MARTORANO, Luciano - Marxismo e direito, Pachukanis, Márcio Bilharinho Naves

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    Marxismo e Direito Um Estudo sobre Pachukanis. So Paulo, Boitempo editorial, 2000.

    Mrcio Bilharinho Naves.

    Por Luciano Cavini Martorano

    Em 1919, por ocasio da sua redao dos princpios fundamentais do direito penal,

    o Colgio do Comissariado do Povo para a Justia da nova Repblica Sovitica da Rssia

    afirmava que o proletariado, tendo conquistado o poder na Revoluo de Outubro, abateu

    o aparato burgus, que serviu para oprimir a massa trabalhadora com todos os seus

    instrumentos o exrcito, a policia, os tribunais e a Igreja.(apud Naves,2000:28) E

    assegurava j ter surgido, como obra do prprio proletariado, um novo direito, de carter

    operrio, que garantiria a defesa dos interesses dos trabalhadores at o advento do

    comunismo. Curiosamente, apenas cinco anos mais tarde, em 1924, era publicado o

    trabalho de Evgeni Pachukanis (1891-1937),A Teoria Geral do Direito e o Marxismo , que

    forneceria uma contundente e densa contraprova terica para questionar a possibilidade

    de uma rpida, alm de abrupta, supresso completa do direito burgus e de criao e

    vigncia instantneas de um direito proletrio. Mas a obra seminal de Pachukanis

    ultrapassaria em muito os limites do debate sovitico para se tornar uma das principais

    referncias na pesquisa marxista sobre o direito, constituindo-se, at hoje, em

    refernciaobrigatria para todos os interessados no tema.

    O livro de Mrcio Naves uma anlise centrada no legado terico do jurista

    marxista russo, e no em uma interpretao histrica ou sociolgica de seus estudos ou de

    sua atividade jurdica e poltica. Naves contribui, assim, para suprir uma grave lacuna na

    bibliografia marxista brasileira to escassa em uma disciplina decisiva como o direito.

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    O autor se concentra em alguns aspectos, os principais, da elaborao jurdica de

    Pachukanis, presentes na j citada obra e alguns outros trabalhos pouco conhecidos em

    lngua estrangeira, o que obrigou o autor a recorrer ao texto original em russo: 1) a natureza

    da determinao do direito; 2) a definio da natureza do direito no socialismo; 3) o

    contedo de sua autocrtica, realizada na dcada de 30. Como decorrncia, Naves formula

    as trs hipteses que sustentam a sua releitura de Pachukanis, polemizando com uma vasta

    e consagrada bibliografia internacional dedicada ao autor sovitico: 1) no lugar do

    circulacionismo pachukaniano, derivado de uma determinao simples da circulao

    mercantil sobre o direito, haveria uma determinao complexa, uma sobredeterminao

    (pg.9), j que as relaes de produo desempenhariam o papel de determinao em

    ltima instncia; 2) ao contrrio do niilismo terico de Pachukanis, responsvel pela

    negao de qualquer forma jurdica na transio socialista, este autor forneceria os

    elementos para se pensar a forma especfica de que se reveste o direito na passagem do

    capitalismo at o comunismo; 3) reconhecendo a autocrtica de Pachukanis, Naves aponta

    para a existncia de uma abjurao complexa de suas teses iniciais (22), o que permitiria

    encontrar nos seus ltimos trabalhos a sobrevivncia de sua antiga problemtica, com isso o

    autor brasileiro rejeita a leitura desta autocrtica como o abandono prematuro de uma

    problemtica teoricamente insustentvel (125).

    Ao procurar compreender a especificidade da forma jurdica, Pachukanis se

    concentra no esforo de buscar a sua relao com a forma mercadoria, procurando, na

    esfera da circulao mercantil, identificar a relao social especfica que se exprime sob

    a forma do direito (56), como acentua Naves. Exemplificando, o autor destaca que o direito

    opera a mediao em uma troca decisiva para a constituio e reproduo das relaes de

    produo capitalistas: a troca de fora de trabalho por salrio.(63) Nesse sentido, somente

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    no modo capitalista de produo que a forma jurdica conheceria o seu pleno

    desenvolvimento, pois apenas nele, retomando-se Marx, ocorre a mercantilizao

    universal (62) e o trabalho se torna realmente abstrato(50), permitindo a

    operacionalizao da equivalncia jurdica, realizada pelo acordo de vontade entre os

    sujeitos de direito. Da uma concluso, fundamental e plena de consequncias, que

    ressaltada por Naves: o direito teria uma natureza intrnsecamente burguesa. Mas a

    principal novidade trazida pelo autor brasileiro a de que possvel, alm de necessrio,

    sustentar que a tese de Pachukanis sobre o objeto em foco apenas ganharia inteligibilidade

    recorrendo-se ao conceito de sobredeterminao. Ou seja, se a esfera da circulao que

    determina as formas jurdicas, estando ela mesma determinada pela esfera da produo, o

    direito seria sobredeterminado pelas relaes de produo. Isto , diretamente pela

    primeira esfera e em ltima instncia pela segunda (72-ss).

    No mbito de uma resenha, pode-se, inicialmente, indicar as seguintes questes

    para uma possvel discusso: 1) ainda que Mrcio Naves fornea inmeras citaes para

    mostrar que a problemtica da relao de determinao entre as relaes de produo e o

    direito estaria latente no trabalho de Pachukanis, revelando-se atravs de sintomas ou

    de um discurso pressuposto(73), no fica completamente estabelecida a possibilidade de

    coexistncia das duas problemticas mencionadas no pargrafo acima -, no limite

    distintas, no interior do esquema terico de Pachukanis. Em outras palavras, o conceito de

    sobredeterminao, consagrado por Louis Althusser, capaz de resolver este problema? 2)

    diretamente na superfcie da esfera de circulao das mercadorias, ainda que

    pressupondo sua determinao pela produo, que podemos desvendar o segredo do

    Estado e das formas polticas burguesas(79)? Ou, para lembrar Marx: sempre na

    relao imediata entre o proprietrio dos meios de produo e o produtor direto que se deve

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    buscar o segredo mais profundo, o fundamento oculto do edifcio social e,

    conseqentemente, da forma poltica assumida pela relao de soberania e de dependncia;

    em suma, a base da forma especfica que o Estado assume num perodo dado ... (O

    Capital. R.J., Civilizao Brasileira, 1971)? Sabendo-se que a concepo marxiana, ao

    estabelecer a tese da correspondncia entre relaes de produo e formas polticas,

    permitiu a instaurao da problemtica terica dos tipos de Estados, correspondentes a

    diferentes tipos de relaes de produo.

    Segundo Naves, o centro nervoso da teoria pachukaniana o problema da

    relao entre o direito e o socialismo(87). Sendo assim, pode-se afirmar que a sua

    discusso pressupe o entendimento da concepo do jurista sovitico sobre a transio

    socialista. Na verdade, o autor brasileiro sustenta existir duas tendncias sobre a natureza

    da sociedade de transio em Pachukanis. A concepo dominante, defendida por muitos

    bolcheviques e depois tornada oficial por Stalin, reitera que o socialismo seria caracterizado

    pela vigncia da propriedade estatal dos meios de produo e do planejamento. Isto , a

    simples estatizao dos meios de produo, realizada por meio de atos jurdicos do novo

    Estado, seria suficiente para a formao da economia socialista, alm de pr-condio para

    a planificao estatal, que agiria em oposio ao mercado. A concepo subordinada refuta

    a tese segundo a qual o perodo de transio estaria determinado por relaes de

    produo especficas, relaes de natureza socialista(116); desautorizando, portanto,

    qualquer tentativa de apresentar a transio do capitalismo ao comunismo como um modo

    de produo socialista. Assim, no havendo este modo de produo, no haveria um direito

    socialista, considerado este por Naves no apenas uma impossibilidade terica como um

    objeto a ser combatido politicamente(87). Como o centro do argumento desta ltima

    concepo, adotada e desenvolvida pelo autor brasileiro, parece residir na negao da

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    existncia de relaes de produo socialistas. Assim, pode-se indagar, sinteticamente, se a

    luta, no socialismo, contra a diviso capitalista do trabalho - a separao entre o trabalho

    intelectual e o trabalho manual, e entre as tarefas de direo e as de execuo -, que, como

    ressalta Naves, apenas se inicia com a expropriao jurdica da propriedade privada

    (estatizao), no se desenvolveria transformando, em seguida, a relao econmica de

    propriedade que no se restringe mais ao terreno jurdico, ao contrrio do que se deduz

    da afirmao do autor de que apropriedade apenas um conceito jurdico(158), pois tal

    relao implica a direo pelos trabalhadores da utilizao das mquinas e das matria-

    primas -, at atingir o ncleo das relaes de produo - envolvendo a capacidade dos

    produtores diretos fazerem funcionar e criar meios de produo -, dando origem a novas

    relaes de produo de carter socialista? Relaes estas distintas das relaes de

    produo comunistas, que estariam apoiadas na apropriao direta, pelos trabalhadores

    emancipados, das condies e dos resultados do processo de produo. Nesse caso, o

    socialismo no seria mais concebido apenas como um perodo de transio, j que ele

    envolveria toda a complexa e difcil luta pela eliminao da separao entre o produtor

    direto e os meios de produo e, simultaneamente, pela revolucionarizao do novo Estado.

    Ao debater a idia do niilismo jurdico de Pachukanis, o autor de Marxismo e

    Direito mostra ser possvel ler nos trabalhos do terico sovitico alguns elementos do que

    poderia ser chamado de um direito da sociedade de transio(104); isto , um direito

    burgus no-genuno, semelhante ao direito burgus sem burguesia apresentado por

    Marx em Crtica do Programa de Gotha (98). Mas tal direito no se constituiria como um

    direito proletrio. Contudo, seria necessria uma maior demonstrao sobre como o direito

    da fase de transio, que mantm a forma do direito burgus `genuno(100), mas no o

    seu contedo em razo de sua origem revolucionria(98), pode ser utilizado

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    revolucionariamente pelo novo Estado. Evitando, assim, o risco de se incorrer em uma

    concepo instrumentalista do direito.

    Em relao autocrtica de Pachukanis, Naves admite que o jurista russo

    efetivamente modifica e abandona as suas posies iniciais, assumindo as teses oficiais

    do Partido, inclusive a do fortalecimento mximo do Estado como condio para a sua

    extino. Mas o autor brasileiro logra estabelecer "dois momentos" no processo de

    autocrtica empreendido por Pachukanis: o primeiro ainda marcado pela presena, mesmo

    que em contradio com as novas teses, de alguns elementos da concepo

    original(127), e o segundo, o da autocrtica incondicional .

    Mesmo que ao final do livro o leitor possa questionar o xito do autor em refutar

    inteiramente o economicismo atribudo a Pachukanis (169), Mrcio Naves, emMarxismo e

    Direito, oferece aos marxistas brasileiros uma grande oportunidade no s de conhecer o

    pensamento de um terico to importante, como a possibilidade, atravs de sua original

    releitura, tambm apoiada no balano das experincias sovitica e da Revoluo Cultural na

    China, de recolocar a discusso sobre o direito e a transio socialista em um novo patamar,

    atual e teoricamente rigoroso.