de compadrio, em sua estrutura social. Tanto aqui como no

município de Livramento eles se fecharam em uma comunidade, que se quer, diferenciada

no ambiente envolvente, a saber: uma comunidade de negros2.

Nessa comunidade de imigrantes do Mata Cavalo, no Bairro Ribeirão da Ponte, os

lugares onde se encontram espaços destinados aos cultos religiosos constituem-se em

locais sacralizados, uma territorialidade do sagrado, portanto. Nesse espaço religioso nota-

se uma constante transição entre dois mundos que se interligam pela ação dos encarregados

de conduzir as cerimônias e ritos. É ali que os santos são evocados para o ato de cura

mística, através de hierofanias identificadas em objetos que representam uma religiosidade

singular.

Segundo Eliade, para explicar a hierofanização afirma que em “manifestando o

sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo,

porque continua a participar do meio cósmico envolvente” (ELIADE, 1992 : 13). No

período de tempo tornado sagrado pelas seções de curas espirituais, os símbolos

hierofânicos sob a ascendência da atmosfera mística do local permitem o intercâmbio com

os santos para a economia simbólica do tratamento que tanto pode resultar em cura da

enfermidade ou não, o que depende da fé de ambas as partes, e do merecimento de quem o

recebe. O momento da realização do tratamento espiritual só se realiza nesses espaços

previamente purificados pois, “lá, no recinto sagrado, torna-se possível a comunicação com

os deuses, conseqüentemente, deve existir uma porta para o alto, por onde os deuses

podem descer à terra e o homem pode subir simbolicamente ao céu” (ELIADE, 1992 : 19).

Cotidianamente a religiosidade presente na maioria das casas da comunidade aqui

estudada se faz notar com relativa intensidade. Símbolos e signos sagrados estão presentes

2 O termo negro utilizado neste trabalho constitui-se em categoria sociológica normalmente empregada pelos integrantes dessas comunidades, e não caracteriza uma forma de preconceito na redação deste texto.

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em forma de crucifixos, que são utilizados como adereços pessoais ou como enfeites nas

portas, paredes e mesas. Em varias casas visitadas percebemos a existência de altares,

bíblias, imagens de santos, terços, contas, oratórios, entre outros. Essa materialidade

religiosa remete a práticas que, certamente, são muito usuais no interior das famílias em

cujas intimidades se realizam cultos e rezas.

No caso específico da comunidade de negros do Bairro Ribeirão da Ponte, várias

das antigas práticas não puderam mais ser utilizadas, por se tratar de uma realidade

diferenciada, um ambiente urbano em oposição ao ambiente rural ao qual estavam

acostumados. Práticas comunitárias como o Muxirum3 e o Celebre4, e também a troca de

dia ou “demão”5, foram muito pouco utilizados nesta comunidade, evidenciando uma nova

realidade sócio-econômica, à qual deveriam se adaptar. Cerceados de vários tipos destas

práticas, os indivíduos não perderam o vínculo estreito com a comunidade “Mata Cavalo”,

tornando-a assim em expressão do lócus privilegiado do sentimento de pertença à uma

entidade abstrata de grande valor simbólico.

Tal é essa relação que nos casos de óbito de qualquer membro da comunidade, não

importando onde vivam atualmente, seu corpo é levado para ser enterrado no Cemitério do

Mata Cavalo no município de Livramento. Essa questão revela claramente o esforço

empreendido pelos membros da comunidade na conservação daquele território como local

de memória. Sepultando-se, ali, todos os seus mortos cria-se pelas vias do imaginário um

campo simbólico capaz de transformar aquele pequeno território num local de perpetuação

e de coesão do grupo fora do mundo material.

3 Muxirum – consiste num sistema de trabalho comunal e cooperativo envolvendo a maioria dos integrantes da sociedade, cada qual com atribuições especificas na elaboração da tarefa proposta. A alimentação dos trabalhadores fica a cargo do indivíduo que recebe o auxílio, este retribui em forma de trabalho quando requisitado por um membro qualquer dacomunidade.

4 Celebre – prática comunal parecida com o muxirum, mas somente utilizada quando há a impossibilidade do indivíduo que recebe o auxilio fornecer a alimentação necessária aos trabalhadores. Desta forma os trabalhos são realizados somente em uma parte do dia, normalmente após o almoço.

5 . Demão – Sistema de ajuda mútua para trabalhos entre parentes mais próximos e amigos, solicitado ou oferecido informalmente.

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Para grande maioria dos quilombolas que foram obrigados a deixar as suas terras a

possibilidade do retorno é uma realidade plausível e ao mesmo tempo um sonho a ser

realizado. De uma forma ou de outra todos os entrevistados revelam, em seus depoimentos,

uma forte ligação com o quilombo, um sentimento de pertença àquele território onde

esperam um dia para lá voltarem. Entendemos que a religiosidade e os símbolos do

sagrado contribuem para a manutenção do imaginário afro-referenciado, o que permite

uma identificação estreita entre todos os imigrantes e destes com o Mata Cavalo. Assim,

uma questão muito importante verificada neste processo constitui-se nas formas de

manutenção da tradição ancestral Africana, apropriadas pelos descendentes que para cá

vieram, traduzidas em formas de danças, cânticos, culinária, músicas, ritmos e

religiosidade, enquanto recurso primordial para a educação das futuras gerações. Dantas

reporta-se a esse sistema educacional empírico através da perpetuação da tradição da Festa

do Congo realizada pela Casa São Benedito, em Livramento – MT, segundo ela:

O reconhecimento social do Congo como um conhecimento

eminentemente negro, na perspectiva do processo ensino/aprendizagem,

recupera para os negros e para a sociedade, a identidade dos negros

como sujeitos e como produtores de cultura. Como um fenômeno

educativo de alcance étnico, apresenta o negro como concretude na

sociedade local, regional e nacional; apreende sua existência como real

e viva. Evidencia-se a possibilidade de ser – no – mundo – negro, com

outros negros, com outros brancos. Uma forma de aprender a ser negro

no arrepio dos parâmetros racistas, mantendo uma saída para fora do

vínculo do branqueamento e da integração da imagem branca do negro.

Essa questão fundamental para a própria sobrevivência da cultura negra do “Mata

Cavalo” já foi percebida no seu interior, e hoje, rebuscando as origens da festa do Congo,

que originalmente era produzida na própria comunidade e com o tempo foi transferida para

o meio urbano da cidade de Livramento, está sendo retomada com toda intensidade pelas

crianças e jovens enviadas à Casa São Benedito para o aprendizado da tradição secular do

Congo. Uma perspectiva interessante e coerente por parte de seus representantes. Nas

festas de São Benedito que são realizadas nessa comunidade o ponto alto é representado

pela apresentação da dança do Congo, pelos jovens, logo após o hasteamento das bandeiras

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dos santos, simbolizando assim a (re)tomada de antigas tradições ancestrais como prática

educativa e mantenedora da identidade afro-referenciada. Aqui, no dizer de Gonçalina

(uma das lideranças do movimento de resistência quilombola do Mata Cavalo), resgatando

o espírito de Zumbí da tradição de Palmares, “vamos contar a nossa história, na visão que a

gente vê, na realidade que a gente vive...”

Bibliografia:

CHARTIER, Roger, 1988. A história cultural – entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Ed. Bertrand Brasil, S. A. Rio de Janeiro.

DANTAS, Triana de Veneza Sodré e. Educação do negro: a pedagogia do Congo de Livramento, MT. / Triana de Veneza Sodré e Dantas. –Cuiabá: Instituto de Educação, 1995.

ELIADE, Mircea, 1907 – 1986. – O sagrado e o profano / Mircea Eliade; tradução de Rogério Fernandes. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.

SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. / Eduardo Silva, João José Reis. – São Paulo: Companhia das letras.O Funeral Bororo:

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