Máscaras Guardadas
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
BRUNO CSAR BRULON SOARES
MSCARAS GUARDADAS:
MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO
Niteri
2012
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
BRUNO CSAR BRULON SOARES
MSCARAS GUARDADAS:
MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obteno do Grau de Doutor.
Orientadora: Professora Lygia Segala
Linha de Pesquisa: Transmisso de Patrimnios Culturais
Niteri
2012
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S676 Soares, Bruno Csar Brulon.
Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao / Bruno Csar
Brulon Soares. 2012. 448 f.
Orientador: Lygia Segala.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, 2012.
Bibliografia: f. 433-448.
1. Museu. 2. Etnografia. 3. Ecomuseu. I. Segala, Lygia. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas.
CDD 069
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MSCARAS GUARDADAS:
MUSEALIZAO E DESCOLONIZAO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do Grau de Doutor.
Niteri, 17 de dezembro de 2012.
Banca Examinadora
________________________________________
Prof. Orientadora Dr. Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto
PPGA - Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Prof. Dr. Ana Lcia Ferraz
Departamento de Antropologia - Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira
PPGAS/MN - Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr. Jos Srgio Leite Lopes
PPGAS/MN - Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr. Marcos Otvio Bezerra
PPGA - Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Prof. Dr. Ana Maria de Lima Daou - suplente
IGEO - Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr. Eliane Cantarino ODwyer - suplente PPGA - Universidade Federal Fluminense
Niteri, 2012
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v
GUARDAR
Guardar uma coisa no escond-la ou tranc-la.
Em cofre no se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa vista.
Guardar uma coisa olh-la, fit-la, mir-la por
admir-la, isto , ilumin-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa vigi-la, isto , fazer viglia por
ela, isto , velar por ela, isto , estar acordado por ela,
isto , estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vo de um pssaro
Do que um pssaro sem vos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guard-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
(Antonio Cicero, 1996 Guardar: poemas escolhidos)
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vi
minha querida av,
Cllia Nanci
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Agradecimentos:
Entre as coisas guardadas, as mais importantes delas so as pessoas que passam
a fazer parte de nossas vidas ao longo de nossas trajetrias. Esta tese foi escrita graas
aos mltiplos encontros que fazem de uma pesquisa, entre outras coisas, um objeto
relacional, do qual no se pode deixar de pensar com afeto e saudade. Alguns desses
encontros merecem aqui ser lembrados, para que, logo, sejam guardados nestas linhas
de gratido.
O primeiro deles e, certamente, o mais importante de todos, por ter permitido
quase todos os outros foi aquele com a orientadora desta tese, que com a maior das
generosidades e a dureza necessria para gerar o crescimento acadmico que os seus
alunos merecem, me acolheu em seu laboratrio e na antropologia e acreditou nesta
pesquisa. Lygia Segala, a voc eu devo cada palavra escrita nas pginas que se seguem.
No Brasil, muitos foram os encontros que me levaram a acreditar que o
pensamento antropolgico uma via necessria e profcua para se pensar os museus.
Particularmente, no Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFF, agradeo
aos professores doutores Marcos Otvio Bezerra, Simoni Lahud Guedes, Tania Stolze
Lima, Delma Pessanha Neves, Eliane Cantarino O'Dwyer e Paulo Gabriel Hilu Pinto.
Igualmente essenciais para a minha trajetria foram os colegas de curso e amigos Mary
Congolino, Rebecca Guidi, Daniel Martinez, Janaina Simes e Shirley Torquato.
Certamente, contar com o apoio de instituies de fomento pesquisa ao longo
do perodo do curso tanto no Brasil quanto na Frana, atravs de uma bolsa de estgio
doutoral no exterior da CAPES (PDSE) e uma bolsa FAPERJ Nota 10 foi essencial
para a concretizao deste trabalho e para minha formao acadmica.
Na Frana, agradeo, em primeiro lugar, ao professor doutor Afrnio Garcia, por
sua orientao desta pesquisa na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, em
Paris, e aos professores Brigitte Derlon, Maurice Godelier, Pierre-Lonce Jordan,
Benot de LEstoile, Franois Mairesse e Anne-Marie Thiesse, pelos generosos
comentrios sobre o meu objeto de estudo e pelos encontros inspiradores nos seminrios
que cursei. Andr Delpuech e Anne-Christine Taylor por abrirem as portas de seus
escritrios no Muse du quai Branly para responderem s minhas perguntas incansveis.
Mathilde Bellaigue por uma tarde emocionante e inspiradora em que falamos sobre os
ecomuseus e a museologia francesa. Aos amigos que tornaram a minha vida, em Paris,
ainda mais encantadora, Camila Bessa, Anthony Laurent e Mani Tebet.
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Andr Desvalles, companheiro do Comit Internacional de Museologia do
ICOM (ICOFOM) desde 2006, mas que se tornou o principal informante desta pesquisa,
e a quem eu devo a minha lucidez nos momentos mais difceis.
No mundo dos museus e da museologia, agradeo pelo companheirismo e
incentivo dos colegas e amigos que acreditaram no sucesso deste doutorado desde o
primeiro instante. Vino Sofka e Suzanne Nash, meus avs do ICOFOM, e minha
inspirao na museologia, que me acolheram no seio deste comit e acreditaram no meu
pensamento sobre os museus; Tereza Scheiner, que me incentivou a percorrer os
caminhos do pensamento antropolgico; Ann Davis, Lynn Maranda e Jennifer Harris,
com as quais trabalhei nos ltimos trs anos escrevendo uma museologia no sculo
XXI. Aos amigos muselogos Emerson Castilho, Henrique Cruz, Monique Magaldi e
Luciana Menezes que torceram pela concretizao desta tese. Agradeo, ainda, a
Fernando Bassi, pela cuidadosa reviso do texto finalizado.
Bruno Assis, por estar ao meu lado nos momentos em que mais precisei.
minha famlia e meus amigos mais prximos. Todos para sempre guardados na
memria e no corao.
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RESUMO: A tese tem o objetivo de investigar os processos de musealizao na
Frana, entre os museus dos Outros e os museus de Si, como classificados por
especialistas da antropologia, refletindo sobre as especificidades e a historicidade dessas
categorias a partir do estudo de museus etnogrficos tradicionais e ecomuseus. A
pesquisa tem como objeto social de anlise os enunciados das instituies e a
construo de performances culturais nas diferentes matrizes de museus colocadas em
perspectiva pela teoria antropolgica. Atravs de uma anlise etnogrfica e histrica
procura-se entender os processos de musealizao atualmente no Muse du quai Branly,
considerando a vida museal dos objetos transformados em obras de arte e os seus sentidos para os atores desse museu. Na anlise do desenvolvimento dos ecomuseus na
Frana, buscou-se, com o estudo do Ecomuseu da comunidade urbana do Creusot
Montceau-les-Mines, esboar uma reflexo sobre a musealizao dos contextos atravs
da valorizao do patrimnio ntimo, ressignificado pelo grupo social local. luz dos casos selecionados, interessa analisar os movimentos identitrios da representao do
Outro e a de si nos museus. este permanente construir-se e ver-se atravs do Outro,
que caracteriza a relao etnogrfica que queremos entender para elucidar os processos
pelos quais os museus escolhem o que guardar para transmitir.
Palavras-chave: Museu. Museu etnogrfico. Ecomuseu. Processos de musealizao.
ABSTRACT: This thesis investigates processes of musealization in France,
considering the museums of the Other and the museums of the Self as defined by specialists in anthropology analyzing these categories in their specificities and historicity. This analysis is based on the study of traditional ethnographic museums and
ecomuseums. The research aims to investigate the institutional discourses and the
production of cultural performances in the different types of museums that are put into
perspective by the anthropological theory. With the ethnographic and historical analysis
of the Muse du quai Branly we seek to understand the processes of musealization in
this institution, considering the museological life of the objects that become works of art, and the meanings they have to the museum professionals. In the study of the development of ecomuseums in France, and the investigation of the Ecomuseum of the
Creusot Montceau-les-Mines urban community, we draw a reflection on the
musealization of social contexts implicating in the preservation of an intimate heritage resignified to the local group. In the light of the selected case studies, we intend to
investigate the identitary movements such as the representation of the Other and the
representation of the Self in museums. This permanent construction of the Self through
the Other encompasses the ethnographic relation we intend to comprehend in order to
elucidate the processes by which museums select what they are going to keep and transmit.
Keywords: Museum. Ethnographic museum. Ecomuseum. Processes of musealization.
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Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao
SUMRIO:
Introduo: sobre as coisas que se do p.1
PARTE 1:
O Muse du quai Branly: uma abordagem histrica e
antropolgica
p.33
Captulo 1 Olhar os Outros: a relao etnogrfica nos museus p.34
1. A inveno dos museus dos Outros
p.44
1.1 A viagem do olhar: a misso Dakar-Djibouti e o teatro das
diferenas
p.50
1.2 A etnologia nos museus: a reinveno de uma cincia
francesa
p.57
1.3 O novo museu de etnografia p.63
2. Olhar os outros: a configurao do objeto etnogrfico
p.74
2.1 Entre o visvel e o sensvel: as representaes do imaginrio
e do simblico
p.79
2.2 Objeto etnogrfico e olhar coletivo p.83
2.3 A criao do patrimnio etnogrfico p.88
Captulo 2 Das culturas palpveis s artes primeiras: crena, magia e musealizao
p.94
1. Tornando as culturas palpveis: o objeto autntico, das mos do musegrafo aos olhos do observador
p.100
1.1 O Muse dEthnographie du Trocadro: do tipo mdio e do etnogrfico
p.106
1.2 O Muse de lHomme: das culturas palpveis e da prova cientfica
p.115
1.2.1 A etnologia no museu e a construo de
conhecimentos coloniais
p.118
1.2.2 Da arte ao documento, do documento arte: a
museologia do Muse de lHomme
p.121
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xi
2. A adorao das artes primeiras: a magia da musealizao
p.130
2.1 O Muse du quai Branly: do belo e do representativo p.137
2.1.1 A museologia das chefs-duvre p.144 2.1.2 Materializando a Amrica: etnografia de uma coleo p.156
2.1.2.1 As aquisies p.158
2.1.2.2 A exposio p.171
2.2 A arte como linguagem p.181
2.3 A arte como experincia p.185
3. Magia e musealizao: a performance do museu como ato
mgico
p.188
Captulo 3 O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as
apropriaes culturais nas artes primeiras
p.195
1. O gosto autoritrio
p.200
1.1 Autor e autoridade p.211
1.2 Um mercado de arte para as artes primeiras p.221 1.3 O efeito da arte: os museus como uma maneira de ver p.231
2. A autoridade dos Outros
p.240
2.1 O direito sobre a cultura no museu de arte p.245
2.2 Primeiras e contemporneas: a inveno da autoridade dos
Outros
p.249
2.2.1 Arte contempornea no museu das artes primeiras p.253
2.2.2 A antropologia visual do quai Branly: imagens da
descolonizao
p.265
2.3 Apropriaes e desapropriaes: a cultura em negociao p.273
3. O museu como apropriao cultural
p.279
PARTE 2: A descolonizao da musealizao p.286
Captulo 4 Da fumaa do passado novidade do museu: a musealizao dos
patrimnios ntimos
p.287
1. Bricolagem do passado: quadros, construtos e composies da
memria
p.294
2. O comuse du Creusot Montceau-les-Mines: da arte local e
da sociedade
p.300
2.1 A inveno de uma nova museologia e o Ecomuseu como paradigma
p.309
2.2 Por uma nova musealizao: o ecomuseu re-encenando os
pequenos patrimnios
p.322
2.2.1 A trajetria de um patrimnio: da indstria vitrine do museu
p.330
2.2.2 A arte comunitria: o museu da arte de viver p.342
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xii
2.3 A comunidade como performance: o museu entre realidade e
representao
p.352
2.3.1 Entre o ser e o no ser: a indeterminao na performance
p.354
2.3.2 Ao regenerativa, ou como opera a performance
museal
p.357
2.3.3 Em direo a uma museologia relativa: a plateia como
experincia
p.363
Captulo 5 Ouvir os Outros: a automusealizao, entre o teatro e a
sacralidade
p.367
1. Encenaes da sacralidade nos ecomuseus p.375
1.1 O mito dos ecomuseus: entre a mmica e a realidade p.382
1.2 O culto comunidade p.390
2. Automusealizao: uma via voz dos Outros
p.394
2.1 Automusealizao no Muse du quai Branly p.396
2.2 Objeto sagrado, objeto de museu p.407
3. A regenerao simblica p.412
Consideraes: sobre as coisas que se guardam p.417
Referncias p.433
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SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS:
CAC - Centre dAction Culturelle (Centro de Ao Cultural ligado ao LARC)
CNRS - Centre national de la recherche scientifique (Centro nacional de pesquisa cientfica)
CRACAP - Centre national de Recherche dAnimation et de Cration pour les Arts Plastiques (Centro nacional de Pesquisa de Animao e de Criao para as Artes Plsticas)
CUCM - Communaut urbaine Creusot-Montceau-Les-Mines (Comunidade Urbana Creusot-
Montceau-Les-Mines)
EHESS - cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Escola de Estudos Avanados em
Cincias Sociais)
ICOM - International Council of Museums (Conselho Internacional de Museus)
ICOFOM - International Committee for Museology, ICOM (Comit Internacional de
Museologia do Conselho Internacional de Museus)
IFROA - Institut franais de restauration des oeuvres dart (Instituto francs de restaurao de obras de arte)
INHA - Institut national dhistoire de lart (Instituto nacional de histria da arte)
Inp - Institut national du patrimoine (Instituto nacional do patrimnio)
LARC - Centre de Loisirs, Arts, Rencontres et Culture (Centro de Lazeres, Artes, Encontros e
Cultura)
LAS - Laboratoire dAnthropologie sociale, EHESS (Laboratrio de antropologia social da EHESS)
MINOM - Mouvement International pour une Nouvelle Mousologie (Movimento Internacional
por uma Nova Museologia)
MNAAO - Muse National des Arts dAfrique et dOcanie (Museu Nacional de Artes da frica e da Oceania)
MNATP - Muse National des Arts et Traditions Populaires (Museu Nacional de Artes e
Tradies Populares)
MNES - Musologie nouvelle et exprimentation sociale (Museologia nova e experimentao
social)
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura)
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Introduo: sobre as coisas que se do
Is it impossible for you to let something go and let it go
whole?1 (Sylvia Plath A birthday present)
O que h de to distinto entre o que est bem perto e o que est muito longe? Ao
atravessar a rua no quai Branly me deparo com um convite para sair de Paris por alguns
instantes. Ainda distncia j possvel sentir a fora de um chamado emitida pela
fachada do museu que se v logo adiante. H mistrio e drama antes mesmo de se
alcanar a sua entrada. O mergulho no desconhecido se anuncia na fachada translcida
que s permite ver o exotismo do jardim. Este ltimo proclama a ruptura com a
racionalidade e a esttica clssica, ao instaurar um cenrio de assimetria e desordem. A
vegetao de espcies consideradas exticas por qualquer jardineiro local invade a
paisagem arquitetnica e interage com a fachada do museu. Diante da estrutura do
prdio, observo a arquitetura composta por formas desproporcionais e imponderveis,
que chamam a ateno para o fato de que a Paris clssica e simtrica ficou para trs.
Pouco a pouco vou me sentindo pequeno diante da grandeza inquieta que se esconde por
detrs das formas imprevistas e das distncias que construmos mentalmente antes
mesmo de embarcar naquela viagem. Graas encenao do exotismo, que tem incio
nas margens do Sena, uma plateia de curiosos levada a imergir no mistrio do museu,
criado pelas sombras e pelo jogo de mostrar e esconder. Somos convidados a abandonar
provisoriamente a claridade do que j se conhece na cidade luz.
No se pode negar que h ali, ao alcance de todos os franceses, um pouco do
sentido das antigas expedies coloniais a terras distantes, das quais se tem
conhecimento apenas por intermdio da imaginao etnogrfica. O que se pretende
encenar museograficamente algo j conhecido pelo pblico, mas a performance
outra. A re-produo de uma esttica do diverso2, como entendida por Victor Segalen
ao se referir ao exotismo, se faz pela teatralizao do espao em que sero expostas as
colees etnogrficas do passado colonial francs. Este espao est marcado pela sua
inteno de elevar o visitante a uma experincia sensorial e espiritual, que se
confirmaria no interior das paredes do museu.
1 impossvel voc deixar alguma coisa ir, e ir por completo? (traduo nossa).
2 SEGALEN, Victor. Essai sur lexotisme. Paris: Fata Morgana, 1986.
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Introduo 2
Foi em fevereiro de 2007, pouco mais de seis meses aps a sua inaugurao, que
visitei pela primeira vez o Muse du quai Branly3, em Paris. Naquele momento os
museus etnogrficos no faziam parte de meu objeto de estudo, e eu ainda me preparava
para estudar os terreiros de candombl na Bahia para o trabalho de campo que realizaria
naquele mesmo ano, no mbito do mestrado em museologia, e que j me conduziria a
percorrer os caminhos pouco explorados entre a crena e a musealizao.
No decorrer daquela visita ao museu europeu, o pblico presente era composto
quase que essencialmente por franceses curiosos, e poucos eram os turistas estrangeiros
que tinham conhecimento da existncia recente daquele estabelecimento. Tudo isso me
surpreendia primeira vista, j que aquele museu estava localizado bem ao lado do
maior ponto turstico da cidade, e possivelmente do mundo.
Ao atravessar a porta de entrada, fui me permitindo, gradativamente, ser
seduzido pela arquitetura dos corredores e rampas sinuosos desenhados para envolver o
corpo e o esprito, e pela museografia que deixava nas penumbras o espao a ser
preenchido pela imaginao compondo parte daquela experincia. Os olhares curiosos
dos outros visitantes revelavam o delicioso sabor do suspense e da descoberta,
elementos ligados no apenas aos museus, mas tambm s viagens.
A exposio onde se veem os objetos da coleo permanente do museu prope
um mergulho no extico, e no sentido do exotismo que temos em cada um de ns. H
uma certa sensao de sufocamento neste mergulho. O museu no retrata o Outro como
um s, mas revela uma multiplicidade de outros, apresentados por uma museografia
comum a todas as diferenas, para que o visitante possa sentir a sua prpria concepo
da alteridade. O critrio que primeiro se faz evidente o do estranhamento, pois o
desconhecer as peas expostas que possibilita, naquele contexto, que elas sejam
reconhecidas como arte. Est colocado em voga aquilo que o observador europeu culto
codifica como diferena em seus prprios termos e sensaes. Mas o que aquele contato
com as mais variadas faces do Outro estava sugerindo em ltima instncia?
Ao colocar em cena a experincia com a alteridade, o museu convida os seus
usurios a se permitirem sentir o diverso atravs de uma experincia individual e
interior, mediada pela performance das artes primeiras. Coloca-se em prtica um
projeto de encantamento que envolve os objetos expostos, a museografia em que
3 Museu do quai Branly. Ao longo da presente tese foram mantidos os nomes originais dos museus
citados seguidos da traduo nossa em nota de rodap. O mesmo foi considerado para as instituies
emblemticas ligadas a eles, com a exceo de universidades, ministrios e departamentos cujas tradues
foram usadas diretamente no texto.
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Introduo 3
esto inseridos, e, se bem sucedido tal projeto, tambm o pblico. O Muse du quai
Branly busca alcanar tal efeito de encantamento, fazendo da arte a fuso do tangvel
e do intangvel4. Termos como encantamento ou encantao, consagrao e
culto, so frequentemente usados pelos atores do museu, como parte de um
vocabulrio que serve para legitimar a sacralidade museal, encenada como uma
sacralidade no religiosa. Deste modo, o museu rompe sensivelmente com a separao
instaurada entre o belo e o sagrado, entre a experincia sagrada e a experincia esttica.
Aps caminhar por grande parte da exposio de objetos de arte das culturas no
europeias, deparando-me com peas produzidas pelos mais variados povos da Oceania,
sia e frica, e sem encontrar, at ento, nenhum ponto fixo, nenhum rosto familiar
na minha rpida viagem a universos distantes, fui buscar, instintivamente, um pouco de
ar na seo onde se encontravam os objetos dos povos da Amrica.
Ao atravessar os vastos territrios da exposio, me deparei, finalmente, com
uma vitrine que continha mscaras indgenas de povos da Amrica do Sul. Uma delas
era uma mscara Wauj, do Mato Grosso, feita de fibras de palmeira e madeira. Outras
mscaras de povos da Amaznia colombiana tambm se viam a alguns poucos metros
de distncia, bem como adereos e pequenas esculturas usados em rituais de diferentes
religies de influncia africana no Brasil, estas indissociveis na exposio. Logo
adiante, um pequeno aparelho audiovisual transmitia ininterruptamente cenas de um
ritual de candombl fotografadas por Pierre Verger, sem que nenhum dos objetos
materiais ali presentes representasse este ritual. Aqueles eram fragmentos que eu
reconhecia, mas talvez melhor teria sido se eu no os houvesse reconhecido.
Aquela exposio no tratava daquilo que eu ou os outros visitantes pudssemos
(re)conhecer ou identificar como familiar. Porque o que estava sendo proposto era que
eu descobrisse em mim mesmo o que considerava o Outro. Para apresentar esse desafio
antropolgico, o quai Branly encena um fluxo de objetos de origens longnquas no
espao e no tempo que fazem com que o indivduo, ao percorrer os caminhos da
exposio, sinta-se flutuando virtualmente em meio a um mar de ausncias marcadas
no apenas pelos artefatos deslocados, mas pelo jogo teatral de luz e sombras.
Atuando como um servio social idiossincrtico que fornece uma experincia
particular, os museus no so meramente espaos para a contemplao de alguma coisa
exterior ao sujeito da observao. O encontro que os museus provocam apresenta e
4 VIATTE, Germain. Tu fais peur tu merveilles. Muse du quai Branly. Acquisitions 1998/2005. Paris:
Muse du quai Branly / Runion des Muses Nationaux, 2006. p.39.
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Introduo 4
representa uma situao de confronto entre sujeito e objeto, em que ambas as partes
influenciam e, potencialmente, mudam uma a outra. A experincia museolgica, que
envolve o encontro das duas partes no cenrio do museu, a troca mesma entre aquilo
que v o observador e aquilo que o objeto observado permite que ele veja. Essa troca de
subjetividades implica em uma performance do objeto e do sujeito, na qual o
sujeito/observador capaz de se perceber duplamente como si mesmo e como um outro,
projetado no objeto musealizado. Dessa forma, museus funcionam como a experincia
de ns mesmos diante daquilo que, estando muito perto ou muito longe de ns, somos
levados a crer que de algum modo nos pertence, objetiva ou subjetivamente.
Aquela visita ao quai Branly me suscitou perguntas, que, alguns anos depois me
levariam a escrever esta tese. Em meio ao mistrio desenhado pela mise en scne dos
objetos dos Outros, aquilo que mais me despertava interesse era descobrir como e por
que o culto do extico nos museus continuava a atrair a ateno do mundo ocidental. E,
para decifrar a musealizao das imagens do diverso, fui levado a questionar,
primeiramente, como aqueles objetos to distantes, haviam chegado at to perto.
Qual teria sido a vida museal precedente daqueles fragmentos guardados, seus fluxos,
seus percursos? Como se construram os enunciados das instituies responsveis por
guard-los como patrimnio de uma coletividade?
O objetivo geral desta pesquisa o de investigar os processos de musealizao
na Frana, entre os museus dos Outros e os museus de Si5, como so classificados pelos
especialistas da antropologia, refletindo sobre a historicidade e as especificidades dessas
categorias. A escolha do contexto francs se justifica pelo lugar de referencia que essas
instituies museais ocupam no cenrio internacional e especialmente no Brasil,
conformando e transferindo modelos tericos, gerenciais e expositivos, certificando
modos de enunciao e de ao pedaggica. Ao longo da pesquisa, ao tentarmos
problematizar enunciados reconhecidos por essas instituies e a construo de
performances culturais nas diferentes matrizes de museus colocadas aqui em perspectiva
pela teoria antropolgica, tomamos por base alm da observao direta, documentos
textuais e entrevistas realizadas com diferentes profissionais que ocupam posio de
relevo na definio desses projetos. Dialogamos principalmente com os conservadores,
colecionadores, galeristas, historiadores da arte ou crticos, pesquisadores e
documentalistas. No foi o caso aqui buscar compreender esses atores nas suas posies
5 LESTOILE, Benot de. Le got des Autres. De lexposition coloniale aux arts premiers. Paris:
Flammarion, 2007, passim.
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Introduo 5
especficas no campo da arte ou do patrimnio, mas relacion-los em funo de
questes particulares sobre processos de musealizao nos museus etnogrficos
escolhidos. No foco desse trabalho a anlise de pblico ou de recepo das
exposies indicadas mas antes perceber como esses pblicos so pr-visualizados/
imaginados e qualificados nos diferentes projetos apresentados por estas instituies.
Nos casos selecionados, interessa analisar como se d nos museus a
representao do Outro e a de si movimentos estes sempre identitrios por excelncia.
este permanente construir-se e ver-se atravs do Outro, que caracteriza a relao
etnogrfica como relao idealizada que queremos entender para elucidar os
processos pelos quais os museus escolhem guardar para transmitir6 certos enunciados
e certos objetos como peas de convico.
Para entender, em uma microanlise, os processos de musealizao, me dedico a
estudar dois movimentos chaves no desenvolvimento dos museus, ligados a dois tipos
de performances complementares, ainda que distintas, sendo elas, a que se refere a uma
gramtica colonial (captulos 1, 2 e 3), isto , colocada em prtica por um museu que
tem como centro colees de objetos ligados, direta ou indiretamente, ao imprio
colonial francs; e, em seguida, a que diz respeito gramtica da descolonizao dos
museus (captulos 4 e 5), estando esta ligada s tentativas do final do sculo XX de se
libertar a museologia de relaes de dominao. No primeiro caso nos voltaremos para
o modelo tradicional de museu etnogrfico que se desenvolveu no contexto francs,
apresentando variaes que so hoje discutidas em grande parte tendo como ponto focal
a criao, em 2006, do Muse du quai Branly. A segunda parte desta tese ser dedicada
ao estudo de uma outra lgica de musealizao instaurada pelo modelo ps-colonial dos
ecomuseus, tendo como referncia a primeira experincia realizada no ecomuseu da
comunidade urbana do Creusot Montceau-les-Mines, prefigurado a partir de 1972, que
depois se espalharia pelo mundo adquirindo uma fora particular e uma lgica prpria
nos pases colonizados.
O que a minha primeira visita ao quai Branly me revelou foi que o objeto que
simula estar longe estando perto, ou aquele que finge estar bem perto quando est
distante, so igualmente responsveis por gerar crenas e identidades. O prximo e o
distante so grandezas abstratas que marcam a relao entre as pessoas e as coisas. A
distncia cria sombras e relevos indefinidos capazes de instaurar ausncias materiais e
6 GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie.
Paris: Biblioteque Albin Michel. Ides, 2007.
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Introduo 6
espirituais que evocam na mente a criao de universos imaginados. Assim como um
templo cria a distncia entre o deus e o fiel, os museus encenam as distncias entre as
pessoas e as coisas, agregando valor aos seus objetos e produzindo a crena em sua
autenticidade.
As coisas dadas e as coisas vendidas
No comeo havia a ddiva. Ainda que esta no tenha sido a fundadora das
sociedades como pensara Marcel Mauss , possvel que ela tenha sido responsvel
pela origem dos museus. Sendo assim, uma breve reviso da teoria antropolgica sobre
a ddiva, considerando os autores que julgamos pertinentes para a presente anlise, se
faz necessria ao tomarmos os museus por objeto social de estudo. Na concepo que
temos deles hoje, os museus constituem um produto histrico das mltiplas relaes
entre as pessoas e as coisas. um engano consider-los como templos fechados
constitudos sob a gide da estabilidade de suas colees e de suas aes7. Com efeito,
apenas atravs de trocas que um museu pode existir. Como um produto dinmico do
social, um museu se faz a partir de suas prprias escolhas entre aquilo que ir ser
guardado para transmitir, e o que se ir dar, ou alienar. Os critrios para as suas escolhas
so tambm resultantes das trocas de valores entre os museus e seus usurios, ou entre
os profissionais do patrimnio e a sociedade. Assim, a troca de objetos, valores, e
vises de mundo sempre foi uma realidade para os museus.
Trocas podem ser percebidas, em uma primeira instncia, como sendo sempre
processos polticos atravs dos quais relaes mais amplas se expressam e so
negociadas no encontro entre as partes envolvidas8. O momento de uma transao,
como aponta Nicholas Thomas, quando emerge a avaliao das entidades, pessoas,
grupos e relaes. As coisas que recebemos, em geral, nunca esto completamente
alienadas do espao ou da pessoa de que provm. De forma anloga, as coisas que damos
incorporam parte de nosso contexto pessoal ou do contexto da ddiva em si mesmo.
relevante, pois, de modo que se alcance a compreenso de como as coisas tendem a
7 Como j demonstramos anteriormente, os museus, da modernidade aos tempos contemporneos, vm
atravessando um processo de transformaes sociais, voltando-se, gradativamente, s experincias dos
indivduos e dos grupos das sociedades que representam, abrindo cada vez mais as suas portas para as
vises e experincias dessas sociedades. BRULON SOARES, B. C. Quando o Museu abre portas e
janelas. O reencontro com o humano no Museu contemporneo. 2008. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Museologia e Patrimnio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2008. 8 THOMAS, Nicholas. Entangled objects. Exchange, material culture, and colonialism in the Pacific.
Cambridge, Massachusetts / London, England: Harvard University Press, 1991. p.7.
-
Introduo 7
estar conectadas s pessoas algo que a sociedade ocidental do presente tenta omitir
retomar o conhecido estudo de Marcel Mauss, intitulado de Essai sur le don9.
Uma ddiva, para Mauss, no apenas uma coisa, mas tambm um ato que
estabelece uma relao dupla entre a pessoa que d e a pessoa que recebe. De acordo
com uma teoria geral das obrigaes, a ddiva tem uma fora que faz o donatrio
retribuir10. O que o autor observa nas sociedades arcaicas, em que a retribuio uma
obrigao, que a coisa dada tem uma alma, que cria um lao necessrio com o seu
dono original. Dar compartilhar algo que se tem, e algo que se . Como explica
Maurice Godelier, um presente forado no um presente11
. O presente voluntrio
aproxima o doador ao donatrio; da mesma forma, portanto, o presente cria, na pessoa
que o aceita, a obrigao de retribuir. Ele, assim, estabelece uma dissimetria, uma
hierarquia entre ambas as partes. E, neste sentido, a troca de presentes ou qualquer
tipo de troca uma manifestao de poder.
Nos contextos especficos analisados por Mauss, em que ddivas e significados
so intercambiados gerando diferentes tipos de laos entre as pessoas, as coisas vo e
vm como se uma matria espiritual que inclui coisas e pessoas estivesse sendo, ela
mesma, trocada entre cls e indivduos. por essa razo que o autor apresenta o mundo
dito arcaico como um mundo de sntese. Mas h complexidade na sntese primitiva
para Mauss. O contrato estabelecido pela ddiva exerce o papel de preservar a
individualidade das partes, entretanto, sob a tica das trs obrigaes, do dar, do receber
e do retribuir, as partes deixam de existir individualmente e podem ser, ento, abordadas
como um todo integrado.
Pode-se dizer que a cadeia museolgica12
, na qual os objetos entram ao serem
elevados ao estatuto de objetos museolgicos ou museais, est inserida nesta cadeia
de prestaes totais descrita por Mauss. Uma das hipteses desta pesquisa a de que ela
no representa a morte do objeto para a sua vida social, mas apenas um outro estgio de
sua vida. Pensando os museus como ndulos de poder13
construdos por uma
9 Ensaio sobre a ddiva.
10 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. p.185-314. In:
______. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2005. p.188. 11
GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Biblioteque Albin Michel. Ides, 2007. p.70. 12
Podemos considerar que a cadeia museolgica tem incio no campo, onde os objetos so coletados,
abarcando todos os processos que se seguem de identificao, classificao, higienizao,
acondicionamento, seleo, exposio, e at a sua extenso sobre os pblicos, os colecionadores privados,
o mercado de objetos, e os diversos outros agentes indiretamente ligados a ela. 13
POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:
d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.188.
-
Introduo 8
historicidade prpria, Pomian lembra que na origem dos primeiros museus havia sempre
uma ddiva (ou doao) realizada por uma pessoa a seu Estado, sua cidade, sua
universidade. Estes primeiros modelos so, depois, abertos ao pblico pelas autoridades
e, ento, transformados em museus, fazendo com que os tesouros e as colees secretas
passassem a funcionar como instituies de poder e de saber14
. Desde ento, todos os
percursos feitos por diferentes objetos, partindo de diversos pontos e atravessando
sistemas de trocas de naturezas variadas, podiam convergir, no fim das contas, cadeia
museolgica, cujo entendimento necessita de um exerccio antropolgico mais denso.
Nas sociedades industrializadas somos constantemente confrontados com a ideia
de um mundo de commodities que vende a noo de uma circulao livre e global de
bens. A tendncia de se opor a troca de ddivas troca de commodities no discurso
antropolgico hoje um ponto de discusso. Arjun Appadurai, ao analisar a circulao
de commodities15
na vida social, defende a concepo profcua de que por meio das
trocas que estes objetos adquirem valor. O valor , assim, incorporado s commodities
que passam pela troca. Enfocando as coisas que so trocadas, mais do que simplesmente
as formas e funes das trocas, Appadurai argumenta que o que cria o lao entre a troca
e a atribuio de valor a poltica, o que justifica, segundo ele, a ideia defendida de que
commodities, como as pessoas, possuem vidas sociais. E se o valor adquirido pelas
commodities que so trocadas o que significa, em outras palavras, que a troca cria
valores , alguns paralelos, ento, podem ser traados entre a commodity e a ddiva.
Enquanto as consideraes de Marx sobre as commodities em O Capital ainda
estavam limitadas a aspectos particulares da episteme de meados do sculo XIX,
segundo a qual a economia era percebida apenas em referncia problemtica da
produo, para Appadurai, se deslocamos o enfoque para as dinmicas da troca, em vez
da produo, do produto e do produtor, possvel enxergar a commodity no
simplesmente como um tipo de coisa, mas como uma coisa em uma dada situao16
.
Segundo o autor, isso significa ver o potencial de commodity existente em todas as
14
POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:
d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.187. 15
O autor define as commodities como objetos de valor econmico. Como bens destinados troca, as commodities so, na definio de Appadurai, coisas com um tipo particular de potencial social.
Commodities podem ser vistas como representaes materiais tpicas do modo de produo capitalista,
mesmo quando so classificadas como simples e seu contexto capitalista como incipiente. Mas a prpria
concepo marxista de commodity , em si, imprecisa. Nesta viso, commodities esto invariavelmente
relacionadas ao dinheiro, como mercado impessoal, ao valor de troca. APPADURAI, Arjun. Introduction:
commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.) The social life of things. Commodities
in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p.3. 16
Ibidem, p.13.
-
Introduo 9
coisas, mais do que buscar uma distino mgica entre commodities e outras espcies de
coisas.
A oposio geralmente feita entre a ddiva e a commodity se baseia no fato de
que enquanto a ddiva estabelece um lao entre as pessoas e as coisas e incorpora o
fluxo das coisas ao fluxo das relaes sociais, a commodity representa a troca livre
moral e culturalmente de bens por outros bens, troca que mediada pelo dinheiro e
no pela socialidade17
. O contraste entre uma teoria da reciprocidade e o mercado de
trocas legtimo; ele est presente no apenas no discurso antropolgico como em
alguns nveis de nossa realidade social, sendo um deles o museu. Entre a ddiva e a
commodity, os museus, atravs dos anos de sua existncia, foram levados a lidar com as
mltiplas variaes de estados que uma coisa pode incorporar.
A pesquisa desenvolvida parte do princpio metodolgico segundo o qual todo
objeto social examinado um objeto em processo. A partir da delimitao da unidade
social de anlise da tese, sendo ela o contexto museal francs e, sobretudo, as
aproximaes entre os museus etnogrficos tradicionais e os ditos museus comunitrios
ou ecomuseus, foi possvel estudar, de forma sincrnica, o campo de trocas realizadas
entre as instituies e entre elas e a sociedade (o seu pblico), e, de forma diacrnica, a
transformao destes museus ao longo do tempo e o impacto dessa transformao nos
processos de musealizao postos em prtica. O que nos interessa, ento, uma
gramtica das coisas guardadas pelos museus, e a constituio, no contexto particular de
alguns museus franceses, desta cadeia museolgica.
As coisas guardadas e por que as guardamos: distncia, performance e teatralizao
No h dvida de que os museus etnogrficos, bem como os ecomuseus, tornam
explcito o fato de toda a seleo de conhecimento e a apresentao de imagens e ideias
constituir um dado tipo de performance que, segundo a teoria desenvolvida por Victor
Turner18
, pode ser entendida como um instrumento de autoconhecimento e autocrtica,
que se d no interior de um sistema de poder especfico. A fonte desse poder, como
17
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.)
The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press,
2007. p.11. 18
Ver, principalmente, TURNER, Victor. The anthropology of performance. New York: PAJ
Publications, 1988.
-
Introduo 10
atesta Ivan Karp19
, est na capacidade de instituies culturais de classificar e definir
pessoas e sociedades. Este , portanto, o poder de representar ou de realizar uma
determinada performance cultural e social , ou seja, de reproduzir estruturas de crena
e de experincia atravs das quais as diferenas culturais so compreendidas20
.
Ao encenar o valor das coisas, em vez de apresentar as coisas em si, os museus
ajudam a demonstrar que os valores so construdos socialmente pelas interaes
sociais e culturais e pelo prprio processo de musealizao e que eles mesmos, os
museus, incorporam valor aos objetos que coletam e expem. Como explica Appadurai,
nas trocas, os objetos no so difceis de adquirir por serem valiosos, mas so valiosos
na medida em que resistem ao nosso desejo de possu-los21
. No caso das commodities, a
distncia criada artificialmente pelo valor de mercado pode ser suprimida atravs da
troca econmica, na qual o valor do objeto determinado reciprocamente. Deste modo,
o desejo por um objeto satisfeito pelo sacrifcio de um outro objeto, que , por sua
vez, o foco de desejo de outrem22
. Segundo Appadurai, desta troca de sacrifcios que
trata a vida econmica e, logo, a economia, como uma forma social particular, consiste
no apenas em trocar valores, mas na troca de valores23. Neste sentido a
movimentao das coisas, pelos diversos regimes de valor no tempo e no espao, que
pode fornecer pistas sobre o seu contexto social e humano.
Portanto, precisamos seguir as coisas mesmas, j que seus significados variveis
esto inscritos em suas formas, em seus usos e percursos. No caso do quai Branly, ao
gerar distncias, e construir fronteiras, entre as pessoas e os objetos, o museu produz
autenticidade ou o sentido de autenticidade por meio de uma criao artificial da
distncia que, s vezes, inexiste. Traando linhas e limites imaginrios ou reais entre
o observador e a coisa exposta, o museu posiciona o objeto musealizado fora do
alcance das pessoas comuns, trancados em vitrines, e, por vezes, distanciados
propositalmente do olhar do observador. Com o discurso da inalienabilidade24
, os
19
KARP, Ivan. Museums and communities: the politics of public culture. In: LAVINE, S.; KARP, I.;
KREAMER, C. M. (ed.). Museums and communities: the politics of public culture. Washington /
London: Smithsonian Institution press, 1992. p.1. 20
KARP, loc. cit. 21
SIMMEL (1978, p.67 apud APPADURAI, 2007, p.3). 22
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p.3-63. In: _______. (ed.)
The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press,
2007. p.3. 23
SIMMEL (1978, p.80 apud APPADURAI, 2007, p.4). Grifos de APPADURAI. 24
Nos museus, a afirmao da perenidade do patrimnio musealizado acompanhada de um direito
irrevogvel sobre as coisas que so guardadas para transmitir e que no devem, em tese, ser alienadas. Esta noo da inalienabilidade, muito presente ainda nos museus europeus, vem sendo questionada,
-
Introduo 11
museus fazem da coisa musealizada objeto inalcanvel do desejo. No h sacrifcio
capaz de torn-lo trocvel, j que este j no existe mais como commodity. O paradoxo
est no fato de que se, por um lado, ao entrar no museu o objeto perde o seu valor de
uso, por outro, ainda que indiretamente, no perde de vista o seu valor de troca. Sempre
haver estimativas25
, na possibilidade de um dia o objeto retornar ao mundo profano, ao
ser alienado pela instituio que o detm em nome da sociedade, e assim voltando a
circular na esfera mercantil o que faz lembrar que aquilo que pertence a todos,
tambm no pertence a ningum. O valor, portanto, construdo tanto pela troca quanto
por sua impossibilidade.
O valor dos objetos est permanentemente atrelado ao estgio de vida em que
eles se encontram e s transaes de que j fizeram parte. So os homens e as
sociedades que estabelecem os seus destinos, e, consequentemente, determinam os seus
valores. Godelier, ao se propor a explorar as diferenas existentes entre as coisas que
vendemos, as que damos, e, enfim, aquelas que no devem ser vendidas ou dadas, mas
que so guardadas para que as possamos transmitir26
, constri um frutfero
entendimento da vida social a partir destes trs movimentos distintos. O mesmo objeto
pode, sucessivamente, ser comprado como uma mercadoria, circular como objeto de
uma ddiva ou contraddiva, e, ainda, estar inserido no tesouro de um cl como coisa
sagrada, e, neste caso, escapar, por um certo tempo, de toda a forma de circulao,
mercantil ou no mercantil27
. Na viso do autor, na medida em que as coisas atravessam
essas fases de existncia, elas adquirem valor, e exercem o poder de atuar sobre a vida
das pessoas.
Segundo esta teoria, as coisas que no se pode vender ou dar, mas que se deve
guardar, como, por exemplo, os objetos sagrados, estas se apresentam frequentemente
como ddivas, mas ddivas que os deuses ou espritos teriam realizado aos ancestrais
dos homens, e que seus descendentes, os homens atuais, deviam guardar
preciosamente28. Deste modo, estes objetos se apresentam e so vividos como
sobretudo por museus e profissionais da Amrica do Norte, e, em muitos casos, negada pelas prprias
instituies e seus pensadores no presente. 25
O valor econmico do objeto nunca se perde de vista, seja como uma cifra estabelecida pela seguradora
responsvel por ressarcir o museu do investimento na pea em caso de perdas, ou mesmo como um trao
do histrico do objeto que tambm servir para lhe agregar valor (ex.: por quanto foi comprada a pea no
ltimo leilo em que fora arrematada). 26
GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.67. 27
GODELIER, loc. cit. 28
Ibidem, p.82.
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Introduo 12
elementos essenciais das identidades dos grupos e dos indivduos que os receberam. Os
objetos sagrados, ou encenados como sagrados pelos museus, so fontes de poder da
ou sobre a sociedade, que, diferentemente dos objetos de valor so, primordialmente,
inalienveis e inalienados29
, ou, dito de outra forma, inalienveis porque inalienados.
Assim, o objeto sagrado um objeto material que representa o irrepresentvel,
que remete os humanos origem das coisas e testemunha a legitimidade da ordem
csmica e social que sucedeu aos tempos e aos acontecimentos das origens. De
maneira semelhante, as artes primeiras, que examinaremos mais a fundo ao longo desta
tese, so pensadas como primeiras na medida em que evocam uma continuidade com
a prpria essncia do humano, com a natureza, e com culturas remotas. Um objeto
sagrado no necessariamente belo Godelier cita o exemplo de um pedao da cruz
de Cristo. Ele mais do que belo, ele sublime. Com sua presena, ele organiza o
mundo para alm do visvel e da matria30
. Estes no so smbolos por aquilo que
dispem e exibem, ao contrrio, eles so vividos e pensados como a presena real das
potncias que se encontram na fonte mesma do poder neles investido. Os objetos
sagrados reportam a uma ausncia e a uma presena simultaneamente; trata-se da
ausncia e presena dos homens que os fabricaram31, eles reportam presena
daqueles que estavam na origem dos que os cultuam, e o poder desta continuidade que
lhes confere preciosidade.
Como no teatro, em que as mscaras instauram representaes que so,
simultaneamente, um personagem e um ator sem que um exclua a existncia do outro
, ou em um ritual em que os deuses e espritos descem para possuir os danarinos em
transe32
, nos museus o pblico confrontado com uma dupla presena: a do objeto
exposto e a de sua representao enquanto aquilo que ele no . Essa distncia entre
aquilo que o objeto , e aquilo que ele no (ou finge ser) no contexto dos museus,
onde se insere a performance museal. Ao incorporar os objetos a um tipo especfico de
teatralidade, tambm conhecida como musealidade, os museus criam uma espcie de
encenao, que funciona como uma continuidade imaginada, baseada no fato de que
sentimentos e emoes so mais importantes na produo de autenticidade do que a
29
GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.83. 30
Ibidem, p.85. 31
Ibidem, p.86. 32
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1985. p.4.
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Introduo 13
prpria materialidade das coisas. Nesta perspectiva, o autntico produzido atravs de
mtodos artificiais e ficcionais e, por isso, ele pode tambm ser recriado.
Em geral, os museus atuam como se no fizessem parte dos processos de
atribuio de valor s coisas. Eles interpretam o seu papel como se este fosse
meramente o de coletar e expor as coisas do real que j possuem valor, e tendem a
ignorar que a sua ao crucial para estabelecer quo precioso um objeto pode se
tornar. Na corrente contrria musealizao, a alienao de objetos pelos museus no
pode ser vista como mera degradao; esta uma maneira de interromper o ato da
performance e de dar aquilo que antes se mantinha guardado como patrimnio. A
alienao significa uma ruptura com os mltiplos laos que sustentam a musealizao,
sendo, de certa maneira, uma violao da integridade do objeto em seu estado anterior.
Este processo de transio dos objetos, do qual participam enfaticamente os museus, se
d para que o patrimnio, produzido sempre no caminho de mo dupla entre o dar e o
guardar, possa se manter como fluxo, como uma fora simblica, ininterrupta.
As coisas em circulao: dar, receber e transmitir
Na tentativa de se desnaturalizar a objetividade dos museus e das categorias e
classificaes por eles criadas, nesta pesquisa buscou-se compreender tal instituio
social em termos de sua autoridade isto , entendendo os museus como produtores de
enunciados, detentores de uma fala e de uma ao determinadas. Isto porque no se
pretende ver os museus da mesma forma em que corremos o risco de ver as culturas,
como entidades naturalizadas, mas, ao contrrio, como atos organizados33
, j que, como
evidenciou Jean Bazin, aquilo que observamos so apenas as situaes34
. Assim, no se
pretendeu definir o que so os museus etnogrficos, ou compar-los com aqueles
classificados como comunitrios ou ecomuseus. Um dos objetivos desta tese o de
tornar compreensveis os processos de musealizao nessas duas instncias e suas
implicaes sociais, produzindo uma reflexo etnogrfica sobre eles.
Neste sentido, podemos pensar os museus a partir dos deslocamentos que eles
realizam, mais do que do ponto de vista de uma teoria das coisas estticas. Com isso, os
paradigmas que sustentam as suas verdades e sua autoridade vm sendo, em muitos
33
BENSA, Alban. Lanthropologie autrement. p.5-17. In: BAZIN, Jean. Des clous dans la Joconde. Lanthropologie autrement. Toulouse : Anacharsis,2008. p.15. 34
BAZIN, Jean. Des clous dans la Joconde. Lanthropologie autrement. Toulouse : Anacharsis,2008, passim.
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Introduo 14
casos, relativizados de modo a permitir que este modelo de instituio se reconcilie com
as outras verdades e que incorpore novas realidades sociais ( o que veremos
particularmente no segundo caso investigado nesta tese). Os museus aqui estudados so
observados atravs do fluxo de experincias, conexes, conhecimentos, e de objetos
sociais por meio dos quais eles atuam, e o patrimnio que eles transmitem se encontra
em um constante processo de reatualizao de si mesmo.
Como j se estabeleceu nos estudos sobre a memria, lembrar s possvel
quando se pode esquecer (o que no significa necessariamente abandonar algo
completamente, mas coloc-lo em algum outro lugar). Com efeito, deslocar uma coisa
de um lugar a outro, alterando a sua vida social e consequentemente o seu alcance
no significa alien-la de um campo de interesses particular, mas talvez permitir que
certos valores deste campo atinjam novos planos sociais inexplorados, mobilidade esta
que inerente ao trabalho dos ecomuseus, explorados na segunda parte desta pesquisa.
Dito de outra forma, dar no significa necessariamente alienar, uma vez que s por
meio da ddiva que algo pode ser guardado seja ela a ddiva de um ancestral que nos
concedida (e neste caso a nfase est no ato de receber), ou aquela que fazemos
quando damos algo de ns mesmos (aqui a nfase est no ato de dar). Esta concepo
dupla da ddiva, aparentemente contraditria, a chave para se entender o sentido da
musealizao. Ddivas podem ser trocas entre pessoas diferentes vivendo em um
mesmo tempo, ou entre tempos diferentes quando acreditamos estar recebendo uma
ddiva de geraes precedentes, ou ainda, em um terceiro caso, trocas entre o mundo
dito real e o mundo imaginrio, quando se trata da ddiva dos deuses. Os trs casos nos
obrigam a lidar de maneira distinta com os objetos em que nos vemos ou por meio dos
quais vemos os outros.
Ao interpretar a teoria social de Mauss, Godelier lembra que as obrigaes de
dar e a de receber, se definem na noo de que somos obrigados a dar porque dar
obriga, e somos obrigados a receber porque recusar um presente equivale a correr o
risco de entrar em conflito com aquele que o oferece35
. Habitado por dois diferentes
espritos, o de quem inicialmente o possuiu e o seu prprio, o objeto dado estaria
investido de dois princpios de direito complementares um ao outro, um direito de
propriedade inalienvel e um direito de uso alienvel. Para o autor, precisamente o
35
GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.72.
-
Introduo 15
jogo entre esses dois princpios que esclarece a lgica das trocas do Kula, explorada
inicialmente por Bronislaw Malinowski nas primeiras dcadas do sculo XX.
Ao descrever o complexo sistema de trocas do Kula na Papua-Nova Guin,
afastando-se notadamente das expectativas sobre um comrcio primitivo36,
Malinowski demonstrou que este sistema, com efeito, no era uma forma precria de
troca37
. Como um sistema de troca intertribal que acontece por meio de transaes
pblicas e cerimoniais peridicas, o Kula no envolve, efetivamente, todo e qualquer
membro de uma determinada tribo. Ao contrrio, ele se d entre aqueles que detm um
estatuto diferenciado dos outros, e ajuda a marcar essa distino.
Neste caso, a viagem de objetos equivale viagem de pessoas. Quando um
objeto do Kula passa de mo em mo, o valor dessas trocas est em quo longe pode
chegar esse objeto, e logo, em quo longe chega, junto com ele, o nome de seu
proprietrio. porque as coisas dadas no so jamais desligadas de seu proprietrio
primeiro que elas portam consigo alguma coisa do seu ser, e atravs delas so as
pessoas que se ligam umas s outras. Thomas aponta que o artefato, no caso, no
simplesmente um valioso objeto de troca ou mesmo uma ddiva que cria relaes de um
tipo ou de outro, mas tambm um indexador crucial do quanto essas relaes mesmas
foram sustentadas ou desfiguradas38
. Eles so, assim, os testemunhos das relaes entre
as pessoas, e marcam as distncias que existem entre elas e as que j foram suprimidas.
Quando uma coisa transmitida, ela invariavelmente alterada, em certa
medida, e jamais voltar a ser o que era antes. Da mesma forma, como demonstrou-se,
ela nunca se manter em um s estado ou fase de sua existncia. Todas essas
constataes so libertadoras, porque as compreenses estabelecidas segundo as quais
as coisas atravessam transformaes sociais provocam uma desconstruo da noo
essencialista segundo a qual a identidade das coisas materiais est fixa em sua forma e
estrutura39
. Essa outra corrente, contrariando a nfase de alguns tericos da cultura
material na objetividade do artefato, reconhece exatamente a mutabilidade das coisas
36
Como lembra Thomas, a ideologia do primitivismo por muito tempo celebrou as sociedades
consideradas simples por exibirem algo que teria se perdido nas nossas sociedades pela anttese moderna do progresso. As relaes de troca foram, por muito tempo, significativas como um marco nas
narrativas evolutivas. THOMAS, Nicholas. Entangled objects. Exchange, material culture, and
colonialism in the Pacific. Cambridge, Massachusetts / London, England: Harvard University Press,
1991. p.7. 37
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts of the Western Pacific. New York: E. P. Dutton & Co., 1961.
p.85. 38
THOMAS, op. cit., p.19. 39
Ibidem, p.28.
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Introduo 16
em recontextualizao e a face profundamente subjetiva dos objetos. Neste sentido, os
prprios sistemas de troca adquirem valor pois neles que est a possibilidade de
mudana social e de reconhecimento identitrio.
Se, de acordo com a concepo de Godelier, na ddiva o que cedido pelo
proprietrio de um objeto dado no o seu direito de propriedade, mas um direito de
uso, isto , o direito de usar este objeto para realizar outras ddivas40
, pode-se
compreender que o que se d, logo, so as mltiplas possibilidades de relaes que os
objetos abrigam em si, e, igualmente, so estas relaes que passam a fazer parte da
performance de um museu ao adquirir um dado objeto. A circulao, que envolve coisas
e pessoas, e coisas investidas das pessoas, ilumina a noo de que a coisa dada dada
para ser transmitida. Essa transmisso envolve a alienao da coisa em benefcio de sua
transitoriedade, da construo de um percurso que encarna a prpria sociedade e, ao
mesmo tempo, est acima dela. A transmisso, assim, parece ser mais bem estudada do
ponto de vista dos processos atravs dos quais ela acontece, do que considerando apenas
aquilo que transmitido. Essa abordagem ir permitir que a realidade social seja
estudada a partir de fatos sociais totais41
, e, logo, ela justifica a percepo de que o
patrimnio integral42
, e que, ao ser estudado, deve ser percebido a partir de todas as
relaes que ele evoca, mais do que como produto de uma cultura, de uma natureza ou
de uma histria. possvel considerar que fenmenos sociais so totais no porque
combinam em si mesmos aspectos da sociedade, mas porque eles permitem, de certo
modo, sociedade de se representar e se reproduzir como um todo43
.
A partir das premissas apontadas, conclumos no ser suficiente que as coisas
sejam meramente identificadas como coisas que so dadas, coisas que so vendidas ou
aquelas que so guardadas. Elas devem ser pensadas em conexo com os contextos
polticos e histricos em que se inserem, e so as mudanas em sua natureza simblica
que esto atreladas sua condio de ddiva ou de coisa guardada sendo estas
categorias permeveis e complexas. As coisas nas quais os homens se vem sero
40
GODELIER, Maurice. Au fondement des socits humaines. Ce que nous apprend lanthropologie. Paris: Albin Michel. Ides, 2007. p.81. Grifos do autor. 41
Sobre a noo de fato social total explicada por Lvi-Strauss, ver Captulo 1, p.79 desta tese, ou LVI-
STRAUSS, Claude. Introduo obra de Marcel Mauss. p.11-46. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e
Antropologia. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.24. 42
Sobre a noo de patrimnio integral, disseminada entre alguns autores da museologia, ver SCHEINER, T. C. Imagens do no-lugar: comunicao e os novos patrimnios. 2004. Tese (Doutorado
em Comunicao) Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ECO, Rio de Janeiro, 2004. 43
GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.58.
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Introduo 17
sempre coisas a que se deseja transmitir. Mas se elas sero transmitidas como ddivas,
inserindo-se em um sistema particular de trocas, ou se sero guardadas para a
posteridade, colocando a sua nfase nas distncias no percorridas, de um modo ou de
outro, a coisa circulante ou esttica e pertencente a s um indivduo ou grupo estar, a
sua maneira, produzindo valores e significados.
A partir dos museus estudados possvel ver o objeto guardado como
investido de um tipo de performance, como aquele que comunica a identidade de um
indivduo ou de um grupo. O objeto guardado informa, e tambm capaz de alcanar
outros contextos sem necessariamente sair do lugar. Pelo mesmo ato da performance
que lhe investida, uma obra emblemtica em um museu capaz de viajar o mundo
sem perder o seu valor de continuidade com o local de origem, ou mesmo a instituio
a que pertence, e sem que se altere o valor do encontro in loco entre o observador e o
objeto original. Do mesmo modo, uma ddiva pode permitir que o patrimnio de uma
localidade ou de um grupo social especfico seja transmitido alcanando novos permetros
e disseminando uma dada identidade um poema ou um conto popular, e mesmo um
objeto material, em alguns casos, pode ser dado sem nunca se perder, pode ser guardado
no prprio ato de ser transmitido, porque ele guardado ao ser fitado, ouvido,
degustado, ao tocar e ao deixar ser tocado, ao inspirar e ao ser inspirado, ao ser sentido.
Sendo assim, no possvel se fazer uma antropologia das coisas sem uma
antropologia das pessoas, e o inverso tambm verdadeiro. Pensar a ddiva significa
questionar a origem mesma da cultura humana e das relaes sociais entre indivduos e
grupos. Ao nos debruarmos sobre essa origem ou sobre as especulaes tericas que
temos dela somos levados a crer que a ddiva tenha surgido juntamente com o ato de
guardar. Dar e reter so inseparveis na lgica do patrimnio e das identidades. Com
efeito, o ato da ddiva implica em uma escolha, entre aquilo que se d e aquilo que se
guarda. E, ainda neste ltimo caso que particularmente nos interessa nesta pesquisa ,
o objeto que se guarda tambm transmitido, mesmo que no possa ser dado. Mas o
que, afinal, se transmite do objeto guardado?
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Introduo 18
Entrando no mundo do sagrado
Um outro tema abordado na economia e na moral das ddivas o dos presentes
dados aos deuses e natureza44
, que constituem um tipo particular de doao. A noo
de oferenda, como a ddiva entre os humanos e os deuses, tambm est prevista na
teoria maussiana, de modo que se introduz a ideia do que pode ser pensado como a
forma mais sinttica das colees. Esse primeiro sentido da coleo est ligado a um
carter especial da ddiva e ao mesmo tempo essencial, porque evidencia a sua
obrigatoriedade que diz respeito ao ato de dar aos deuses, aqueles que tudo possuem,
uma oferenda em agradecimento quilo que deles se pressupe receber. Da mesma forma,
alguns dos povos que Mauss denominou de arcaicos reuniam elementos da natureza
que eram oferecidos a ela como agradecimento pela apropriao de seus produtos.
Como assinala Malinowski, sobre o contexto das ilhas Trobriand, o vaygua,
objeto precioso concebido como talism, ao mesmo tempo ornamento e riqueza, serve
para as trocas do Kula. Entretanto, durante a festa dos mila-mila, uma outra espcie de
vaygua pode ser entendida, nos termos do autor, como vayguas permanentes, sendo
estas expostas e oferecidas aos espritos numa plataforma idntica do chefe45. O que
se v, neste caso, uma forma de sacrifcio-contrato, como aponta Mauss, em que, em
um grau supremo, os deuses que do e retribuem esto a para dar uma coisa grande em
troca de uma pequena46
. Estas formas de oferendas, como uma reunio de coisas dadas
em agradecimento a divindades ou ao mundo natural revelam, por analogia, o sentido
mstico primordial das colees. Aqui o que leva as pessoas a colecionar uma fora
exterior a elas. As coisas reunidas para os deuses, e a fora que as rene, so fruto de
um interesse particular que posto no grupo e que se impe sobre ele. Talvez da
provenha a tendncia dos museus de buscar disseminar o sagrado, seja por meio da arte,
ou pela disseminao de crenas sociais diversas, como iremos demonstrar.
inegvel que os objetos que um museu guarda podem suscitar um tipo de
culto47
, o que se manifesta, sobretudo, nas proposies admirativas, nos gestos e nos
44
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. p.185-314. In:
______. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.203. 45
MALINOWSKI (1922, p.513 apud MAUSS, 2005, p.207). 46
MAUSS, op. cit., p.207. 47
Pomian sugere ser suficiente pensar na Monalisa ou em outras tantas obras-fetiche. POMIAN,
Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris: d. De la
Maison des sciences de lhomme, 1990. p.185.
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Introduo 19
suspiros de deleite que eles podem provocar, e, ainda, pela decorrente proteo aguda
dos objetos que so investidos de valores. Por outro lado, um museu, assim como uma
coleo particular, uma riqueza virtual, pois os objetos que ele rene so, em muitos
casos, inalienveis o que o distancia particularmente dos tesouros. Aquilo que ele
vende ao seu pblico, como aponta Pomian, apenas o direito de ver os objetos face a
face e, eventualmente, alguns direitos anexos48. Esses dois aspectos dos objetos nos
museus, o valor espiritual ou aurtico, por um lado, e, por outro, a iluso da ausncia de
um valor material e mercadolgico, dizem respeito a uma posio intermediria prpria
a esses objetos, localizados entre o humano e o divino. Esses objetos liminares se
encontram, assim, na interseo do sagrado e do profano, pertencendo a dois mundos;
esto no mundo dos humanos, mas no podem ser tocados por eles.
Com efeito, segundo a teoria de Godelier, os objetos preciosos que circulam nas
trocas de ddivas s o fazem porque so substitutos duplos, substitutos dos objetos
sagrados e substitutos dos seres humanos. Como os primeiros eles so inalienveis, mas
diferentemente dos objetos sagrados que no circulam, eles circulam. Como substitutos
dos seres humanos, eles so a sua substncia, o seu osso, a sua carne, os seus atributos,
os seus ttulos, e suas possesses materiais e imateriais. por esta razo que eles podem
tomar o lugar dos homens e das coisas em todas as circunstncias em que necessrio
mov-los ou remov-los para se produzir novas relaes sociais, de poder, de
parentesco, de iniciao, etc., entre os indivduos e entre os grupos, ou mais
simplesmente para reproduzir os antepassados, prolong-los, conserv-los49
. esta
dupla natureza dos objetos preciosos que os torna difceis de serem definidos ou
pensados em um mundo em que as coisas esto separadas das pessoas, e ela que mais
nos interessa no mbito deste estudo. Por outro lado, os objetos nos museus podem ser
percebidos muito claramente como elos de ligao entre o profano e o sagrado,
circulando por universos que so permeados pelos dois.
No Muse du quai Branly, na tentativa de se criar um encantamento a partir
dos objetos selecionados e colocados em exposio, o que se pretende estabelecer a
separao entre os objetos musealizados e a sociedade essencialmente profana e
materialista50 qual o museu dirige a sua performance. Neste sentido, o museu est na
48
POMIAN, Krzysztof. Muse et patrimoine. In: JEUDY, Henri Pierre. (dir.) Patrimoines en folie. Paris:
d. De la Maison des sciences de lhomme, 1990. p.185. 49
GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.101. 50
Rapport dactivit do museu, referente ao ano de 2011. Disponvel em: . Acesso em: fevereiro de 2012. Grifos nossos.
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Introduo 20
fronteira51 entre mundos distintos, e ele o produtor da distino entre o sagrado e o
profano. Em outras palavras, o olhar profano do pblico que engendra a sacralidade
nos objetos musealizados.
Retornando ao objeto do tipo vaygua, este est investido tanto de um carter de
permanncia quanto do sacrifcio, como explicitou Mauss. A questo para os autores
que estudam estes objetos a de como explicar essa ambiguidade. Se os objetos
preciosos representam um primeiro contato entre o humano e o sagrado, atravs do
sacrifcio que nos tornamos mais ntimos dos deuses. Ao pensar a funo social do
sacrifcio, Mauss e Hubert consideram esta prtica em sua origem como uma espcie de
ddiva que os povos primitivos fazem aos seres sobrenaturais aos quais lhes convm
se ligar52
. Segundo os autores o sacrifcio sempre implica uma consagrao, o que quer
dizer que em todo sacrifcio um objeto passa do domnio profano ao domnio religioso,
sendo assim consagrado53
. A consagrao tem a capacidade de se irradiar para alm da
coisa consagrada, atingindo at mesmo a pessoa que se encarrega da cerimnia. Nestes
casos a coisa consagrada serve de intermedirio entre o sacrificante, ou o objeto
destinado a receber os efeitos teis do sacrifcio, e a divindade.
Considerando estas categorias, discutidas por Mauss e Hubert em diversas
sociedades, pode-se dizer que ao sacrificar certos artefatos, removendo-os de sua vida
til e profana, a musealizao cria intermedirios entre as pessoas e um mundo
percebido como sagrado a instncia patrimonial. O dilogo estabelecido, neste caso,
o de uma sociedade consigo mesma, detentora desse patrimnio. A vtima (o objeto
sacrificado) o intermedirio sem o qual no h sacrifcio. No ritual do sacrifcio, por
ser distinta do sacrificante e da divindade, a vtima os separa ao mesmo tempo em que
os une, eles se aproximam sem se entregar inteiramente um ao outro54. Estes objetos
sagrados, produzidos no ato do sacrifcio, so a porta de entrada para o mundo dos
deuses, mas, ao mesmo tempo, so responsveis por manter os humanos a certa
distncia deles. no espao dessa distncia que algo inserido nesta relao, um certo
valor sobre a coisa sagrada que fica recluso em uma zona de mistrio.
Os processos de musealizao, por sua vez, tambm no acontecem de forma
completamente clara, explicitando-se os critrios utilizados para se chegar a uma
seleo particular dos objetos retirados do mundo profano. Chega-se, ento,
51
DELPUECH, Andr. Entrevista em 13 de dezembro de 2011. Muse du quai Branly, Paris. 52
MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. Sobre o sacrifcio. So Paulo: Cosacnaify, 2005. p.9. 53
Ibidem, p.15. 54
GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.106.
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Introduo 21
consagrao do objeto no museu sendo o termo consagrar extremamente
disseminado no vocabulrio institucional do quai Branly55
. Os objetos consagrados se
mantm, como vimos, entre duas ddivas, mas sem poderem eles mesmos se fazer
objetos de ddivas. Atravs do mistrio em que esto imersos esses objetos, ns somos
confrontados com um certo tipo de relaes do homem com ele mesmo, relaes que
so sociais, intelectuais, afetivas e que se materializam nos prprios objetos56
. Essas
relaes do homem com si mesmo so de tal tipo que os humanos so levados a ocupar
duas posies simultaneamente no espao e no tempo. Como explica Godelier, eles
passam a ocupar o lugar dos imaginrios duplos de si mesmos57
. Tudo se passa como se
no fossem os homens que dessem um sentido s coisas, mas como se o sentido,
proveniente de algum lugar para alm do mundo dos homens, fosse transmitido pelas
coisas aos homens sob certas condies. O autor explica: a sntese do dizvel e do
indizvel, do representvel e do irrepresentvel se realiza em um objeto, exterior ao
homem, mas que exerce sobre os homens, sobre sua conduta, sua existncia, a
influncia de maior grandeza58. Os homens se encontram, finalmente, alienados a um
objeto material que no nada mais do que eles mesmos, mas um objeto no qual eles
mesmos desaparecem; um objeto em que esto contraditoriamente e necessariamente
presentes como ausncias.
Os museus, ento, realizam ligaes entre o humano. Sendo assim, eles no so
apenas responsveis por gerar distncias entre as pessoas e as coisas, mas tambm
geram aproximaes entre as pessoas e elas mesmas por meio de suas representaes.
Diante do sagrado, os homens se dividem mas no se reconhecem nos seus duplos que,
uma vez separados, se revestem diante deles como sendo pessoas familiares e, ao
mesmo tempo estranhas. De fato, como sugere Godelier, no so os duplos dos homens
que se revestem diante deles mesmos como estrangeiros, mas so os homens eles
mesmos que, ao se dividirem, se tornam em parte estrangeiros a si mesmos, alienados a
esses seres outros que so, entretanto, uma parte de si mesmos59
. Construmos o
sentimento da diferena pelo outro exatamente no momento em que nos dividimos.
Decorre disto, que o guardar no para si mesmo, mas envolve o sentimento do Outro
necessariamente. Guardar sempre envolve um Outro, pois mesmo quando guardamos
55
Ver os Relatrios de atividades (Rapports dactivits) do museu, de 2003 a 2011. 56
GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.187. 57
Ibidem, p.188. 58
Ibidem, p.190. Grifos de GODELIER. 59
Ibidem, p.236.
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Introduo 22
algo para ns mesmos, nos vemos como outros na coisa guardada ela , logo, a
simbolizao e a realizao da alteridade exteriorizada.
O que h aqui de relevante para nossa anlise que as coisas guardadas,
oferendas, objetos preciosos, talisms, saberes, ritos, afirmam profundamente as
identidades e sua continuidade atravs do tempo60
. Mais ainda, elas afirmam a
existncia de diferenas de identidade entre os indivduos, entre os grupos que
compem uma sociedade, ou que desejam se situar uns em relao aos outros no seio de
um conjunto de sociedades vizinhas conectadas entre elas por diversos tipos de trocas61
.
Para Godelier, no pode haver sociedade, ou mesmo identidade que atravesse os tempos
servindo de suporte aos indivduos assim como aos grupos que compem uma
sociedade, se no houver pontos fixos, realidades que servem de substratos
(provisoriamente, mas de forma durvel) para as trocas de ddivas ou s trocas
mercantis62
. Em outras palavras, para que haja a troca preciso que existam
patrimnios, que fixam no espao as identidades das pessoas. Essas realidades
patrimoniais, que acontecem dentro e fora dos museus, mas que so organizadas por
eles, so uma parte importante do mundo sagrado dos museus, que se entremeia
realidade profana, existindo uma em funo da outra.
Considerando que os dois princpios inversos devem sempre estar combinados
trocar e guardar, trocar para guardar, guardar para transmitir63 Godelier estabelece
que preciso em todas as sociedades que, ao lado das coisas que circulam, existam
esses pontos de ancoragem das relaes sociais e das identidades coletivas e individuais.
precisamente por isso que, para este autor, o foco da discusso est nestes objetos
fixos, j que so eles que permitem as trocas e que fixam as suas fronteiras. Ao
contrrio da viso de Durkheim que separava muito radicalmente o religioso do poltico,
para Godelier o sagrado sempre teve relao com o poder na medida em que o sagrado
um tipo de relao com as origens, e considerando ainda que as origens dos indivduos e
dos grupos pesam sobre as posies que estes ocupam em uma ordem social ou
csmica64
. O sagrado ento deslocado, no estando mais exclusivamente no campo
das religies e passando a circular por quase todas as esferas sociais.
60
WEINER (1992 apud GODELIER, 2008). 61
Ibidem. 62
GODELIER, Maurice. Lnigme du don. Paris : Flammarion, 2008. p.16. 63
Ibidem, p.221. 64
Ibidem, p.236.
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Introduo 23
Quem detm o controle desses objetos, consequentemente tem o controle das
origens. A anlise sobre o ato de transmitir nos permite identificar brevemente como o
presente se forma na constante inveno das origens, e este dependente, assim, da
crena em uma dada ideia de passado. Estamos constantemente nos inventando e
reinventando nos atos de dar e de guardar. A transmisso e portanto tambm os
patrimnios e os museus tem incio com a ddiva. Damos aquilo que desejamos
manter como nossos, que desejamos ver retornar ou o que ir ressonar como nosso em
outras instncias sociais; damos o que desejamos ter e o que desejamos transmitir.
Pode-se inferir que o objeto sagrado um objeto performativo, pois realiza em si
mesmo a sntese de tudo o que uma sociedade deseja apresentar e dissimular de si
mesma. Ele une em si mesmo, desta maneira, o imaginrio, o simblico e o real, em
uma s composio. Estes objetos, nos quais o homem est, ao mesmo tempo, presente
e ausente, levam as sociedades e os indivduos a se pensarem, a vislumbrarem a sua
prpria estrutura social a partir de um posicionamento diferenciado.
Ainda que parea pouco dizer, enfim, que a musealizao faz os museus, esta
afirmao revela que os museus so apresentao e performance, mais do que um
agrupamento de objetos mortos para a sociedade. Essa performance, que em contextos
museolgicos pode ser entendida como fundada na musealidade uma espcie de
sacralidade, ou teatralidade produzida nas coisas do real a partir de um olhar exterior
um modo de se olhar para as coisas familiares como se elas lhe fossem estranhas, ou,
diferentemente, um modo de fazer com que coisas que parecem exticas e deslocadas
aparentem ser familiares. E estes dois percursos da musealizao no corresponderiam
aos dois movimentos maussianos de dar e receber?
Um brasileiro em Paris: a converso s artes primeiras
Em parte, a originalidade desta tese est no desafio de, como um brasileiro,
desenvolver uma pesquisa sobre museus franceses. Em primeiro lugar foi preciso
definir que o olhar lanado sobre o contexto estudado seria o de um pesquisador
proveniente de um pas considerado como no ocidental, sem um conhecimento
aprofundado sobre o campo dos museus etnogrficos europeus. Se o discurso do museu
etnogrfico clssico estava pautado no olhar direcionado ao l-bas, o que os
franceses lanam sobre os outros continentes, como uma metfora no meramente
geogrfica para um l em baixo simblico, o meu olhar se colocaria no sentido
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Introduo 24
inverso, do l-bas em direo a instituies com uma histria metropolitana. Este
ponto de vista me permitiu ver a Frana, ela mesma, como o meu l-bas, o que seria
impensvel na anlise de um francs. Este olhar externo, que em certa medida facilita o
trabalho do etngrafo, me possibilitou ver nos museus franceses um certo exotismo