MASSON, Cléber - Evolução Doutrinária do Direito Penal

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EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DO DIREITO PENAL 1. POSITIVISMO JURÍDICO. De origem alemã, os estudos de Karl Binding, na década de 70 do séc. XIX, tinham nítida preferência pela cientificidade, excluindo os juízos de valor e limitando o objeto do direito positivo. Deve-se a esta teoria o conceito clássico de delito, sem qualquer influencia filosófica, psicológica ou sociológica. Constituía-se em posição extremamente normativista e formal, assim justificada pelos seus partidários por respeitar excessivamente o princípio da legalidade e a segurança jurídica. 2. NEOKANTISMO PENAL. Surgiu no final do séc. XIX, através de Rudolf Stammler e Gustav Radbruch, propondo um conceito que supervaloriza o dever-ser, mediante a introdução de considerações axiológicas. Essa teoria permitiu graduar o injusto de acordo com a gravidade da lesão produzida, incluindo elementos normativos e subjetivos nos tipos penais. Por fim, adotou-se a teoria psicológico-normativa, revestindo a culpabilidade pelo juízo de reprovabilidade. 3. GARANTISMO PENAL. Através de Luigi Ferrajoli, com a obra "Direito e razão", entende-se o garantismo penal um modelo universal destinado a contribuir com a moderna crise que assola os sistemas penais, desde o nascedouro da lei até o final do cumprimento da sanção penal. Esse sistema, também chamado de cognitivo ou de legalidade estrita, assenta dez axiomas, como forma de garantia, impondo um modelo-limite, de índole penal e processual penal, irradiando reflexos em todo o sistema: Nulla poena sine crimine (princípio da retributividade ou da conseqüência da pena em relação ao delito); nullum crimen sine lege (princípio da reserva legal); nulla Lex (poenalis) sine necessitate (princípio da necessidade ou da economia do direito penal) ; nulla necessitas sine injuria(princípio lesividade ou ofensividade); nulla injuria sine actione (princípio materialidade ou exterioridade da ação); nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal); nulla culpa sine judicio (princípio da jurisdicionalidade); nullum judicium sine accusatione(princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação); nulla accusatio sine probatione(princípio do ônus da prova ou da verificação) ; nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório e ampla defesa ou da falseabilidade). 4. FUNCIONALISMO PENAL. Iniciou-se na Alemanha, em 1970, com uma forte revolução dos penalistas, com o intuito de submeter a dogmática penal aos seus fins específicos.

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EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DO DIREITO PENAL

1. POSITIVISMO JURÍDICO.

De origem alemã, os estudos de Karl Binding, na década de 70 do séc. XIX, tinham nítida preferência pela cientificidade, excluindo os juízos de valor e limitando o objeto do direito positivo. Deve-se a esta teoria o conceito clássico de delito, sem qualquer influencia filosófica, psicológica ou sociológica.

Constituía-se em posição extremamente normativista e formal, assim justificada pelos seus partidários por respeitar excessivamente o princípio da legalidade e a segurança jurídica.

2. NEOKANTISMO PENAL.

Surgiu no final do séc. XIX, através de Rudolf Stammler e Gustav Radbruch, propondo um conceito que supervaloriza o dever-ser, mediante a introdução de considerações axiológicas.

Essa teoria permitiu graduar o injusto de acordo com a gravidade da lesão produzida, incluindo elementos normativos e subjetivos nos tipos penais.

Por fim, adotou-se a teoria psicológico-normativa, revestindo a culpabilidade pelo juízo de reprovabilidade.

3. GARANTISMO PENAL.

Através de Luigi Ferrajoli, com a obra "Direito e razão", entende-se o garantismo penal um modelo universal destinado a contribuir com a moderna crise que assola os sistemas penais, desde o nascedouro da lei até o final do cumprimento da sanção penal.

Esse sistema, também chamado de cognitivo ou de legalidade estrita, assenta dez axiomas, como forma de garantia, impondo um modelo-limite, de índole penal e processual penal, irradiando reflexos em todo o sistema:

Nulla poena sine crimine (princípio da retributividade ou da conseqüência da pena em relação ao delito); nullum crimen sine lege (princípio da reserva legal); nulla Lex (poenalis) sine necessitate (princípio da necessidade ou da economia do direito penal); nulla necessitas sine injuria(princípio lesividade ou ofensividade); nulla injuria sine actione (princípio materialidade ou exterioridade da ação); nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal); nulla culpa sine judicio (princípio da jurisdicionalidade); nullum judicium sine accusatione(princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação); nulla accusatio sine probatione(princípio do ônus da prova ou da verificação); nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório e ampla defesa ou da falseabilidade).

4. FUNCIONALISMO PENAL.

Iniciou-se na Alemanha, em 1970, com uma forte revolução dos penalistas, com o intuito de submeter a dogmática penal aos seus fins específicos.

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Pretendia abandonar o tecnicismo jurídico no enfoque da adequação típica, desempenhando uma efetiva função de mantenedor da paz social e aplicador da política criminal, em suma: funcional.

O intérprete da lei deve desempenhar seu papel de forma máxima, almejando a real vontade da lei. Contudo, essa teoria apresenta duas concepções:

4.1. Funcionalismo Moderado, Dualista ou de Política Criminal.

Liderado por Claus Roxin, preocupa-se com os fins do Direito Penal, priorizando valores e princípios garantistas, introduzindo a política criminal como critério norteador para a solução dos problemas dogmáticos.

Para Roxin, o tipo objetivo não pode ser reduzido à conexão de condições entre comportamentos e resultados. Ele desenvolveu a teoria do domínio do fato, no que tange à autoria delitiva, e introduziu o conceito de imputação objetiva no campo da tipicidade.

Vinculou elementos ao delito, com diversos valores predominantes: tipicidade[1], determinação da lei em conformidade com o princípio da reserva legal; ilicitude, espécie de elemento negativo do tipo; e culpabilidade, necessidade da pena como prevenção.

Roxin privilegia um conceito bipartido de delito em que considera o injusto penal (fato típico + ilicitude) e a responsabilidade (que inclui a culpabilidade) para a formação do delito.

4.2. Funcionalismo Radical, Monista ou Sistêmico.

Capitaneado por Günther Jakobs, essa teoria preocupa-se com os fins da pena, levando em consideração apenas necessidades sistêmicas, e o Direito Penal deve se ajustas a elas.

Adaptou o direito penal à teoria dos sistemas sociais, com sua teoria da imputação normativa. Para ele, o direito penal está determinado pela função que cumpre no sistema social. Assim, quando descumprida uma norma legal, o direito penal deve aplicar o comando contido em seu mandamento positivo, pois somente sua reiterada incidência lhe confere o devido respeito.

Como consectário dessa idéia, desenvolveu a teoria do direito penal do inimigo, a ser analisada em momento próprio.

NOVAS PROPOSTAS: DIREITO PENAL E A CRIMINALIDADE MODERNA

As modificações introduzidas na humanidade ao longo dos últimos, aliados a fenômenos como a globalização, massificação dos problemas e configuração de uma sociedade de risco, implicariam em profundas alterações no Direito Penal.

A sociedade moderna destaca-se por ser uma sociedade de massas, cuja administração recai em comportamentos sociais distintos, porém uniformes dos cidadãos. Essa contradição acarreta algumas dificuldades para o Direito Penal.

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Frequentemente convocado para a resolução dos novos problemas sociais, sua estrutura clássica sofreu mudanças, deturpando-se até mesmo os conceitos mais arraigados. Naturalmente, denota-se a necessária expansão do Direito Penal, ressaltando a subsidiariedade e a fragmentariedade, bem como um equilíbrio entre a adaptação aos novos tempos, sem relegar a outros ramos do Direitos a sua competência.

Temerários por problemas decorrentes dessa globalização criminal, buscando-se evitar adesformalização do Direito Penal, a banalização de seus tipos e conceitos, bem como protegendo a segurança jurídica advinda das garantias asseguradas pela codificação de condutas consideradas adversas ao convívio social, a doutrina estrangeira tem apresentado algumas formas de solução, possíveis meios aptos a salvar o Direito Penal.

1. DIREITO INTERVENCIONISTA (OU DE INTERVENÇÃO).

Seu criador, o alemão Winfried Hassemer, entende que o Direito Penal não oferece resposta satisfatória para a criminalidade das sociedades modernas. O único meio consistente de enfrentamento seria o direito de intervenção, que consiste na eliminação de uma parte da atual modernidade do Direito Penal, mediante a busca de uma dupla tarefa: reduzir o Direito Penal básico às lesões de bens jurídicos individuais e sua colocação em perigo e, num segundo momento, conceder tratamento jurídico diverso aos bens jurídicos universais, objetos dos maiores riscos atuais.

Assim, o direito intervencionista consiste na manutenção, em âmbito de Direito Penal, das condutas lesivas aos bens jurídicos individuais e também as que causam perigo concreto. As demais, de índole coletiva e difusa, por serem apenadas de maneira mais branda, seriam reguladas por um sistema jurídico diverso, com garantias penais e processuais mais flexíveis, cuja aplicação incumbiria à Administração Pública.

2. AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL.

Jesús-María Silva Sánchez, revelando grande preocupação com a consolidação de um único Direito Penal Moderno, apresenta as velocidades do Direito Penal, partindo do pressuposto que há dois grandes blocos, distintos, de ilícitos: as infrações penais cominadas com penas de prisão e as que se vinculam a gêneros diversos de sanções penais. Aqui, todos os ilícitos guardam natureza penal e devem ser processados e julgados pelo Poder Judiciário.

Portanto, uma primeira velocidade do Direito Penal seria a prisão, mantendo-se os princípios políticos-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais.

Uma segunda velocidade seria representada pelas sanções diversas da privação de liberdade, como restrição de direitos, pecuniárias, com regras flexibilizando proporcionalmente a pena com relação à intensidade da infração, agilizando o procedimento, tendo em vista que, entre o acusado e o Estado, não há embate envolvendo tão relevante bem jurídico (liberdade).

Silva Sánchez define, por fim, que haveria uma terceira velocidade do Direito Penal, definida pelo Direito Penal do Inimigo, com a privação da liberdade e suavização ou eliminação de direitos e garantias penais e processuais.

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3. DIREITO PENAL DO INIMIGO.

Essa teoria foi desenvolvida por Günther Jakobs, o mesmo criador da teoria do funcionalismo radical, monista ou sistêmico, ou seja, o pensamento que reserva elevado valor à norma jurídica como fator de proteção social. Para ele, apenas a aplicação constante da norma penal é que imprime à sociedade as condutas aceitas e os comportamentos indesejados.

Buscando revolucionar conceitos clássicos arraigados nas mentes dos doutrinadores do Direito Penal, colocou em discussão a real efetividade do Direito Penal existente, pugnando pela flexibilização ou mesmo supressão de diversas garantias materiais e processuais, consideradas, até então, intocáveis.

O termo inimigo representa aquele que, em situação de confronto, deve ser enfrentado e, a qualquer custo, vencido. Assim, para Jakobs, inimigo é o indivíduo que afronta a estrutura do Estado, pretendendo desestabilizar a ordem reinante. Assim, age demonstrando não aceitar as normas impostas pelo Direito para o convívio social, não querendo ser cidadão e, portanto, asgarantias inerentes às pessoas não podem ser a ele aplicadas.

Essa teoria baseia-se nas ideias de Jean Jacques Rousseau, onde o inimigo, ao desrespeitar o contrato social guerreando com o Estado, deixa de ser um de seus membros. Evidente, então, que Jakobs abraça um Direito Penal do Autor, rotulando indivíduos, em oposição a um Direito Penal do Fato, que se preocupa com a ofensividade das ações e omissões relevantes.

Como consequência da aplicação dessa teoria, o Estado não reconhece o delinquente como cidadão, restando-lhe inaplicáveis quaisquer garantias inerentes ao homem de bem. Portanto, o inimigo não pode gozar de direitos processuais, como a ampla defesa, entre outros, pois, o único objetivo do Estado é vencer o inimigo.

Ressalta-se a periculosidade do agente, deixando de lado o juízo de culpabilidade, em consonância com as penas aplicadas. Antecipa-se a tutela penal, punindo até mesmo atos preparatórios sem redução de punição, combatendo-se a ameaça e a opressão de sua existência perante o Estado. Objetiva-se a garantia da paz social no Estado.

Do Direito Penal do Inimigo decorre também a mitigação de princípios tais como a da reserva legal ou estrita legalidade, pois a periculosidade do indivíduo impede a previsão de todos os atos que possam por ele ser praticados. Deste modo, a narrativa dos crimes e penas aplicados depende de uma análise vaga das condutas em cada caso concreto, dependendo da ameaça que o indivíduo representa, o que permite a inflação legislativa penal, com criação artificial de delitos.

Possível, ainda, a eliminação de direitos e garantias individuais, uma vez que não se observa o devido processo legal, mas paira sobre o Estado um procedimento de guerra, de intolerância e repúdio ao inimigo.

Enfim, denota-se a convivência, na concepção de Jakobs, de dois direitos num único ordenamento: Direito Penal do Cidadão, dotado de garantias constitucionais, processuais e penais, típicos de um Estado Democrático de Direito; e do outro lado, o Direito Penal do Inimigo, onde o sujeito ativo de uma infração deve ser enfrentado como fonte de perigo e, portanto, sua eliminação da sociedade é o fim último do Estado.

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4. DIREITO PENAL COMO PROTEÇÃO DOS CONTEXTOS DA VIDA EM SOCIEDADE.

Cuida-se de uma proposta formulado por Günter Stratenwerth que, com a finalidade de garantir o futuro da sociedade, deixa em segundo plano a proteção dos interesses individuais, para salvaguardar imediatamente os bens jurídicos inerentes a toda coletividade.

Ao contrário do Direito Intervencionista, proposto por Hassemer, busca de modo precípuo aproteção dos bens jurídicos difusos, pois seria mais importante resguardar a coletividade do que os bens de cada indivíduo isoladamente.

Como corolário desse pensamento, antecipa-se a tutela penal nos casos de crimes de perigo abstrato, protegendo bens jurídicos transindividuais e estabelecendo um perfil de gestão dos interesses difusos e coletivos, legitimando a intervenção do Direito Penal diante de comportamentos que exponham a perigo tais bens.

Por fim, trata-se de uma proposta audaciosa que ganhará importância ao longo do século XXI, diante da busca em enfrentar os riscos da sociedade moderna. Conforme afirma Claus Roxin, esse pensamento conduzirá a uma relativização do bem jurídico tutelado coletivamente em face do patrimônio jurídico de cada indivíduo, isoladamente.