MARISTELA SCHIABEL ADLER APRENDIZADO EM … · a implantação do Projeto Político Pedagógico...
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MARISTELA SCHIABEL ADLER
APRENDIZADO EM CONSTRUO:
As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de So Carlos
Tese apresentada Universidade
Federal de So Paulo Escola Paulista
de Medicina, para obteno do ttulo de
Doutor em Cincias.
So Paulo
2016
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MARISTELA SCHIABEL ADLER
APRENDIZADO EM CONSTRUO:
As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de So Carlos
Tese apresentada Universidade
Federal de So Paulo Escola Paulista
de Medicina, para obteno do ttulo de
Doutor em Cincias.
Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian
So Paulo
2016
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO
DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE
COLETIVA
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA: Profa. Dra.
Rebeca de Souza e Silva.
COORDENADORA DO PROGRAMA DE PS GRADUAO EM SADE
COLETIVA: Profa. Dra. Suely Godoy Agostinho Gimeno
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Adler, Maristela Schiabel Aprendizado em construo: as vozes da primeira turma da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de So Carlos / Maristela Schiabel Adler. So Paulo, 2016.
154f.
Tese (Doutorado) Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Ps-graduao em Cincias. Ttulo em ingls: Knowledge under construction: the voices of the first class of graduates from the Universidade Federal de So Carlos Medical School.
1. Educao de graduao em medicina. 2. Aprendizagem baseada em competncias. 3. Aprendizagem baseada em problemas. 4. Sistema nico de Sade. 5. Humanizao da assistncia
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MARISTELA SCHIABEL ADLER
APRENDIZADO EM CONSTRUO:
As vozes da primeira turma da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de So Carlos
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian
Profa. Dra. Fabola Holanda
Profa. Dra. Sylvia Helena Souza da Silva Batista
Prof. Dr. Valdir Reginato
Profa. Dra. Wania Maria Papile Galhardi
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Dedicatria
Dedico este trabalho a
meu marido Ubiratan e a meu filho Thales,
pelo imenso incentivo aos meus sonhos de realizao.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus pelo caminho trilhado.
Agradeo a meu marido Ubiratan, por me incentivar a no desistir do doutorado.
Agradeo a meus eternos queridos (marido Ubiratan e filho Thales), pelo amor
que me dedicaram, o que me deu foras e possibilitou perseverar e concluir este
estudo.
Agradeo aos colaboradores que me autorizaram a abrilhantar a Tese com suas
vivncias, sem as quais este estudo no existiria.
Agradeo ao Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian pelo privilgio de ser,
mais uma vez, meu orientador, meu mestre amigo.
Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva da UNIFESP, aos
colegas e professores, pelo aprendizado que me proporcionaram.
Agradeo ao Departamento de Medicina da UFSCar, pela acolhida amigvel que
possibilitou o trabalho de campo da pesquisa.
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Para ser grande, s inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
S todo em cada coisa.
Pes quanto s no mnimo que fazes.
Assim em cada lago a Lua toda brilha,
Porque alta vive.
Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
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RESUMO
Introduo: O ensino mdico no Brasil passa por reformas curriculares que
objetivam integrar dimenses intelectivas, afetivas e relacionais e que valorizam
o pensamento crtico-reflexivo, o autogerenciamento do estudo e a formao
prtica integrada ao SUS. Em busca de um modelo pedaggico que
contemplasse essas tendncias atuais, a Universidade Federal de So Carlos
(UFSCar) implantou, em 2006, a Faculdade de Medicina da UFSCar, cujo
currculo construtivista, baseado em competncias, molda um aprendizado
baseado na prtica e integrado ao SUS. Objetivo: Este estudo teve como
objetivo analisar as percepes de docentes e alunos da Primeira Turma (Turma
de 2011) sobre os primeiros anos da Faculdade de Medicina da UFSCar.
Mtodos: A metodologia empregada foi a Histria Oral de Vida, com a produo
de narrativas de docentes e estudantes do curso, para a coleta e anlise
qualitativa dos dados. Resultados: as narrativas sugerem que o currculo
favoreceu o desenvolvimento de competncias como capacidade de busca,
pensamento crtico-reflexivo e autogerenciamento do aprendizado, apesar de
relatos de resistncia implementao do currculo, deficincias em
infraestrutura e planejamento insuficiente. A prtica integrada ao SUS,
especialmente nas Unidades de Sade da Famlia (apesar das limitaes
tcnicas e conflitos polticos), aprimorou as dimenses intelectivas, relacionais e
afetivas do cuidado dos pacientes, favorecendo a autonomia profissional. As
habilidades ticas e humansticas, assim como os conflitos e desafios,
permearam todas as atividades pedaggicas, convergindo para uma prtica
mdica humanista e humanizada.
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ABSTRACT
Background: Medical education in Brazil undergoes curricula reforms aiming at
integrating intellectual, affective and relational dimensions and valorizing critical
and reflective thinking, self-management and practical training integrated with the
Brazilian health system (SUS). In search of a pedagogical model that could
address those current trends, the Universidade Federal de So Carlos (UFSCar)
established in 2006 the UFSCar Medical School, whose constructivist,
competency based curriculum frames a practice based learning integrated into
the SUS. Objective: The objective of this study was to analyze the perceptions
of teachers and students from the first Class of graduates (Class of 2011) about
the first six years of the UFSCar Medical School. Methods: The methodology
used was the Life Oral History producing narratives from docents and students
for qualitative data collection and analysis. Results: Despite reports of resistance
to curriculum implementation, infrastructure deficiencies and insufficient
planning, the narratives suggest that the curriculum favored the developement of
competencies such as search capability, critical and reflective thinking self-
manadged learning. The practice integrated into the SUS, especially within the
Family Health Unities, (besides technical limitations and political conflicts)
improved intellective, relational and affective dimensions of patient care, favoring
professional autonomy. Ethical and humanistic skills, as well as conflicts and
challenges permeated all pedagogical activities, converging to a humanistic and
humanized medical practice.
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LISTA DE ABREVIATURAS
Abreviatura Nome
ABEM Associao Brasileira de Educao Mdica
APS Ateno Primria Sade
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CEP Conselho de tica em Pesquisa
CNE Conselho Nacional de Educao
ConsUni Conselho Universitrio
DMed Departamento de Medicina
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
ENADE Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio
EP Educao Permanente
EPM Escola Paulista de Medicina
ESPP Estao de Simulao da Prtica Profissional
FAMEMA Faculdade de Medicina de Marlia
FMRP-USP Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto - USP
FMUSP Faculdade de Medicina da USP
Gastro Gastroenterologia
G.O. Ginecologia e Obstetrcia
HC Hospital das Clnicas
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HC de Ribeiro Hospital das Clnicas de Ribeiro Preto - USP
IAMSP Instituto de Assistncia Mdica ao Servidor Estadual
MEC Ministrio da Educao
OMS Organizao Mundial de Sade
PBL Problem Based Learning
Pneumo Pneumologia
Ps-doc Ps-doutorado
PP Prtica Profissional
PPP Projeto Poltico Pedaggico
PROMED Programa de Incentivo s Mudanas Curriculares
para as Escolas Mdicas
PR-SADE Programa Nacional de Reorientao na Formao
Profissional em Sade
P.S. Pronto Socorro
PSF Programa de Sade da Famlia
PUC Pontifcia Universidade Catlica
RX Raio X (exame de imagem)
SFC Sade Famlia e Comunidade
SISU Sistema de Seleo Unificada
SP Situao Problema
SPDM Associao Paulista para Desenvolvimento da Medicina
SUS Sistema nico de Sade
TBL Team Based Learning
UBS Unidade Bsica de Sade
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UEL Universidade Estadual de Londrina
UFSCar Universidade Federal de So Carlos
UNESP Universidade do Estado de So Paulo
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNIFESP Universidade Federal de So Paulo
USP Universidade de So Paulo
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SUMRIO
Dedicatria..........................................................................................................6
Agradecimentos...................................................................................................7
Resumo...............................................................................................................9
Abstract..............................................................................................................10
Lista de Abreviaturas e Siglas............................................................................11
1. INTRODUO...............................................................................................16
1.1 Histria do Projeto........................................................................................16
1.2 A proposta da pesquisa.................................................................................20
1.3 O Ensino Mdico e o caminho das mudanas...............................................23
1.4 Metodologias Ativas e o Ensino Mdico: potenciais pedaggicos para
preparar o futuro profissional cidado................................................................34
1.5 O SUS como cenrio de prtica mdica........................................................41
1.6 Por trs das atividades curriculares..............................................................45
1.6.1 A formao humanista e a humanizao ................................................50
1.7 O Projeto Poltico Pedaggico da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de So Carlos..................................................................................57
2.OBJETIVOS................................................................................................. ..62
2.1.1 Objetivo Geral.........................................................................................62
2.1.2 Objetivos Especficos..............................................................................62
3.TRAJETRIA DA PESQUISA........................................................................63
3.1 O percurso metodolgico..............................................................................63
3.2 Populao estudada.....................................................................................63
3.3 Aplicao do instrumento de avaliao.........................................................63
3.3.1 Histria Oral de Vida..................................................................................64
3.3.2 Projeto para realizao das Histrias Orais de Vida.....................68
3.3.2.1 Objetivos e justificativa............................ ..................................68
3.3.2.2 Definio de Comunidade de Destino e Colnia.........................68
3.3.2.3 Formao da Rede.................................. ..................................69
3.3.2.4 Pr-entrevista...........................................................................69
3.3.2.5 Entrevistas....................................................... .........................70
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3.3.2.6 Caderno de Campo.................................. ..................................70
3.3.2.7 Anlise das Narrativas............................. ..................................71
4. RESULTADOS.................................................................................73
4.1 Narrativas............................................... .......................................73
5. DISCUSSO..................................................................................................74
5.1 Desafios da Educao Mdica.................................................................75
5.2 SUS: o cenrio inacabado.......................................................................95
5.3 Metodologias que causam estranheza..................................................104
5.4 Tutores e Tutorados Os Sonhos e a Realidade...................................115
5.5 Formao mdica para alm das DCN..................................................121
5.6 O humanismo e a humanizao que saram do
discurso......................................................................................................128
6.CONSIDERAES FINAIS..........................................................................133
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................138
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1. INTRODUO
1.1. Histria do Projeto
Como autora principal deste estudo, devo aqui me declarar grande admiradora
no s da Arte de Curar como da Arte de Educar. Graduada em Medicina h 25
anos, com Mestrado em Ensino das Cincias da Sade pelo Centro de
Desenvolvimento do Ensino Superior em Sade (CEDESS/UNIFESP), atuo
como mdica e sou docente do Ensino Superior.
Em 2011, aps a aprovao do Projeto de Pesquisa para meu doutorado, pelo
Conselho de tica em Pesquisa (CEP) e com a autorizao do chefe do
Departamento de Medicina da UFSCar, iniciei a coleta de dados deste estudo
que durou um ano.
Para auxiliar o leitor na compreenso do meio e das relaes, nos quais aspirei
mergulhar (MINAYO, 2004), descrevi a trajetria percorrida, utilizando-me das
anotaes feitas no Caderno de Campo. Porm, no pretendi aqui realizar um
trabalho etnogrfico, mas um roteiro para melhor entendimento da pesquisa.
No momento em que iniciei o trabalho de campo, voltava de uma estadia de dois
anos na cidade de Berlim (Alemanha). Paulistana de corao h dezoito anos e
depois de viver por mais dois em outro pas, deslocada no tempo e espao, havia
me estabelecido em So Carlos trs meses antes da coleta. Como todos que se
mudam vrias vezes de cidade, j no reconhecia de onde era. Seria eu de
algum lugar?
Isso causava em mim um certo desconforto. A ausncia do pas e do meio
acadmico, no me permitiam mais a sensao de pertencer a algum lugar,
cidade ou universidade, mesmo recebendo amplo apoio de meu orientador. Mas
enfim, estava ali para realizar a pesquisa.
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Formada pela mais tradicional metodologia de ensino, ansiava por compreender
a implantao do Projeto Poltico Pedaggico (PPP) da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) que tinha como base o
construtivismo e as prticas metodolgicas ativas.
O que me fez pensar em ser possvel a realizao de tal pesquisa foi o trabalho
historiogrfico sobre os 75 anos da Escola Paulista de Medicina: 75X75
EPM/UNIFESP, UMA HISTRIA, 75 VIDAS (GALLIAN, 2008) e RECORTES
DA MEMRIA (GALLIAN, 2009) que trouxe por 75 narrativas de Histrias Orais
de Vida, a possibilidade de apropriao da histria dos 75 anos do Hospital So
Paulo.
Estava familiarizada com as narrativas de Histria Oral de Vida, pois j havia
utilizado a metodologia em minha tese de mestrado TRANSFORMANDO
MDICOS: Experincias de aprendizado em Homeopatia nos relatos de
egressos do Curso de Especializao da Faculdade de Medicina de Jundia
(ADLER, 2008. p.1).
Com a gratificante experincia do mestrado, pareceu-me uma janela de
oportunidade avaliar a primeira turma de formandos pelo Departamento de
Medicina (DMed) da UFSCar, especialmente por se tratar de um curso de
Medicina que propunha uma ruptura com modelos flexnerianos de ensino.
A receptividade do DMed da UFSCar foi positiva. Alguns docentes mostraram
extrema solicitude. Apresentaram-me as instalaes e ofereceram suas salas
para a realizao das entrevistas. Dessa forma, comecei a me sentir mais
vontade para a realizao iniciar a pesquisa.
O campus da UFSCar amplo e arborizado. O prdio da Medicina moderno,
espaoso, arejado. As salas para graduao possuem mesas ovais com dez a
doze cadeiras (espao para discusses tericas), lousa, flipchart, ventilador e
datashow. Tudo muito novo e limpo.
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Os primeiros contatos com os entrevistados foram frutferos. Porm, em novos
contatos percebi haver certa animosidade. Vrios alunos contatados por e-mail
e/ou telefone, no davam retorno. Quando conseguia estabelecer algum tipo de
comunicao, diziam-se ocupados ou no terem interesse na realizao das
narrativas.
Algo semelhante aconteceu com parte dos docentes. Alguns, a quem solicitei a
entrevista, depois de me interrogarem sobre meus antecedentes, a qual
universidade estava vinculada, o nome do meu orientador, se a pesquisa havia
sido aprovada pelo CEP, se havia um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido recusavam-se a ser entrevistados, deixando claro que no queriam
falar sobre o assunto. Tal resistncia se dava mesmo eu sendo apresentada por
seus pares que faziam questo de explicar o intuito da pesquisa.
Dessa forma, comprovei que o pesquisado tambm possui um olhar
antropolgico do qual o pesquisador no pode se esquivar, muito pelo contrrio,
ele interroga, pede explicaes e exige do pesquisador a no iseno das
responsabilidades de sua explorao.
Com algumas ideias preconcebidas, segundo Malinowski (1976), parte do
observador e de qualquer trabalho cientfico, fui a campo e iniciei as entrevistas.
No entanto, medida que o trabalho evolua, todo meu arsenal de ideias pr-
concebidas foi desconstrudo. Novas concepes, interrogaes e olhares
tomaram corpo no estudo com as narrativas.
No trabalho de campo efetivo, a comparao dos dados e a tentativa da sua articulao revelaro falhas e lacunas frequentes na informao, o que, por seu turno, incitar ao prosseguimento da investigao (MALINOVISKI, 1976, p.26).
Interessante observar a imerso gradual que o pesquisador experimenta, como
no meu caso, na realizao de um projeto de pesquisa cuja metodologia envolve
o trabalho com Histrias Orais. Trs meses aps o trmino das entrevistas com
os estudantes e faltando apenas trs entrevistas com docentes, prestei um
concurso para docente do Departamento de Medicina da UFSCar e desde ento,
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parafraseando Clifford Geertz navego em vrios mares ao mesmo tempo
(GEERTZ, 2005, p. 104).
E do lugar da pesquisadora, mdica, hoje docente do DMed UFSCar que me
proponho a apresentar o germe de um novo modo de compreender e fazer o
ensino mdico no Brasil.
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1.2 A proposta da pesquisa
O discurso sobre a necessidade de se melhorar e humanizar a prxis mdica,
prprio do tempo presente, influencia de forma direta os modelos de ensino-
aprendizagem das escolas mdicas brasileiras (GOMES e REGO, 2011).
O pensamento cartesiano e o modelo biomdico predominaram no sculo XX.
Foi adotada pela academia uma prtica determinista que tinha por objetivo, o
rpido controle do maior nmero de casos de doena (CAPRA, 1983;
MACHADO, 1997; S 2000). Como consequncia, a racionalidade sobrepujou a
frao arte do exerccio da Medicina, sufocando-a e expropriando-a de suas
dimenses socioculturais (LUZ, 1996; SIQUEIRA, 2002; REGINATO, 2009).
A priorizao do cuidado sade centrado na doena, a superposio da
Medicina Diagnstica e a excessiva valorizao das especialidades, limitou a
ampla compreenso do ser humano e seu adoecer. O mdico tornou-se refm
de uma prtica fragmentada e de baixa resolutividade, onde a quantidade se
sobreps qualidade, gerando crticas e insatisfaes, intensificadas no final do
milnio, em relao ao tecnicismo, especializao precoce e excessiva
medicalizao da sociedade (SIQUEIRA, 2002; CANGUILHEM 2006;
REGINATO, 2009).
Propostas de novos modelos para o cuidado sade incentivaram mudanas
curriculares, no Brasil, pelas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da
graduao em Medicina que privilegiaram uma formao generalista, humanista,
crtica, reflexiva e tica, capaz de aes de promoo, preveno, recuperao
e reabilitao da sade, visando uma assistncia integral ao ser humano, com
responsabilidade social (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001).
Em busca de novos caminhos, algumas faculdades de Medicina promoveram
alteraes curriculares. Como exemplo, temos as pioneiras - Faculdade de
Medicina de Marlia (FAMEMA) e Faculdade de Medicina da Universidade
Estadual de Londrina (UEL) que mudaram seus currculos e estruturaram os
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modelos pedaggicos segundo a Aprendizagem Baseada em Problemas ou
Problem Based Learning (PBL) (KOMATSU, ZANOLLI, LIMA, 1998; BERBEL,
1998; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; BARROS e LOURENO, 2006;
MINISTRIO DA EDUCAO e MINISTRIO DA SADE, 2006; UEL
PROGRAD, 2015).
Apesar das DCN e de incentivos financeiros, a exemplo do Programa de
Incentivo s Mudanas Curriculares para as Escolas Mdicas (PROMED), ainda
existem escolas onde a interdisciplinaridade e as prticas metodolgicas ativas
pouco se desenvolveram. Nessas escolas, a falta de sintonia entre a prtica
mdica e as prementes necessidades de sade da populao mostraram que
seus modelos assistencial, pedaggico e tecnocientfico reclamam reformas
para a formao profissional que se deseja (MINISTRIO DA SADE, 2002;
GARCIA, 2007).
Atualmente, uma das alavancas das alteraes curriculares tem sido a insero
precoce dos estudantes na prtica que visa a aprendizagem da integralidade do
cuidado, prxima realidade. Tal interao foi potencializada pelas DCN de 2014
que definiram uma maior carga horria na Ateno Primria e Servios de
Urgncia para os anos do Internato (NEUMANN e MIRANDA, 2012; BRASIL,
2013; ADLER e GALLIAN, 2014).
Em novos modelos curriculares, abre-se a oportunidade de considerar
concepes amplas de sade-doena, modelos de ateno e polticas pblicas
de sade par a formao mdica. A participao conjunta de docentes, alunos,
gestores, preceptores, agentes comunitrios e outros profissionais da rea da
sade pode proporcionar uma formao abrangente e de melhor qualidade. Para
tanto necessrio alto investimento na capacitao de profissionais e de
infraestrutura, o que para o Brasil ainda no realidade (LAMPERT e ROSSONI,
2004; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; NOGUEIRA, 2009; SANTOS, 2013).
Em consonncia com as DCN de 2001, a Universidade Federal de So Carlos
inaugurou em 2006 a graduao em Medicina, cujo PPP fundamenta-se em trs
pressupostos: currculo orientado por competncia, abordagem educacional
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construtivista e a integrao teoria-prtica voltada para o SUS (MEDICINA
UFSCar, 2007).
Ao formar sua primeira turma, a Faculdade de Medicina da UFSCar completou
um ciclo de seis anos sob modelo curricular, cuja proposta foi a inovao.
Baseado em prticas metodolgicas ativas e na formao em servio, ofereceu
diferentes perspectivas para a formao mdica atual.
A ideia inicial do estudo foi ouvir alunos, docentes e preceptores sobre o
processo de formao mdica da UFSCar, nos seis primeiros anos de
estruturao do Curso. Porm, na procura dos entrevistados, no foram
encontrados preceptores que tinham percorrido o trajeto dos seis anos do Curso
com os estudantes e docentes. A rotatividade dessa categoria dentro das
Unidades de Sade e do Curso era alta. Assim, os possveis colaboradores
preceptores tinham um perfil que fugia ao objetivo proposto pelo estudo.
Durante o trabalho de campo, ento, a estratgia para a pesquisa foi
concentrada na coleta das narrativas de alunos e docentes que participaram dos
seis anos de implantao do Curso, com a questo disparadora: Tomando como
sustentao as DCN, qual a sua opinio sobre o modelo de formao mdica
aplicado na UFSCar e como se sentiu fazendo parte desse processo?.
Como objetivo, esta pesquisa pretendeu apresentar a trajetria de construo da
Faculdade de Medicina da UFSCar, cujos tijolos, prdios e argamassa
constituem-se de seres humanos e suas aes afirmativas do trabalho dirio de
formao, cerne do processo de ensino-aprendizagem de qualquer currculo. E
ousa fazer um questionamento: Seria possvel formar um mdico para alm das
competncias exigidas pelas DCN que operasse a subjetividade e as dimenses
biopsicossocial e ambiental de forma humanizada?
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1.3 O ensino mdico e o caminho das mudanas
A vida curta, a Arte longa, a ocasio fugidia, a experincia enganadora, o
julgamento difcil (Hipcrates, apud SCLIAR, 1996, p.30).
Atualmente, a educao mdica desafiada a formar profissionais por
competncias e deve abranger as dimenses cognitiva, tcnica, integrativa,
contextual, relacional, afetiva, moral e hbitos mentais. Prioriza o aprendizado
centrado na individualidade do estudante e voltado para o desenvolvimento de
um pensamento crtico e reflexivo. Pauta-se na valorizao do conhecimento
generalista e na integralidade do cuidado sade, intencionando reduzir o
descompasso entre o ensino e as necessidades sociais (EPSTEIN, 2002;
BATISTA e BATISTA, 2004; NOGUEIRA, 2009).
Na evoluo mais do que intrigante do ensino mdico, necessrio se faz
referendar os primeiros apontamentos da compreenso do adoecer e do
cuidado, impressos nas pginas da Medicina pelos povos das antigas
civilizaes. Desde os Vedas e a Medicina Chinesa, o Cdigo de Hamurabi e os
Escritos Cuneiformes dos babilnicos, os egpcios e suas Casas da Vida e os
escritos do Antigo Testamento, a Medicina privilegiou a economia humana de
forma integral e se comps com o cuidado religioso. Os iniciados na arte de curar
eram convidados a compreender e confortar corpo e alma (OLIVEIRA, 1981;
SCLIAR, 1996).
Foi na pessoa de Hipcrates que o pensamento mdico passou a ser
observacional, porm no compartimentado. Em um tempo de ebulio do
pensamento filosfico, Hipcrates foi para alm da metafsica e, pela observao
minuciosa dos pacientes, as primeiras anotaes do exerccio da Medicina
ocidental. Uniu a observao ao raciocnio na mxima que ressaltou a
importncia do bom senso e da tica do mdico: primum non nocere1
(OLIVEIRA, 1981; SCLIAR, 1996).
1 Primeiramente no fazer o mal.
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Hipcrates comparou o ensino da Medicina ao cultivo das plantas. A disposio
do aluno seria o terreno; a instruo prvia, a sementeira; a escola mdica, os
nutrientes; o processo de ensino seria a mo de obra e o tempo, o fortalecedor
do todo at a maturao. Tinha a impercia por m qualidade, fruto da ignorncia
que levava o paciente desconfiana e insatisfao. Nas escolas mdicas
gregas, o discpulo devia possuir qualidades morais e ticas essenciais ao
exerccio da profisso (OLIVEIRA, 1981; DIAS DE MORAES, 2003).
A Medicina grega predominou at a Idade Mdia (500-1000 d.C.), onde Galeno
(130-200 d.C.), modificando o modus operandi da Escola Hipocrtica com teorias
especulativas, vinculou a doena ao pecado e influenciou o pensamento mdico
por quatorze longos sculos (OLIVEIRA, 1981; SCLIAR, 1996).
A cincia observacional renasceu com as Sociedades Cientficas e nos
experimentos de homens como Willian Harvey, Edward Jenner e Samuel
Hahnemann (OLIVEIRA, 1981). E foi no sculo XIX que a produo do
conhecimento mdico tomou vulto sem precedentes com descobertas que
transmutaram o entendimento mdico para a molcula e o microrganismo
(OLIVEIRA, 1981; MACHADO, 1997).
O conhecimento mdico firmou-se no materialismo biolgico e se afastou das
reas do pensamento livre. Da influncia do paradigma cartesiano sobre o
adoecer, resultou o modelo que a base conceitual da cincia mdica ocidental:
o modelo biomdico. Definido por George Engel como a Medicina com noes
do corpo como uma mquina, da doena como consequncia de uma avaria na
mquina e da tarefa do mdico como conserto dessa mquina" (George Engel,
apud CAPRA, p.102).
Abraham Flexner, nos EUA, orientou mudanas curriculares que acentuaram a
viso cartesiana de causa e efeito e o domnio cientificista da prtica. E nosso
pas imitou-o, criando um currculo pragmtico e fragmentado (NEVES, NEVES,
BITENCOURT, 2005; PAGLIOSA e DA ROS, 2008).
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A Medicina Cientfica do sculo XX, trouxe possibilidades de diagnstico e
tratamento inimaginveis em tempos pr-cientficos. Renovou concepes e
possibilitou o acesso ao conhecimento a velocidades estonteantes.
Paradoxalmente, a oportunidade da experincia e da reflexo, inerentes para a
formao e transformao dos homens, tornou-se cada vez mais rara (SCLIAR,
1996; BONDIA, 2002).
Matrias relacionadas ao conhecimento humanstico foram retiradas das grades
oficiais, desprovendo-as de base filosfica e cultural. O estudo do homem
mquina tornou-se mais importante o do que do homem pensante. O
determinismo predominou sobre a liberdade (MACHADO, 1997; PEREIRA
NETO, 2001; SILVA, 2002; KEMP e EDLER, 2004; COOKE, 2006; PAGLIOSA
e DA ROS, 2008). A medicina deixava de se apoiar nas cincias humanas para
se sustentar essencialmente nas cincias exatas e biolgicas (GALLIAN, 2000).
A diviso do currculo em ciclos bsico e clnico desarticulou o ensino mdico.
As faculdades organizaram seus contedos programticos numa racionalidade
basicamente positivista e organicista. A Semiologia e Propedutica Mdicas
tornaram-se desinteressantes frente Medicina Diagnstica. No novo modelo
acadmico, as especialidades marcaram seus territrios com a viso da parte e
no do sujeito. Dividiu-se o indivisvel (LUZ 1996; MACHADO, 1997; S, 2000;
SIQUEIRA, 2002; REGINATO, 2009).
Seguiu-se compartimentalizao do currculo, a fragmentao do saber. A
aprendizagem voltou-se para a especificidade de rgos, para a taxonomia
diagnstica e o forte apelo do aparato tcnico triunfou sobre a observao, sobre
a reflexo e sobre a compreenso do cuidado em sade. A ao mdica voltou-
se para a doena e no mais para o doente. O pensar do paciente, o sentir, sua
vontade e as suas dimenses socioculturais foram praticamente abolidos dos
currculos. Os saberes biolgicos foram valorizados a tal ponto que foi como se
a mente estivesse separada do corpo e o homem no fosse um ser relacional
(LOWN, 1996; CANESQUI, 2000).
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No Brasil, a Reforma Universitria de 1968 privilegiou a formao tcnica e
engessou ainda mais os currculos. O aumento do nmero de vagas das
faculdades acentuou a verticalizao do ensino e distanciou o docente dos
alunos (COELHO, 1992; ZUARDI, 2009).
Nas ltimas dcadas do sculo XX, docentes e estudantes se viram refns de
um ensino reducionista, mecanicista, de uma prtica utilitarista e sem exigncia
de dimenses abrangentes, o que resultou no distanciamento da arte mdica, do
doente e de suas necessidades de sade. O modelo desenvolvido dentro dos
hospitais-escola (responsveis por 86% da carga horria prtica da graduao
e principal cenrio na formao at os dias atuais) fez o estudante aprender
exausto o incomum e perder contato com doenas do cotidiano.
Silenciosamente, tcnicas e recursos de ponta tomaram espao e a
especializao precoce volveu-se em lugar comum (CAMPOS, 1999;
SIQUEIRA, 2002; DICHI e DICHI, 2006).
Outro prejuzo para o ensino mdico foi a confuso entre cincia e horas do
docente para a graduao. A valorizao da pesquisa em detrimento do ensino,
obrigou o docente a excessivas publicaes e o afastou do processo de ensino-
aprendizagem e de sua prtica, o que resultou em descontentamento tanto por
parte dos alunos como dos prprios docentes (ORTEGA y GASSET, 1999).
O exerccio da Medicina tornou-se tcnico e impessoal. O mdico, vtima do
aparelho formador foi transformado em um profissional treinado para leitura de
variveis biolgicas. A viso antropocntrica do modelo biomdico substituiu o
dilogo entre profissional e paciente, por diagnsticos e frmacos. O olhar parcial
do doente e a exigncia de atendimentos em massa afastou o mdico do
paciente e diminuiu sua capacidade resolutiva. A consequncia que se seguiu
foi a insatisfao do paciente, no mais reconhecido como um ser
biopsicossocioespiritual (CAMPOS, CHAKOUR, SANTOS, 1997; SIQUEIRA,
2002, TRAVESRO-YEPEZ e MORAES, 2004).
Entre 1960 e 1980, ficaram evidentes os sinais de esgotamento do modelo
predominante. A ruptura da relao mdico-paciente, limitadas estratgias de
ao, a medicalizao do social e a excluso da maior parte da populao do
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acesso a servios de sade exigiram mudanas. Autores com Dupuy e Karsenty
(1979), Foucaut (2006), Canguilhem (2006) propuseram novos modelos de
cuidados sade, no s a partir do paradigma biolgico, mas sob a ptica
psicossocial e ambiental para o desenvolvimento de uma abordagem dialtica
com vrias cincias (FEUERWERKER, 2002; MARINS, 2004; NEVES, NEVES,
BITENCOURT, 2005).
No Brasil, os movimentos de Reforma Sanitria e das Conferncias Nacionais
de Sade, reivindicaram uma poltica pblica de sade universal e de qualidade
(SOBRAL, 2014), funcionando como disparadores para a criao do Sistema
nico de Sade (SUS) que possibilitou ao Brasil ter um Sistema Pblico de
Sade, sob os princpios da universalidade, equidade, integralidade, com
incumbncia de contribuir para a formao de profissionais na rea de sade. O
SUS formalizado na lei 8080/90, estabeleceu a indita participao da
comunidade junto ao Sistema de Sade, por meio dos Conselhos e Conferncias
de Sade (MINISTRIO DA SADE, 1986; BRASIL, 1988; BRASIL, Lei 8080/90,
1990; BRASIL, Lei 8142/90, 1990; MINISTRIO DA SADE, 1990; COHN e
ELIAS, 1996; SANTOS, 2013).
Os princpios norteadores do SUS apresentaram um conceito sem precedentes
para todo o pas: Sade um direito de todos e dever do Estado. Foram
apontados como fatores determinantes e condicionantes de sade a
alimentao, saneamento bsico, renda, educao, o transporte, acesso a bens
e servios e outros. Dessa forma, o currculo mdico deveria ser reestruturado
ao novo pensar, cuja dimenso ultrapassava a concepo restrita de sade
como ausncia de doena (ALMEIDA FILHO e JUC, 2002; LAMPERT, 2006).
A flexibilizao dos currculos e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de
2001 estabeleceram as primeiras mudanas. O mdico deveria ser formado com
competncias e habilidades para atender s demandas do cuidado integral, do
mercado de trabalho e da responsabilidade social (BRASIL, 1996; MINISTERIO
DA SADE, 2000; MINISTRIO DA EDUCAO, 2001; MAIA, 2004).
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PERFIL DO FORMANDO EGRESSO/PROFISSIONAL: Mdico, com formao generalista, humanista, crtica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princpios ticos, no processo de sade-doena em seus diferentes nveis de ateno, com aes de promoo, preveno, recuperao e reabilitao sade, na perspectiva, da integralidade da assistncia, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da sade integral do ser humano (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001, p.10).
Uma srie de iniciativas foram concebidas para aproximar o ensino mdico das
necessidades da sociedade. Em 1991, o Changing Education: an Agenda for
Action foi criado pela Organizao Mundial de Sade (OMS) para coordenar e
sistematizar as necessrias adaptaes do ensino mdico de todo o mundo
(FEUERWERKER, 2002).
No Brasil, o Plano Nacional de Extenso Universitria trouxe a proposta de ao
cidad das universidades. O PROMED e o Programa Nacional de Reorientao
da Formao Profissional em Sade (PR-SADE) deram apoio financeiro s
escolas interessadas em adequar seus currculos e estruturas, integrando-os ao
SUS (MINISTRIO DA EDUCAO, 2000/2001; MINISTRIO DA SADE,
2002; MINISTRIO DA SADE, 2005).
A persistirem nas trajetrias que vinham tendo os cursos de graduao correriam o risco de cumprir apenas uma formalidade na vida acadmica, deslocando-se a formao real cada dia mais para um currculo paralelo, este sim, mais aderente a realidade (MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006, p.7).
As Faculdades de Medicina permaneciam afastadas do SUS. A Ateno
Primria prestando um atendimento padro queixa-conduta, era pouco
resolutiva, desumana e desvalorizada. O ensino mdico mantinha-se
hospitalocntrico, voltado para interesses de mercado e de empresas
corporativistas, centrado na doena e orientado por uma lgica medicalizante
(SANTOS, 2003; TESSER, 2006; GARCIA, 2007; RIBEIRO e AMARAL, 2008).
Sob novos desenhos curriculares, as escolas mdicas comearam a se apropriar
de paradigmas que compreendiam integralidade e gesto do cuidado,
humanizao, tica e integrao do ensino ao SUS. Para a sintonia entre
graduao, SUS e demandas sociais, novas posturas de aprendizagem e ensino
foram aventadas. A triangulao entre ensino, servio e assistncia, defendida
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por Batista e Batista (2004) mostrou-se um possvel caminho para essa
finalidade.
Os primeiros Programas de Medicina de Famlia mostraram-se satisfatrios para
o cuidado na Ateno Primria Sade (APS) e possveis cenrios de ensino-
aprendizagem. Diferentes abordagens pedaggicas imprimiram graduao
novo dinamismo do aprendizado: Problem-Based Learning (PBL);
Apresentaes Clnicas (Clinical-presentation-based) e outros (PAPA e
HARASYM, 1999; CYRINO e TORALLES-PEREIRA, 2004; GAYLORD, 2007).
Stewart (2003) apresentou, como modelo de transformao, a Clnica Centrada
no Paciente que tinha por princpios a preveno e promoo de sade e a
compreenso do paciente em sua integralidade, sendo ele o centro de toda ao.
As decises deveriam ser compartilhadas entre mdico e paciente para a tomada
de decises, visando a corresponsabilidade do cuidado. A autonomia do
paciente foi outro ponto importante por ele defendido.
Outras representaes sugeriram as Unidades Sade da Famlia e Comunidade
(SFC) como cenrios prioritrios de aprendizagem, onde o enfoque abrangente
e a proximidade mdico-paciente, permitiriam o resgate do subjetivo da clnica.
A multidisciplinaridade e o trabalho comunitrio e domiciliar com equipes de
sade auxiliariam na construo de perfis profissionais responsivos s
necessidades em sade (CAMPOS, 1999; MORETTI-PIRES, 2012).
Estratgias educacionais foram desenvolvidas para abrigar as dimenses
biopsicossocial e ambiental do paciente, centradas no estudante e na
aprendizagem individualizada, aproximando a academia do SUS (LIMA,
FONSECA, HOCHMAN, 2005).
Uma das mudanas ocorridas foi a insero precoce do aluno nas Unidades de
SFC, como proposto por Campos (1999). Outra, foi orientar o ensino e pesquisa
para problemas de sade da populao assistida. Na interface academia servio,
a ideia foi a contribuio do docente no Apoio Matricial. Esse conjunto de
mudanas acadmicas requer investimento na capacitao de docentes e
profissionais do SUS, alm de adequao da infraestrutura para o trabalho
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conjunto. Investimento que at os dias atuais tem sido insuficiente e
negligenciado, apesar da proliferao de escolas mdicas na ltima dcada
(LIMA, FONSECA, HOCHMAN, 2005; LAMPERT, 2009; CUNHA e CAMPOS,
2011; SANTOS 2013).
Em 2006, um estudo do Ministrios da Educao e Sade (MINISTRIO DA
EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006) destacou que ainda hoje h
cursos de Medicina no Brasil com baixo grau de aderncia s DCN, onde a
interdisciplinaridade e os cenrios de ensino-aprendizagem so deficientes. A
adequao s DCN algumas vezes parece permanecer no nvel da simples
reproduo do discurso do Conselho Nacional de Educao (CNE), sem se
traduzir em prticas que caracterizem a mudana de paradigma proposto
(MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA SADE, 2006, p.155).
Uma pesquisa realizada com alunos da Faculdade de Medicina da USP
(FMUSP) revelou que, mesmo aps a reforma curricular em 1998, 79,8% dos
estudantes mostraram deficincia formativa em Medicina Preventiva e Social e
pouca compreenso sobre o SUS. O modelo centrado no atendimento
hospitalar, no sensibiliza o aluno a conhecer o servio pblico e seus nveis de
atendimento e a limitada integrao entre disciplinas bsicas e
profissionalizantes dificulta o processo de ensino-aprendizagem (VIEIRA, 2003).
Na Faculdade de Medicina de Ribeiro PretoUSP (FMRP-USP) a prtica do
currculo reformulado evidenciou uma superioridade significativa em
conhecimentos especficos e na prtica mdica, sendo inferiores as habilidades
cognitivas dos estudantes quando comparadas ao currculo tradicional
(TRONCON, 2004; PICCINATO,2004, OLIVEIRA, 2012).
Nos ltimos 28 anos, o nmero de escolas mdicas no Brasil passou de 83 para
235 (aumento de 283%). Parte delas, a exemplo da Faculdade de Medicina da
UFSCar, iniciou suas atividades com Projetos Polticos Pedaggicos (PPP)
embasados nas DCN de 2001, mas a implantao dos novos modelos
curriculares tem encontrado resistncias internas, estruturais ou sistmicas, ou
seja, de integrao ao SUS (MEDICINA-UFSCar, 2007; LAMPERT, 2009;
DAVILA, VITAL, BRITTO, 2014).
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Alves (2013) apontou obstculos para as alteraes curriculares desejadas
advindos da prpria Instituio de Ensino: de docentes (resistncia a mudanas,
capacitao pedaggica insuficiente e desconhecimento do PPP), de estudantes
(resistncia prtica na APS e formao generalista) e de servios/gesto do
SUS (cenrios inadequados para prtica profissional).
Estudo realizado com egressos do novo currculo da Faculdade de Medicina de
Marlia (FAMEMA), mostrou a aquisio de competncias profissionais na
formao humanstica, tica e na segurana para a futura vida profissional. A
fragilidade apontada foi a incerteza na busca de conhecimento. s vezes nos
angustiamos por no saber at aonde ir e quando parar, frente complexidade
de certos temas (M1, 3 srie, masc., 22 anos) (GOMES, 2009, p.9).
H, portanto, indcios de que as atividades pedaggicas com base no PBL
propiciem mais dvidas e incertezas em relao ao conhecimento adquirido, se
comparadas s atividades expositivas. Processo pensado para estimular a
curiosidade do estudante e a busca de seu prprio aprimoramento. O conceito
original do PBL foi pensado e direcionado para profissionais maduros, com
potencial para construir resolues de problemas como parte do processo de
aprendizagem. Os estudantes, pela imaturidade, tm dificuldades em assimilar
a metodologia e podem se tornar inseguros frente ao aprendizado (MORAES e
MANZINNI, 2006; GOMES, 2009; ABDELKHALEK, 2010).
A despeito dos avanos, a implementao efetiva do que se poderia chamar de
cuidado integral sade mostra-se deficitria. O aprendizado fortemente
voltado para o acmulo de informaes e no para a reflexo de atitudes e
aes, favorecendo a formao de um estudante disperso, defensivo, pouco
reflexivo sobre si e sobre o outro, seja seu colega, docente ou paciente (ALVES,
2010; AZEVEDO, RIBEIRO, BATISTA, 2009).
Firmando novos caminhos para as escolas mdicas, a FAMEMA, a Universidade
Estadual de Londrina (UEL), a Universidade Federal de Roraima e a UFSCar
desenvolveram currculos que integram academia e SUS, com prticas
pedaggicas centradas no estudante e sob metodologias ativas de ensino-
aprendizagem (BERBEL, 1998; KOMATSU, ZANOLLI, LIMA, 1998;
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FEUERWERKER, 2002; LIMA, KOMATSU, PADILHA, 2003; KOMATSU, 2006;
BARROS e LOURENO, 2006; MINISTRIO DA EDUCAO, MINISTRIO DA
SADE, 2006; MEDICINA UFSCar, 2007; AQUILANTE, 2011).
Nesses currculos, o aluno o centro de um aprendizado voltado a processos
crticos-reflexivos e de autoavaliao, para a construo do conhecimento
individualizado. As atividades curriculares centram-se em metodologias ativas
de ensino-aprendizagem. As prticas so desenvolvidas prioritariamente nas
unidades do SUS, com equipes multiprofissionais e firmam na Estratgia de
Sade da Famlia (ESF) o modelo de ateno mdica e de integrao academia-
servios de sade e comunidade (LAMPERT, 2006; ADLER e GALLIAN, 2014).
Lampert (2009) estudou a adequao de 28 currculos de escolas mdicas
brasileiras, em relao s DCN de 2001 e ao SUS. Os temas abordados foram:
PPP, abordagem pedaggica, cenrios de prtica, desenvolvimento docente e
mundo do trabalho. Classificou as escolas em trs grupos:
Tipologia Avanada (currculo integrado, orientado por competncia
profissional, ensino nas APS ao longo dos seis anos sob metodologias
ativas de ensino-aprendizagem);
Tipologia Inovadora (currculo tradicional em transformao,
predominando o modelo hospitalocntrico, com pouco enfoque na
problemtica do SUS);
Tipologia Tradicional (modelo flexneriano de currculo, sem interesse na
participao do SUS).
Os resultados mostraram que 75% das escolas apresentaram tipologia
avanada e inovadora, com menor avano no eixo desenvolvimento docente.
Os docentes defensores do modelo flexneriano so foco de resistncia s
inovaes, muitas vezes utilizando-o de forma acrtica, servindo-se de
parmetros educacionais de 1910. Resistncia que a contribuio das Cincias
Sociais e Humanas ajudam a vencer, ampliando a percepo do homem, do
adoecer e do cuidado integral (LAMPERT, 2009).
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Recentemente, novas Diretrizes Curriculares em Medicina foram publicadas pelo
Conselho Nacional de Educao. As DCN de 2014 estabeleceram que 30% do
Internato deve acontecer nas unidades de APS e servios de Urgncia e
Emergncia do SUS (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2014a;
MINISTRIO DA EDUCAO, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO,
CMARA DE EDUCAO SUPERIOR, 2014).
No momento em que pesquisas de avaliao sobre as mudanas nas escolas
mdicas comeam a mostrar a consolidao das DCN de 2001, novas DCN so
impostas academia, sem apreciao das partes interessadas no processo de
mudana, exigindo adequaes e alteraes de objetivos pr-estabelecidos. Se
acertadas ou no, no se tem evidncias para concluses: preciso haver
correspondncia entre os cenrios de prtica e as competncias que se pretende
alcanar (ASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO MDICA, 2015, p.16).
Alm disso, imprescindvel ter-se discernimento entre a necessidade do
compromisso imediato com a prtica mdica e o direito de reflexo com certa
imunidade s presses do cotidiano (CAMPOS, 2005, p.10) (AGUILAR-DA-
SILVA, 2009; LAMPERT, 2009; CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2014a).
O aprendizado prtico, no deve abstrair as dificuldades e dissabores da
experincia de realizao. O profissional necessita estar preparado para uma
vida com tempestades, mostrando-se receptor sensvel e estruturado, capaz de
traduzir e interagir de forma adequada s individualidades do ser humano e seu
adoecer. Porm, o SUS tem que estar preparado para ser cenrio de ensino-
aprendizagem e seus trabalhadores capacitados para tal, em seus trs nveis de
ateno. As equipes de sade, em conjunto academia, devem ser a base
estruturante desse processo. Para que o aluno esteja durante os seis anos no
SUS, ele precisa de tutoria adequada e do tempo mnimo para a experincia do
aprendizado significativo (RIBEIRO, 2001; TRAVERSO-YEPEZ e MORAIS,
2004; CUNHA e CAMPOS, 2011; SIQUEIRA-BATISTA, 2013).
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34
1.4. Metodologias Ativas e Ensino Mdico: potenciais pedaggicos para
preparar o futuro profissional cidado.
Devemos nos convencer de que o objetivo final da educao no o de aperfeioar as noes escolares, mas sim o de preparar para a vida; no de dar o hbito da obedincia cega e da diligncia comandada, mas de preparar para o agir autnomo (PESTALOZZI, apud INCONTRI, 2006, p.96).
A arte de ensinar teve no passado grandes pensadores e prticos como
Scrates, o mestre da dialtica. Na obra maior de Comenius (1592-1670),
Didtica Magna, encontra-se proposies ainda atuais como a construo do
conhecimento pela experincia da observao e da ao. Pestalozzi mostrou
que a individualidade do aluno era um ponto chave para a boa aprendizagem,
onde a intuio auxiliava a instruo (COMENIUS, 2001; KONDER, 1998;
INCONTRI, 2006).
As aulas magistrais tornaram-se o maior eixo metodolgico do ensino
contemporneo. A transmisso vertical ganhou espao e ainda hoje um dos
mtodos mais usados na graduao. O conhecimento transmitido em aulas
expositivas, onde os estudantes recebem a informao de forma passiva. Os
contedos se sobrepem em velocidade estupenda, no permitindo o tempo do
silncio e da experincia para a necessria reflexo (BOEMIA, 2002; CYRINO e
TORALLES-PEREIRA, 2004). Aqui, o objetivo informar um extenso contedo
terico para um grande nmero de alunos, em curto perodo de tempo. No
necessita de estudo prvio do aluno, que adquire uma noo superficial dos
contedos a saber, mas no autonomia sobre seu aprendizado e nem
capacidade de anlise reflexiva para um raciocnio crtico (GOMES e REGO,
2011; SANTOS, 2011; DEUS, 2014).
No sculo XX, diferentes concepes sobre a aquisio do conhecimento,
influenciaram o processo contemporneo de ensino-aprendizagem. Por meio de
teorias epistemolgicas de Jean Piaget e das observaes de Lev Vygotsky
originou-se o construtivismo, corrente terica para a qual o desenvolvimento da
inteligncia determinado por aes entre indivduo e meio. O conhecimento
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no se traduz em verdade absoluta, mas modela aes e operaes conceituais
com base nas experincias. No processo, o professor faz papel de mediador e
busca fazer com que o aluno desenvolva o melhor de si (VYGOTSKY, 2014,
GOMES, 2008).
As abordagens sob o rtulo do construtivismo, apresentam duas caractersticas
constantes: a aprendizagem acontece no envolvimento ativo do aprendiz e as
ideias prvias dos estudantes desempenham um papel primordial no processo
de aprendizagem (MORTIMER, 1996).
No ensino superior, o construtivismo trouxe como diferencial a mudana do ponto
central do binmio ensino-aprendizagem. Antes, centrado no professor, centrou
o aprendizado no aluno e no aprender a aprender (AGUILAR-DA-SILVA, 2009).
Na contramo do modelo dominante de ensino sob transmisso vertical,
surgiram aes inovadoras, procurando explorar outras possibilidades de
ensino-aprendizagem (BATISTA e BATISTA, 2004; CYRINO e TORALLES-
PEREIRA, 2004).
O ensino da Medicina tambm buscou novas concepes metodolgicas. Foram
desenvolvidos modelos de interao, vinculando a formao prtica a Servios
de Sade. As metodologias ativas de ensino-aprendizagem tambm surgiram
como alternativas ao ensino tradicional. Trouxeram a autonomia do estudante
como um ponto central do modelo pedaggico e motivaram o aprendizado com
o desenvolvimento do raciocnio crtico-reflexivo, estruturado em processos de
ancoragem na aquisio e sedimentao de novos conhecimentos e buscaram
desenvolvem habilidades de autogerenciamento do processo formativo, em um
contexto integrador de teoria e prtica (COLLIVER, 2000; MOREIRA e MASINI,
2002; TOLEDO JUNIOR, 2008; MITRE, 2008).
Nesse modelo, o docente deve ter habilidades para conduzir o estudante a uma
aprendizagem ativa, auxiliar e respeitar seu potencial de desenvolvimento. As
prticas avaliativas no so punitivas, pois permitem o processo de anlise do
aprendizado, tornando-o dinmico e ativo (MITRE, 2008).
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O Problem Based Learning (PBL) foi uma dessas ferramentas desenvolvidas e
tem por finalidade promover integrao das reas do conhecimento, fomentar a
reflexo e estimular o aprendizado profissional contnuo por meio de
compreenso e resoluo de problemas (COLLIVER, 2000). Baseia-se na
motivao para o aprendizado, na estruturao do conhecimento em contexto
clnico e no desenvolvimento do raciocnio clnico e de habilidades para o auto
aprendizado. O trabalho intencional com problemas, apoia-se na aprendizagem
por descoberta e significados. O ensino ministrado em pequenos grupos (sete
a dez alunos) faz parte da sua estratgia central (CYRINO e TORALLES-
PEREIRA, 2004; TOLEDO JUNIOR, 2008).
Hoje o PBL tornou-se principal eixo terico de muitos currculos mdicos. Tem
como linha mestra o aprendizado centrado no estudante e baseia-se em estudos
de problemas com temas intencionalmente propostos (disparadores), tendo por
objetivo fazer o aluno estudar determinados contedos. Na prtica curricular,
auxilia na interdisciplinaridade, no aprendizado cognitivo, crtico-reflexivo,
articulando as dimenses biolgica, psicologia e social (BERBEL, 1998;
GOMES, 2009; AQUILANTE, 2011)
Outro modelo desenvolvido foi o ensino pela Problematizao ou Ensino
Baseado na Investigao (Inquiry Based Learning). Tendo suas origens no
construtivismo de Piaget, estimula o aluno a compreender e participar como
agente de transformao social, pelo contato e busca de solues para
enfrentamentos em sade. Procura mobilizar o potencial poltico, tico e de
responsabilidade social do estudante em busca de uma formao profissional
cidad e participativa. Pode-se ter melhor compreenso da metodologia pelo
Mtodo do Arco de Charles Maguerez (Figura 1). Nele h cinco etapas serem
desenvolvidas pelo estudante: observao da realidade, pontos chave,
teorizao, hipteses de soluo e aplicao realidade (prtica). Segundo
Berbel (1998) o docente auxilia na dialtica ao-reflexo-ao, dentro de uma
determinada realidade social e o estudante tem a possibilidade de compreender
a responsabilidade da sua prtica (BORDENAVE e PEREIRA, 1991; BERBEL,
1998; MITRE, 2008).
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Figura 1: Mtodo do Arco de Charles Maguerez (BORDENAVE e PEREIRA, 1991, p. 10).
O PBL e a Problematizao hoje fazem parte de alguns currculos reformulados.
Apesar de ambas serem metodologias nas quais a aprendizagem acontece a
partir de problemas, so propostas distintas, onde o PBL direciona a organizao
curricular, como eixo de aprendizagem por meio de situaes elaboradas em
temas previamente definidos que buscaro estimular no estudante a construo
do conhecimento (BERBEL, 1998, BATISTA e BATISTA, 2008).
A Problematizao enfatiza o movimento ao-reflexo-ao (BATISTA e
BATISTA, 2008, p. 111) onde so consideradas implicaes pessoais,
contextuais e interaes entre diferentes atores na vida real para a reflexo e
construo de novos significados de problemas vivenciados, direcionando as
aprendizagens cada situao da prtica (BATISTA e BATISTA, 2008).
utilizada para determinados temas de uma disciplina. Possibilita o
desenvolvimento do binmio ensino-aprendizagem de forma ampla e integrado
comunidade e permite explorar temas relacionados vida do paciente na
sociedade em que vive (BERBEL, 1998; VIEIRA e PANNCIO-PINTO, 2015).
Como inovao, a Estao de Simulao da Prtica Profissional (ESPP) serve
de apoio pedaggico para o treinamento e desenvolvimento de habilidades
especficas da prtica mdica. No substitui a aprendizagem prtica real, mas
auxilia no desenvolvimento de habilidades tcnicas e relacionais, proporciona
maior segurana para o exerccio da Medicina e assegura maior grau de
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38
autonomia ao estudante, em um ambiente controlado e seguro, com atores
pacientes (PAZIN FILHO e SCARPELINI, 2007; SILVA, 2012).
A ESPP desperta no aluno o senso de autoavaliao e autorreflexo na
construo de novos saberes, ressignificando o antes conhecido e elaborando
uma representao pessoal sobre seus contedos. Faz parte desse processo de
aprendizagem o que David Ausubel (1968) props como Aprendizagem
Significativa. Novas ideias e informaes podem ser aprendidas e retidas, na
medida em que conceitos inclusivos estejam disponveis na estrutura cognitiva
do aluno. Os conceitos sedimentados funcionam como ponto de ancoragem para
novos conhecimentos. Porm, o processo s efetivo quando os conceitos
propostos apresentarem uma estrutura lgica e significativa para o aprendiz.
uma experincia diferenciada que permite a aquisio de vasta quantidade de
informaes de um corpo de conhecimentos (MOREIRA e MASINI, 2002;
GOMES, 2008; VARGA, 2009). A verdadeira vantagem do conhecimento e do
saber humanos est na segurana dos fundamentos, de onde eles partem e
sobre os quais repousam (PESTALOZZI, apud INCONTRI, 2006, p.155).
Como recurso educacional, o trabalho com Narrativas e o estudo das
Humanidades e das Artes podem auxiliar na maior percepo do processo
crtico-reflexivo, no desenvolvimento de habilidades afetivas, relacionais e
humansticas. Nestas abordagens, a cultura da emoo e da imagem suscitam
reflexo e a processos de mudanas que influenciam nas atividades do
cotidiano. Educar as emoes requer estratgias inovadoras modernas que vo
ao encontro das necessidades do estudante (BLASCO, 2005, p. 119) (DE
BENEDETTO, BLASCO, GALLIAN, 2013; BITTAR, GALLIAN, SOUSA, 2013).
Atualmente, o trabalho com Narrativas vem se destacando como outro possvel
mtodo auxiliar no desenvolvimento das habilidades humansticas e crtico-
reflexivas dos estudantes (GALLIAN, 2012; BITTAR, GALLIAN, SOUSA, 2013). Na
Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP) foi criada uma disciplina eletiva
cuja metodologia baseada em Narrativas em Sade. Utiliza como material trs
tipos de narrativas: narrativas literrias, narrativas que emergem em cenrios de
prtica e histrias de vida de pacientes. Em recente estudo, alunos de Medicina
e Enfermagem dessa disciplina, desenvolveram habilidades humansticas e a
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39
incorporaram prtica de seus cuidados em sade (DE BENEDETTO, BLASCO,
GALLIAN, 2013).
Toda mudana gera inseguranas e instabilidades. Nesse processo, a busca de
aes sedimentadas no xito, ajudam na transformao desejada. Currculos
com base no PBL, mesclados a metodologias ativas de ensino-aprendizagem
vm se destacando como respostas aos anseios de mudanas curriculares dos
cursos de Medicina, desde seus primeiros ensaios na dcada de 1960, na
McMaster University (TOLEDO JUNIOR, 2008; POLYZOIS, CLAFFEY,
MATTHEOS, 2010), Maastricht University, faculdades de Medicina norte-
americanas (PAPA e HARASYM, 1999; GAYLORD, 2007; POLIZOIS, 2010) e
no Brasil (FAMEMA, 1998; MEDICINA UFSCar, 2007; UEL PROGRAD, 2015).
Com novos modelos metodolgicos e prticas pedaggicas, abre-se a
oportunidade de considerar questes relacionadas formao mdica,
envolvendo concepes amplas de sade-doena, modelos de ateno sade
e polticas pblicas de sade. O uso de metodologias ativas na graduao
mdica pode auxiliar na implementao das DCN, mas a eficcia do processo
no depende apenas do planejamento e gesto curriculares. H necessidade de
se articular currculo e prtica profissional junto ao Sistema nico de Sade,
reorientando saberes e prticas para adequ-los realidade brasileira que se
quer enfrentar (MITRE, 2008; GOMES, 2009).
As metodologias ativas permitem a capacitao na compreenso bio-psico-
scio-ambiental do cuidar, alm de estimular a Educao Continuada. Facilitam
a utilizao de aes integradoras do ensino, possibilitam independncia,
responsabilidade e preparam o estudante para o trabalho em equipe. Propem
substituir o ensino mdico tradicional ao priorizar a interdisciplinaridade e a
integrao terico-prtica (MARIN, 2010; POURSHANAZARI, 2013).
Na Alemanha, uma pesquisa feita com graduandos em Medicina da Universitt
Witten/Herdecke, comparou o ensino tradicional e o currculo de PBL, entre os
anos de 1996 e 2002. Neste estudo, o PBL trouxe benefcios aquisio de
competncias profissionais, com maior independncia em aprender/ trabalhar e
a destreza na prtica. J o conhecimento mdico complexo, a competncia para
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pesquisa e para administrao/negcios mostraram-se menos desenvolvidos
com relao ao ensino tradicional (SCHLETT, 2010).
Uma reviso sistemtica sobre o ensino com base no PBL, em Medicina e
Odontologia, apontou que os estudantes desenvolveram atitudes para o
aprendizado profissional contnuo a curto prazo, mas no a mdio e longo prazo.
Os trabalhos Randomized Controlled Trial (RCTs) e estudos comparativos (todo
currculo) no apresentaram clara diferena entre PBL e o ensino tradicional.
Paradoxalmente, os estudos comparativos entre intervenes pontuais de PBL
e currculo tradicional foram consistentemente a favor das intervenes. Como
sugesto, o autor destaca que um currculo hbrido, onde se utilize ambas
metodologias, pode ser uma alternativa adequada para o ensino mdico
(POLYZOIS, CLAFFEY, MATTHEOS, 2010).
Outra proposta metodolgica o chamado Team-Based Learning (TBL) que se
mostra uma abordagem educacional vivel, eficaz e positiva na preparao dos
alunos para as etapas subsequentes da experincia educacional, quando
aplicado em conjunto ao PBL (ABDELKHALEK, 2010).
Para Nestor Schor, professor na UNIFESP/EPM as reformulaes curriculares
devem acontecer de maneira a ensinar e promover autonomia aos alunos.
Cada vez mais estou convencido que deve haver grandes aulas magnas. Pegar o professor X que mais entende daquele assunto e dar uma aula que arrepia. O restante, essas besteiras que a gente faz de ficar dando aulinha, isso no serve pra nada. O que salva os nossos alunos que so extremamente qualificados. S precisamos dar mais tempo para eles lerem, cobrar e oferecer tutorias, para tirar dvidas ou para discutir e aprofundar determinados conhecimentos (SCHOR, 2009 apud REGINATO, 2009, p.137).
As mudanas curriculares mostram-se essenciais, porm no suficientes para
alterar o perfil do egresso como preconizam as duas ltimas DCN. H que se
pensar em estratgias de ensino-aprendizagem efetivos para o novo profissional
que se quer formar (GOMES e REGO, 2011).
Mas quem acredita na utopia da mudana para um novo mdico crtico e reflexivo, humano e tico precisa tambm agir e criar estratgias, alm do mtodo, em busca de uma formao, ao menos, um pouco melhor... (GOMES e REGO, 2011, p. 563).
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1.5 O SUS como cenrio de prtica mdica.
O homem que esvoaa com facilidade sobre cada conhecimento e no fortalece seu saber empregando-o tranquila e firmemente, este tambm perde o caminho da natureza... (PESTALOZZI apud INCONTRI, 2006, p. 159)
No panorama de mudanas do ensino mdico, o SUS trouxe como incumbncia
a ordenao da formao de recursos humanos na rea de sade (BRASIL,
Lei 8080/90, Artigo 6o, inciso III, 1990) e as DCN de 2001 estabeleceram
competncias ao profissional, enfatizando a integrao ensino-servio
(MINISTRIO DA EDUCAO, 2001; EPSTEIN e HUNDERT, 2002).
Hoje, aos 25 anos do SUS, permanece o debate sobre aes necessrias para
a concretizao de um ensino mdico que contemple de forma satisfatria e
sustentvel, o trip ensino-pesquisa-assistncia junto ao Sistema Pblico de
Sade (LAMPERT e BICUDO, 2014; OLIVEIRA, 2007).
Na histria do SUS, as dificuldades que se avolumaram ao longo dos anos
desviaram o rumo de suas diretrizes e obstaculizaram sua adequao tanto para
o ensino como para a assistncia. Santos (2013) aponta como obstculos
maiores o subfinanciamento federal (incluindo repasses fragmentados por
programas e no por metas de planejamento municipal ou estadual), a
subveno crescente com recursos federais aos planos privados de sade, a
rigidez da estrutura administrativa e burocrtica do Estado que impede gastos
pblicos extremamente necessrios sade da populao e a privatizao da
Gesto Pblica (CUNHA e CAMPOS, 2011, SANTOS, 2013).
Nesse contexto, fica claro que o planejado para o SUS, nas dcadas de
1980/1990, no aconteceu. Hoje a Ateno Primria e equipes de SFC tm
grande dificuldade em desenvolver um cuidado sade com qualidade. A
cobertura efetiva da populao, planejada para 100%, oscila entre 30 a 40% e
mantm baixa sua resolutividade. A gesto, devido falta de recursos
financeiros, se v obrigada a privilegiar servios de urgncia/emergncia,
deixando em segundo plano a promoo sade e a preveno de agravos.
Com esse cobertor curto, a promoo/preveno que deveriam mudar toda a
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lgica do Sistema de Sade brasileiro, ficaram restritos a aes pontuais de
pouco impacto (RODRIGUES, 2013; SANTOS, 2013). "O cenrio do
atendimento sade no foi alterado por falta de polticas consistentes e de
financiamento adequado" (MEINO, 2013).
Foi nesse cenrio que as escolas de Medicina buscaram inserir seus currculos
e preparar mdicos para a lgica do mundo do trabalho contemporneo,
privilegiando atividades junto APS. Apresentaram o aluno prtica da
experincia na complexidade do SUS, auxiliando na construo de redes de
saberes diversos como o cuidado integral e compartilhado, o trabalho em
equipes multiprofissionais, a responsabilidade social, entre outros. Fatores que
implicam na ressignificao de sua prtica, alterando o modo de refletir sobre
suas aes ao compartilhar experincias e conhecimentos com colegas,
docentes e profissionais do SUS. O aprendizado interdisciplinar no cenrio do
SUS, por meio de metodologias ativas de ensino-aprendizagem funciona como
potencializador do ensino mdico (DEMARZO, 2012; BATISTA e BATISTA,
2008; SIQUEIRA-BATISTA, 2013).
Batista e Batista (2008) defendem que a prtica mdica deveria ser o eixo
estruturante (BATISTA e BATISTA, 2008, p.102) do currculo para efetivao da
construo do conhecimento a partir de situaes vivenciadas no cotidiano da
prtica.
Apesar das dificuldades enfrentadas, exemplo da FAMEMA (MARIN, 2014) e
da UFSCar (MEDICINA UFSCar, 2007) h uma tendncia de aproximao entre
ensino mdico e SUS, por meio de gestes compartilhadas e a criao de
espaos de ensino-assistncia-pesquisa e Educao Permanente para o
cuidado integral (PUCCINI, SAMPAIO, BATISTA, 2008; LAMPERT e ROSSONI;
2014).
Os profissionais do SUS so, em sua maior parte, conhecedores das polticas
de sade e compromissados com as propostas de transformao. Na integrao
com os graduandos em equipes multiprofissionais podem ser potencializadores
do ensino e auxiliares na aquisio de conhecimentos sobre Sade Pblica, de
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competncias tcnicas, relacionais e de gesto que so importantes
aprendizados para o mundo do trabalho, por meio das vivncias prticas
(ARAUJO, MIRANDA, BRASIL, 2007; BATISTA e GONALVES, 2011).
No conjunto de adaptaes realidade, as experincias de insero longitudinal
de disciplinas no SUS e de atividades educativas dos alunos junto populao,
resultaram no desenvolvimento de vnculos com pacientes e comunidade.
Aproximaram os estudantes da realidade e contriburam para a compreenso do
contexto sociocultural da populao assistida, tornando-os aliados para as
necessrias mudanas da APS (TRONCON, 1999; CECCIM, 2005). Mesmo
atividades pontuais ou extracurriculares revelaram-se como importantes elos
entre o ensino, a pesquisa e as prticas no SUS, inclusive em currculos de
tipologia tradicional e tornam positiva a avaliao dos alunos sobre o SUS
(FONTANELLA, 2011; NEUMANN e MIRANDA, 2012; ADLER e GALLIAN,
2014, SOUZA, 2014).
Nos servios do SUS, a dicotomia entre o conceito do cuidado integral e o
modelo biomdico tornou-se espao de disputas entre o velho e o novo e reduziu
o rico potencial dos cenrios de aprendizagem prtica multiprofissional, no SUS.
Esses espaos privilegiados pela diversidade de encontros, deveriam funcionar
como disparadores para a aprendizagem pela experincia e para a produo do
conhecimento. Apesar de mecanismos criados para o cuidado compartilhado,
para a comunicao transversal e preveno quaternria, o modelo de queixa-
conduta, a baixa resolutividade e desnecessrios procedimentos de Medicina
Diagnstica continuam fragmentando o doente e onerando as Instituies
(FEUERWERKER, 2002; PINHEIRO e MATTOS, 2005; CIUFFO e RIBEIRO,
2008; NORMAN e TESSER, 2009; HORA, 2013).
No basta estabelecer prticas e relaes inovadoras nos cenrios novos da comunidade e da ateno bsica que so incorporados no processo de ensino-aprendizagem. Para transformar o perfil do profissional formado, preciso tranformar as prticas e as relaes em todos os cenrios de prtica, incluindo os de internao domiciliar, os ambulatrios de especialidade, as enfermarias e os prontos-socorros (FEUERWERKER, 2002).
A formao mdica atual, tomada pelo ngulo da prtica vivenciada no SUS,
mostra-se heterognea. Contribui para isso no s a abordagem dicotmica de
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preceptores e docentes, acima mencionada, mas tambm os diferentes
currculos aplicados e suas prticas metodolgicas, bem como as condies em
que esses currculos so colocado em prtica. Para mudanas e consolidaes
de projetos pedaggicos das faculdades de Medicina, indispensvel adequar
essas condies cada escola e considerar que a formao se realize atravs
das especificidades de cada curso (LAMPERT, 2009).
A falta de infraestrutura e a escassez de programas para integrar academia e
Servios Pblicos de Sade so pontos desestruturantes para o ensino de
qualidade no SUS. O aprendizado na Rede Pblica no implica necessariamente
em melhoria na graduao e nem na melhora da resolutividade na ateno
sade. Faz-se necessrio investir maciamente na infraestrutura do SUS, com
oferta de servios e equipamentos, capacitao de pessoal, melhoria de gesto
e criao de espaos para desenvolvimento de programas conjuntos. Alm
disso, reduzir isenes fiscais e subsdios aos planos privados de sade e
consolidar parcerias com instituies slidas de apoio. Outro ponto importante
definir programas e aes conjuntos entre academia-servio-comunidade, sob
novos paradigmas de ateno e cuidado sade, onde o graduando de Medicina
possa compreender seu papel como profissional, dentro do servio de sade. O
papel participativo de docentes, preceptores e gestores e a parceria dos
mesmos, pode ampliar a qualidade do ensino e dos servios prestados pela
unidade de sade, alm de sensibilizar o setor pblico para financiamento de
projetos que envolvam o ensino integrado ao SUS e voltado comunidade
(OLIVEIRA, 2008; FERREIRA, 2010, SANTOS, 2013; ADLER e GALLIAN,
2014).
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1.6 Por trs das atividades curriculares.
tu que estudas esta mquina, o corpo no deves te sentir ressentido por receber o conhecimento que resulta da morte de um semelhante; alegra-te que nosso Criador tenha te dado acesso a um instrumento to perfeito. Mesmo, porm, que sejas movido pelo amor, possvel que te vena a nusea; e ainda que no te vena tal nusea, talvez sejas derrotado pelo medo de passar longas horas noturnas junto a corpos esquartejados (LEONARDO DA VINCI apud SCLIAR, 1996, p.58).
A sala de Anatomia e a difcil tarefa do encontro com a morte. Por centenas de
anos sensaes semelhantes repetiram-se em jovens recm-sados da
adolescncia, ao se depararem com cadveres nas primeiras aulas do Curso de
Medicina. Apesar do paradoxal incio do aprendizado da manuteno da vida
pela morte, ele abrange outras dimenses:
Muitos dizem que a anatomia, para o aluno que entra na faculdade, a grande representao da medicina, a iniciao...Ento a gente faz todo o ritual de iniciao, tem que ter muito respeito pelos colegas, pelos professores, pela rea, pela profisso, usar avental, ns temos que dar o exemplo, respeitar as regras... Esse um ritual que mantemos, valorizamos o lado humano (RICARDO LUIZ SMITH apud REGINATO, 2009, p. 112).
Hoje, parte dos currculos em Medicina expem os estudantes ao contato com
pacientes logo no incio do curso, contrapondo a tradicional exposio inicial a
cadveres (FERREIRA, SILVA, AGUERA, 2007; VIEIRA, 2007). A experincia se
realiza na vivncia do estudante com a problemtica de sade e doena por meio
de visitas domiciliares, asilos e sanatrios, acompanhamento de ambulncias e
pacientes com doenas terminais. Seja na impressionante sala de Anatomia ou
no contato com o doente e seu contexto, o aluno iniciante exposto a choques
e constrangimentos naturais resultantes do contato com as diferentes formas de
dor (DICHI e DICHI, 2006).
Os estudantes so submetidos a vrios estressores e a escola pouco se atm a
este estado emocional. A constante competitividade na graduao provoca
crises de menos-valia e desistncia, mais intensas nos primeiros anos. Os
extensos e necessrios perodos de estudo, cansam e limitam o lazer (saudvel
mente e ao corpo). Os estudantes moram longe da famlia e acabam por
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assumir responsabilidades de uma casa (pagamentos, alimentao, etc.). A esse
quadro alia-se a angstia de dependerem financeiramente de seus pais, por
muitos anos (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; REGINATO, 2009).
Entre os terceiro e quarto anos, deparam-se com a necessidade de maior
dedicao ao curso, em detrimento da vida social (MARIN, 2010). O erro mdico
e o mercado de trabalho despontam como temores futuros. Deparam-se com a
responsabilidade em lidar com o doente, o que aumenta a carga ansiognica e
a necessidade de maior dedicao: (...) e como a gente lida com pessoas em
momento de fragilidade, voc tem que ter mais amadurecimento para lidar com
elas... (DINI e BATISTA, 2004, p. 201).
Finalmente, no Internato, o trato com doentes graves, a responsabilidade sobre
a conduta, o lidar com o sofrimento, o desespero e a morte, a despersonalizao
do ambiente de trabalho que gera descontentamento, bem como situaes de
dor e frustrao, corroem a autoestima do aluno ainda em formao
(BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009, p.11). A angstia e o sofrimento
aumentam com a escolha da especializao. A insegurana exacerbada frente
a exames de residncia mdica e s disputas mercadolgicas. Eu tenho muito
medo do futuro. O que eu vou fazer da minha vida? (DINI e BATISTA, 2004, p.
202). Recentemente, a revelao de casos de violncia moral e sexual apontam
para os abusos vividos pelos estudantes, dentro da prpria comunidade
universitria (REGO e PALACIUS, 2014).
Como resultante desses estressores, surgem sentimentos de desproteo,
impotncia, desnimo e ansiedade. Casos de drogadio e depresso fazem
parte da triste estatstica dos estudantes de Medicina e suicdios ocorrem num
grau maior, quando se compara essa populao populao geral
(BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; OLIVEIRA, 2009; VOIGT, 2009,
REGO e PALACIUS, 2014).
As DCN de 2001 definem como competncias e habilidades especficas para a
formao mdica: cuidar da prpria sade fsica e mental e buscar seu bem-
estar como cidado e como mdico (MINISTRIO DA SADE, 2001, p.11).
Para tal, essencial que os responsveis pelo ensino estejam prximos e
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auxiliem no desenvolvimento de tais competncias nos futuros cuidadores
(BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009).
Seja no ensino tradicional ou em currculos modificados, a orientao terica e
o exemplo prtico so responsabilidade da instituio formadora e daqueles que
a constituem (BENEVIDES-PEREIRA e GONALVES, 2009; AZEVEDO,
RIBEIRO, BATISTA, 2009). Um aprendizado satisfatrio para a faculdade e para
o graduando, deve necessariamente ter acompanhamento tutorado (ALMEIDA
e BATISTA, 2013).
Para Ramos-Cerqueira e Lima (2002), os novos currculos e pedagogias de
ensino podem ser insuficientes para a diversidade de embates afetivos aos quais
os graduandos so expostos. Os docentes precisam exercer a funo de
educadores, formadores, apoiadores e valorizar a subjetividade do aluno.
Modelo que tem seus antecedentes em Pestalozzi, onde a individualizao do
aprendizado, a intuio, a subjetividade e a afetividade apresentam-se como
auxiliares da instruo tutorada (INCONTRI, 2006). No ensino mdico, a relao
docente/preceptor-aluno de vital importncia para a construo da relao
aluno/mdico-paciente (RAMOS-CERQUEIRA e LIMA, 2002).
Hoje, a figura do tutor permite a orientao individualizada no s de habilidades
cognitivas, mas de habilidades afetivas e relacionais, referentes profisso. A
funo do tutor dar suporte acadmico, reduzir o risco de Burnout , promover
o desenvolvimento de relaes dentro da profisso e auxiliar na satisfao com
a carreira. Porm, nos cursos, o nmero de alunos desproporcionalmente
maior ao de tutores e a capacitao deficiente, o que acaba por descaracterizar
a funo. H graduaes que nem disponibilizam tutores aos alunos. O modelo
de ensino preconizado pelas DCN, prope a liberdade ao estudante em definir
os seus objetivos instrucionais, dentro da linha mestra do currculo e a tutoria
deve auxili-lo nesse caminho (ALMEIDA e BATISTA, 2013; CHAVES, 2014).
Os estudantes precisam de profissionais onde possam se espelhar. Os jovens
adentram as portas da faculdade, egressos do ensino mdio e idealizam o
estudo universitrio. Tm sede do saber e pouco senso crtico sobre informaes
e atitudes que influenciaro suas vidas e carreiras (DICHI e DICHI, 2006).
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Outra coisa muito marcante na Escola foram meus professores. Pelo fato de serem formadores, eles tm uma influncia pelo resto da vida! O aspecto tcnico, didtico, algo inerente a eles. Mas aquele plus humano, de conversa, de aconselhamento isso o diferencial. Por isso, eu diria que muitos dos meus professores foram inesquecveis (Dr. WAGNER SHIGUENOBU KUROIWA apud REGINATO, 2009, p.104)
A histria traz exemplos de homens que fizeram de suas vidas a arte de ensinar
Medicina e tero o reconhecimento eterno de seus discpulos pelos exemplos
que deixaram. Conta o professor Pedro Luiz Mangabeira Albernaz, Os
professores no ganhavam nada para dar aulas na Escola Paulista. Era
realmente produto de entusiasmo! (GALLIAN, 2008, p.44).
Como fui da primeira turma da EPM, incorporei e mantive o esprito da Escola. Sempre lutei para que as geraes posteriores seguissem o esprito dos professores fundadores, esprito do ponto de vista da tica e do trabalho (JAIR XAVIER GUIMARES apud REGINATO, 2009, p.101).
Se a aproximao de contedos tericos, na atualidade, pode ser feita
distncia e solitariamente, o mesmo no se d com as habilidades ticas e
atitudinais. Respeito, compaixo, beneficncia, no maleficncia, justia e sigilo
so princpios bioticos a serem aprendidos pelo dilogo e exemplo prtico.
Orientar mdicos em suas formaes complexo e nesse contexto, o docente
emerge com relevncia e responde por modelos que iro marcar os modos de
atuao de seus alunos (DICHI e DICHI, 2006; COSTA e PEREIRA, 2005).
O Manno era de uma cultura absolutamente grandiosa. Primeiro porque tinha, e deve ter at hoje, uma paixo pela literatura alem, pelos filsofos... Ento ele cobrava uma postura e uma forma adequada de colocar o que estvamos aprendendo (ESPER ABRO CAVALHEIRO apud REGINATO, 2009, p.103).
Manter um relacionamento interpessoal caracterizado pelo dilogo, pelo respeito
e pelo compromisso condio fundamental para a formao mdica na opinio
dos docentes (CANUTO e BATISTA, 2009). Muito ainda feito por meio do
esforo individual e do autodidatismo. Nas escolas mdicas, a falta de
sistematizao para uma formao didtico-pedaggica uma lacuna no
preparo docente. Eles so contratados pela competncia profissional ou por
serem bons pesquisadores, o que no assegura a competncia didtica, nem
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relacional. Ao contrrio de outras reas, no se exige formao especializada do
processo de ensino-aprendizagem para a docncia em Medicina (CANUTO e
BATISTA, 2009; COSTA e SIQUEIRA-BATISTA, 2004).
A adequao dos docente e outros profissionais designados a intermediar o
processo de aprendizagem do estudante, essencial para um ensino de
qualidade. Com a responsabilizao dos preceptores na formao, o processo
de qualificao tambm precisa envolv-los. Para contribuir de forma efetiva com
um ensino de qualidade e humanizado, os profissionais devem ser capacitados
no s nas metodologias pedaggicas, mas para saber lidar com a velocidade
de novas descobertas cientficas e tecnolgicas, com instrumentos de gesto e
com o cuidado multiprofissional. Devem estar preparados para manter
compromisso permanente com a tica e cidadania e atentar para a escuta e
acolhimento tanto do aluno como do paciente (AZEVEDO, RIBEIRO, BATISTA,
2009; GOMES e REGO, 2011; HORA, 2013).
A capacitao deve permitir o desenvolvimento da maestria de valores
contributivos para a evoluo do estudante, no s como profissional, mas como
ser humano, dado que no so variveis excludentes. Necessrio se faz
incentivar o lado positivo do aluno para auxiliar na formao de mdicos
competentes, ticos e de elevada moral como j orientava Hipcrates
(OLIVEIRA, 1981, RAUTIO, 2005; PAGLIOSA e DA ROS, 2008).
E no contexto da aprendizagem prtica que docentes e preceptores ganham
qualidade especial, pois principalmente por seus exemplos prticos que os
futuros mdicos incorporaro competncias nas dimenses integrativas,
relacionais, afetivas, morais e atitudes humanizadoras (CANUTO e BATISTA,
2009; ADLER e GALLIAN, 2009; REGINATO, 2009).
A amplitude da formao moral elementar toca primeiramente em trs pontos de vista: a obteno de um estado de nimo moral por meio de sentimentos puros; a prtica de exerccios morais de autodomnio e de esforos no que reto e bom; e finalmente a realizao de uma ideia moral, atravs da reflexo e da comparao das relaes de justia e moralidade (PESTALOZZI apud INCONTRI, 2006).
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1.6.1 A formao humanista e a humanizao
Em nossa poca, a crescente intimidade entre a medicina e a cincia fomenta a iluso de que so idnticas. Essa ideia leva os mdicos a desdenhar a importncia das boas maneiras ao p do leito do enfermo, induz negligncia na coleta minuciosa da histria mdica e reduz o investimento individual na promoo das interaes humanas com os pacientes. O foco passa da arte de curar tcnica de tratar, como se os dois sistemas fossem antagnicos e no complementares (LOWN, 1996, p.140).
Para reaproximar a formao mdica do homem e sua totalidade, as DCN de
2001 estabeleceram como parte estrutural da graduao, a incluso de
dimenses ticas e humansticas, devolvendo ao aluno atitudes e valores
orientados para a cidadania (MINISTRIO DA EDUCAO, 2001, p.11) e
fixaram por objetivo, levar os estudantes prtica da integralidade da ateno,
qualidade e humanizao do atendimento prestado (MINISTRIO DA
EDUCAO, 2001, p.4).
Porm, ao se discutir os conceitos de humanismo e humanizao, necessrio se
faz nome-los para melhor compreenso dos leitores. De qual humanismo, de
qual humanizao se pretende falar?
Aqui, os autores tomaram como base, o conceito defendido por Archiga (2003)
que afirma ser o Humanismo um movimento de retorno viso integral que os
filsofos gregos e romanos desenvolveram sobre o papel central do ser humano
no conhecimento (ARCHIGA, 2003, p.1). Conceito filosfico que se refletiu na
prtica da Medicina hipocrtica e que hoje valorizado pelo sistema teraputico
denominado Homeopatia. Nessas prticas mdicas, observa-se a importncia
do homem como centro dos cuidados, o destaque que dado ao entendimento
da integrao entre vida fsica e psquica e do impacto das emoes sobre estas.
So abordagens que exigem do mdico habilidades no conhecimento das leis
da natureza, da alma humana e da arte de sua profisso (OLIVEIRA, 1981;
HAHNEMANN, 1995; ARCHIGA, 2003).
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No vai-e-vem da evoluo, para a retomada da formao humanstica e da viso
holstica do homem, foram desenvolvidas diferentes ferramentas pedaggicas.
Uma delas, a Clnica Centrada no Paciente (STEWART, 2003), tem o paciente
como o centro de toda ao e prioriza sua participao na tomada de decises
para o cuidado integral. Preconiza que o mdico tenha conhecimento no s da
doena, mas tambm da experincia do adoecer, dos sentimentos do paciente
e da ideia que o paciente tem sobre sua prpria doena, do impacto que o estado
de adoecimento ir causar sobre sua vida diria e suas expectativas em relao
ao que deveria ser feito (STEWART, 2003; RIBEIRO e AMARAL, 2008).
Nas Unidades de Sade da Famlia (USFs), os princpios de universalidade,
equidade, integralidade tendem a ser desenvolvidos com base na Clnica
Centrada no Paciente. So cenrios de aprendizagem que possibilitam a
aquisio de conhecimentos em um modelo