Massive Attack Uma Receita que Quase Desandou

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E ra o meio da madrugada de um sábado ou outro, numa balada de hip hop e soul em São Paulo. Uma balada simples, sem pretensão. Não é preciso, por exemplo, mostrar nenhum documento. Você entra, paga no bar o que quiser, e prontinho. Tem quintal pra fumar, pista escura, música boa e uma mistura de negro, branco e asiático sem atitude, lá pela musica. Não precisa de mais nada. O Massive Attack nasceu de uma fusão muito interessante de ingredientes culturais e musicais. Rebeldes por vocação e reis das baladas underground, fizeram sucesso e escola quando estavam no auge. Passando por brigas internas, perda do mojo original e períodos de pouca produtividade, o grupo - parte dele - lançou em fevereiro um novo álbum tentando recuperar sua relevância. Será que ainda dá tempo? Damon Albarn (do Blur e Gorillaz), Guy Garvey (do Elbow) e Hope Sandoval, ao lado do cantor jamaicano Horace Andy, lá desde “Blue Lines”. É roots e ao mesmo tempo moderno, original, estranho e emocional. “Quisemos voltar para uma coisa mais crua, como fizemos com “Blue Lines”. Um jeito mais colaborativo”, disse Daddy G. “A maioria das pessoas no disco são pessoas que já conhecemos.” Falando ao telefone da Cidade do México, onde o Massive Attack acabou de fazer um grande show, Daddy G (seu apelido no estilo hip hop significa “Papai G”, seu nome próprio é Grant Marshall) contou que ficou impressionado com a recepção dos fãs mexicanos. “Foi uma plateia maravilhosa. Você não espera uma recepção assim. Tinha muita gente que já conhecia o disco novo”, disse. Ele teve a mesma experiência quando tocou duas vezes no Brasil. Adorou. O Massive Attack estourou numa cena alternativa da década de 1980 que misturava punks brancos, jamaicanos, rastas, estudantes, músicos e baladeiros. Na época, pela lei, as baladas inglesas fechavam às duas da madrugada, mas no centro de Bristol, nos bairros decadentes, pobres e jamaicanos, as regras eram diferentes. Boates ilegais de reggae, que se chamavam “blues”, festas nos centros comunitários, cerveja só na lata, nuvens de fumaça de maconha, iam até de manhã. Casas viravam clubes – por uma noite só. O DJ Daddy G era o rei dessa cena. “Era um caldeirão de música e cultura”, disse G, que cresceu escutando reggae. “Como o punk. Não entendi o punk, mas tinha uma coisa de rebelde que me atraiu.” O Massive Attack começou como um “sound system” que se chamava The Wild Bunch. Um sound system é um coletivo jamaicano que migrou para hip hop - com DJs, cantores, rappers e grafiteiros. No Wild Bunch, houve os DJs Daddy G, DJ Milo, Mushroom e Nellee Hooper (hoje um produtor bem sucedido), e os rappers Tricky e Robert Del Naja, o 3D, que também é grafiteiro. Com Daddy G, 3D, Tricky e Mushroom, o Wild Bunch se tornou o Massive Attack. Em Bristol, esses caras eram os mais descolados da cena. “Sempre havia uma coisa muito competitiva entre nós”, lembrou Daddy G. “Temos todos grandes egos. Mesmo no Wild Bunch. Tivemos cinco caras originais de famílias diferentes.” Nellee Hooper é inglês, 3D de uma família italiana, o pai de Mushroom é da América Latina, os pais de Daddy G são de Barbados, Milo é jamaicano. O primeiro hit de Massive Attack foi “Daydreaming”, em 1990. Com uma batida lenta, sonolenta, raps que eram mais monólogos introspectivos e um refrão delicioso da cantora Shara Nelson, seu som era totalmente diferente. O clássico “Blue Lines” veio em 1991. O excelente segundo disco “Protection”, em 1994. O DJ, um skinhead gigante, arriscou uma mixagem habilidosa no vinil – um scratch, tipo “wika wika wika” – e bombardeou a pista com um hit esquecido: “Gotta Have Your Love”, do grupo de hip hop Mantronix, de 1990. A pista explodiu. Sorri. A última vez que ouvi essa música foi numa balada em Bristol, uma cidade meio caipira, no Oeste da Inglaterra, 20 anos atrás. Daquela vez, o DJ era Daddy G, do conjunto Massive Attack, que nasceu em Bristol. Separadas por 20 anos, essas duas baladas foram iguais. Exatos 19 anos depois do lançamento do primeiro disco, “Blue Lines”, um álbum cujo som foi formado nesse tipo de festa e que virou sucesso no mundo inteiro, o Massive Attack está de volta. O disco novo, “Heligoland”, seu quinto, faz uma mistura do som orgânico de “Blue Lines” com contrabaixo de reggae, hip hop e canções de novos convidados, incluindo Texto Dom Phillips Fotos Divulgação 44 ABRIL/MAIO 2010 UMA RECEITA QUE QUASE DESANDOU

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E ra o meio da madrugada de um sábado ou outro, numa balada de hip hop e soul em São Paulo. Uma balada simples, sem pretensão. Não é preciso, por exemplo,

mostrar nenhum documento. Você entra, paga no bar o que quiser, e prontinho. Tem quintal pra fumar, pista escura, música boa e uma mistura de negro, branco e asiático sem atitude, lá pela musica. Não precisa de mais nada.

O M a s s i v e A t t a c k n a s c e u d e u m a f u s ã o m u i t o i n t e r e s s a n t e d e i n g r e d i e n t e s c u l t u r a i s e m u s i c a i s . R e b e l d e s p o r v o c a ç ã o e r e i s d a s b a l a d a s u n d e r g r o u n d , f i z e r a m s u c e s s o e e s c o l a q u a n d o e s t a v a m n o a u g e . P a s s a n d o p o r b r i g a s i n t e r n a s , p e r d a d o m o j o o r i g i n a l e p e r í o d o s d e p o u c a p r o d u t i v i d a d e , o g r u p o - p a r t e d e l e - l a n ç o u e m f e v e r e i r o u m n o v o á l b u m t e n t a n d o r e c u p e r a r s u a r e l e v â n c i a . S e r á q u e a i n d a d á t e m p o ?

Damon Albarn (do Blur e Gorillaz), Guy Garvey (do Elbow) e Hope Sandoval, ao lado do cantor jamaicano Horace Andy, lá desde “Blue Lines”.

É roots e ao mesmo tempo moderno, original, estranho e emocional. “Quisemos voltar para uma coisa mais crua, como fizemos com “Blue Lines”. Um jeito mais colaborativo”, disse Daddy G. “A maioria das pessoas no disco são pessoas que já conhecemos.”

Falando ao telefone da Cidade do México, onde o Massive Attack acabou de fazer um grande show, Daddy G (seu apelido no estilo hip hop significa “Papai G”, seu nome próprio é Grant Marshall) contou que ficou impressionado com a recepção dos fãs mexicanos. “Foi uma plateia maravilhosa. Você não espera uma recepção assim. Tinha muita gente que já conhecia o disco novo”, disse. Ele teve a mesma experiência quando tocou duas vezes no Brasil. Adorou.

O Massive Attack estourou numa cena alternativa da década de 1980 que misturava punks brancos, jamaicanos, rastas, estudantes, músicos e baladeiros. Na época, pela lei, as baladas inglesas fechavam às duas da madrugada, mas no centro de Bristol, nos bairros decadentes, pobres e jamaicanos, as regras eram diferentes. Boates ilegais de reggae, que se chamavam “blues”, festas nos centros comunitários, cerveja só na lata, nuvens de fumaça de maconha, iam até de manhã. Casas viravam clubes – por uma noite só. O DJ Daddy G era o rei dessa cena.

“Era um caldeirão de música e cultura”, disse G, que cresceu escutando reggae. “Como o punk. Não entendi o punk, mas tinha uma coisa de rebelde que me atraiu.”

O Massive Attack começou como um “sound system” que se chamava The Wild Bunch. Um sound system é um coletivo jamaicano que migrou para hip hop - com DJs, cantores, rappers e grafiteiros. No Wild Bunch, houve os DJs Daddy G, DJ Milo, Mushroom e Nellee Hooper (hoje um produtor bem sucedido), e os rappers Tricky e Robert Del Naja, o 3D, que também é grafiteiro. Com Daddy G, 3D, Tricky e Mushroom, o Wild Bunch se tornou o Massive Attack. Em Bristol, esses caras eram os mais descolados da cena.

“Sempre havia uma coisa muito competitiva entre nós”, lembrou Daddy G. “Temos todos grandes egos. Mesmo no Wild Bunch. Tivemos cinco caras originais de famílias diferentes.” Nellee Hooper é inglês, 3D de uma família italiana, o pai de Mushroom é da América Latina, os pais de Daddy G são de Barbados, Milo é jamaicano.

O primeiro hit de Massive Attack foi “Daydreaming”, em 1990. Com uma batida lenta, sonolenta, raps que eram mais monólogos introspectivos e um refrão delicioso da cantora Shara Nelson, seu som era totalmente diferente. O clássico “Blue Lines” veio em 1991. O excelente segundo disco “Protection”, em 1994.

O DJ, um skinhead gigante, arriscou uma mixagem habilidosa no vinil – um scratch, tipo “wika wika wika” – e bombardeou a pista com um hit esquecido: “Gotta Have Your Love”, do grupo de hip hop Mantronix, de 1990. A pista explodiu. Sorri. A última vez que ouvi essa música foi numa balada em Bristol, uma cidade meio caipira, no Oeste da Inglaterra, 20 anos atrás. Daquela vez, o DJ era Daddy G, do conjunto Massive Attack, que nasceu em Bristol. Separadas por 20 anos, essas duas baladas foram iguais.

Exatos 19 anos depois do lançamento do primeiro disco, “Blue Lines”, um álbum cujo som foi formado nesse tipo de festa e que virou sucesso no mundo inteiro, o Massive Attack está de volta. O disco novo, “Heligoland”, seu quinto, faz uma mistura do som orgânico de “Blue Lines” com contrabaixo de reggae, hip hop e canções de novos convidados, incluindo

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quase desafinado, combina perfeitamente. Colaboradores inesperados são um lado forte do Massive Attack. “Algumas pessoas ótimas foram nosso trampolim”, disse G. Outro colaborador novo é Guy Garvey, do grupo de rock Elbow, cuja contribuição na

“Flat Of The Blade” tem uma melodia que caminha por trás de um emaranhado eletrônico. O Massive Attack também gravou algumas faixas em Nova Iorque, com o produtor Tim Goldsworthy, do conjunto DFA, que leva um ritmo um pouco mais alto. “Ele foi uma inspiração”, disse G. A faixa “Atlas Air”, com a voz

de 3D, batida poderosa e turbilhões de acid house, não lembra nenhuma outra música do Massive Attack.

Desde o início, o Massive Attack tinha um forte lado visual, graças a 3D, um

grafiteiro consagrado fora do grupo que desenha as capas. Os clipes eram artísticos. Nas décadas de 1980 e 1990, Bristol tinha uma cena conhecida de grafiteiros - o grafiteiro Banksy, também de Bristol, é hoje um artista famoso no cenário internacional e ainda guarda sua identidade secreta. Na exposição de Banksy, instalada no ano passado no museu metropolitano de Bristol, havia filas de três horas. “Foi maravilhosa”, disse G sobre a exposição. “Conheci o Banksy. Ele joga uma luz em Bristol, nos talentos que temos na cidade.” Rindo, mas falando sério, adicionou: “Bristol é o centro do mundo”. “Heligoland” entrega o lado visual com uma seleção de curtas-metragens estonteantes. O curta que foi feito para a faixa “Paradise

E no caminho, esse coletivo de Bristol criou um coletivo maior, envolvendo cantores e músicos internacionais numa paisagem musical que caracteriza o grupo: atmosférica e esquisita, construída na justaposição de emoções fortes com melodias sutis. O Massive Attack virou uma referência de global “cool”, e criou músicas inesquecíveis como “Protection”, com a cantora Tracey Thorn (do CD “Protection”), e “Teardrop”, com a cantora Liz Fraser do Cocteau Twins (de “Mezzanine”). Nos anos 1990, muitos grupos imitaram seu som cinemático e lento. Esse estilo de música eletrônica vagarosa ganhou o nome de “trip hop”. Mais tarde, foi batizada como “lounge” - uma versão mais educada e menos chamativa que muitos bares chiques ainda tocam. A essa altura, o Massive Attack já havia migrado para um som mais sinistro com o disco “Mezzanine” (1998). Lounge se tornou brega. O Massive Attack era bacana. “Nossa carreira foi um sonho e um plano, por assim dizer”, disse G. “Tínhamos muita sorte, muitas vezes estávamos no lugar certo, na hora certa.” Apesar do ritmo de trabalho relaxado – um disco a cada quatro anos - não era um grupo tranquilo. Sempre brigou – o racha mais famoso foi quando Tricky saiu do grupo depois de “Protection”. Depois de “Mezzanine”, foi a vez de Mushroom. O Massive Attack ficou com apenas duas pessoas – 3D e Daddy G. “Brigamos. As personalidades se chocam. Somos belicosos com o som que queremos”, disse G. Sua namorada estava grávida e Daddy G também deixou o grupo. “Achei que foi uma boa hora para sair.” Assim, o Massive Attack se tornou um cara só. Sozinho, 3D fez o disco “100th Window” em 2003, mas, sem a melodia e as raízes de reggae, hip hop e soul, não alcançou os picos dos outros discos do conjunto. “Não me identifico com aquele disco”, disse G, “mas graças a 3D, o Massive Attack continuou. Era uma época de crise”. G decidiu voltar para a turnê de “100th Window”. Depois disso, 3D e G encontraram-se novamente no estúdio de Damon Albarn. “Ele foi a cola que conseguiu nos juntar.” Os dois começaram a trabalhar de novo. “Conheço D há 27 anos. Somos mais irmãos que amigos”, disse G. “No sentido da criatividade, o Massive é coisa nossa.” Gravaram um álbum novo para a turnê de 2008, que se chamaria “Weather Underground”, mas quando voltaram ao estúdio, não gostaram mais do disco. “Desmanchamos as faixas até o fundo e começamos de novo.” O resultado é “Heligoland”, que eles acham bem melhor. “Tem uma coisa imediata. Você sente como se estivesse na sala de gravação. Esse é o Massive Attack. Isso foi o que faltou no “100th Window”. Quando se escuta uma música como “Rush Minute” (do disco novo), é como se Damon cantasse especialmente para você.” De Blur até Gorillaz, passando pela ópera contemporânea Monkey, que compôs, Damon Albarn continua um dos artistas britânicos mais ecléticos, e como músico e cantor em algumas faixas, tem uma influência forte no “Heligoland”. Seu som distintivo, quase bizarro,

Circus” mistura uma entrevista com Georgina Spelvin, atriz do pornô polêmica de 1973, The Devil In Miss Jones, com cenas do filme original. “Aquele curta é uma obra maravilhosa”, contou G. “Demos sugestões para alguns produtores e cineastas, o que acionou um fluxo de ideias.” Daddy G ainda toca como DJ, é pai de três filhos e não acredita que tem 50 anos. 3D tem 45. “Estou mesmo chocado que tenho 50 anos. Às vezes nos comportamos como se tivéssemos 20.” Heligoland é um pequeno arquipélago esquisito no litoral da Alemanha, que virou um refúgio de artistas e revolucionários na década de 1880. O título faz sentido. O Massive Attack ainda mora naquela balada sem regras, sem líder e sem oficialização. Nunca se mudou para Londres e consequentemente nunca ficou perdido na vida ou no ego de “rock star”. “Mas gostamos de uma boa balada”, disse G. Como o próprio Banksy falou: “Um trabalho artístico que só busca ser famoso jamais te trará fama. A fama é o produto do feitio de algo que signifique alguma coisa. Você não vai a um restaurante e pede um prato por que quer cagar”. Daddy G concluiu: “Essa é a vida, tentando ser criativo. Ainda tenho muito para aprender, muito para ver, muito para fazer. Precisaria de três vidas pra fazer tudo o que eu quero. Mas é bem divertido. Somos pessoas divertidas”. www.banksy.co.ukwww.massiveattack.com

“esTou mesmo chocado que TeNho50 aNos. às vezes Nos comporTamos comose Tivéssemos 20.”

o massive attack lançou curtas-metragens para cada faixa do álbum “Heligoland”. o de “Paradise circus” é inspirado em georgina Spelvin (acima), atriz do pornô polêmica de 1973 (no topo, ela numa cena de seu maior clássico: o Diabo na carne de miss Jones)