MARISTELA SCHIABEL ADLER APRENDIZADO EM … · a implantação do Projeto Político Pedagógico...

154
MARISTELA SCHIABEL ADLER APRENDIZADO EM CONSTRUÇÃO: As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos Tese apresentada à Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina, para obtenção do título de Doutor em Ciências. São Paulo 2016

Transcript of MARISTELA SCHIABEL ADLER APRENDIZADO EM … · a implantação do Projeto Político Pedagógico...

  • 1

    MARISTELA SCHIABEL ADLER

    APRENDIZADO EM CONSTRUO:

    As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da

    Universidade Federal de So Carlos

    Tese apresentada Universidade

    Federal de So Paulo Escola Paulista

    de Medicina, para obteno do ttulo de

    Doutor em Cincias.

    So Paulo

    2016

  • 2

    MARISTELA SCHIABEL ADLER

    APRENDIZADO EM CONSTRUO:

    As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da

    Universidade Federal de So Carlos

    Tese apresentada Universidade

    Federal de So Paulo Escola Paulista

    de Medicina, para obteno do ttulo de

    Doutor em Cincias.

    Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian

    So Paulo

    2016

  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO

    DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE

    COLETIVA

    CHEFE DO DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA: Profa. Dra.

    Rebeca de Souza e Silva.

    COORDENADORA DO PROGRAMA DE PS GRADUAO EM SADE

    COLETIVA: Profa. Dra. Suely Godoy Agostinho Gimeno

  • 4

    Adler, Maristela Schiabel Aprendizado em construo: as vozes da primeira turma da Faculdade

    de Medicina da Universidade Federal de So Carlos / Maristela Schiabel Adler. So Paulo, 2016.

    154f.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Ps-graduao em Cincias. Ttulo em ingls: Knowledge under construction: the voices of the first class of graduates from the Universidade Federal de So Carlos Medical School.

    1. Educao de graduao em medicina. 2. Aprendizagem baseada em competncias. 3. Aprendizagem baseada em problemas. 4. Sistema nico de Sade. 5. Humanizao da assistncia

  • 5

    MARISTELA SCHIABEL ADLER

    APRENDIZADO EM CONSTRUO:

    As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da

    Universidade Federal de So Carlos

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian

    Profa. Dra. Fabola Holanda

    Profa. Dra. Sylvia Helena Souza da Silva Batista

    Prof. Dr. Valdir Reginato

    Profa. Dra. Wania Maria Papile Galhardi

  • 6

    Dedicatria

    Dedico este trabalho a

    meu marido Ubiratan e a meu filho Thales,

    pelo imenso incentivo aos meus sonhos de realizao.

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus pelo caminho trilhado.

    Agradeo a meu marido Ubiratan, por me incentivar a no desistir do doutorado.

    Agradeo a meus eternos queridos (marido Ubiratan e filho Thales), pelo amor

    que me dedicaram, o que me deu foras e possibilitou perseverar e concluir este

    estudo.

    Agradeo aos colaboradores que me autorizaram a abrilhantar a Tese com suas

    vivncias, sem as quais este estudo no existiria.

    Agradeo ao Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian pelo privilgio de ser,

    mais uma vez, meu orientador, meu mestre amigo.

    Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva da UNIFESP, aos

    colegas e professores, pelo aprendizado que me proporcionaram.

    Agradeo ao Departamento de Medicina da UFSCar, pela acolhida amigvel que

    possibilitou o trabalho de campo da pesquisa.

  • 8

    Para ser grande, s inteiro:

    Nada teu exagera ou exclui.

    S todo em cada coisa.

    Pes quanto s no mnimo que fazes.

    Assim em cada lago a Lua toda brilha,

    Porque alta vive.

    Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

  • 9

    RESUMO

    Introduo: O ensino mdico no Brasil passa por reformas curriculares que

    objetivam integrar dimenses intelectivas, afetivas e relacionais e que valorizam

    o pensamento crtico-reflexivo, o autogerenciamento do estudo e a formao

    prtica integrada ao SUS. Em busca de um modelo pedaggico que

    contemplasse essas tendncias atuais, a Universidade Federal de So Carlos

    (UFSCar) implantou, em 2006, a Faculdade de Medicina da UFSCar, cujo

    currculo construtivista, baseado em competncias, molda um aprendizado

    baseado na prtica e integrado ao SUS. Objetivo: Este estudo teve como

    objetivo analisar as percepes de docentes e alunos da Primeira Turma (Turma

    de 2011) sobre os primeiros anos da Faculdade de Medicina da UFSCar.

    Mtodos: A metodologia empregada foi a Histria Oral de Vida, com a produo

    de narrativas de docentes e estudantes do curso, para a coleta e anlise

    qualitativa dos dados. Resultados: as narrativas sugerem que o currculo

    favoreceu o desenvolvimento de competncias como capacidade de busca,

    pensamento crtico-reflexivo e autogerenciamento do aprendizado, apesar de

    relatos de resistncia implementao do currculo, deficincias em

    infraestrutura e planejamento insuficiente. A prtica integrada ao SUS,

    especialmente nas Unidades de Sade da Famlia (apesar das limitaes

    tcnicas e conflitos polticos), aprimorou as dimenses intelectivas, relacionais e

    afetivas do cuidado dos pacientes, favorecendo a autonomia profissional. As

    habilidades ticas e humansticas, assim como os conflitos e desafios,

    permearam todas as atividades pedaggicas, convergindo para uma prtica

    mdica humanista e humanizada.

  • 10

    ABSTRACT

    Background: Medical education in Brazil undergoes curricula reforms aiming at

    integrating intellectual, affective and relational dimensions and valorizing critical

    and reflective thinking, self-management and practical training integrated with the

    Brazilian health system (SUS). In search of a pedagogical model that could

    address those current trends, the Universidade Federal de So Carlos (UFSCar)

    established in 2006 the UFSCar Medical School, whose constructivist,

    competency based curriculum frames a practice based learning integrated into

    the SUS. Objective: The objective of this study was to analyze the perceptions

    of teachers and students from the first Class of graduates (Class of 2011) about

    the first six years of the UFSCar Medical School. Methods: The methodology

    used was the Life Oral History producing narratives from docents and students

    for qualitative data collection and analysis. Results: Despite reports of resistance

    to curriculum implementation, infrastructure deficiencies and insufficient

    planning, the narratives suggest that the curriculum favored the developement of

    competencies such as search capability, critical and reflective thinking self-

    manadged learning. The practice integrated into the SUS, especially within the

    Family Health Unities, (besides technical limitations and political conflicts)

    improved intellective, relational and affective dimensions of patient care, favoring

    professional autonomy. Ethical and humanistic skills, as well as conflicts and

    challenges permeated all pedagogical activities, converging to a humanistic and

    humanized medical practice.

  • 11

    LISTA DE ABREVIATURAS

    Abreviatura Nome

    ABEM Associao Brasileira de Educao Mdica

    APS Ateno Primria Sade

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CEP Conselho de tica em Pesquisa

    CNE Conselho Nacional de Educao

    ConsUni Conselho Universitrio

    DMed Departamento de Medicina

    DCN Diretrizes Curriculares Nacionais

    ENADE Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio

    EP Educao Permanente

    EPM Escola Paulista de Medicina

    ESPP Estao de Simulao da Prtica Profissional

    FAMEMA Faculdade de Medicina de Marlia

    FMRP-USP Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto - USP

    FMUSP Faculdade de Medicina da USP

    Gastro Gastroenterologia

    G.O. Ginecologia e Obstetrcia

    HC Hospital das Clnicas

  • 12

    HC de Ribeiro Hospital das Clnicas de Ribeiro Preto - USP

    IAMSP Instituto de Assistncia Mdica ao Servidor Estadual

    MEC Ministrio da Educao

    OMS Organizao Mundial de Sade

    PBL Problem Based Learning

    Pneumo Pneumologia

    Ps-doc Ps-doutorado

    PP Prtica Profissional

    PPP Projeto Poltico Pedaggico

    PROMED Programa de Incentivo s Mudanas Curriculares

    para as Escolas Mdicas

    PR-SADE Programa Nacional de Reorientao na Formao

    Profissional em Sade

    P.S. Pronto Socorro

    PSF Programa de Sade da Famlia

    PUC Pontifcia Universidade Catlica

    RX Raio X (exame de imagem)

    SFC Sade Famlia e Comunidade

    SISU Sistema de Seleo Unificada

    SP Situao Problema

    SPDM Associao Paulista para Desenvolvimento da Medicina

    SUS Sistema nico de Sade

    TBL Team Based Learning

    UBS Unidade Bsica de Sade

  • 13

    UEL Universidade Estadual de Londrina

    UFSCar Universidade Federal de So Carlos

    UNESP Universidade do Estado de So Paulo

    UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

    UNIFESP Universidade Federal de So Paulo

    USP Universidade de So Paulo

  • 14

    SUMRIO

    Dedicatria..........................................................................................................6

    Agradecimentos...................................................................................................7

    Resumo...............................................................................................................9

    Abstract..............................................................................................................10

    Lista de Abreviaturas e Siglas............................................................................11

    1. INTRODUO...............................................................................................16

    1.1 Histria do Projeto........................................................................................16

    1.2 A proposta da pesquisa.................................................................................20

    1.3 O Ensino Mdico e o caminho das mudanas...............................................23

    1.4 Metodologias Ativas e o Ensino Mdico: potenciais pedaggicos para

    preparar o futuro profissional cidado................................................................34

    1.5 O SUS como cenrio de prtica mdica........................................................41

    1.6 Por trs das atividades curriculares..............................................................45

    1.6.1 A formao humanista e a humanizao ................................................50

    1.7 O Projeto Poltico Pedaggico da Faculdade de Medicina da Universidade

    Federal de So Carlos..................................................................................57

    2.OBJETIVOS................................................................................................. ..62

    2.1.1 Objetivo Geral.........................................................................................62

    2.1.2 Objetivos Especficos..............................................................................62

    3.TRAJETRIA DA PESQUISA........................................................................63

    3.1 O percurso metodolgico..............................................................................63

    3.2 Populao estudada.....................................................................................63

    3.3 Aplicao do instrumento de avaliao.........................................................63

    3.3.1 Histria Oral de Vida..................................................................................64

    3.3.2 Projeto para realizao das Histrias Orais de Vida.....................68

    3.3.2.1 Objetivos e justificativa............................ ..................................68

    3.3.2.2 Definio de Comunidade de Destino e Colnia.........................68

    3.3.2.3 Formao da Rede.................................. ..................................69

    3.3.2.4 Pr-entrevista...........................................................................69

    3.3.2.5 Entrevistas....................................................... .........................70

  • 15

    3.3.2.6 Caderno de Campo.................................. ..................................70

    3.3.2.7 Anlise das Narrativas............................. ..................................71

    4. RESULTADOS.................................................................................73

    4.1 Narrativas............................................... .......................................73

    5. DISCUSSO..................................................................................................74

    5.1 Desafios da Educao Mdica.................................................................75

    5.2 SUS: o cenrio inacabado.......................................................................95

    5.3 Metodologias que causam estranheza..................................................104

    5.4 Tutores e Tutorados Os Sonhos e a Realidade...................................115

    5.5 Formao mdica para alm das DCN..................................................121

    5.6 O humanismo e a humanizao que saram do

    discurso......................................................................................................128

    6.CONSIDERAES FINAIS..........................................................................133

    7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................138

  • 16

    1. INTRODUO

    1.1. Histria do Projeto

    Como autora principal deste estudo, devo aqui me declarar grande admiradora

    no s da Arte de Curar como da Arte de Educar. Graduada em Medicina h 25

    anos, com Mestrado em Ensino das Cincias da Sade pelo Centro de

    Desenvolvimento do Ensino Superior em Sade (CEDESS/UNIFESP), atuo

    como mdica e sou docente do Ensino Superior.

    Em 2011, aps a aprovao do Projeto de Pesquisa para meu doutorado, pelo

    Conselho de tica em Pesquisa (CEP) e com a autorizao do chefe do

    Departamento de Medicina da UFSCar, iniciei a coleta de dados deste estudo

    que durou um ano.

    Para auxiliar o leitor na compreenso do meio e das relaes, nos quais aspirei

    mergulhar (MINAYO, 2004), descrevi a trajetria percorrida, utilizando-me das

    anotaes feitas no Caderno de Campo. Porm, no pretendi aqui realizar um

    trabalho etnogrfico, mas um roteiro para melhor entendimento da pesquisa.

    No momento em que iniciei o trabalho de campo, voltava de uma estadia de dois

    anos na cidade de Berlim (Alemanha). Paulistana de corao h dezoito anos e

    depois de viver por mais dois em outro pas, deslocada no tempo e espao, havia

    me estabelecido em So Carlos trs meses antes da coleta. Como todos que se

    mudam vrias vezes de cidade, j no reconhecia de onde era. Seria eu de

    algum lugar?

    Isso causava em mim um certo desconforto. A ausncia do pas e do meio

    acadmico, no me permitiam mais a sensao de pertencer a algum lugar,

    cidade ou universidade, mesmo recebendo amplo apoio de meu orientador. Mas

    enfim, estava ali para realizar a pesquisa.

  • 17

    Formada pela mais tradicional metodologia de ensino, ansiava por compreender

    a implantao do Projeto Poltico Pedaggico (PPP) da Faculdade de Medicina

    da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) que tinha como base o

    construtivismo e as prticas metodolgicas ativas.

    O que me fez pensar em ser possvel a realizao de tal pesquisa foi o trabalho

    historiogrfico sobre os 75 anos da Escola Paulista de Medicina: 75X75

    EPM/UNIFESP, UMA HISTRIA, 75 VIDAS (GALLIAN, 2008) e RECORTES

    DA MEMRIA (GALLIAN, 2009) que trouxe por 75 narrativas de Histrias Orais

    de Vida, a possibilidade de apropriao da histria dos 75 anos do Hospital So

    Paulo.

    Estava familiarizada com as narrativas de Histria Oral de Vida, pois j havia

    utilizado a metodologia em minha tese de mestrado TRANSFORMANDO

    MDICOS: Experincias de aprendizado em Homeopatia nos relatos de

    egressos do Curso de Especializao da Faculdade de Medicina de Jundia

    (ADLER, 2008. p.1).

    Com a gratificante experincia do mestrado, pareceu-me uma janela de

    oportunidade avaliar a primeira turma de formandos pelo Departamento de

    Medicina (DMed) da UFSCar, especialmente por se tratar de um curso de

    Medicina que propunha uma ruptura com modelos flexnerianos de ensino.

    A receptividade do DMed da UFSCar foi positiva. Alguns docentes mostraram

    extrema solicitude. Apresentaram-me as instalaes e ofereceram suas salas

    para a realizao das entrevistas. Dessa forma, comecei a me sentir mais

    vontade para a realizao iniciar a pesquisa.

    O campus da UFSCar amplo e arborizado. O prdio da Medicina moderno,

    espaoso, arejado. As salas para graduao possuem mesas ovais com dez a

    doze cadeiras (espao para discusses tericas), lousa, flipchart, ventilador e

    datashow. Tudo muito novo e limpo.

  • 18

    Os primeiros contatos com os entrevistados foram frutferos. Porm, em novos

    contatos percebi haver certa animosidade. Vrios alunos contatados por e-mail

    e/ou telefone, no davam retorno. Quando conseguia estabelecer algum tipo de

    comunicao, diziam-se ocupados ou no terem interesse na realizao das

    narrativas.

    Algo semelhante aconteceu com parte dos docentes. Alguns, a quem solicitei a

    entrevista, depois de me interrogarem sobre meus antecedentes, a qual

    universidade estava vinculada, o nome do meu orientador, se a pesquisa havia

    sido aprovada pelo CEP, se havia um Termo de Consentimento Livre e

    Esclarecido recusavam-se a ser entrevistados, deixando claro que no queriam

    falar sobre o assunto. Tal resistncia se dava mesmo eu sendo apresentada por

    seus pares que faziam questo de explicar o intuito da pesquisa.

    Dessa forma, comprovei que o pesquisado tambm possui um olhar

    antropolgico do qual o pesquisador no pode se esquivar, muito pelo contrrio,

    ele interroga, pede explicaes e exige do pesquisador a no iseno das

    responsabilidades de sua explorao.

    Com algumas ideias preconcebidas, segundo Malinowski (1976), parte do

    observador e de qualquer trabalho cientfico, fui a campo e iniciei as entrevistas.

    No entanto, medida que o trabalho evolua, todo meu arsenal de ideias pr-

    concebidas foi desconstrudo. Novas concepes, interrogaes e olhares

    tomaram corpo no estudo com as narrativas.

    No trabalho de campo efetivo, a comparao dos dados e a tentativa da sua articulao revelaro falhas e lacunas frequentes na informao, o que, por seu turno, incitar ao prosseguimento da investigao (MALINOVISKI, 1976, p.26).

    Interessante observar a imerso gradual que o pesquisador experimenta, como

    no meu caso, na realizao de um projeto de pesquisa cuja metodologia envolve

    o trabalho com Histrias Orais. Trs meses aps o trmino das entrevistas com

    os estudantes e faltando apenas trs entrevistas com docentes, prestei um

    concurso para docente do Departamento de Medicina da UFSCar e desde ento,

  • 19

    parafraseando Clifford Geertz navego em vrios mares ao mesmo tempo

    (GEERTZ, 2005, p. 104).

    E do lugar da pesquisadora, mdica, hoje docente do DMed UFSCar que me

    proponho a apresentar o germe de um novo modo de compreender e fazer o

    ensino mdico no Brasil.

  • 20

    1.2 A proposta da pesquisa

    O discurso sobre a necessidade de se melhorar e humanizar a prxis mdica,

    prprio do tempo presente, influencia de forma direta os modelos de ensino-

    aprendizagem das escolas mdicas brasileiras (GOMES e REGO, 2011).

    O pensamento cartesiano e o modelo biomdico predominaram no sculo XX.

    Foi adotada pela academia uma prtica determinista que tinha por objetivo, o

    rpido controle do maior nmero de casos de doena (CAPRA, 1983;

    MACHADO, 1997; S 2000). Como consequncia, a racionalidade sobrepujou a

    frao arte do exerccio da Medicina, sufocando-a e expropriando-a de suas

    dimenses socioculturais (LUZ, 1996; SIQUEIRA, 2002; REGINATO, 2009).

    A priorizao do cuidado sade centrado na doena, a superposio da

    Medicina Diagnstica e a excessiva valorizao das especialidades, limitou a

    ampla compreenso do ser humano e seu adoecer. O mdico tornou-se refm

    de uma prtica fragmentada e de baixa resolutividade, onde a quantidade se

    sobreps qualidade, gerando crticas e insatisfaes, intensificadas no final do

    milnio, em relao ao tecnicismo, especializao precoce e excessiva

    medicalizao da sociedade (SIQUEIRA, 2002; CANGUILHEM 2006;

    REGINATO, 2009).

    Propostas de novos modelos para o cuidado sade incentivaram mudanas

    curriculares, no Brasil, pelas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da

    graduao em Medicina que privilegiaram uma formao generalista, humanista,

    crtica, reflexiva e tica, capaz de aes de promoo, preveno, recuperao

    e reabilitao da sade, visando uma assistncia integral ao ser humano, com

    responsabilidade social (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001).

    Em busca de novos caminhos, algumas faculdades de Medicina promoveram

    alteraes curriculares. Como exemplo, temos as pioneiras - Faculdade de

    Medicina de Marlia (FAMEMA) e Faculdade de Medicina da Universidade

    Estadual de Londrina (UEL) que mudaram seus currculos e estruturaram os

  • 21

    modelos pedaggicos segundo a Aprendizagem Baseada em Problemas ou

    Problem Based Learning (PBL) (KOMATSU, ZANOLLI, LIMA, 1998; BERBEL,

    1998; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; BARROS e LOURENO, 2006;

    MINISTRIO DA EDUCAO e MINISTRIO DA SADE, 2006; UEL

    PROGRAD, 2015).

    Apesar das DCN e de incentivos financeiros, a exemplo do Programa de

    Incentivo s Mudanas Curriculares para as Escolas Mdicas (PROMED), ainda

    existem escolas onde a interdisciplinaridade e as prticas metodolgicas ativas

    pouco se desenvolveram. Nessas escolas, a falta de sintonia entre a prtica

    mdica e as prementes necessidades de sade da populao mostraram que

    seus modelos assistencial, pedaggico e tecnocientfico reclamam reformas

    para a formao profissional que se deseja (MINISTRIO DA SADE, 2002;

    GARCIA, 2007).

    Atualmente, uma das alavancas das alteraes curriculares tem sido a insero

    precoce dos estudantes na prtica que visa a aprendizagem da integralidade do

    cuidado, prxima realidade. Tal interao foi potencializada pelas DCN de 2014

    que definiram uma maior carga horria na Ateno Primria e Servios de

    Urgncia para os anos do Internato (NEUMANN e MIRANDA, 2012; BRASIL,

    2013; ADLER e GALLIAN, 2014).

    Em novos modelos curriculares, abre-se a oportunidade de considerar

    concepes amplas de sade-doena, modelos de ateno e polticas pblicas

    de sade par a formao mdica. A participao conjunta de docentes, alunos,

    gestores, preceptores, agentes comunitrios e outros profissionais da rea da

    sade pode proporcionar uma formao abrangente e de melhor qualidade. Para

    tanto necessrio alto investimento na capacitao de profissionais e de

    infraestrutura, o que para o Brasil ainda no realidade (LAMPERT e ROSSONI,

    2004; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; NOGUEIRA, 2009; SANTOS, 2013).

    Em consonncia com as DCN de 2001, a Universidade Federal de So Carlos

    inaugurou em 2006 a graduao em Medicina, cujo PPP fundamenta-se em trs

    pressupostos: currculo orientado por competncia, abordagem educacional

  • 22

    construtivista e a integrao teoria-prtica voltada para o SUS (MEDICINA

    UFSCar, 2007).

    Ao formar sua primeira turma, a Faculdade de Medicina da UFSCar completou

    um ciclo de seis anos sob modelo curricular, cuja proposta foi a inovao.

    Baseado em prticas metodolgicas ativas e na formao em servio, ofereceu

    diferentes perspectivas para a formao mdica atual.

    A ideia inicial do estudo foi ouvir alunos, docentes e preceptores sobre o

    processo de formao mdica da UFSCar, nos seis primeiros anos de

    estruturao do Curso. Porm, na procura dos entrevistados, no foram

    encontrados preceptores que tinham percorrido o trajeto dos seis anos do Curso

    com os estudantes e docentes. A rotatividade dessa categoria dentro das

    Unidades de Sade e do Curso era alta. Assim, os possveis colaboradores

    preceptores tinham um perfil que fugia ao objetivo proposto pelo estudo.

    Durante o trabalho de campo, ento, a estratgia para a pesquisa foi

    concentrada na coleta das narrativas de alunos e docentes que participaram dos

    seis anos de implantao do Curso, com a questo disparadora: Tomando como

    sustentao as DCN, qual a sua opinio sobre o modelo de formao mdica

    aplicado na UFSCar e como se sentiu fazendo parte desse processo?.

    Como objetivo, esta pesquisa pretendeu apresentar a trajetria de construo da

    Faculdade de Medicina da UFSCar, cujos tijolos, prdios e argamassa

    constituem-se de seres humanos e suas aes afirmativas do trabalho dirio de

    formao, cerne do processo de ensino-aprendizagem de qualquer currculo. E

    ousa fazer um questionamento: Seria possvel formar um mdico para alm das

    competncias exigidas pelas DCN que operasse a subjetividade e as dimenses

    biopsicossocial e ambiental de forma humanizada?

  • 23

    1.3 O ensino mdico e o caminho das mudanas

    A vida curta, a Arte longa, a ocasio fugidia, a experincia enganadora, o

    julgamento difcil (Hipcrates, apud SCLIAR, 1996, p.30).

    Atualmente, a educao mdica desafiada a formar profissionais por

    competncias e deve abranger as dimenses cognitiva, tcnica, integrativa,

    contextual, relacional, afetiva, moral e hbitos mentais. Prioriza o aprendizado

    centrado na individualidade do estudante e voltado para o desenvolvimento de

    um pensamento crtico e reflexivo. Pauta-se na valorizao do conhecimento

    generalista e na integralidade do cuidado sade, intencionando reduzir o

    descompasso entre o ensino e as necessidades sociais (EPSTEIN, 2002;

    BATISTA e BATISTA, 2004; NOGUEIRA, 2009).

    Na evoluo mais do que intrigante do ensino mdico, necessrio se faz

    referendar os primeiros apontamentos da compreenso do adoecer e do

    cuidado, impressos nas pginas da Medicina pelos povos das antigas

    civilizaes. Desde os Vedas e a Medicina Chinesa, o Cdigo de Hamurabi e os

    Escritos Cuneiformes dos babilnicos, os egpcios e suas Casas da Vida e os

    escritos do Antigo Testamento, a Medicina privilegiou a economia humana de

    forma integral e se comps com o cuidado religioso. Os iniciados na arte de curar

    eram convidados a compreender e confortar corpo e alma (OLIVEIRA, 1981;

    SCLIAR, 1996).

    Foi na pessoa de Hipcrates que o pensamento mdico passou a ser

    observacional, porm no compartimentado. Em um tempo de ebulio do

    pensamento filosfico, Hipcrates foi para alm da metafsica e, pela observao

    minuciosa dos pacientes, as primeiras anotaes do exerccio da Medicina

    ocidental. Uniu a observao ao raciocnio na mxima que ressaltou a

    importncia do bom senso e da tica do mdico: primum non nocere1

    (OLIVEIRA, 1981; SCLIAR, 1996).

    1 Primeiramente no fazer o mal.

  • 24

    Hipcrates comparou o ensino da Medicina ao cultivo das plantas. A disposio

    do aluno seria o terreno; a instruo prvia, a sementeira; a escola mdica, os

    nutrientes; o processo de ensino seria a mo de obra e o tempo, o fortalecedor

    do todo at a maturao. Tinha a impercia por m qualidade, fruto da ignorncia

    que levava o paciente desconfiana e insatisfao. Nas escolas mdicas

    gregas, o discpulo devia possuir qualidades morais e ticas essenciais ao

    exerccio da profisso (OLIVEIRA, 1981; DIAS DE MORAES, 2003).

    A Medicina grega predominou at a Idade Mdia (500-1000 d.C.), onde Galeno

    (130-200 d.C.), modificando o modus operandi da Escola Hipocrtica com teorias

    especulativas, vinculou a doena ao pecado e influenciou o pensamento mdico

    por quatorze longos sculos (OLIVEIRA, 1981; SCLIAR, 1996).

    A cincia observacional renasceu com as Sociedades Cientficas e nos

    experimentos de homens como Willian Harvey, Edward Jenner e Samuel

    Hahnemann (OLIVEIRA, 1981). E foi no sculo XIX que a produo do

    conhecimento mdico tomou vulto sem precedentes com descobertas que

    transmutaram o entendimento mdico para a molcula e o microrganismo

    (OLIVEIRA, 1981; MACHADO, 1997).

    O conhecimento mdico firmou-se no materialismo biolgico e se afastou das

    reas do pensamento livre. Da influncia do paradigma cartesiano sobre o

    adoecer, resultou o modelo que a base conceitual da cincia mdica ocidental:

    o modelo biomdico. Definido por George Engel como a Medicina com noes

    do corpo como uma mquina, da doena como consequncia de uma avaria na

    mquina e da tarefa do mdico como conserto dessa mquina" (George Engel,

    apud CAPRA, p.102).

    Abraham Flexner, nos EUA, orientou mudanas curriculares que acentuaram a

    viso cartesiana de causa e efeito e o domnio cientificista da prtica. E nosso

    pas imitou-o, criando um currculo pragmtico e fragmentado (NEVES, NEVES,

    BITENCOURT, 2005; PAGLIOSA e DA ROS, 2008).

  • 25

    A Medicina Cientfica do sculo XX, trouxe possibilidades de diagnstico e

    tratamento inimaginveis em tempos pr-cientficos. Renovou concepes e

    possibilitou o acesso ao conhecimento a velocidades estonteantes.

    Paradoxalmente, a oportunidade da experincia e da reflexo, inerentes para a

    formao e transformao dos homens, tornou-se cada vez mais rara (SCLIAR,

    1996; BONDIA, 2002).

    Matrias relacionadas ao conhecimento humanstico foram retiradas das grades

    oficiais, desprovendo-as de base filosfica e cultural. O estudo do homem

    mquina tornou-se mais importante o do que do homem pensante. O

    determinismo predominou sobre a liberdade (MACHADO, 1997; PEREIRA

    NETO, 2001; SILVA, 2002; KEMP e EDLER, 2004; COOKE, 2006; PAGLIOSA

    e DA ROS, 2008). A medicina deixava de se apoiar nas cincias humanas para

    se sustentar essencialmente nas cincias exatas e biolgicas (GALLIAN, 2000).

    A diviso do currculo em ciclos bsico e clnico desarticulou o ensino mdico.

    As faculdades organizaram seus contedos programticos numa racionalidade

    basicamente positivista e organicista. A Semiologia e Propedutica Mdicas

    tornaram-se desinteressantes frente Medicina Diagnstica. No novo modelo

    acadmico, as especialidades marcaram seus territrios com a viso da parte e

    no do sujeito. Dividiu-se o indivisvel (LUZ 1996; MACHADO, 1997; S, 2000;

    SIQUEIRA, 2002; REGINATO, 2009).

    Seguiu-se compartimentalizao do currculo, a fragmentao do saber. A

    aprendizagem voltou-se para a especificidade de rgos, para a taxonomia

    diagnstica e o forte apelo do aparato tcnico triunfou sobre a observao, sobre

    a reflexo e sobre a compreenso do cuidado em sade. A ao mdica voltou-

    se para a doena e no mais para o doente. O pensar do paciente, o sentir, sua

    vontade e as suas dimenses socioculturais foram praticamente abolidos dos

    currculos. Os saberes biolgicos foram valorizados a tal ponto que foi como se

    a mente estivesse separada do corpo e o homem no fosse um ser relacional

    (LOWN, 1996; CANESQUI, 2000).

  • 26

    No Brasil, a Reforma Universitria de 1968 privilegiou a formao tcnica e

    engessou ainda mais os currculos. O aumento do nmero de vagas das

    faculdades acentuou a verticalizao do ensino e distanciou o docente dos

    alunos (COELHO, 1992; ZUARDI, 2009).

    Nas ltimas dcadas do sculo XX, docentes e estudantes se viram refns de

    um ensino reducionista, mecanicista, de uma prtica utilitarista e sem exigncia

    de dimenses abrangentes, o que resultou no distanciamento da arte mdica, do

    doente e de suas necessidades de sade. O modelo desenvolvido dentro dos

    hospitais-escola (responsveis por 86% da carga horria prtica da graduao

    e principal cenrio na formao at os dias atuais) fez o estudante aprender

    exausto o incomum e perder contato com doenas do cotidiano.

    Silenciosamente, tcnicas e recursos de ponta tomaram espao e a

    especializao precoce volveu-se em lugar comum (CAMPOS, 1999;

    SIQUEIRA, 2002; DICHI e DICHI, 2006).

    Outro prejuzo para o ensino mdico foi a confuso entre cincia e horas do

    docente para a graduao. A valorizao da pesquisa em detrimento do ensino,

    obrigou o docente a excessivas publicaes e o afastou do processo de ensino-

    aprendizagem e de sua prtica, o que resultou em descontentamento tanto por

    parte dos alunos como dos prprios docentes (ORTEGA y GASSET, 1999).

    O exerccio da Medicina tornou-se tcnico e impessoal. O mdico, vtima do

    aparelho formador foi transformado em um profissional treinado para leitura de

    variveis biolgicas. A viso antropocntrica do modelo biomdico substituiu o

    dilogo entre profissional e paciente, por diagnsticos e frmacos. O olhar parcial

    do doente e a exigncia de atendimentos em massa afastou o mdico do

    paciente e diminuiu sua capacidade resolutiva. A consequncia que se seguiu

    foi a insatisfao do paciente, no mais reconhecido como um ser

    biopsicossocioespiritual (CAMPOS, CHAKOUR, SANTOS, 1997; SIQUEIRA,

    2002, TRAVESRO-YEPEZ e MORAES, 2004).

    Entre 1960 e 1980, ficaram evidentes os sinais de esgotamento do modelo

    predominante. A ruptura da relao mdico-paciente, limitadas estratgias de

    ao, a medicalizao do social e a excluso da maior parte da populao do

  • 27

    acesso a servios de sade exigiram mudanas. Autores com Dupuy e Karsenty

    (1979), Foucaut (2006), Canguilhem (2006) propuseram novos modelos de

    cuidados sade, no s a partir do paradigma biolgico, mas sob a ptica

    psicossocial e ambiental para o desenvolvimento de uma abordagem dialtica

    com vrias cincias (FEUERWERKER, 2002; MARINS, 2004; NEVES, NEVES,

    BITENCOURT, 2005).

    No Brasil, os movimentos de Reforma Sanitria e das Conferncias Nacionais

    de Sade, reivindicaram uma poltica pblica de sade universal e de qualidade

    (SOBRAL, 2014), funcionando como disparadores para a criao do Sistema

    nico de Sade (SUS) que possibilitou ao Brasil ter um Sistema Pblico de

    Sade, sob os princpios da universalidade, equidade, integralidade, com

    incumbncia de contribuir para a formao de profissionais na rea de sade. O

    SUS formalizado na lei 8080/90, estabeleceu a indita participao da

    comunidade junto ao Sistema de Sade, por meio dos Conselhos e Conferncias

    de Sade (MINISTRIO DA SADE, 1986; BRASIL, 1988; BRASIL, Lei 8080/90,

    1990; BRASIL, Lei 8142/90, 1990; MINISTRIO DA SADE, 1990; COHN e

    ELIAS, 1996; SANTOS, 2013).

    Os princpios norteadores do SUS apresentaram um conceito sem precedentes

    para todo o pas: Sade um direito de todos e dever do Estado. Foram

    apontados como fatores determinantes e condicionantes de sade a

    alimentao, saneamento bsico, renda, educao, o transporte, acesso a bens

    e servios e outros. Dessa forma, o currculo mdico deveria ser reestruturado

    ao novo pensar, cuja dimenso ultrapassava a concepo restrita de sade

    como ausncia de doena (ALMEIDA FILHO e JUC, 2002; LAMPERT, 2006).

    A flexibilizao dos currculos e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de

    2001 estabeleceram as primeiras mudanas. O mdico deveria ser formado com

    competncias e habilidades para atender s demandas do cuidado integral, do

    mercado de trabalho e da responsabilidade social (BRASIL, 1996; MINISTERIO

    DA SADE, 2000; MINISTRIO DA EDUCAO, 2001; MAIA, 2004).

  • 28

    PERFIL DO FORMANDO EGRESSO/PROFISSIONAL: Mdico, com formao generalista, humanista, crtica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princpios ticos, no processo de sade-doena em seus diferentes nveis de ateno, com aes de promoo, preveno, recuperao e reabilitao sade, na perspectiva, da integralidade da assistncia, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da sade integral do ser humano (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001, p.10).

    Uma srie de iniciativas foram concebidas para aproximar o ensino mdico das

    necessidades da sociedade. Em 1991, o Changing Education: an Agenda for

    Action foi criado pela Organizao Mundial de Sade (OMS) para coordenar e

    sistematizar as necessrias adaptaes do ensino mdico de todo o mundo

    (FEUERWERKER, 2002).

    No Brasil, o Plano Nacional de Extenso Universitria trouxe a proposta de ao

    cidad das universidades. O PROMED e o Programa Nacional de Reorientao

    da Formao Profissional em Sade (PR-SADE) deram apoio financeiro s

    escolas interessadas em adequar seus currculos e estruturas, integrando-os ao

    SUS (MINISTRIO DA EDUCAO, 2000/2001; MINISTRIO DA SADE,

    2002; MINISTRIO DA SADE, 2005).

    A persistirem nas trajetrias que vinham tendo os cursos de graduao correriam o risco de cumprir apenas uma formalidade na vida acadmica, deslocando-se a formao real cada dia mais para um currculo paralelo, este sim, mais aderente a realidade (MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006, p.7).

    As Faculdades de Medicina permaneciam afastadas do SUS. A Ateno

    Primria prestando um atendimento padro queixa-conduta, era pouco

    resolutiva, desumana e desvalorizada. O ensino mdico mantinha-se

    hospitalocntrico, voltado para interesses de mercado e de empresas

    corporativistas, centrado na doena e orientado por uma lgica medicalizante

    (SANTOS, 2003; TESSER, 2006; GARCIA, 2007; RIBEIRO e AMARAL, 2008).

    Sob novos desenhos curriculares, as escolas mdicas comearam a se apropriar

    de paradigmas que compreendiam integralidade e gesto do cuidado,

    humanizao, tica e integrao do ensino ao SUS. Para a sintonia entre

    graduao, SUS e demandas sociais, novas posturas de aprendizagem e ensino

    foram aventadas. A triangulao entre ensino, servio e assistncia, defendida

  • 29

    por Batista e Batista (2004) mostrou-se um possvel caminho para essa

    finalidade.

    Os primeiros Programas de Medicina de Famlia mostraram-se satisfatrios para

    o cuidado na Ateno Primria Sade (APS) e possveis cenrios de ensino-

    aprendizagem. Diferentes abordagens pedaggicas imprimiram graduao

    novo dinamismo do aprendizado: Problem-Based Learning (PBL);

    Apresentaes Clnicas (Clinical-presentation-based) e outros (PAPA e

    HARASYM, 1999; CYRINO e TORALLES-PEREIRA, 2004; GAYLORD, 2007).

    Stewart (2003) apresentou, como modelo de transformao, a Clnica Centrada

    no Paciente que tinha por princpios a preveno e promoo de sade e a

    compreenso do paciente em sua integralidade, sendo ele o centro de toda ao.

    As decises deveriam ser compartilhadas entre mdico e paciente para a tomada

    de decises, visando a corresponsabilidade do cuidado. A autonomia do

    paciente foi outro ponto importante por ele defendido.

    Outras representaes sugeriram as Unidades Sade da Famlia e Comunidade

    (SFC) como cenrios prioritrios de aprendizagem, onde o enfoque abrangente

    e a proximidade mdico-paciente, permitiriam o resgate do subjetivo da clnica.

    A multidisciplinaridade e o trabalho comunitrio e domiciliar com equipes de

    sade auxiliariam na construo de perfis profissionais responsivos s

    necessidades em sade (CAMPOS, 1999; MORETTI-PIRES, 2012).

    Estratgias educacionais foram desenvolvidas para abrigar as dimenses

    biopsicossocial e ambiental do paciente, centradas no estudante e na

    aprendizagem individualizada, aproximando a academia do SUS (LIMA,

    FONSECA, HOCHMAN, 2005).

    Uma das mudanas ocorridas foi a insero precoce do aluno nas Unidades de

    SFC, como proposto por Campos (1999). Outra, foi orientar o ensino e pesquisa

    para problemas de sade da populao assistida. Na interface academia servio,

    a ideia foi a contribuio do docente no Apoio Matricial. Esse conjunto de

    mudanas acadmicas requer investimento na capacitao de docentes e

    profissionais do SUS, alm de adequao da infraestrutura para o trabalho

  • 30

    conjunto. Investimento que at os dias atuais tem sido insuficiente e

    negligenciado, apesar da proliferao de escolas mdicas na ltima dcada

    (LIMA, FONSECA, HOCHMAN, 2005; LAMPERT, 2009; CUNHA e CAMPOS,

    2011; SANTOS 2013).

    Em 2006, um estudo do Ministrios da Educao e Sade (MINISTRIO DA

    EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006) destacou que ainda hoje h

    cursos de Medicina no Brasil com baixo grau de aderncia s DCN, onde a

    interdisciplinaridade e os cenrios de ensino-aprendizagem so deficientes. A

    adequao s DCN algumas vezes parece permanecer no nvel da simples

    reproduo do discurso do Conselho Nacional de Educao (CNE), sem se

    traduzir em prticas que caracterizem a mudana de paradigma proposto

    (MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006, p.155).

    Uma pesquisa realizada com alunos da Faculdade de Medicina da USP

    (FMUSP) revelou que, mesmo aps a reforma curricular em 1998, 79,8% dos

    estudantes mostraram deficincia formativa em Medicina Preventiva e Social e

    pouca compreenso sobre o SUS. O modelo centrado no atendimento

    hospitalar, no sensibiliza o aluno a conhecer o servio pblico e seus nveis de

    atendimento e a limitada integrao entre disciplinas bsicas e

    profissionalizantes dificulta o processo de ensino-aprendizagem (VIEIRA, 2003).

    Na Faculdade de Medicina de Ribeiro PretoUSP (FMRP-USP) a prtica do

    currculo reformulado evidenciou uma superioridade significativa em

    conhecimentos especficos e na prtica mdica, sendo inferiores as habilidades

    cognitivas dos estudantes quando comparadas ao currculo tradicional

    (TRONCON, 2004; PICCINATO,2004, OLIVEIRA, 2012).

    Nos ltimos 28 anos, o nmero de escolas mdicas no Brasil passou de 83 para

    235 (aumento de 283%). Parte delas, a exemplo da Faculdade de Medicina da

    UFSCar, iniciou suas atividades com Projetos Polticos Pedaggicos (PPP)

    embasados nas DCN de 2001, mas a implantao dos novos modelos

    curriculares tem encontrado resistncias internas, estruturais ou sistmicas, ou

    seja, de integrao ao SUS (MEDICINA-UFSCar, 2007; LAMPERT, 2009;

    DAVILA, VITAL, BRITTO, 2014).

  • 31

    Alves (2013) apontou obstculos para as alteraes curriculares desejadas

    advindos da prpria Instituio de Ensino: de docentes (resistncia a mudanas,

    capacitao pedaggica insuficiente e desconhecimento do PPP), de estudantes

    (resistncia prtica na APS e formao generalista) e de servios/gesto do

    SUS (cenrios inadequados para prtica profissional).

    Estudo realizado com egressos do novo currculo da Faculdade de Medicina de

    Marlia (FAMEMA), mostrou a aquisio de competncias profissionais na

    formao humanstica, tica e na segurana para a futura vida profissional. A

    fragilidade apontada foi a incerteza na busca de conhecimento. s vezes nos

    angustiamos por no saber at aonde ir e quando parar, frente complexidade

    de certos temas (M1, 3 srie, masc., 22 anos) (GOMES, 2009, p.9).

    H, portanto, indcios de que as atividades pedaggicas com base no PBL

    propiciem mais dvidas e incertezas em relao ao conhecimento adquirido, se

    comparadas s atividades expositivas. Processo pensado para estimular a

    curiosidade do estudante e a busca de seu prprio aprimoramento. O conceito

    original do PBL foi pensado e direcionado para profissionais maduros, com

    potencial para construir resolues de problemas como parte do processo de

    aprendizagem. Os estudantes, pela imaturidade, tm dificuldades em assimilar

    a metodologia e podem se tornar inseguros frente ao aprendizado (MORAES e

    MANZINNI, 2006; GOMES, 2009; ABDELKHALEK, 2010).

    A despeito dos avanos, a implementao efetiva do que se poderia chamar de

    cuidado integral sade mostra-se deficitria. O aprendizado fortemente

    voltado para o acmulo de informaes e no para a reflexo de atitudes e

    aes, favorecendo a formao de um estudante disperso, defensivo, pouco

    reflexivo sobre si e sobre o outro, seja seu colega, docente ou paciente (ALVES,

    2010; AZEVEDO, RIBEIRO, BATISTA, 2009).

    Firmando novos caminhos para as escolas mdicas, a FAMEMA, a Universidade

    Estadual de Londrina (UEL), a Universidade Federal de Roraima e a UFSCar

    desenvolveram currculos que integram academia e SUS, com prticas

    pedaggicas centradas no estudante e sob metodologias ativas de ensino-

    aprendizagem (BERBEL, 1998; KOMATSU, ZANOLLI, LIMA, 1998;

  • 32

    FEUERWERKER, 2002; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; KOMATSU, 2006;

    BARROS e LOURENO, 2006; MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA

    SADE, 2006; MEDICINA UFSCar, 2007; AQUILANTE, 2011).

    Nesses currculos, o aluno o centro de um aprendizado voltado a processos

    crticos-reflexivos e de autoavaliao, para a construo do conhecimento

    individualizado. As atividades curriculares centram-se em metodologias ativas

    de ensino-aprendizagem. As prticas so desenvolvidas prioritariamente nas

    unidades do SUS, com equipes multiprofissionais e firmam na Estratgia de

    Sade da Famlia (ESF) o modelo de ateno mdica e de integrao academia-

    servios de sade e comunidade (LAMPERT, 2006; ADLER e GALLIAN, 2014).

    Lampert (2009) estudou a adequao de 28 currculos de escolas mdicas

    brasileiras, em relao s DCN de 2001 e ao SUS. Os temas abordados foram:

    PPP, abordagem pedaggica, cenrios de prtica, desenvolvimento docente e

    mundo do trabalho. Classificou as escolas em trs grupos:

    Tipologia Avanada (currculo integrado, orientado por competncia

    profissional, ensino nas APS ao longo dos seis anos sob metodologias

    ativas de ensino-aprendizagem);

    Tipologia Inovadora (currculo tradicional em transformao,

    predominando o modelo hospitalocntrico, com pouco enfoque na

    problemtica do SUS);

    Tipologia Tradicional (modelo flexneriano de currculo, sem interesse na

    participao do SUS).

    Os resultados mostraram que 75% das escolas apresentaram tipologia

    avanada e inovadora, com menor avano no eixo desenvolvimento docente.

    Os docentes defensores do modelo flexneriano so foco de resistncia s

    inovaes, muitas vezes utilizando-o de forma acrtica, servindo-se de

    parmetros educacionais de 1910. Resistncia que a contribuio das Cincias

    Sociais e Humanas ajudam a vencer, ampliando a percepo do homem, do

    adoecer e do cuidado integral (LAMPERT, 2009).

  • 33

    Recentemente, novas Diretrizes Curriculares em Medicina foram publicadas pelo

    Conselho Nacional de Educao. As DCN de 2014 estabeleceram que 30% do

    Internato deve acontecer nas unidades de APS e servios de Urgncia e

    Emergncia do SUS (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2014a;

    MINISTRIO DA EDUCAO, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO,

    CMARA DE EDUCAO SUPERIOR, 2014).

    No momento em que pesquisas de avaliao sobre as mudanas nas escolas

    mdicas comeam a mostrar a consolidao das DCN de 2001, novas DCN so

    impostas academia, sem apreciao das partes interessadas no processo de

    mudana, exigindo adequaes e alteraes de objetivos pr-estabelecidos. Se

    acertadas ou no, no se tem evidncias para concluses: preciso haver

    correspondncia entre os cenrios de prtica e as competncias que se pretende

    alcanar (ASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO MDICA, 2015, p.16).

    Alm disso, imprescindvel ter-se discernimento entre a necessidade do

    compromisso imediato com a prtica mdica e o direito de reflexo com certa

    imunidade s presses do cotidiano (CAMPOS, 2005, p.10) (AGUILAR-DA-

    SILVA, 2009; LAMPERT, 2009; CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2014a).

    O aprendizado prtico, no deve abstrair as dificuldades e dissabores da

    experincia de realizao. O profissional necessita estar preparado para uma

    vida com tempestades, mostrando-se receptor sensvel e estruturado, capaz de

    traduzir e interagir de forma adequada s individualidades do ser humano e seu

    adoecer. Porm, o SUS tem que estar preparado para ser cenrio de ensino-

    aprendizagem e seus trabalhadores capacitados para tal, em seus trs nveis de

    ateno. As equipes de sade, em conjunto academia, devem ser a base

    estruturante desse processo. Para que o aluno esteja durante os seis anos no

    SUS, ele precisa de tutoria adequada e do tempo mnimo para a experincia do

    aprendizado significativo (RIBEIRO, 2001; TRAVERSO-YEPEZ e MORAIS,

    2004; CUNHA e CAMPOS, 2011; SIQUEIRA-BATISTA, 2013).

  • 34

    1.4. Metodologias Ativas e Ensino Mdico: potenciais pedaggicos para

    preparar o futuro profissional cidado.

    Devemos nos convencer de que o objetivo final da educao no o de aperfeioar as noes escolares, mas sim o de preparar para a vida; no de dar o hbito da obedincia cega e da diligncia comandada, mas de preparar para o agir autnomo (PESTALOZZI, apud INCONTRI, 2006, p.96).

    A arte de ensinar teve no passado grandes pensadores e prticos como

    Scrates, o mestre da dialtica. Na obra maior de Comenius (1592-1670),

    Didtica Magna, encontra-se proposies ainda atuais como a construo do

    conhecimento pela experincia da observao e da ao. Pestalozzi mostrou

    que a individualidade do aluno era um ponto chave para a boa aprendizagem,

    onde a intuio auxiliava a instruo (COMENIUS, 2001; KONDER, 1998;

    INCONTRI, 2006).

    As aulas magistrais tornaram-se o maior eixo metodolgico do ensino

    contemporneo. A transmisso vertical ganhou espao e ainda hoje um dos

    mtodos mais usados na graduao. O conhecimento transmitido em aulas

    expositivas, onde os estudantes recebem a informao de forma passiva. Os

    contedos se sobrepem em velocidade estupenda, no permitindo o tempo do

    silncio e da experincia para a necessria reflexo (BOEMIA, 2002; CYRINO e

    TORALLES-PEREIRA, 2004). Aqui, o objetivo informar um extenso contedo

    terico para um grande nmero de alunos, em curto perodo de tempo. No

    necessita de estudo prvio do aluno, que adquire uma noo superficial dos

    contedos a saber, mas no autonomia sobre seu aprendizado e nem

    capacidade de anlise reflexiva para um raciocnio crtico (GOMES e REGO,

    2011; SANTOS, 2011; DEUS, 2014).

    No sculo XX, diferentes concepes sobre a aquisio do conhecimento,

    influenciaram o processo contemporneo de ensino-aprendizagem. Por meio de

    teorias epistemolgicas de Jean Piaget e das observaes de Lev Vygotsky

    originou-se o construtivismo, corrente terica para a qual o desenvolvimento da

    inteligncia determinado por aes entre indivduo e meio. O conhecimento

  • 35

    no se traduz em verdade absoluta, mas modela aes e operaes conceituais

    com base nas experincias. No processo, o professor faz papel de mediador e

    busca fazer com que o aluno desenvolva o melhor de si (VYGOTSKY, 2014,

    GOMES, 2008).

    As abordagens sob o rtulo do construtivismo, apresentam duas caractersticas

    constantes: a aprendizagem acontece no envolvimento ativo do aprendiz e as

    ideias prvias dos estudantes desempenham um papel primordial no processo

    de aprendizagem (MORTIMER, 1996).

    No ensino superior, o construtivismo trouxe como diferencial a mudana do ponto

    central do binmio ensino-aprendizagem. Antes, centrado no professor, centrou

    o aprendizado no aluno e no aprender a aprender (AGUILAR-DA-SILVA, 2009).

    Na contramo do modelo dominante de ensino sob transmisso vertical,

    surgiram aes inovadoras, procurando explorar outras possibilidades de

    ensino-aprendizagem (BATISTA e BATISTA, 2004; CYRINO e TORALLES-

    PEREIRA, 2004).

    O ensino da Medicina tambm buscou novas concepes metodolgicas. Foram

    desenvolvidos modelos de interao, vinculando a formao prtica a Servios

    de Sade. As metodologias ativas de ensino-aprendizagem tambm surgiram

    como alternativas ao ensino tradicional. Trouxeram a autonomia do estudante

    como um ponto central do modelo pedaggico e motivaram o aprendizado com

    o desenvolvimento do raciocnio crtico-reflexivo, estruturado em processos de

    ancoragem na aquisio e sedimentao de novos conhecimentos e buscaram

    desenvolvem habilidades de autogerenciamento do processo formativo, em um

    contexto integrador de teoria e prtica (COLLIVER, 2000; MOREIRA e MASINI,

    2002; TOLEDO JUNIOR, 2008; MITRE, 2008).

    Nesse modelo, o docente deve ter habilidades para conduzir o estudante a uma

    aprendizagem ativa, auxiliar e respeitar seu potencial de desenvolvimento. As

    prticas avaliativas no so punitivas, pois permitem o processo de anlise do

    aprendizado, tornando-o dinmico e ativo (MITRE, 2008).

  • 36

    O Problem Based Learning (PBL) foi uma dessas ferramentas desenvolvidas e

    tem por finalidade promover integrao das reas do conhecimento, fomentar a

    reflexo e estimular o aprendizado profissional contnuo por meio de

    compreenso e resoluo de problemas (COLLIVER, 2000). Baseia-se na

    motivao para o aprendizado, na estruturao do conhecimento em contexto

    clnico e no desenvolvimento do raciocnio clnico e de habilidades para o auto

    aprendizado. O trabalho intencional com problemas, apoia-se na aprendizagem

    por descoberta e significados. O ensino ministrado em pequenos grupos (sete

    a dez alunos) faz parte da sua estratgia central (CYRINO e TORALLES-

    PEREIRA, 2004; TOLEDO JUNIOR, 2008).

    Hoje o PBL tornou-se principal eixo terico de muitos currculos mdicos. Tem

    como linha mestra o aprendizado centrado no estudante e baseia-se em estudos

    de problemas com temas intencionalmente propostos (disparadores), tendo por

    objetivo fazer o aluno estudar determinados contedos. Na prtica curricular,

    auxilia na interdisciplinaridade, no aprendizado cognitivo, crtico-reflexivo,

    articulando as dimenses biolgica, psicologia e social (BERBEL, 1998;

    GOMES, 2009; AQUILANTE, 2011)

    Outro modelo desenvolvido foi o ensino pela Problematizao ou Ensino

    Baseado na Investigao (Inquiry Based Learning). Tendo suas origens no

    construtivismo de Piaget, estimula o aluno a compreender e participar como

    agente de transformao social, pelo contato e busca de solues para

    enfrentamentos em sade. Procura mobilizar o potencial poltico, tico e de

    responsabilidade social do estudante em busca de uma formao profissional

    cidad e participativa. Pode-se ter melhor compreenso da metodologia pelo

    Mtodo do Arco de Charles Maguerez (Figura 1). Nele h cinco etapas serem

    desenvolvidas pelo estudante: observao da realidade, pontos chave,

    teorizao, hipteses de soluo e aplicao realidade (prtica). Segundo

    Berbel (1998) o docente auxilia na dialtica ao-reflexo-ao, dentro de uma

    determinada realidade social e o estudante tem a possibilidade de compreender

    a responsabilidade da sua prtica (BORDENAVE e PEREIRA, 1991; BERBEL,

    1998; MITRE, 2008).

  • 37

    Figura 1: Mtodo do Arco de Charles Maguerez (BORDENAVE e PEREIRA, 1991, p. 10).

    O PBL e a Problematizao hoje fazem parte de alguns currculos reformulados.

    Apesar de ambas serem metodologias nas quais a aprendizagem acontece a

    partir de problemas, so propostas distintas, onde o PBL direciona a organizao

    curricular, como eixo de aprendizagem por meio de situaes elaboradas em

    temas previamente definidos que buscaro estimular no estudante a construo

    do conhecimento (BERBEL, 1998, BATISTA e BATISTA, 2008).

    A Problematizao enfatiza o movimento ao-reflexo-ao (BATISTA e

    BATISTA, 2008, p. 111) onde so consideradas implicaes pessoais,

    contextuais e interaes entre diferentes atores na vida real para a reflexo e

    construo de novos significados de problemas vivenciados, direcionando as

    aprendizagens cada situao da prtica (BATISTA e BATISTA, 2008).

    utilizada para determinados temas de uma disciplina. Possibilita o

    desenvolvimento do binmio ensino-aprendizagem de forma ampla e integrado

    comunidade e permite explorar temas relacionados vida do paciente na

    sociedade em que vive (BERBEL, 1998; VIEIRA e PANNCIO-PINTO, 2015).

    Como inovao, a Estao de Simulao da Prtica Profissional (ESPP) serve

    de apoio pedaggico para o treinamento e desenvolvimento de habilidades

    especficas da prtica mdica. No substitui a aprendizagem prtica real, mas

    auxilia no desenvolvimento de habilidades tcnicas e relacionais, proporciona

    maior segurana para o exerccio da Medicina e assegura maior grau de

  • 38

    autonomia ao estudante, em um ambiente controlado e seguro, com atores

    pacientes (PAZIN FILHO e SCARPELINI, 2007; SILVA, 2012).

    A ESPP desperta no aluno o senso de autoavaliao e autorreflexo na

    construo de novos saberes, ressignificando o antes conhecido e elaborando

    uma representao pessoal sobre seus contedos. Faz parte desse processo de

    aprendizagem o que David Ausubel (1968) props como Aprendizagem

    Significativa. Novas ideias e informaes podem ser aprendidas e retidas, na

    medida em que conceitos inclusivos estejam disponveis na estrutura cognitiva

    do aluno. Os conceitos sedimentados funcionam como ponto de ancoragem para

    novos conhecimentos. Porm, o processo s efetivo quando os conceitos

    propostos apresentarem uma estrutura lgica e significativa para o aprendiz.

    uma experincia diferenciada que permite a aquisio de vasta quantidade de

    informaes de um corpo de conhecimentos (MOREIRA e MASINI, 2002;

    GOMES, 2008; VARGA, 2009). A verdadeira vantagem do conhecimento e do

    saber humanos est na segurana dos fundamentos, de onde eles partem e

    sobre os quais repousam (PESTALOZZI, apud INCONTRI, 2006, p.155).

    Como recurso educacional, o trabalho com Narrativas e o estudo das

    Humanidades e das Artes podem auxiliar na maior percepo do processo

    crtico-reflexivo, no desenvolvimento de habilidades afetivas, relacionais e

    humansticas. Nestas abordagens, a cultura da emoo e da imagem suscitam

    reflexo e a processos de mudanas que influenciam nas atividades do

    cotidiano. Educar as emoes requer estratgias inovadoras modernas que vo

    ao encontro das necessidades do estudante (BLASCO, 2005, p. 119) (DE

    BENEDETTO, BLASCO, GALLIAN, 2013; BITTAR, GALLIAN, SOUSA, 2013).

    Atualmente, o trabalho com Narrativas vem se destacando como outro possvel

    mtodo auxiliar no desenvolvimento das habilidades humansticas e crtico-

    reflexivas dos estudantes (GALLIAN, 2012; BITTAR, GALLIAN, SOUSA, 2013). Na

    Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP) foi criada uma disciplina eletiva

    cuja metodologia baseada em Narrativas em Sade. Utiliza como material trs

    tipos de narrativas: narrativas literrias, narrativas que emergem em cenrios de

    prtica e histrias de vida de pacientes. Em recente estudo, alunos de Medicina

    e Enfermagem dessa disciplina, desenvolveram habilidades humansticas e a

  • 39

    incorporaram prtica de seus cuidados em sade (DE BENEDETTO, BLASCO,

    GALLIAN, 2013).

    Toda mudana gera inseguranas e instabilidades. Nesse processo, a busca de

    aes sedimentadas no xito, ajudam na transformao desejada. Currculos

    com base no PBL, mesclados a metodologias ativas de ensino-aprendizagem

    vm se destacando como respostas aos anseios de mudanas curriculares dos

    cursos de Medicina, desde seus primeiros ensaios na dcada de 1960, na

    McMaster University (TOLEDO JUNIOR, 2008; POLYZOIS, CLAFFEY,

    MATTHEOS, 2010), Maastricht University, faculdades de Medicina norte-

    americanas (PAPA e HARASYM, 1999; GAYLORD, 2007; POLIZOIS, 2010) e

    no Brasil (FAMEMA, 1998; MEDICINA UFSCar, 2007; UEL PROGRAD, 2015).

    Com novos modelos metodolgicos e prticas pedaggicas, abre-se a

    oportunidade de considerar questes relacionadas formao mdica,

    envolvendo concepes amplas de sade-doena, modelos de ateno sade

    e polticas pblicas de sade. O uso de metodologias ativas na graduao

    mdica pode auxiliar na implementao das DCN, mas a eficcia do processo

    no depende apenas do planejamento e gesto curriculares. H necessidade de

    se articular currculo e prtica profissional junto ao Sistema nico de Sade,

    reorientando saberes e prticas para adequ-los realidade brasileira que se

    quer enfrentar (MITRE, 2008; GOMES, 2009).

    As metodologias ativas permitem a capacitao na compreenso bio-psico-

    scio-ambiental do cuidar, alm de estimular a Educao Continuada. Facilitam

    a utilizao de aes integradoras do ensino, possibilitam independncia,

    responsabilidade e preparam o estudante para o trabalho em equipe. Propem

    substituir o ensino mdico tradicional ao priorizar a interdisciplinaridade e a

    integrao terico-prtica (MARIN, 2010; POURSHANAZARI, 2013).

    Na Alemanha, uma pesquisa feita com graduandos em Medicina da Universitt

    Witten/Herdecke, comparou o ensino tradicional e o currculo de PBL, entre os

    anos de 1996 e 2002. Neste estudo, o PBL trouxe benefcios aquisio de

    competncias profissionais, com maior independncia em aprender/ trabalhar e

    a destreza na prtica. J o conhecimento mdico complexo, a competncia para

  • 40

    pesquisa e para administrao/negcios mostraram-se menos desenvolvidos

    com relao ao ensino tradicional (SCHLETT, 2010).

    Uma reviso sistemtica sobre o ensino com base no PBL, em Medicina e

    Odontologia, apontou que os estudantes desenvolveram atitudes para o

    aprendizado profissional contnuo a curto prazo, mas no a mdio e longo prazo.

    Os trabalhos Randomized Controlled Trial (RCTs) e estudos comparativos (todo

    currculo) no apresentaram clara diferena entre PBL e o ensino tradicional.

    Paradoxalmente, os estudos comparativos entre intervenes pontuais de PBL

    e currculo tradicional foram consistentemente a favor das intervenes. Como

    sugesto, o autor destaca que um currculo hbrido, onde se utilize ambas

    metodologias, pode ser uma alternativa adequada para o ensino mdico

    (POLYZOIS, CLAFFEY, MATTHEOS, 2010).

    Outra proposta metodolgica o chamado Team-Based Learning (TBL) que se

    mostra uma abordagem educacional vivel, eficaz e positiva na preparao dos

    alunos para as etapas subsequentes da experincia educacional, quando

    aplicado em conjunto ao PBL (ABDELKHALEK, 2010).

    Para Nestor Schor, professor na UNIFESP/EPM as reformulaes curriculares

    devem acontecer de maneira a ensinar e promover autonomia aos alunos.

    Cada vez mais estou convencido que deve haver grandes aulas magnas. Pegar o professor X que mais entende daquele assunto e dar uma aula que arrepia. O restante, essas besteiras que a gente faz de ficar dando aulinha, isso no serve pra nada. O que salva os nossos alunos que so extremamente qualificados. S precisamos dar mais tempo para eles lerem, cobrar e oferecer tutorias, para tirar dvidas ou para discutir e aprofundar determinados conhecimentos (SCHOR, 2009 apud REGINATO, 2009, p.137).

    As mudanas curriculares mostram-se essenciais, porm no suficientes para

    alterar o perfil do egresso como preconizam as duas ltimas DCN. H que se

    pensar em estratgias de ensino-aprendizagem efetivos para o novo profissional

    que se quer formar (GOMES e REGO, 2011).

    Mas quem acredita na utopia da mudana para um novo mdico crtico e reflexivo, humano e tico precisa tambm agir e criar estratgias, alm do mtodo, em busca de uma formao, ao menos, um pouco melhor... (GOMES e REGO, 2011, p. 563).

  • 41

    1.5 O SUS como cenrio de prtica mdica.

    O homem que esvoaa com facilidade sobre cada conhecimento e no fortalece seu saber empregando-o tranquila e firmemente, este tambm perde o caminho da natureza... (PESTALOZZI apud INCONTRI, 2006, p. 159)

    No panorama de mudanas do ensino mdico, o SUS trouxe como incumbncia

    a ordenao da formao de recursos humanos na rea de sade (BRASIL,

    Lei 8080/90, Artigo 6o, inciso III, 1990) e as DCN de 2001 estabeleceram

    competncias ao profissional, enfatizando a integrao ensino-servio

    (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001; EPSTEIN e HUNDERT, 2002).

    Hoje, aos 25 anos do SUS, permanece o debate sobre aes necessrias para

    a concretizao de um ensino mdico que contemple de forma satisfatria e

    sustentvel, o trip ensino-pesquisa-assistncia junto ao Sistema Pblico de

    Sade (LAMPERT e BICUDO, 2014; OLIVEIRA, 2007).

    Na histria do SUS, as dificuldades que se avolumaram ao longo dos anos

    desviaram o rumo de suas diretrizes e obstaculizaram sua adequao tanto para

    o ensino como para a assistncia. Santos (2013) aponta como obstculos

    maiores o subfinanciamento federal (incluindo repasses fragmentados por

    programas e no por metas de planejamento municipal ou estadual), a

    subveno crescente com recursos federais aos planos privados de sade, a

    rigidez da estrutura administrativa e burocrtica do Estado que impede gastos

    pblicos extremamente necessrios sade da populao e a privatizao da

    Gesto Pblica (CUNHA e CAMPOS, 2011, SANTOS, 2013).

    Nesse contexto, fica claro que o planejado para o SUS, nas dcadas de

    1980/1990, no aconteceu. Hoje a Ateno Primria e equipes de SFC tm

    grande dificuldade em desenvolver um cuidado sade com qualidade. A

    cobertura efetiva da populao, planejada para 100%, oscila entre 30 a 40% e

    mantm baixa sua resolutividade. A gesto, devido falta de recursos

    financeiros, se v obrigada a privilegiar servios de urgncia/emergncia,

    deixando em segundo plano a promoo sade e a preveno de agravos.

    Com esse cobertor curto, a promoo/preveno que deveriam mudar toda a

  • 42

    lgica do Sistema de Sade brasileiro, ficaram restritos a aes pontuais de

    pouco impacto (RODRIGUES, 2013; SANTOS, 2013). "O cenrio do

    atendimento sade no foi alterado por falta de polticas consistentes e de

    financiamento adequado" (MEINO, 2013).

    Foi nesse cenrio que as escolas de Medicina buscaram inserir seus currculos

    e preparar mdicos para a lgica do mundo do trabalho contemporneo,

    privilegiando atividades junto APS. Apresentaram o aluno prtica da

    experincia na complexidade do SUS, auxiliando na construo de redes de

    saberes diversos como o cuidado integral e compartilhado, o trabalho em

    equipes multiprofissionais, a responsabilidade social, entre outros. Fatores que

    implicam na ressignificao de sua prtica, alterando o modo de refletir sobre

    suas aes ao compartilhar experincias e conhecimentos com colegas,

    docentes e profissionais do SUS. O aprendizado interdisciplinar no cenrio do

    SUS, por meio de metodologias ativas de ensino-aprendizagem funciona como

    potencializador do ensino mdico (DEMARZO, 2012; BATISTA e BATISTA,

    2008; SIQUEIRA-BATISTA, 2013).

    Batista e Batista (2008) defendem que a prtica mdica deveria ser o eixo

    estruturante (BATISTA e BATISTA, 2008, p.102) do currculo para efetivao da

    construo do conhecimento a partir de situaes vivenciadas no cotidiano da

    prtica.

    Apesar das dificuldades enfrentadas, exemplo da FAMEMA (MARIN, 2014) e

    da UFSCar (MEDICINA UFSCar, 2007) h uma tendncia de aproximao entre

    ensino mdico e SUS, por meio de gestes compartilhadas e a criao de

    espaos de ensino-assistncia-pesquisa e Educao Permanente para o

    cuidado integral (PUCCINI, SAMPAIO, BATISTA, 2008; LAMPERT e ROSSONI;

    2014).

    Os profissionais do SUS so, em sua maior parte, conhecedores das polticas

    de sade e compromissados com as propostas de transformao. Na integrao

    com os graduandos em equipes multiprofissionais podem ser potencializadores

    do ensino e auxiliares na aquisio de conhecimentos sobre Sade Pblica, de

  • 43

    competncias tcnicas, relacionais e de gesto que so importantes

    aprendizados para o mundo do trabalho, por meio das vivncias prticas

    (ARAUJO, MIRANDA, BRASIL, 2007; BATISTA e GONALVES, 2011).

    No conjunto de adaptaes realidade, as experincias de insero longitudinal

    de disciplinas no SUS e de atividades educativas dos alunos junto populao,

    resultaram no desenvolvimento de vnculos com pacientes e comunidade.

    Aproximaram os estudantes da realidade e contriburam para a compreenso do

    contexto sociocultural da populao assistida, tornando-os aliados para as

    necessrias mudanas da APS (TRONCON, 1999; CECCIM, 2005). Mesmo

    atividades pontuais ou extracurriculares revelaram-se como importantes elos

    entre o ensino, a pesquisa e as prticas no SUS, inclusive em currculos de

    tipologia tradicional e tornam positiva a avaliao dos alunos sobre o SUS

    (FONTANELLA, 2011; NEUMANN e MIRANDA, 2012; ADLER e GALLIAN,

    2014, SOUZA, 2014).

    Nos servios do SUS, a dicotomia entre o conceito do cuidado integral e o

    modelo biomdico tornou-se espao de disputas entre o velho e o novo e reduziu

    o rico potencial dos cenrios de aprendizagem prtica multiprofissional, no SUS.

    Esses espaos privilegiados pela diversidade de encontros, deveriam funcionar

    como disparadores para a aprendizagem pela experincia e para a produo do

    conhecimento. Apesar de mecanismos criados para o cuidado compartilhado,

    para a comunicao transversal e preveno quaternria, o modelo de queixa-

    conduta, a baixa resolutividade e desnecessrios procedimentos de Medicina

    Diagnstica continuam fragmentando o doente e onerando as Instituies

    (FEUERWERKER, 2002; PINHEIRO e MATTOS, 2005; CIUFFO e RIBEIRO,

    2008; NORMAN e TESSER, 2009; HORA, 2013).

    No basta estabelecer prticas e relaes inovadoras nos cenrios novos da comunidade e da ateno bsica que so incorporados no processo de ensino-aprendizagem. Para transformar o perfil do profissional formado, preciso tranformar as prticas e as relaes em todos os cenrios de prtica, incluindo os de internao domiciliar, os ambulatrios de especialidade, as enfermarias e os prontos-socorros (FEUERWERKER, 2002).

    A formao mdica atual, tomada pelo ngulo da prtica vivenciada no SUS,

    mostra-se heterognea. Contribui para isso no s a abordagem dicotmica de

  • 44

    preceptores e docentes, acima mencionada, mas tambm os diferentes

    currculos aplicados e suas prticas metodolgicas, bem como as condies em

    que esses currculos so colocado em prtica. Para mudanas e consolidaes

    de projetos pedaggicos das faculdades de Medicina, indispensvel adequar

    essas condies cada escola e considerar que a formao se realize atravs

    das especificidades de cada curso (LAMPERT, 2009).

    A falta de infraestrutura e a escassez de programas para integrar academia e

    Servios Pblicos de Sade so pontos desestruturantes para o ensino de

    qualidade no SUS. O aprendizado na Rede Pblica no implica necessariamente

    em melhoria na graduao e nem na melhora da resolutividade na ateno

    sade. Faz-se necessrio investir maciamente na infraestrutura do SUS, com

    oferta de servios e equipamentos, capacitao de pessoal, melhoria de gesto

    e criao de espaos para desenvolvimento de programas conjuntos. Alm

    disso, reduzir isenes fiscais e subsdios aos planos privados de sade e

    consolidar parcerias com instituies slidas de apoio. Outro ponto importante

    definir programas e aes conjuntos entre academia-servio-comunidade, sob

    novos paradigmas de ateno e cuidado sade, onde o graduando de Medicina

    possa compreender seu papel como profissional, dentro do servio de sade. O

    papel participativo de docentes, preceptores e gestores e a parceria dos

    mesmos, pode ampliar a qualidade do ensino e dos servios prestados pela

    unidade de sade, alm de sensibilizar o setor pblico para financiamento de

    projetos que envolvam o ensino integrado ao SUS e voltado comunidade

    (OLIVEIRA, 2008; FERREIRA, 2010, SANTOS, 2013; ADLER e GALLIAN,

    2014).

  • 45

    1.6 Por trs das atividades curriculares.

    tu que estudas esta mquina, o corpo no deves te sentir ressentido por receber o conhecimento que resulta da morte de um semelhante; alegra-te que nosso Criador tenha te dado acesso a um instrumento to perfeito. Mesmo, porm, que sejas movido pelo amor, possvel que te vena a nusea; e ainda que no te vena tal nusea, talvez sejas derrotado pelo medo de passar longas horas noturnas junto a corpos esquartejados (LEONARDO DA VINCI apud SCLIAR, 1996, p.58).

    A sala de Anatomia e a difcil tarefa do encontro com a morte. Por centenas de

    anos sensaes semelhantes repetiram-se em jovens recm-sados da

    adolescncia, ao se depararem com cadveres nas primeiras aulas do Curso de

    Medicina. Apesar do paradoxal incio do aprendizado da manuteno da vida

    pela morte, ele abrange outras dimenses:

    Muitos dizem que a anatomia, para o aluno que entra na faculdade, a grande representao da medicina, a iniciao...Ento a gente faz todo o ritual de iniciao, tem que ter muito respeito pelos colegas, pelos professores, pela rea, pela profisso, usar avental, ns temos que dar o exemplo, respeitar as regras... Esse um ritual que mantemos, valorizamos o lado humano (RICARDO LUIZ SMITH apud REGINATO, 2009, p. 112).

    Hoje, parte dos currculos em Medicina expem os estudantes ao contato com

    pacientes logo no incio do curso, contrapondo a tradicional exposio inicial a

    cadveres (FERREIRA, SILVA, AGUERA, 2007; VIEIRA, 2007). A experincia se

    realiza na vivncia do estudante com a problemtica de sade e doena por meio

    de visitas domiciliares, asilos e sanatrios, acompanhamento de ambulncias e

    pacientes com doenas terminais. Seja na impressionante sala de Anatomia ou

    no contato com o doente e seu contexto, o aluno iniciante exposto a choques

    e constrangimentos naturais resultantes do contato com as diferentes formas de

    dor (DICHI e DICHI, 2006).

    Os estudantes so submetidos a vrios estressores e a escola pouco se atm a

    este estado emocional. A constante competitividade na graduao provoca

    crises de menos-valia e desistncia, mais intensas nos primeiros anos. Os

    extensos e necessrios perodos de estudo, cansam e limitam o lazer (saudvel

    mente e ao corpo). Os estudantes moram longe da famlia e acabam por

  • 46

    assumir responsabilidades de uma casa (pagamentos, alimentao, etc.). A esse

    quadro alia-se a angstia de dependerem financeiramente de seus pais, por

    muitos anos (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; REGINATO, 2009).

    Entre os terceiro e quarto anos, deparam-se com a necessidade de maior

    dedicao ao curso, em detrimento da vida social (MARIN, 2010). O erro mdico

    e o mercado de trabalho despontam como temores futuros. Deparam-se com a

    responsabilidade em lidar com o doente, o que aumenta a carga ansiognica e

    a necessidade de maior dedicao: (...) e como a gente lida com pessoas em

    momento de fragilidade, voc tem que ter mais amadurecimento para lidar com

    elas... (DINI e BATISTA, 2004, p. 201).

    Finalmente, no Internato, o trato com doentes graves, a responsabilidade sobre

    a conduta, o lidar com o sofrimento, o desespero e a morte, a despersonalizao

    do ambiente de trabalho que gera descontentamento, bem como situaes de

    dor e frustrao, corroem a autoestima do aluno ainda em formao

    (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009, p.11). A angstia e o sofrimento

    aumentam com a escolha da especializao. A insegurana exacerbada frente

    a exames de residncia mdica e s disputas mercadolgicas. Eu tenho muito

    medo do futuro. O que eu vou fazer da minha vida? (DINI e BATISTA, 2004, p.

    202). Recentemente, a revelao de casos de violncia moral e sexual apontam

    para os abusos vividos pelos estudantes, dentro da prpria comunidade

    universitria (REGO e PALACIUS, 2014).

    Como resultante desses estressores, surgem sentimentos de desproteo,

    impotncia, desnimo e ansiedade. Casos de drogadio e depresso fazem

    parte da triste estatstica dos estudantes de Medicina e suicdios ocorrem num

    grau maior, quando se compara essa populao populao geral

    (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; OLIVEIRA, 2009; VOIGT, 2009,

    REGO e PALACIUS, 2014).

    As DCN de 2001 definem como competncias e habilidades especficas para a

    formao mdica: cuidar da prpria sade fsica e mental e buscar seu bem-

    estar como cidado e como mdico (MINISTRIO DA SADE, 2001, p.11).

    Para tal, essencial que os responsveis pelo ensino estejam prximos e

  • 47

    auxiliem no desenvolvimento de tais competncias nos futuros cuidadores

    (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009).

    Seja no ensino tradicional ou em currculos modificados, a orientao terica e

    o exemplo prtico so responsabilidade da instituio formadora e daqueles que

    a constituem (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; AZEVEDO,

    RIBEIRO, BATISTA, 2009). Um aprendizado satisfatrio para a faculdade e para

    o graduando, deve necessariamente ter acompanhamento tutorado (ALMEIDA

    e BATISTA, 2013).

    Para Ramos-Cerqueira e Lima (2002), os novos currculos e pedagogias de

    ensino podem ser insuficientes para a diversidade de embates afetivos aos quais

    os graduandos so expostos. Os docentes precisam exercer a funo de

    educadores, formadores, apoiadores e valorizar a subjetividade do aluno.

    Modelo que tem seus antecedentes em Pestalozzi, onde a individualizao do

    aprendizado, a intuio, a subjetividade e a afetividade apresentam-se como

    auxiliares da instruo tutorada (INCONTRI, 2006). No ensino mdico, a relao

    docente/preceptor-aluno de vital importncia para a construo da relao

    aluno/mdico-paciente (RAMOS-CERQUEIRA e LIMA, 2002).

    Hoje, a figura do tutor permite a orientao individualizada no s de habilidades

    cognitivas, mas de habilidades afetivas e relacionais, referentes profisso. A

    funo do tutor dar suporte acadmico, reduzir o risco de Burnout , promover

    o desenvolvimento de relaes dentro da profisso e auxiliar na satisfao com

    a carreira. Porm, nos cursos, o nmero de alunos desproporcionalmente

    maior ao de tutores e a capacitao deficiente, o que acaba por descaracterizar

    a funo. H graduaes que nem disponibilizam tutores aos alunos. O modelo

    de ensino preconizado pelas DCN, prope a liberdade ao estudante em definir

    os seus objetivos instrucionais, dentro da linha mestra do currculo e a tutoria

    deve auxili-lo nesse caminho (ALMEIDA e BATISTA, 2013; CHAVES, 2014).

    Os estudantes precisam de profissionais onde possam se espelhar. Os jovens

    adentram as portas da faculdade, egressos do ensino mdio e idealizam o

    estudo universitrio. Tm sede do saber e pouco senso crtico sobre informaes

    e atitudes que influenciaro suas vidas e carreiras (DICHI e DICHI, 2006).

  • 48

    Outra coisa muito marcante na Escola foram meus professores. Pelo fato de serem formadores, eles tm uma influncia pelo resto da vida! O aspecto tcnico, didtico, algo inerente a eles. Mas aquele plus humano, de conversa, de aconselhamento isso o diferencial. Por isso, eu diria que muitos dos meus professores foram inesquecveis (Dr. WAGNER SHIGUENOBU KUROIWA apud REGINATO, 2009, p.104)

    A histria traz exemplos de homens que fizeram de suas vidas a arte de ensinar

    Medicina e tero o reconhecimento eterno de seus discpulos pelos exemplos

    que deixaram. Conta o professor Pedro Luiz Mangabeira Albernaz, Os

    professores no ganhavam nada para dar aulas na Escola Paulista. Era

    realmente produto de entusiasmo! (GALLIAN, 2008, p.44).

    Como fui da primeira turma da EPM, incorporei e mantive o esprito da Escola. Sempre lutei para que as geraes posteriores seguissem o esprito dos professores fundadores, esprito do ponto de vista da tica e do trabalho (JAIR XAVIER GUIMARES apud REGINATO, 2009, p.101).

    Se a aproximao de contedos tericos, na atualidade, pode ser feita

    distncia e solitariamente, o mesmo no se d com as habilidades ticas e

    atitudinais. Respeito, compaixo, beneficncia, no maleficncia, justia e sigilo

    so princpios bioticos a serem aprendidos pelo dilogo e exemplo prtico.

    Orientar mdicos em suas formaes complexo e nesse contexto, o docente

    emerge com relevncia e responde por modelos que iro marcar os modos de

    atuao de seus alunos (DICHI e DICHI, 2006; COSTA e PEREIRA, 2005).

    O Manno era de uma cultura absolutamente grandiosa. Primeiro porque tinha, e deve ter at hoje, uma paixo pela literatura alem, pelos filsofos... Ento ele cobrava uma postura e uma forma adequada de colocar o que estvamos aprendendo (ESPER ABRO CAVALHEIRO apud REGINATO, 2009, p.103).

    Manter um relacionamento interpessoal caracterizado pelo dilogo, pelo respeito

    e pelo compromisso condio fundamental para a formao mdica na opinio

    dos docentes (CANUTO e BATISTA, 2009). Muito ainda feito por meio do

    esforo individual e do autodidatismo. Nas escolas mdicas, a falta de

    sistematizao para uma formao didtico-pedaggica uma lacuna no

    preparo docente. Eles so contratados pela competncia profissional ou por

    serem bons pesquisadores, o que no assegura a competncia didtica, nem

  • 49

    relacional. Ao contrrio de outras reas, no se exige formao especializada do

    processo de ensino-aprendizagem para a docncia em Medicina (CANUTO e

    BATISTA, 2009; COSTA e SIQUEIRA-BATISTA, 2004).

    A adequao dos docente e outros profissionais designados a intermediar o

    processo de aprendizagem do estudante, essencial para um ensino de

    qualidade. Com a responsabilizao dos preceptores na formao, o processo

    de qualificao tambm precisa envolv-los. Para contribuir de forma efetiva com

    um ensino de qualidade e humanizado, os profissionais devem ser capacitados

    no s nas metodologias pedaggicas, mas para saber lidar com a velocidade

    de novas descobertas cientficas e tecnolgicas, com instrumentos de gesto e

    com o cuidado multiprofissional. Devem estar preparados para manter

    compromisso permanente com a tica e cidadania e atentar para a escuta e

    acolhimento tanto do aluno como do paciente (AZEVEDO, RIBEIRO, BATISTA,

    2009; GOMES e REGO, 2011; HORA, 2013).

    A capacitao deve permitir o desenvolvimento da maestria de valores

    contributivos para a evoluo do estudante, no s como profissional, mas como

    ser humano, dado que no so variveis excludentes. Necessrio se faz

    incentivar o lado positivo do aluno para auxiliar na formao de mdicos

    competentes, ticos e de elevada moral como j orientava Hipcrates

    (OLIVEIRA, 1981, RAUTIO, 2005; PAGLIOSA e DA ROS, 2008).

    E no contexto da aprendizagem prtica que docentes e preceptores ganham

    qualidade especial, pois principalmente por seus exemplos prticos que os

    futuros mdicos incorporaro competncias nas dimenses integrativas,

    relacionais, afetivas, morais e atitudes humanizadoras (CANUTO e BATISTA,

    2009; ADLER e GALLIAN, 2009; REGINATO, 2009).

    A amplitude da formao moral elementar toca primeiramente em trs pontos de vista: a obteno de um estado de nimo moral por meio de sentimentos puros; a prtica de exerccios morais de autodomnio e de esforos no que reto e bom; e finalmente a realizao de uma ideia moral, atravs da reflexo e da comparao das relaes de justia e moralidade (PESTALOZZI apud INCONTRI, 2006).

  • 50

    1.6.1 A formao humanista e a humanizao

    Em nossa poca, a crescente intimidade entre a medicina e a cincia fomenta a iluso de que so idnticas. Essa ideia leva os mdicos a desdenhar a importncia das boas maneiras ao p do leito do enfermo, induz negligncia na coleta minuciosa da histria mdica e reduz o investimento individual na promoo das interaes humanas com os pacientes. O foco passa da arte de curar tcnica de tratar, como se os dois sistemas fossem antagnicos e no complementares (LOWN, 1996, p.140).

    Para reaproximar a formao mdica do homem e sua totalidade, as DCN de

    2001 estabeleceram como parte estrutural da graduao, a incluso de

    dimenses ticas e humansticas, devolvendo ao aluno atitudes e valores

    orientados para a cidadania (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001, p.11) e

    fixaram por objetivo, levar os estudantes prtica da integralidade da ateno,

    qualidade e humanizao do atendimento prestado (MINISTRIO DA

    EDUCAO, 2001, p.4).

    Porm, ao se discutir os conceitos de humanismo e humanizao, necessrio se

    faz nome-los para melhor compreenso dos leitores. De qual humanismo, de

    qual humanizao se pretende falar?

    Aqui, os autores tomaram como base, o conceito defendido por Archiga (2003)

    que afirma ser o Humanismo um movimento de retorno viso integral que os

    filsofos gregos e romanos desenvolveram sobre o papel central do ser humano

    no conhecimento (ARCHIGA, 2003, p.1). Conceito filosfico que se refletiu na

    prtica da Medicina hipocrtica e que hoje valorizado pelo sistema teraputico

    denominado Homeopatia. Nessas prticas mdicas, observa-se a importncia

    do homem como centro dos cuidados, o destaque que dado ao entendimento

    da integrao entre vida fsica e psquica e do impacto das emoes sobre estas.

    So abordagens que exigem do mdico habilidades no conhecimento das leis

    da natureza, da alma humana e da arte de sua profisso (OLIVEIRA, 1981;

    HAHNEMANN, 1995; ARCHIGA, 2003).

  • 51

    No vai-e-vem da evoluo, para a retomada da formao humanstica e da viso

    holstica do homem, foram desenvolvidas diferentes ferramentas pedaggicas.

    Uma delas, a Clnica Centrada no Paciente (STEWART, 2003), tem o paciente

    como o centro de toda ao e prioriza sua participao na tomada de decises

    para o cuidado integral. Preconiza que o mdico tenha conhecimento no s da

    doena, mas tambm da experincia do adoecer, dos sentimentos do paciente

    e da ideia que o paciente tem sobre sua prpria doena, do impacto que o estado

    de adoecimento ir causar sobre sua vida diria e suas expectativas em relao

    ao que deveria ser feito (STEWART, 2003; RIBEIRO e AMARAL, 2008).

    Nas Unidades de Sade da Famlia (USFs), os princpios de universalidade,

    equidade, integralidade tendem a ser desenvolvidos com base na Clnica

    Centrada no Paciente. So cenrios de aprendizagem que possibilitam a

    aquisio de conhecimentos em um modelo