MARIUTTI, Eduardo Barros. Balanço do Debate - A transição do Feudalismo para o Capitalismo

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182 BALANÇO DO DEBATE: A TRANSIÇÃO DO FEUDALISMO AO CAPITALISMO O livro Balanço do debate: a tran- sição do feudalismo ao capitalismo traz a público a dissertação de mestrado de Eduardo Mariutti, uma pesquisa reali- zada no Instituto de Economia da Uni- camp. Como o próprio título denota, o autor nos apresenta um balanço do de- bate sobre a transição do feudalismo ao capitalismo que foi travado na década de 50, principalmente por Maurice Dobb e Paul Sweezy. Os capítulos estão dispostos em três partes. Na primeira, o autor apre- senta as teses sobre a transição defendi- das por Dobb e Sweezy e realiza uma comparação entre ambos. Na segunda parte, o autor apreende o chamado de- bate Brenner, que ocorreu na década de 70, a partir da polêmica Dobb/Sweezy. Balanço do debate: a transição do feudalismo ao capitalismo Eduardo Barros Mariutti, São Paulo, Editora Hucitec, 2004, 243 pp. ANGELA LAZAGNA* *Mestre em Sociologia pela Unicamp. E- 4ESENHAS marxista CRÍTICA mail: [email protected]. Na última parte, o autor discute a in- terpretação de Robert Brenner da aná- lise marxiana do materialismo históri- co e da transição. Privilegiarei, nessa re- senha, a discussão relativa ao debate Dobb/Sweezy sobre a transição. I. Dobb caracteriza o modo de pro- dução feudal pela relação de apropria- ção do excedente por parte do senhor feudal em relação ao produtor direto, que tem a posse dos meios de produção e pode produzir para a sua subsistên- cia; porém, devido aos laços da servi- dão, ele deve repassar o excedente da produção para o seu superior imediato. Devido a esta relação de propriedade –

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O livro Balanço do debate: a tran-sição do feudalismo ao capitalismo traz apúblico a dissertação de mestrado deEduardo Mariutti, uma pesquisa reali-zada no Instituto de Economia da Uni-camp. Como o próprio título denota, oautor nos apresenta um balanço do de-bate sobre a transição do feudalismo aocapitalismo que foi travado na décadade 50, principalmente por MauriceDobb e Paul Sweezy.

Os capítulos estão dispostos emtrês partes. Na primeira, o autor apre-senta as teses sobre a transição defendi-das por Dobb e Sweezy e realiza umacomparação entre ambos. Na segundaparte, o autor apreende o chamado de-bate Brenner, que ocorreu na década de70, a partir da polêmica Dobb/Sweezy.

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mail: [email protected].

Na última parte, o autor discute a in-terpretação de Robert Brenner da aná-lise marxiana do materialismo históri-co e da transição. Privilegiarei, nessa re-senha, a discussão relativa ao debateDobb/Sweezy sobre a transição.

I.

Dobb caracteriza o modo de pro-dução feudal pela relação de apropria-ção do excedente por parte do senhorfeudal em relação ao produtor direto,que tem a posse dos meios de produçãoe pode produzir para a sua subsistên-cia; porém, devido aos laços da servi-dão, ele deve repassar o excedente daprodução para o seu superior imediato.Devido a esta relação de propriedade –

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a de os produtores diretos não estaremseparados dos meios de produção –, ossenhores feudais, para se apropriaremdo excedente produzido, apelam a dis-positivos extra-econômicos fundados naviolência e na tradição para coagir osprodutores diretos.

Segundo Dobb, foram as contra-dições internas do modo de produçãofeudal, centradas no antagonismo en-tre senhores feudais e servos, que leva-ram à sua dissolução. A crescente ne-cessidade dos senhores feudais por maio-res rendimentos os levou a intensificara exploração sobre os servos, fato queacentuou a luta de classes e determinou,a longo prazo, a dissolução da econo-mia feudal.

Neste sentido, o comércio e aemergência das cidades não foram osfatores decisivos no declínio do feuda-lismo, pois estão restritos aos limites domodo de produção feudal; o comércioocorre enquanto troca de excedente, enão como ocorre no modo de produ-ção capitalista, enquanto realização damais-valia. O dinheiro, na economiafeudal, configura-se apenas como inter-mediário da troca, não se transforman-do em capital.

Mas Dobb não dispensa a influên-cia destes fatores sobre a transição. Nessesentido, a emergência das cidades in-centivou a fuga dos camponeses, fatoque prejudicou os senhores feudais noque diz respeito aos seus rendimentos.Já a existência do comércio contribuiupara o processo de diferenciação social,por meio da formação de camponeses

prósperos (que se tranformaram em pe-quenos e médios produtores), de semi-proletários (camponeses pobres) e dosgrandes mercadores que somente se in-teressavam pela disparidade de preçosdo mercado e se aliavam aos senhoresfeudais, cujos rendimentos estavam pre-judicados. Para Dobb, a razão centralda dissolução do modo de produçãofeudal “…encontra-se na revolta dospequenos e médios produtores contra aexploração feudal, (...) [o que] acabouresultando em sua independência parcial”.Conseqüentemente, houve a transforma-ção da apropriação do excedente, ou seja,os produtores imediatos foram separa-dos dos meios de produção transfor-mando-se em trabalhadores livres paravenderem sua força de trabalho, carac-terística central do modo de produçãocapitalista.

Dobb define o período de transi-ção que se estende dos séculos XIV aoXVI como feudal (o Estado Absolutis-ta era feudal), mas num estágio avan-çado de desintegração, quando as rela-ções capitalistas ainda eram incapazesde se tornar dominates.

Já Sweezy, ao se contrapor à tesedefendida por Dobb, afirma que a prin-cipal característica da economia feudalé a de produzir valores de uso. Assim, odesenvolvimento das relações de trocano seio de uma sociedade produtora devalores de uso foi o principal fator desua desestabilização.

O comércio à longa distância ope-rou como uma força externa às mar-gens da sociedade feudal da seguinte

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maneira: o desenvolvimento do comér-cio intensificou as forças produtivas epromoveu uma organização racional dasociedade e o aprimoramento da divi-são do trabalho. Decorreu daí umamaior produtividade que minou as re-lações servis de produção (os servosabandonaram suas terras procurandomelhores condições de trabalho) e gra-dualmente as formas de trabalho livre eassalariado se estabeleceram. Assim, ovalor de troca se desenvolve devido aocomércio. Ao contrário de Dobb, Sweezydenomina o período de transição domodo de produção feudal ao modo deprodução capitalista como um “sistemade produção pré-capitalista de merca-dorias”, pois os elementos predominan-tes não eram feudais e nem capitalistas,propondo a coexistência de diversas clas-ses dominantes.

II.

Mariutti critica a interpretação deBrenner das obras de Marx. Para Brenner,existiriam em Marx dois modelos detransição e, portanto, duas versões exclu-dentes do materialismo histórico. Ummodelo estaria presente em seus primei-ros escritos, principalmente em A ideo-logia alemã, quando o processo de tran-sição do feudalismo ao capitalismo dar-se-ia pelo primado do desenvolvimentodas forças produtivas em conexão com ograu de divisão do trabalho. A luta declasses não seria a causa da transição,apesar de a burguesia ser encarada comoclasse revolucionária. Já o outro modelo

de transição predominaria em Grundrissee O capital, quando a transição dar-se-iapela “reprodução conflituosa da estruturafeudal”, ou seja, derivaria da luta entreas classes do modo de produção feudal.Para Mariutti, existem em Marx umatendência dominante e uma tendênciasubordinada de transição, porém elas selocalizam dentro de um único conceitode materialismo histórico. Tal ambigüi-dade perpassaria a polêmica Dobb/Sweezy.

Em suas Considerações finais,Mariutti explicita que o debate Dobb/Sweezy surgiu de outro iniciado em 1940sobre a natureza da Revolução Inglesade 1640, decorrente de um estudo deChristopher Hill. A discussão perpassoudois argumentos: 1. A Revolução de1640 foi burguesa (houve a tomada doEstado pela burguesia e a conseqüenteconsolidação do capitalismo); 2. A Re-volução de 1640 não foi burguesa, e simuma contra-revolução, pois a burguesiaassumira momentaneamente o controledo Estado para conter a investida da aris-tocracia em declínio.

O que fica claro na leitura do li-vro é que Dobb se alinha ao primeiroargumento e Sweezy ao segundo. Ma-riutti tende a privilegiar a interpretaçãode Dobb da transição.

Mariutti intenta se esquivar deuma interpretação economicista ou nãomarxista da transição. Entretanto, ele nãoconsegue resolver a dicotomia “causas in-ternas/causas externas” que teria ocasio-nado a dissolução do modo de produ-ção feudal. Para tentar apontar uma reso-

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lução dessa dicotomia, apoiar-me-ei emuma tese de suma importânica sobre atransição desenvolvida por Etiene Balibarno texto “Conceitos fundamentais domaterialismo histórico”, que compõe umdos capítulos da obra organizada porLouis Althusser, Para ler O capital.

Balibar indica o papel do políticona transição, defendendo a tese da ante-cipação do político em relação à econo-mia como uma das etapas da transiçãode um modo de produção ao outro.Desse modo, ao analisar um determina-do modo de produção, Balibar aponta anecessidade de correspondência entre aestrutura econômica e a jurídico-políti-ca. Sem essa correspondência, a repro-dução do modo de produção não podeocorrer. Balibar defende que a transiçãonão é ocasionada pela contradição entreforças produtivas e relações de produção,que nega o papel da revolução políticana transição. A contradição, para Balibar,é “derivada e não originária”, ou seja, nãoestá presente na estrutura, mas nos efei-tos da estrutura. A reprodução amplia-da, isto é, a dinâmica do modo de pro-dução é que gera elementos contraditó-rios que poderão gerar os elementos dofuturo modo de produção.

Neste sentido, a transição só ocor-re quando existir uma relação de não-correspondência entre a estrutura econô-mica e a jurídico-política. A antecipa-ção do político se dá porque o desen-volvimento das forças produtivas abreas possibilidades para isso e, assim, oEstado pode mudar a natureza de suapolítica. Porém, a economia permane-

ce vinculada às relações de produçãoanteriores, ou seja, em defasagem emrelação ao político. A transição só ocor-re se se restabelecer a correspondência,ou seja, se a economia se ajustar às rela-ções políticas do novo Estado.

A partir da interpretação balibarianadas teses defendidas por Dobb e Sweezy,pode-se dizer que a contradição que oca-siona a transição do modo de produçãofeudal ao modo de produção capitalista éinterna e derivada, ou seja, o desenvolvi-mento das forças produtivas do modo deprodução feudal gerou elementos contra-ditórios que criaram condições para o sur-gimento dos elementos que compõem omodo de produção capitalista. Assim, aRevolução Inglesa de 1640 foi necessáriapara que o Estado absolutista (feudal) setransformasse em Estado capitalista, paraa viabilização da substituição do trabalhocompulsório pelo trabalho livre, condiçãosine qua non para o desenvolvimento dasforças produtivas capitalistas em detrimen-to das forças produtivas feudais, ou seja,para o desenvolvimento do mercado decompra e venda de força de trabalho e,portanto, para o desenvolvimento do pró-prio modo de produção capitalista. Parafinalizar essa análise, pode-se dizer que asclasses sociais que dirigiram o processo re-volucionário tiveram como causa de suaformação o processo de desenvolvimento(feudal) do comércio, das cidades e da ma-nufatura, o que caracterizou os últimosséculos do feudalismo. Ressaltamos, as-sim, que o desenvolvimento das forçasprodutivas criou condições derivadas paraa possibilidade dessa transição.