Marisa assuncao teixeira julho 2012_é possível colocar a provinha brasil a serviço da...
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
MARISA ASSUNÇÃO TEIXEIRA
É possível colocar a Provinha Brasil a serviço da
aprendizagem do aluno com necessidades educacionais
especiais?
São Paulo
2012
Marisa Assunção Teixeira
É possível colocar a Provinha Brasil a serviço da
aprendizagem do aluno com necessidades educacionais
especiais?
Trabalho de Conclusão de Curso submetido
à Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo como requisito do Curso de
Especialização Gestão Escolar.
Orientador: Profº Drº Ocimar Munhoz
Alavarse
São Paulo
2012
Agradecimentos
No último dia de aula lá estava o professor. O mesmo do primeiro dia. Quase ano e meio atrás.
Um déjà vu de números e medidas. Olhei para o meu trabalho e compreendi no que me repito.
As gêneses. As origens. Os começos. "É possível colocar a Provinha Brasil a serviço da
aprendizagem do aluno com necessidades educacionais especiais?" é mais um texto que reafirma
esse meu destino. Sou grata ao Profº Drº Ocimar Munhoz Alavarse por ter me dado a
oportunidade de descobrir, como diz Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro, a minha “pergunta
de vida”.
– Minha querida! Eu gostaria que você se encarregasse de
tirar esse gato daqui!
A Rainha, como sempre, só tinha uma maneira de se livrar
das dificuldades, fossem elas grandes ou pequenas:
– Cortem a cabeça dele! – ordenou ela, sem sequer olhar para
aquele lado.
Lewis Carroll
Alice no país das maravilhas
Resumo
Este trabalho tem por objetivo investigar em que medida a Provinha Brasil, enquanto avaliação
padronizada, pode ser um instrumento eficiente para diagnosticar o nível de alfabetização de
aluno que apresenta necessidades educacionais especiais e subsidiar o professor no seu fazer
pedagógico. A Provinha Brasil é uma das iniciativas do governo federal para fazer frente ao
baixo desempenho em leitura demonstrado pelos alunos nas avaliações externas destinadas à
educação básica. É aplicada aos alunos do 2º ano de escolarização do ensino fundamental a fim
de diagnosticar o nível de alfabetização individual e da turma, dar subsídios ao professor para
planejar suas intervenções e oferecer um panorama da escola para os gestores do sistema de
ensino com a finalidade de planejar ações de correção das distorções verificadas. Utilizou-se
para esta investigação um conjunto de provas de uma turma do 2º ano do ciclo inicial de uma
escola de educação básica do município de São Bernardo do Campo que conta em seu
agrupamento com uma aluna diagnosticada com deficiência intelectual. As provas são relativas
ao início e ao término do período letivo de 2011. Verificou-se que a ausência de um debate sobre
as finalidades da avaliação, a forma de aplicação da prova bem como a forma de análise dos seus
resultados podem interferir na aferição das habilidades de leitura dos alunos, distorcendo a
finalidade principal do processo de avaliação.
Palavras chaves: avaliação da alfabetização, avaliação de aluno com necessidades educacionais
especiais, avaliação formativa.
Lista de Figuras
Figura 1 – Trecho da questão 17 do Guia de Aplicação do Teste 1, 2011 .................................. 37
Figura 2 – Assinatura da Giovanna na capa do Caderno do Aluno do Teste 1 ........................... 42
Figura 3 - Assinatura da Giovanna na capa do Caderno do Aluno do Teste 2 ............................ 48
Figura 4 – Trecho da questão 16 do Guia de Aplicação do Teste 2, 2011 .................................. 52
Lista de Quadros
Quadro 1 - Relações entre o Eixo Apropriação do sistema de escrita no Pró Letramento e a
Provinha Brasil ......................................................................................................................... 32
Quadro 2 - Relações entre o Eixo Leitura no Pró Letramento e a Provinha Brasil ..................... 33
Quadro 3 – Histórico Escolar .................................................................................................... 39
Quadro 4 – Ficha de Correção Teste 1 ...................................................................................... 40
Quadro 5 – Procedimentos adotados para responder a comanda “Faça um ‘X’ no quadradinho” -
Teste 1 ...................................................................................................................................... 42
Quadro 6 – Ficha de Correção do Teste 2 ................................................................................. 47
Quadro 7 - Procedimentos adotados para responder a comanda “Faça um ‘X’ no quadradinho” -
Teste 2 ...................................................................................................................................... 49
Lista de Tabelas
Tabela 1 - Quantidade e percentagem de questões por descritores e por eixo nos Testes 1 e 2 ... 34
Tabela 2 - Quantidade e percentagem de questões por descritores nos Testes 1 e 2 ................... 34
Tabela 3 – Comparação entre o Ideb de São Bernardo do Campo,projetado e obtido, e o Ideb da
escola ....................................................................................................................................... 39
Tabela 4 – Distribuição da quantidade de alunos por nível de desempenho no Teste 1 .............. 46
Tabela 5 - Distribuição da quantidade de alunos por nível de desempenho no Teste 2 ............... 51
Tabela 6 – Distribuição de alunos por nível de desempenho nos Testes 1 e 2 ............................ 51
Sumário
Introdução ................................................................................... Erro! Indicador não definido.
1. A avaliação externa na perspectiva do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) . Erro!
Indicador não definido.
2. Provinha Brasil e o ideal de unicidade nacional .................... Erro! Indicador não definido.
2.1. Alfabetização: um território contestado ......................... Erro! Indicador não definido.
2.2. A hora e a vez da avaliação da alfabetização .................. Erro! Indicador não definido.
2.3. Provinha Brasil: quando um instrumento pode ser só um instrumentoErro! Indicador
não definido.
3. A Provinha Brasil é um instrumento diagnóstico eficaz?..... Erro! Indicador não definido.0
3.1. Os bastidores da Provinha Brasil ................................... Erro! Indicador não definido.
3.2. A Provinha Brasil na prática ........................................ Erro! Indicador não definido.8
3.3. Mudou o panorama da turma do Teste 1 para o Teste 2?Erro! Indicador não
definido.7
3.4. É possível usar os testes padronizados como avaliação formativa para aluno com
necessidades educacionais especiais? ..................................... Erro! Indicador não definido.2
4. Considerações finais ............................................................. Erro! Indicador não definido.
Referências ............................................................................................................................... 58
10
Introdução
A primeira avaliação externa e de larga escala da qual as escolas de ensino fundamental
da rede municipal de educação de São Bernardo do Campo participaram foi a do Sistema de
Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), em 2004, sem qualquer
debate prévio sobre suas finalidades. Foram feitas algumas discussões posteriores voltadas para o
levantamento de possíveis causas que influíram nos resultados de cada escola, sem se fazer uma
proposta de ações para o curto ou médio prazo visando à correção das distorções. Em 2005, as
escolas participaram da Prova Brasil, avaliação de âmbito nacional a cargo do Ministério da
Educação (MEC), como também de suas edições de 2007, 2009 e 2011, sendo que desde 2007
esta avaliação substituiu a do Saresp. A Provinha Brasil, também de iniciativa federal, teve
adesão do município a partir de 2009.
No entanto, desde 2000, portanto, anterior ao início das avaliações externas na rede, os
gestores da Secretaria de Educação dispararam ações para implantar o programa de educação
inclusiva, criando neste ano o núcleo de apoio especializado “Fernando de Azevedo”, composto
por professores da educação especial habilitados em deficiência mental ou auditiva juntamente
com uma psicóloga e uma fonoaudióloga, e cujo objetivo era o de oferecer atendimento aos
alunos do ensino fundamental. Além do atendimento pedagógico individual em sala de recursos,
feito por uma professora de educação especial, os profissionais desenvolviam um trabalho de
itinerância nas escolas, discutindo propostas de adaptações arquitetônicas, ambientais e
curriculares. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2003, 2004).
Ao final do processo de municipalização do ensino fundamental, em 2004, coexistiam na
rede dois modelos distintos de atendimento aos alunos com deficiência (sensorial, física,
intelectual, múltipla) e transtorno global do desenvolvimento (síndromes do espectro do
autismo): substitutivo, nos casos das escolas especiais e das classes especiais (designadas de
classes integradas), estas últimas funcionando em onze escolas de ensino fundamental;
complementar, no caso das salas de recursos. Tanto o modelo substitutivo quanto complementar
lidava com um alunado que possuía o mesmo grau de complexidade educativa e de ensino.
De maneira que desde a aplicação do primeiro Saresp, a quase totalidade das sessenta e
sete unidades escolares de ensino fundamental no ano de 2004 (SÃO BERNARDO DO
CAMPO, 2004, p. 56) possuía aluno com deficiência ou com transtorno global do
desenvolvimento matriculado no 2º II, ano/ciclo ao qual a prova se destinava.
11
Já naquela ocasião, os gestores da Secretaria de Educação orientavam às equipes
escolares para que as provas fossem aplicadas a todos os alunos das classes, independente se
alguém dentre eles possuísse uma deficiência que o impedisse ter domínio do sistema alfabético
e da resolução de problemas matemáticos. Contudo, as equipes escolares adotavam
procedimentos distintos: algumas aplicavam as provas para todos os alunos, incluindo aqueles
com necessidades educacionais especiais; outras usavam estratégias variadas para manter tais
alunos em casa no dia da prova. Desde a primeira divulgação dos índices obtidos pelas escolas,
tornou-se queixa recorrente que os alunos com deficiência ou transtorno distorciam os
resultados.
Contudo, muito além dessa queixa encontrava-se um desconhecimento generalizado por
parte dos gestores das escolas e da própria Secretaria de Educação sobre as avaliações externas e
suas implicações, seja no âmbito do trabalho pedagógico, seja na formulação de políticas
públicas. Um início tanto mais tumultuado por conta da falta de coesão conceitual entre o Saresp,
a Prova Brasil e a Proposta Curricular (PC) do Município. O primeiro avaliava o domínio de
competências e habilidades básicas previstas para o término de cada série1; a Prova Brasil os
níveis de desempenho a partir de descritores2; já a PC tinha sua estrutura baseada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN).
A ausência de uma cultura de avaliação na rede pode ser evidenciada num documento
elaborado e distribuído pelas instâncias administrativas da Secretaria de Educação que dava
diretrizes para a construção do Projeto Político Pedagógico de 2009, cinco anos depois da
primeira avaliação. O referido texto mencionava em um dos tópicos destinados a pensar em
como “construir um trabalho em rede sem padronizar e massificar as experiências” [...], que isso
se dá “reconhecendo e respeitando as necessidades do processo de alfabetização de cada escola
para além dos índices.” (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2009, p. 8).
Se não havia discussões a respeito da necessidade ou não de se alinhavar o ensino das
áreas de conhecimento de Língua Portuguesa e Matemática às matrizes de competências ou de
nível de desempenho das avaliações externas, muito menos um olhar para a possibilidade ou não
de alunos com deficiência, principalmente múltipla e intelectual, e aqueles que possuíam
características do espectro do autismo alcançar o domínio de tais níveis de desempenho ou
competências. Para estes alunos, faltavam instrumentos de avaliação cotidianos que permitissem
mensurar ou qualificar os níveis de aprendizado dos objetivos estipulados para cada ano/ciclo.
1 Disponível em: http://Saresp.fde.sp.gov.br/2007/subpages/Saresp.html. Acesso em: 22 jan. 2012.
2 Disponível em:
http://download.Inep.gov.br/educacao_basica/prova_brasil_Saeb/escala/2011/escala_desempenho_portugues_funda
mental.pdf. Acesso em: 22 jan. 2012.
12
Todavia, este mesmo debate está ausente do cenário nacional, como demonstra o
resultado de uma varredura feita no sítio do Inep. Dentre as áreas temáticas prioritárias do
Observatório da Educação da Capes/Inep encontra-se “Educação e Inclusão Social”, mas sem
nenhum projeto em andamento na atualidade. Em consulta ao banco de teses da Capes, através
das expressões “avaliação da aprendizagem” e “necessidades educacionais especiais” foi
encontrada uma publicação de 2007 da Universidade de São Paulo3.
Quando surgiu a Provinha Brasil em 2008, como avaliação diagnóstica do nível de
alfabetização das crianças matriculadas no segundo ano do ensino fundamental das escolas
públicas brasileiras4, mediante uma prova padronizada, as lacunas conceituais acerca do papel
das avaliações externas na melhoria da qualidade de ensino estavam bastante acentuadas na rede
de São Bernardo.
Da mesma forma que a Prova Brasil, a “provinha” foi inserida no cotidiano das escolas
sem nenhum embasamento conceitual, no mais das vezes, sendo absorvida como mais uma
exigência burocrática. A orientação dos gestores da Secretaria de Educação foi para que a
“provinha” fosse aplicada em todas as unidades escolares e a todos os alunos, sem exceção. Na
testagem que aconteceu entre 16 e 25 de novembro de 2010 podemos encontrar orientações
quanto à aplicação nos seguintes termos:
Considerando não haver uma proposta de adaptação das questões aos diversos ritmos de aprendizagem e condições individuais de participação dos alunos e
visando garantir que todos possam realizar a prova, sugerimos que durante a
reunião para organização da prova seja discutido com os professores como será feita a aplicação para aqueles alunos que necessitem de adaptação e quais as
adaptações necessárias. Tal discussão visa garantir que todos os alunos
participem desta atividade da melhor forma possível. Algumas recomendações podem facilitar esta discussão:
• Todos os alunos deverão participar de todas as atividades;
• Quando houver necessidade de adaptação, a mesma deve ser registrada pelo
professor da classe ou, quando for o caso, pelo outro aplicador; • O registro das adaptações precisa indicar o que foi feito e para quais alunos,
ficando tais informações disponíveis para consultas posteriores;
• Algumas adaptações devem ser providenciadas com antecedência, como por exemplo, a ampliação de material e transcrição para o braile.
Este material já está sendo providenciado pelo CMAPPDV Nice Tonhozi;
• Procurar garantir as adaptações com as quais os alunos já contam no dia-a-dia, por exemplo: alunos que utilizam acionadores com computador podem ter a
prova digitalizada; alunos com comprometimento motor que utilizam formas
diferenciadas de sinalização; alunos que contam com outra pessoa como leitor
e/ou escriba. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010)
3 CASTRO, A. M. A avaliação da aprendizagem no contexto da inclusão de alunos com necessidades
educacionais especiais na escola pública. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
de São Paulo, 2007. 4 Disponível em: http://provinhabrasil.Inep.gov.br/provinha-brasil. Acesso em: 22 jan. 2012.
13
Nota-se pelo trecho que refere “não haver uma proposta de adaptação das questões aos
diversos ritmos de aprendizagem” um desconhecimento dos propósitos de uma avaliação de
larga escala, que é padronizada e, portanto, incompatível com adaptação aos ritmos de
aprendizagem, tópico que será abordado mais adiante. Já o trecho que menciona “condições
individuais de participação dos alunos”, pelo que vem na sequência, pode ser interpretado como
aquele aluno que tem dificuldade motora, ou visual ou de audição, ou então que possui tais
dificuldades de forma associada, condições estas que prejudicam, quando não inviabilizam, a
participação da criança. É importante salientar os esforços já conquistados no sentido de garantir
adaptações das provas para as deficiências sensoriais e físicas, como destacam os exemplos do
informativo (Rede) citado.
Assim sendo, considerando que a Provinha Brasil seria avaliação de tipo diagnóstica que
permite “reconhecer os obstáculos que o aprendiz não conseguiu superar” (CRAHAY, 2007, p.
196) e acontece nos anos iniciais do ensino fundamental, quando os estudantes podem se
beneficiar dos procedimentos de retomada dos conteúdos ensinados e não suficientemente
dominados, o objetivo do presente trabalho é o de averiguar se ela seria um instrumento
adequado para sondar o nível de conhecimento de um aluno com necessidades educacionais
especiais e subsidiar o professor na sua ação pedagógica, para que tal estudante avance e se
aproxime dos níveis de desempenho esperados.
Para responder a questão, o trabalho está organizado em quatro capítulos: O capítulo 1 –
A avaliação externa na perspectiva do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) –
apresenta as principais metas para a educação básica e a utilização das avaliações externas de
larga escala para subsidiar a formulação de políticas públicas em educação.
O capítulo 2 – Provinha Brasil e o ideal de unicidade territorial – trata da concepção,
objetivos e metodologia deste tipo de avaliação.
No capítulo 3 – A Provinha Brasil é um instrumento diagnóstico eficaz? – procuramos
analisar os dados de uma classe de 2º ano do ciclo I que tem entre seus alunos uma menina com
deficiência mental, de uma escola localizada na periferia do Município, à luz da concepção,
objetivos e metodologia discutidos no capítulo anterior.
No capítulo 4 – Considerações finais – alinhavamos as nossas descobertas e inferências
a respeito da avaliação padronizada para aluno com necessidades educacionais especiais.
14
1. A avaliação externa na perspectiva do Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE)
O PDE, publicado em 2008, é um plano executivo, formado por um conjunto de programas,
que visa propor ações para a consecução das metas estipuladas no Plano Nacional de Educação
(PNE)5, neste caso, relativo a 2001-2010, o primeiro plano elaborado em obediência à
determinação do artigo 14 da Constituição Federal de 1988. Está assentado numa “visão
sistêmica da educação e à sua relação com a ordenação territorial e o desenvolvimento
econômico e social”, em oposição a uma concepção fragmentada da educação, predominante até
então, “como se níveis, etapas e modalidades [...] não fossem elos de uma cadeia que deveriam
se reforçar mutuamente.” (BRASIL, 2008, p. 6).
O documento faz uma crítica às ideias de cunho gerencial e fiscal que prevaleceram no
debate nacional, dentre elas, as polarizações referentes à educação básica e à educação especial,
respectivamente nível e modalidade que nos interessam no presente estudo.
Com relação à educação básica, “a atenção quase exclusiva ao ensino fundamental resultou
em certo descaso, por assim dizer, com as outras duas etapas” (Ibidem, p. 6-7) a educação
infantil e o ensino médio. Assistiu-se, de um lado, a ampliação da taxa de atendimento no ensino
fundamental e a queda no desempenho médio dos alunos, que as pesquisas apontam como tendo
uma grande correlação com a falta de oferta de atendimentos na educação infantil,
principalmente para aquelas crianças oriundas de famílias menos escolarizadas; de outro lado, as
taxas de atendimento no ensino fundamental não foram mantidas na mesma proporção no ensino
médio6, evidenciando um processo de esvaziamento de estudantes que concluem este nível da
educação básica.
No que se refere à educação especial, o documento comenta que recrudesceu a oposição
entre educação regular e educação especial, de modo que “a educação não se estruturou na
perspectiva da inclusão e do atendimento às necessidades educacionais especiais” (Ibidem, p. 7),
limitando-se apenas ao cumprimento do princípio constitucional que prevê igualdade de
condições de acesso e permanência nos níveis mais elevados de ensino, condição que
5 As informações sobre o PNE foram extraídas de HORTA NETO (2007). 6 A taxa de atendimento na escola primária (ensino fundamental) no período 2003-2008 para estudante masculino e
feminino foi, respectivamente, de 95. A taxa de atendimento na escola secundária (ensino médio), no mesmo
período, para estudante masculino e feminino foi, respectivamente, de 74 e 80. In: UNICEF. The state of the world´s
children: special edition. 2009.
15
procuramos evidenciar na rede de ensino aqui referida, ao abordar o processo de municipalização
na introdução deste trabalho.
Outro aspecto que o Plano destaca é o tocante ao regime de colaboração que organiza as
competências da União, dos estados e do Distrito Federal e dos municípios, o que
[…] implicou revisão da postura da União, que a partir do PDE assumiu
maiores compromissos – inclusive financeiros – e colocou à disposição dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios, instrumentos eficazes de avaliação e de implementação de políticas de melhoria da qualidade da
educação, sobretudo da educação básica pública . (BRASIL, 2008, p. 8)
No texto, tais instrumentos de avaliação estão relacionados a dois propósitos: o de
responsabilização e de mobilização social. Apesar de aparecer oficialmente num plano de âmbito
nacional em 2008, a abordagem da responsabilização tem suas raízes nos Estados Unidos dos
anos de 1960, atrelada ao ideário de um Estado avaliador que se utiliza de um modelo de
prestação de contas (accountability). A concepção de avaliação subjacente a este paradigma está
associada à responsabilização dos gestores das escolas pelos resultados escolares dos alunos,
obtidos através da utilização de testes padronizados de larga escala (AFONSO, 2005, p. 46).
De acordo com Sousa (2010, p. 182), no Brasil, os sistemas de avaliação em nível
nacional, conhecidos como avaliação em larga escala, tiveram impulso a partir da criação do
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), com sua primeira aplicação em 1990, e “desde
então, o que se viu em relação à avaliação em larga escala foi a consolidação do Saeb e o
fortalecimento das políticas vinculadas a avaliação”.
Esse processo fica explícito no PDE, no programa de ação para a Educação Básica que,
entre outras ações, tem uma direcionada especificamente para a relação entre avaliação e
responsabilização, consubstanciada na criação, em 2007, do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb). Citamos: “O PDE promove profunda alteração na avaliação da
educação básica. Estabelece, inclusive, inéditas conexões entre avaliação, financiamento e
gestão, que invocam conceito até agora ausente de nosso sistema educacional: a
responsabilização e, como decorrência, a mobilização social.” (BRASIL, 2008, p. 11). No cerne
dessa questão, aparece a avaliação das instituições de ensino, tomando por base o desempenho
dos seus alunos, através de um procedimento externo às instituições, designada como avaliação
externa.
No Brasil, o desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação como
instrumentos de gestão da educação tem seus antecedentes ligados à necessidade de prestação de
contas como contrapartida ao capital estrangeiro investido em projetos educacionais. Conforme o
estudo realizado por Horta Neto (2007), seu marco inicial data de 1980, dentro do Programa de
16
Educação Básica para o Nordeste Brasileiro (Edurural), que teve parte de seu investimento
coberto por empréstimo financeiro do Banco Mundial.
A parceria com o banco, inclusive técnica, previa uma ação de avaliação para medir o
impacto do programa nos municípios participantes, utilizando pesquisas de campo que
avaliassem o rendimento escolar dos alunos. A Fundação Carlos Chagas foi contratada para
desenvolver, planejar e aplicar a avaliação. Nessa experiência inaugural, “o desempenho dos
alunos foi considerado como uma das dimensões da qualidade do ensino” (HORTA NETO,
2007, p. 6).
Novamente em 1984, os estados nordestinos foram alvo de outro projeto desenvolvido
pela Secretaria de Educação Básica do MEC em parceria com o Banco Mundial, com vistas a
avaliar os resultados escolares, o “Projeto Nordeste”. Nesse ínterim, o Inep já estudava a criação
de um programa de avaliação externa da educação e, com a experiência acumulada, e em
parceria com a Fundação Carlos Chagas, replicaria as avaliações em outros estados brasileiros.
Dessa maneira, no começo de 1990, seguindo uma tendência mundial consagrada com a
conferência de Jontien, de uma Educação para Todos, a avaliação ganha relevância de política de
Estado, como forma de coletar informações, mensurar e incrementar a qualidade em educação.
No tocante à criação de um sistema nacional de avaliação, no Brasil, entre as dificuldades
geradas pela ausência de projetos políticos nacionais, pela descontinuidade administrativa, pela
escassez orçamentária, entre outras, somou-se um “problema relativo à definição dos conteúdos
das provas que deveria ser contornado, já que não havia um currículo único e nacionalmente
adotado em todas as escolas” (HORTA NETO, 2007, p. 7)
Em dezembro de 1994, o Saeb foi institucionalizado como um processo nacional de
avaliação. As provas do Saeb sofreram vários questionamentos e, segundo Horta Neto (2007), o
sistema passou por três mudanças de destaque: a primeira, com relação às séries que seriam
avaliadas, pois existiam discrepâncias de conteúdos entre os vários sistemas municipais e
estaduais; em seguida, a alteração nos métodos estatísticos, que tornavam a mensuração dos
conhecimentos mais confiáveis e, por último, quanto à forma de medir o desempenho dos alunos,
através da criação de uma escala de proficiência. Já no ciclo de aplicação de 1997, foi elaborada
uma nova alteração na escala de proficiência, que passou a ser única para cada disciplina,
permitindo a sua comparação com o ciclo de 1995 e as futuras aplicações.
No sexto ciclo do SAEB, em 2001, as Matrizes de Referência foram atualizadas em
função a disseminação em âmbito nacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Para esta atualização, [...] foram consultados cerca de 500 professores
de 12 estados da federação, com representação de todas as regiões do país, que
17
auxiliaram na comparação entre as Matrizes de 1999 e o currículo utilizado
pelos sistemas estaduais, envolvendo as mesmas disciplinas e Matemática e
Língua Portuguesa. (HORTA NETO, 2007, p. 10).
A partir de 2005, o Saeb (HORTA NETO, 2007; SOUSA, 2010) sofre nova alteração e passa a
ser composto por dois processos de avaliação: a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb),
realizada por amostragem das redes de ensino de cada unidade da federação, mantendo as mesmas
características e objetivos do Saeb; e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), divulgada
com o nome de Prova Brasil, realizada em todas as escolas públicas com ensino fundamental localizadas
nas zonas urbanas com mais de trinta alunos.
Por sua vez, os resultados da Prova Brasil compõem o Ideb, juntamente com as taxas de
aprovação, derivadas do fluxo escolar (apurados pelo Censo Escolar). De maneira que o Ideb se
estabelece como um mecanismo que possibilita a definição de metas a serem alcançadas pelas escolas
públicas até o ano de 2021.
Essa retrospectiva sobre a institucionalização da avaliação como política de Estado em
educação oferece sustentação para a afirmação de Fernando Haddad, quem assina o PDE, ao
escrever:
O Saeb, inicialmente, não permitia uma visão clara da realidade de cada
rede e menos ainda de cada escola que a integra. A Prova Brasil deu nitidez à
radiografia da qualidade da educação básica. A percepção que se tinha
anteriormente era de que nenhuma escola ou rede pública garantia o direito de aprender – um clichê injusto imposto à educação básica pública como um todo.
A Prova Brasil revelou que isso não era verdade. (BRASIL, 2008, p. 12).
E junto com a desigualdade de distribuição da renda que perpassa todo o território
nacional, o sofisticado sistema de avaliação construído ao longo desses trinta anos expôs a outra
face, não menos perniciosa, desse processo de pauperismo do País: a desigualdade de ensino,
conforme aponta o Plano:
[A Prova Brasil] confirmou, sim, a existência de enormes desigualdades
regionais, muitas vezes no interior do mesmo sistema. Mas, ao mesmo tempo,
revelou boas práticas de escolas e redes de ensino que resultam em aprendizagem satisfatória. (Idem).
O PDE desvela outras mazelas da educação brasileira, como por exemplo, o Ideb
calculado sobre o ciclo avaliativo de 2005 é de 3,8 contra uma média dos países integrantes da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 6, índice que passa a
ser meta nacional para 2021; a enorme dispersão do Ideb entre escolas e redes; o Ideb da rede
estadual é superior ao Ideb da rede municipal, o que sugere “que o desejável processo de
municipalização não foi acompanhado dos cuidados devidos.” (BRASIL, 2008, p. 13). Além
disso, conforme demonstra o Plano, os municípios que mais necessitam de ajuda técnica e
financeira, são os que menos são contemplados com repasses de recursos da União.
18
Conforme menciona o PDE, a partir de estudos realizados em 2006 para identificar as
variáveis que pudessem ter contribuído para o bom desempenho no Ideb de algumas escolas
espalhadas pelo território nacional, foram localizadas boas práticas que se transformaram nas 28
diretrizes para a educação básica, que fazem parte do Plano de Metas Compromisso Todos pela
Educação (2007), em regime de colaboração por adesão dos sistemas de ensino estaduais e
municipais.
Dentre estas diretrizes, mencionamos as diretamente relacionadas com este trabalho: 1)
ter foco nas aprendizagens com resultados para alcançar; 2) alfabetizar as crianças até, no
máximo, os oito anos de idade, aferindo os resultados por exame periódico específico; 3)
combater a repetência pela adoção de práticas como aulas de reforço no contra turno, estudos de
recuperação e progressão parcial; 4) garantir o acesso e permanência das pessoas com
necessidades educacionais especiais nas classes comuns do ensino regular, fortalecendo a
inclusão educacional nas escolas públicas. (BRASIL, 2008, p. 14).
Se tomarmos como referência um sistema de ensino de um município do porte de São
Bernardo do Campo, estas diretrizes não trazem novidades, e no caso dos alunos com
necessidades educacionais especiais mantém-se a mesma posição conservadora alvo de críticas
do próprio PDE na sua parte introdutória, ou seja, a lacuna sobre o tema da avaliação com
relação a essa parcela dos estudantes continua como dez anos atrás, época dos PCNs Adaptações
Curriculares. Se considerarmos que o Plano é direcionado para a organização territorial como um
todo, procurando compensar as grandes discrepâncias existentes entre os diversos sistemas de
ensino, é possível detectar sua face inovadora e de responsabilização pela melhoria da qualidade
do ensino.
Assim, pode-se entender a criação da Provinha Brasil como uma das ações do governo
federal com o propósito de oferecer aos sistemas de ensino do País, um instrumento de avaliação
diagnóstica alinhado com as expectativas de alfabetização propostas no PDE.
Na sequência, abordamos as características da Provinha, estabelecendo relações com o
histórico curricular de São Bernardo do Campo.
19
2. Provinha Brasil e o ideal de unicidade nacional
É muito comum, para aquele que circula pelos diversos espaços que fazem e debatem a
educação, ouvir pronunciamentos contundentes contra as avaliações externas, principalmente
agora que o alvo passa a ser as crianças dos anos iniciais de escolarização do ensino
fundamental. O que levanta a questão: existe mesmo um furor avaliativo por parte das instâncias
governamentais ou a iniciativa de dar transparência e consequência aos processos educacionais
do País como um todo mobiliza interesses políticos e corporativistas?
Não é nossa intenção responder à pergunta, mas o que podemos afirmar a partir da
experiência acumulada na prática de profissional da educação, é que existe um descompasso
entre o fazer pedagógico do professor em sua sala de aula de um determinado sistema de ensino
e os princípios, diretrizes, planos, metas e ações que dão corpo às políticas de Estado em
educação e que sofrem, elas próprias, de descontinuidade político-administrativa e apagamento
da memória do que já foi anteriormente implantado. E a Provinha Brasil não escapa deste destino
na rede aqui referida.
Como se pode verificar pelo sítio do Inep7, a Provinha, cuja primeira aplicação aconteceu
em 2008, responde ao programa de ação do PDE e ao Plano de Metas Compromisso Todos pela
Educação. Foi concebida a partir da constatação dos baixos desempenhos em leitura
demonstrados pelos alunos nos sucessivos ciclos de avaliações externas. “É um instrumento
pedagógico, sem finalidades classificatórias, que fornece informações sobre o processo de
alfabetização aos professores e gestores das redes de ensino” (BRASIL, 2011), com os objetivos
de: 1) avaliar o nível de alfabetização dos alunos no segundo ano de escolarização do ensino
fundamental; 2) diagnosticar possíveis insuficiências dos alunos em leitura e escrita; 3) propor
ações para corrigir os desvios detectados.
No entanto, por trás desses objetivos de fundo pragmático encontramos um debate
ideológico e político sobre o que e como ensinar língua materna num país com tamanha
diversidade linguística como é o caso do Brasil.
As habilidades avaliadas por meio da Provinha estão organizadas nas “Matrizes de
Referência para Avaliação da Alfabetização e do Letramento Inicial”, as quais, por sua vez, estão
em consonância com o Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries
Iniciais do Ensino Fundamental, intitulado “Pró Letramento”, fascículo Alfabetização e
7 Disponível em: http://provinhabrasil.Inep.gov.br/. Acesso em: 26 jan. 2012.
20
Linguagem, de 2008. A elaboração deste programa esteve a cargo dos pesquisadores do Centro
de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da UFMG.
O Pró Letramento substituiu seu antecessor, editado no governo Fernando Henrique
Cardoso, logo em seguida a elaboração dos PCN, o Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores (Profa), de 2001, elaborado por um grupo de profissionais coordenados pela
professora Telma Weisz, do Instituto de Psicologia da USP.
2.1 Alfabetização: um território contestado
O Profa inicia um debate sobre as bases ideológicas do processo de alfabetização.ao
demonstrar que os alunos que a escola não vinha conseguindo alfabetizar ao longo dos anos eram
provenientes das camadas populares. Tomou por base a descrição psicogenética8 para postular
que
[...] a alfabetização (como tantas outras aprendizagens) é fruto de um processo de construção de hipóteses; não é decorrência direta destas habilidades
[memória, coordenação motora, discriminação visual e auditiva, noção de
lateralidade] mas sim de procedimentos de análise da língua escrita por parte de
quem aprende.” (BRASIL, 2001, p. 14).’
Esta concepção também põe em relevo as experiências prévias dos alunos com práticas
sociais de leitura e escrita, distinguindo dois conceitos: letramento e alfabetização. A ideia é que
para a criança aprender a ler e escrever quando ainda não sabe ler convencionalmente, precisa
utilizar o conhecimento de que dispõe sobre o valor sonoro das letras e ter algumas informações
antecipadas do conteúdo do texto para poder fazer suposições sobre o que está escrito. É a
valorização das estratégias de resolução de problemas. (BRASIL, 2001, p. 6).
Para poder interpretar a própria escrita (ler o que escreveu) quando
ainda não se sabe ler e escrever, é preciso justificar as escolhas feitas, para si
mesmo e para os outros, com todas as explicações que isso demanda: por que sobram letras, ou por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar
escrito errado conforme seu próprio critério, etc. (Ibidem, p. 17).
Para este modelo, a leitura, quando não se sabe ler convencionalmente, requer a
utilização de estratégias simultâneas de decodificação, seleção, antecipação, inferência e
verificação.
8 Concepção extraída das investigações de Emília Ferreiro, colaboradora de Jean Piaget, e de Ana Teberosky,
publicado no Brasil com o título “Psicogênese da língua escrita”, de 1985.
21
Portanto, esta proposta de ensino da língua alinha-se aos métodos analíticos (ou global)
que defendem a necessidade de apresentar às crianças a totalidade, na forma de palavras, frases
ou pequenos textos para que a partir daí possam fazer uma análise e chegar as partes, que são as
sílabas e as letras.
Por outro lado, o projeto de formação de professores alfabetizadores dentro do modelo
que ficou conhecido como construtivista9 envolvia um extenso programa no centro do qual se
destacava uma metodologia de formação que levava em conta os saberes individuais dos
professores, bem como os pressupostos que os determinavam, de forma que se pudesse fazer um
enlace entre prática e teoria. Buscava-se uma coerência entre a forma como os professores
aprendem – o modelo de formação – e o modelo de ensino e aprendizagem proposto no
programa de formação. (BRASIL, 2001b).
Na iniciante rede de ensino fundamental de São Bernardo do Campo dos anos de 2000, o
modelo construtivista para a formação de professores alfabetizadores virou escola; quanto ao
ensino e aprendizagem dos alunos, tornou-se um método. Ao longo da década, a extensa difusão
da proposta, por intermédio dos sucessivos ciclos de apropriação e reapropriação dos seus
fundamentos, gerou distorções que acabaram por transformar as hipóteses de escrita das crianças
em diagnóstico classificatório. E desde 2008, os gestores da então Secretaria de Educação e
Cultura (SEC), criaram um levantamento quantitativo e periódico designado de “Alunos
Alfabéticos e Não alfabéticos” (AANA), como uma das ações do “Caderno de Metas” de se
atingir 100% de alunos alfabéticos ao final do 1º ano do ciclo 1.
Por caminhos que requerem ser investigados, os professores titulares do ciclo 1 acabaram
por colocar ênfase no ensino da escrita, investindo pouco ou quase nada nas estratégias de leitura
enfatizadas na proposta construtivista.
Observando e investigando alunos e seus impasses na aprendizagem, especialmente na
área de Língua Portuguesa, e acompanhando o ensino e assessorando professores, eu deparei-me
com incontáveis situações, em todos os quatro anos do ciclo 1, nas quais o professor aceitava a
produção ilegível do aluno, conseguindo até mesmo interpretar-lhe o conteúdo, sentindo-se
inseguro quanto a esclarecer à criança que ela não estava escrevendo com propriedade ou não
tinha atingido determinado objetivo de aprendizagem.
É por isso que levanto a hipótese de que a reprodução da formação dos professores, sem o
devido acompanhamento prático e sem a retroalimentação com resultados vindos da sala de aula,
fez com que muitos professores colocassem a teoria construtivista num patamar sagrado,
9 Conforme Profa, Guia do Formador, Módulo 1, 2001b, p. 3.
22
impedindo-se de lapidá-la e acrescê-la a partir de sua própria experiência com o modelo.
Possivelmente, isso tenha acarretado a crença de que as crianças evoluiriam nas hipóteses de
escrita por si mesmas, com a lógica de um pequeno cientista (movimento dialético de
desequilíbrio, ação/reflexão e síntese), ou então que o rol de atividades que o programa sugeria
fosse suficiente para que o aluno descobrisse o funcionamento do código da língua.
Além disso, o Profa tinha como um dos seus princípios a participação democrática, que
era garantida em sala de aula pela estratégia da aprendizagem cooperativa, ou seja, a idéia de
aprender com um parceiro mais experiente, de trabalhar em duplas produtivas ou em grupos com
parceiros que tivessem níveis de conhecimentos sobre a língua diversos. Ao professor cabia
passar pelos grupos problematizando as atividades feitas pelos alunos. Tais procedimentos
requereriam do professor conhecimento detalhado de cada estudante e planejamento das
atividades para potencializar esses arranjos. Em minha vivência nesta rede de ensino, poucas
vezes eu presenciei tais procedimentos e, quando isso aconteceu, foi em classes com número
reduzido de alunos. Nas salas com 32 a 35 crianças, o máximo que o professor fazia era colocá-
las em dupla e não se poderia afirmar que era dentro do conceito de duplas produtivas.
Quando aconteceu a mudança político-partidária no governo federal, em 2003, ofereceu-
se a oportunidade de repensar o programa construtivista para a alfabetização, ainda mais quando
os dados do Ideb de 2005, aludidos no PDE, se mostraram tão alarmantes. Enquanto na esfera do
Ministério da Educação, nesse período de tempo, as menções aos PCNs foram minguando, em
São Bernardo do Campo a Proposta Curricular (PC), principalmente a de Língua Portuguesa, foi
elaborada tomando como base os referidos “Parâmetros”. Assim, o “Pró Letramento” chegou
sem alarde para as escolas do Município, em 2008, como mais um material distribuído
gratuitamente pelo MEC.
2.2 A hora e a vez da avaliação da alfabetização
O Pró Letramento traz a marca de um grupo envolvido com o ensino da língua, vinculado
a uma faculdade de educação e, diferentemente do Profa, cuja proposta era aberta em termos de
ritmo e tempo para atingir o domínio da escrita alfabética, o primeiro reflete a nova ordem
reinante nas políticas de Estado de educação:
Este fascículo se organiza em torno de dois objetivos: apresentar
conceitos e concepções fundamentais ao processo de alfabetização;
sistematizar as capacidades mais relevantes a serem atingidas pelas
23
crianças, ao longo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental de 9 anos.
(BRASIL, 2008b, p. 8, grifo nosso).
Em relação aos conceitos, o texto entra diretamente no conceito de língua e, abordando
especificamente o conceito de língua escrita, discorre sobre as distintas noções de letramento e
alfabetização, estabelecendo um elo com a concepção de letramento defendida pela proposta
construtivista. Na parte que se refere aos métodos de ensino da língua escrita, faz um resumo dos
métodos silábico, fonético e analítico (construtivismo), abordando seus aspectos importantes à
compreensão do sistema de escrita e seus reducionismos. Contudo, os autores se detêm em
apontar as distorções geradas pela abordagem construtivista, oficialmente hegemônica no
período anterior à publicação do novo programa, entre elas a de negar a importância, na fase
inicial de alfabetização, dos aspectos psicomotores ou grafomotores e de memorização. Mas é
com relação às hipóteses de escrita que os contra argumentos apresentados correspondem, em
certa medida, aos nossos observáveis de sala de aula. Podemos ler:
O problema é que [...] algumas interpretações equivocadas do
construtivismo têm recusado a apresentação de informações relevantes ao avanço dos alunos, como se todos os conhecimentos pertinentes à apropriação
da língua escrita pudessem ser construídos pelos próprios alunos, sem a
contribuição e a orientação de um adulto mais experiente. Mais um problema [...] tem sido a defesa unilateral de interesses e hipóteses das crianças, o que
acaba limitando a ação pedagógica ao nível dos conhecimentos prévios do
aluno. (BRASIL, 2008b, p. 12).
O Pró Letramento, ao invés, não se compromete com nenhum dos métodos citados e
utiliza-se de estratégias de cada um deles para desenvolver a capacidade leitora e escritora das
crianças, conforme a necessidade de ocasião.
A tese ali elaborada é a de que os aspectos de letramento e os princípios alfabéticos e
ortográficos, dissociados naqueles métodos, embora tenham suas especificidades, são
complementares, inseparáveis e indispensáveis para o domínio do sistema alfabético. Nesta
versão, letramento é considerado como o uso da língua nas práticas sociais da leitura e da escrita
e alfabetização como apropriação do sistema de escrita, com o correspondente domínio dos
princípios alfabéticos e ortográficos que garantem à criança ler e escrever com autonomia.
Tendo esclarecido seu ponto de partida, o programa incide sobre o desenvolvimento das
capacidades linguísticas de ler e escrever, falar e ouvir e sobre as expectativas dessas
capacidades que a criança deve ter ao término de determinado período de tempo.
É esta parte do texto que oferece as bases para a elaboração da Provinha Brasil, quando
todo um conjunto de termos são apresentados de forma a tornar o processo de alfabetização
observável em seus resultados e possível a sua avaliação. O primeiro deles é o conceito de
24
competência que, como a maioria, é polissêmico. Aqui competência é entendida como um
conjunto mais amplo que congrega habilidades, atitudes, conhecimentos e procedimentos desde
os mais simples ao mais elaborados.
Para adquirir tais competências, a ação do professor deve estar voltada para os
procedimentos didáticos de abordagem dos conteúdos, que são: introduzir, retomar, trabalhar e
consolidar. A idéia parece bastante óbvia, mas volto a repetir, ao longo da minha prática no
ensino fundamental, analisando Fichas de Rendimento (FR) com as notações classificatórias de
“Satisfatório” (S) e “Insatisfatório” (I), os objetivos de aprendizagem considerados como I não
eram retomados e, uma vez dados como S, não eram consolidados. Tais procedimentos são parte
de uma cultura de avaliação que, como foi visto, tem história recente no País e, muito
possivelmente, ainda são conteúdos abordados de maneira insuficiente nos cursos de
licenciatura.
Acrescenta-se a esse panorama, o fato de que após um primeiro trimestre de aulas, por
exemplo, numa classe de 2º ano de escolarização com 32 alunos10
, as FR estipulem uns tantos
objetivos de aprendizagem para as sete áreas de conhecimento. Cada FR, individualmente vai
apresentar um quadro de retomadas e consolidações de conteúdos, além daqueles que deverão
ser introduzidos e trabalhados no trimestre seguinte. E para além dessas questões, o professor
tem diante de si um aluno com necessidades educacionais especiais cujo ritmo ou a possibilidade
de simbolização o deixam demasiado atrasado em relação aos conteúdos pertinentes ao
ano/ciclo. Como essa heterogeneidade se coaduna para dar oportunidade para todos os alunos da
classe aprender segundo esta sistemática?11
É nesse aspecto que faltam estudos comparativos,
criação de instrumentos de avaliação que permitam comparar resultados diacronicamente, análise
de estratégias de ensino facilitadoras ou não de aprendizagens, entre outros mecanismos de
diagnóstico.
Diante da complexidade da matéria, o Pró Letramento pode ser considerado uma primeira
iniciativa nessa direção. Vale à pena citar o que dizem os autores: “supõe-se que a clareza e o
diagnóstico dessas capacidades propiciará [sic] a base para uma descrição dos desempenhos dos
alunos e das condições necessárias à superação de descompassos e inconsistências em suas
trajetórias ao longo dos três primeiros anos.” (BRASIL, 2008b., p. 15).
10 Quantidade de alunos por classe para o 1º ciclo do ensino fundamental na rede de ensino de São Bernardo do
Campo. 11 Os estudos de CRAHAY (1999, 2002, 2007) procuram responder a esta questão.
25
O próximo passo no caminho de esboçar noções iniciais a respeito de avaliação das
aprendizagens que sirvam como um padrão em nível nacional, é o de selecionar os eixos mais
relevantes para a apropriação da escrita. São eles: (BRASIL, 2008b, p. 15).
(1) Compreensão e valorização da cultura escrita;
(2) apropriação do sistema de escrita;
(3) leitura; (4) produção de textos escritos;
(5) desenvolvimento da oralidade.
Cada um dos cinco eixos tem a descrição das capacidades mais gerais a ele associadas,
seguidas de uma exposição teórica acerca dos conceitos mobilizados, bem como orientações
sobre como o professor pode desenvolver tais capacidades em seus alunos. Com relação a estas
orientações, o texto se utiliza de estratégias pedagógicas consagradas pelos três métodos aos
quais ele faz referência.
Voltaremos à descrição das capacidades que as crianças precisam desenvolver quanto ao
letramento e à alfabetização no capítulo 3, quando tratarmos dos dados relativos à aplicação da
Provinha Brasil em uma classe de uma escola de São Bernardo do Campo.
Como resultado do esforço em associar ensino, avaliação e intervenção para sanar as
insuficiências, surgiu a Provinha Brasil, um tipo de avaliação externa à figura do professor – e
por isso isenta de suas particularidades – podendo se transformar numa avaliação de larga escala
nos casos em que a adesão pelo sistema de ensino for generalizada.
2.3 Provinha Brasil: quando um instrumento pode ser só um instrumento
A Provinha Brasil é direcionada às crianças matriculadas no segundo ano de
escolarização das escolas públicas brasileiras. Por isso, o teste possibilita que professores e
gestores das redes de ensino façam a sondagem das crianças após um ano de estudos dedicados
ao processo de alfabetização, de maneira sistemática, porque tem a mesma periodicidade para
todas as redes de ensino, e uniformizada por se tratar das mesmas questões para todas as redes.
Subjacente à proposta de uma prova sistematizada e uniformizada para todas as escolas
do País está a ideia de se poder comparar os resultados em alfabetização de uma diversidade de
propostas curriculares dos sistemas de ensino estaduais e municipais, sem ferir-lhes a autonomia.
Seria um jeito de buscar uma pretensa unicidade dentro da abrangência de práticas de
alfabetização adotadas pelos sistemas. A princípio, a forma encontrada para garantir a validade
do instrumento em todo o País seria a realização de pré-teste dos itens que compõem o
26
instrumento, ocasião em que são previamente aplicadas a diferentes grupos de crianças de todo o
país e, por meio de tratamento pedagógico e estatístico, são identificadas se são adequados em
termos de mensuração das habilidades, quanto às ilustrações, à forma de escrita, entre outros
aspectos (BRASIL, 2011b, p. 14).
A Provinha avalia competências de leitura e escrita que estão descritas nos cinco eixos da
Matriz de Referência, porém em função de sua forma de itens de múltipla escolha o eixo
“desenvolvimento da oralidade” não é considerado. O teste é realizado em dois momentos
durante o ano letivo: ao início do 2º ano de escolarização e ao término desse mesmo ano letivo.
De qualquer forma, com suas vinte e quatro questões – itens – de múltipla escolha, com
quatro alternativas cada, agora em 2011 transformadas em vinte, a Provinha pretende servir de
instrumento norteador da ação pedagógica do professor e de instrumento de gestão para escolas e
Secretaria de Educação no sentido de adoção de medidas políticas voltadas à realidade de cada
escola.
Para o professor os dados coletados permitem:
Inferir hipóteses ou conflitos cognitivos do aluno/turma em comparação com o
esperado;
revisar os planejamentos e estabelecer metas;
identificar os componentes curriculares que devem ser enfatizados;
intervir para superar as insuficiências apresentadas na área de leitura e escrita;
adequar as estratégias de ensino de acordo com a necessidade do aluno;
desenvolver a postura investigativa do professor, ao transformar a dificuldade em
fonte de informação sobre o que a criança pensa sobre a escrita.
Para os gestores das escolas os dados possibilitam:
Avaliar a distribuição dos conteúdos de alfabetização;
Determinar quais conteúdos irá privilegiar em função das características das turmas,
da comunidade, do projeto pedagógico, etc.;
Compartilhar essas metas com as famílias dos alunos;
Compartilhar os objetivos de aprendizagem com os próprios alunos.
Para os gestores da Secretaria de Educação, o teste possibilita:
Estabelecer metas pedagógicas para a rede consoante com a realidade do próprio
sistema de ensino;
reunir elementos para subsidiar a formação continuada dos professores
alfabetizadores;
27
desenvolver ações imediatas para a correção de possíveis distorções verificadas;
promover ações para reduzir a desigualdade de ensino no interior do próprio sistema.
E também para o aluno que poderá:
Ter suas necessidades educacionais atendidas de maneira mais certeira a partir do
diagnóstico realizado, de modo que seu processo de alfabetização se consolide até os
8 anos de idade.
A aplicação da Provinha depende dos objetivos do gestor do sistema de ensino, assim ela
pode ser realizada pelo próprio professor da turma, se a pretensão for a de monitorar o nível da
aprendizagem de cada aluno ou da turma; por outras pessoas preparadas pela Secretaria de
Educação se o objetivo for o ter um panorama de cada unidade escolar e da rede como um todo.
A correção também segue os mesmos critérios, podendo ser feita pelo professor ou pelo
aplicador indicado pelos gestores. Os dois objetivos podem ser associados, ou seja, o professor
aplica e corrige para ter acesso aos dados da sua turma e poder redefinir seu plano de ensino, e
encaminha os resultados para a Secretaria de Educação para subsidiá-la com informações para
formulação de políticas públicas.
A aplicação possui três tipos de comandos: 1) questões totalmente lidas pelo professor ou
aplicador; 2) questões parcialmente lidas pelo professor ou aplicador; 3) questões lidas pelos
alunos individualmente. Os próprios tipos de comandos já fornecem elementos para avaliar os
níveis de conhecimentos, uma vez que põem em movimento as habilidades mais inicias até as
mais elaboradas, que é a leitura silenciosa feita pelo estudante das questões.
Mas é também no momento de aplicação que podem ocorrer distorções, se os objetivos
da avaliação não estiverem bastante claros para os professores, que podem entender que a prova
é apenas um mecanismo de controle do trabalho docente. É para minimizar esta compreensão
sobre a avaliação externa que costumeiramente ronda o imaginário dos professores, que os
autores do Inep orientam as secretarias de educação para definir previamente os objetivos e
ajustar a aplicação, a correção e a divulgação do teste a estes objetivos. Ainda assim, este é um
dos aspectos frágeis e controvertidos da Provinha, pois a ausência de padronização da aplicação
num instrumento padronizado pode, eventualmente, comprometer as comparações entre os
resultados dos respondentes com os critérios estabelecidos pelos elaboradores do teste.
Os gestores da Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo optaram por
reproduzir os objetivos da avaliação da Provinha Brasil diretamente do caderno de “Orientações
Gerais – Teste 2”, sem qualquer menção ao Pró Letramento, o programa que embasa
conceitualmente a Provinha. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010). No mesmo informativo
enviado às escolas de ensino fundamental em novembro de 2010 está registrado: “Solicitamos
28
que a ficha de correção de cada turma do 2º ano do ciclo I que consta no Guia de Correção e
Interpretação de Resultados (conforme anexo) sejam entregues na SE 113/114 até dia
10/12/2010.” (Idem). Os gestores da Secretaria fazem uso destas informações para traçar metas
pedagógicas consoantes a realidade das escolas da rede ou para subsidiar a formação de
professores alfabetizadores?
A pergunta sem resposta põe em evidência que no cerne dos desencontros entre aquilo
que o governo federal oferece como instrumento de monitoramento, a adesão do município à
proposta e o professor em sala de aula está a ausência de um debate sistemático sobre avaliação,
que continua se apoiando em antigas e distorcidas representações sociais que são diuturnamente
alimentadas pela falta de dados e estudos comparativos. Sobre a importância que tem a
construção de uma nova cultura avaliativa para a superação dos impasses da educação
contemporânea, Marcel Crahay (1999, p. 265), que pesquisa o tema comparando a prática de
vários países distribuídos pelos continentes, escreve:
Formularemos então a hipótese de que a taxa de insucessos registrada por um sistema de educação ou de formação é em larga medida independente da
qualidade do processo de ensino nele organizado. Os insucessos são antes de
mais o reflexo dos julgamentos dos docentes sobre as prestações dos alunos e das decisões tomadas em relação a esses mesmos alunos no fim do ano. Como
consequência, são as práticas de avaliação usadas pelos professores que convém
modificar.
Teoricamente, a Provinha Brasil é uma iniciativa que procura estimular, através de um
instrumento padronizado, o tipo de avaliação formativa, aquele em que “as questões visarão a
aprendizagem em curso. Mais precisamente, conceberemos o teste de maneira a diagnosticar
quais os componentes da competência visada que colocam problemas” (CRAHAY, 1999, p.
276).
Ainda segundo Crahay (Op. cit.), existe muita confusão a respeito das funções da
avaliação que acabam por minar o currículo das instituições escolares. As funções, por sua vez,
estão relacionadas com a decisão a tomar. Além da função diagnóstica, na qual a tomada de
decisão envolve ajustes das práticas de ensino e aprendizagem, existe a função prognóstica cujo
objetivo é selecionar indivíduos com possibilidades de frequentar com sucesso uma via de
formação especializada e, nesse caso, a decisão a ser tomada é de admissão ou de orientação. Já
se a intenção é determinar em que medida um aluno domina as competências essenciais
consideradas como os objetivos de determinada programa de ensino, a função é somativa e a
decisão a tomar é a certificação intermediária ou final.
29
Nos estudos empreendidos pelo autor, entre os professores a função prognóstica leva a
dianteira independente das formas de regulação que estão em jogo. É esclarecedor acompanhar
seus argumentos:
No fim do ano, os professores consideram a avaliação somativa apenas
parcialmente. [...] As suas decisões não se fundam apenas sobre um balanço das
aquisições realizadas durante o ano que passou. Os professores procuram antecipar em que medida cada aluno está apto a seguir os ensinamentos do ano
seguinte. Assim WB explica a E. Burdevert (1994) quando este o interroga:
“Pergunto a mim mesmo, agora no fim do 3P: será que este aluno será capaz de atacar o programa do 4P com todas as suas novas matérias? É a resposta a esta
questão que vai influenciar a minha decisão.” (Ibidem, p. 277).
Para Crahay (Op. cit.) a avaliação prognóstica é seletiva e meritocrática; os professores
montam provas privilegiando as questões discriminativas, aquelas que obrigam os alunos em
dificuldades a se identificarem, alimentando o círculo vicioso do insucesso escolar.
Uma abordagem que se contrapõem a essa concepção tem na avaliação formativa a sua
referência. É uma possibilidade para levar o maior número de alunos ao mesmo nível de domínio
de conhecimentos almejado. É pela perspectiva da avaliação formativa que se pode justificar a
existência da Provinha Brasil logo nos primeiros anos, decorrendo daí a reorientação do processo
de ensino e aprendizagem. Conforme escreve Crahay (1999, p. 280):
A avaliação formativa e as actividades de remediação ou de
consolidação que daí advém, são supostas oferecer aos alunos as oportunidades
de regulação de que necessitam. [...] Este complemento de formação será tanto mais adaptado às dificuldades do aluno e como tal mais eficaz, quanto mais o
teste formativo tenha um caráter de diagnóstico, ou seja, que permita identificar
os obstáculos que o aluno não conseguiu superar.
Este trecho é em muitos pontos semelhante à discussão que o Pró Letramento faz a
respeito dos conteúdos que deverão ser introduzidos, trabalhados, retomados e consolidados.
Será que os professores que aplicaram a Provinha Brasil nas classes de 2º ano das escolas de São
Bernardo do Campo tinham esta compreensão sobre o processo de avaliação que
desencadeariam?
Na seção seguinte procuraremos através da análise comparativa de um conjunto do Teste
1 e Teste 2 levantar algumas hipóteses.
30
3. A Provinha Brasil é um instrumento diagnóstico eficaz?
Este capítulo tem quatro objetivos: o primeiro envolve identificar como os cinco eixos de
letramento e alfabetização do programa Pró Letramento foram transpostos para a Matriz de
Referência para a Avaliação da Alfabetização e do Letramento Inicial e verificar como as
questões dos Testes 1 e 2 mantém relação com essa matriz. O segundo e terceiro objetivos são
tomar como material de análise os testes 1 e 2 de uma turma de 2º ano do ciclo 1 de uma escola
da rede de São Bernardo do Campo, na qual estuda uma aluna com necessidades educacionais
especiais. O quarto objetivo é o de fazer inferências sobre o processo de avaliação diagnóstica
levando em conta o uso de um instrumento padronizado para a aluna com necessidades
educacionais especiais.
3.1 Os bastidores da Provinha Brasil
No caderno de correção da Provinha Brasil do Teste 1 do ano de 2011 é explicado que
nem todas as habilidades serão avaliadas por conta da limitação do instrumento e que as
habilidades definidas para a prova são aquelas relacionadas a leitura e escrita. Em função disso a
Matriz de Referência considera apenas as habilidades de quatro eixos:
1. Apropriação do sistema de escrita
2. Leitura
3. Escrita
4. Compreensão e valorização da cultura escrita
São feitos dois esclarecimentos: o quarto eixo perpassa a concepção do teste e não é tratado
separadamente; o quinto eixo – desenvolvimento da oralidade – não é avaliado devido às
limitações do instrumento.
Em seguida, numa escrita contraditória, o mesmo documento explicita que “A Matriz de
Referência da Provinha Brasil, portanto, está organizada em dois eixos. Em cada eixo, estão
descritas as habilidades selecionadas para avaliá-lo” (BRASIL, 2011b, p. 11). Os eixos são:
1. Apropriação do sistema de escrita
2. Leitura
31
No entanto, ao se examinar mais detidamente a Matriz, verifica-se que as habilidades
avaliadas são relacionadas exclusivamente à leitura. Para clarear esta afirmação, é importante
conhecer a concepção de leitura dos autores.
A concepção de leitura que orienta a elaboração desta seção é a de que
se trata de uma atividade que depende de processamento individual, mas se
insere num contexto social e envolve disposições atitudinais, capacidades relativas à decifração do código escrito e capacidades relativas à compreensão, à
produção de sentido. (BRASIL, 2008b, p. 39).
Para esse raciocínio, a leitura comporta capacidades de leitura iniciais, entendidas como
decodificação, e capacidades de compreensão que habilitam a pessoa a se inserir nas práticas
sociais letradas. No entanto, por motivos que não ficam explícitos, os autores separam em dois
eixos as duas capacidades, nomeando os procedimentos de leitura inicial ligados à decodificação
de “apropriação do sistema de escrita”.
Os Quadros 1 e o 2 apresentam esta distinção tal como aparecem no Pró Letramento e nas
Matrizes de Referência.
Outro aspecto que vale mencionar é a dificuldade para aquele que se propõe à tarefa de
relacionar as capacidades essenciais dos eixos no Pró Letramento às explicações dadas ao
professor ou aplicador no Guia de Aplicação ou no Guia de Correção. Os termos utilizados para
detalhar as capacidades deveriam ser os mesmos, mas o que se observa é uma variação de
expressões que confunde o leitor. Por exemplo, no Pró Letramento fala-se em “tipos de letras”,
no Guia de Aplicação em “letras escritas de diferentes formas” (BRASIL, 2011c, p. 9); no
primeiro documento fala-se em “antecipar conteúdos de texto”, no segundo escreve-se
“reconhecer o assunto de um texto”. Mais um exemplo: no Pró Letramento a “fluência em
leitura” está associada ao domínio das estruturas sintáticas da língua escrita e ao aumento de
vocabulário (BRASIL, 2008b, p. 42). “Ler frases” ou “enunciados curtos”, como menciona o
descritor 5 das Matrizes de Referência no Guia de Correção estaria ligado à capacidade de
“fluência em leitura” ou à de “decifração”?
Podem parecer questionamentos banais, mas em se tratando de uma avaliação em larga
escala, critérios claros a respeito do domínio a ser desenvolvido pela criança (CRAHAY, 2007,
p. 199) é um bom começo para lidar com a diversidade das culturas escolares dos sistemas de
ensino brasileiros.
32
Quadro 1 - Relações entre o Eixo Apropriação do sistema de escrita no Pró Letramento e a Provinha
Brasil
Capacidades essenciais segundo o Pró Letramento:
Eixo Apropriação do sistema
de escrita
Descritor e detalhamento do descritor na Matriz
Referência Eixo Apropriação
do sistema de escrita
Relação descritor/número
da questão no
Teste 1
Relação descritor/número
da questão no
Teste 2
Compreender diferenças entre a escrita alfabética e
outras formas gráficas
D 1 Reconhecer letras: a) diferenciar letras de outros
sinais gráficos,
01 01
Dominar convenções
gráficas: i) Compreender a orientação e o alinhamento
da escrita da língua
portuguesa, ii) Compreender a função da segmentação dos
espaços em branco e da
pontuação de final de frase
Reconhecer unidades fonoaudiológicas como
sílabas, rimas, terminações
de palavras, etc.
D2 Reconhecer sílabas: (a) identificar o número de
sílabas que formam uma
palavra por contagem ou comparação das sílabas de
palavras dadas por imagens
03, 04, 06, 08, 09 05, 06, 08, 10
Conhecer o alfabeto: i)
compreender a categorização gráfica e funcional das letras,
ii) Conhecer e utilizar
diferentes tipos de letras (de fôrma e cursiva)
D1 Reconhecer letras: b)
identificar pelo nome as letras do alfabeto,
02
c) reconhecer os diferentes
tipos (formas) de grafias das letras
02 03
Compreender a natureza
alfabética do sistema de
escrita
Dominar as relações entre
grafemas e fonemas: i)
Dominar regularidades
ortográficas, ii) Dominar irregularidades ortográficas
D3 Estabelecer relação entre
unidades sonoras e suas
representações gráficas
(letras, sílabas): a) identificar em palavras a representação
de unidades sonoras como
letras e sílabas que possuem correspondência sonora única
(p,b,t,d);
05, 07 04
b) letras com mais de uma
correspondência sonora (c /g);
33
Quadro 2 - Relações entre o Eixo Leitura no Pró Letramento e a Provinha Brasil
Capacidades essenciais
segundo o Pró Letramento: Eixo Leitura
Descritor e detalhamento do
descritor na Matriz Referência do Eixo Leitura
Relação
descritor/número da questão no
Teste 1
Relação
descritor/número da questão no
Teste 2
Desenvolver atitudes e
disposições favoráveis à leitura
Desenvolver capacidades de
decifração: i) Saber
decodificar palavras, ii) Saber ler reconhecendo
globalmente as palavras
D 4 – Ler palavras: (a)
Identificar a escrita de uma
palavra ditada ou ilustrada
10 07, 09, 11
D5 – Ler frases: localizar
informações em enunciados
curtos e de sentido completo sem usar a estratégia de
identificação a partir de uma
única palavra
11, 12 12, 14
Desenvolver fluência em
leitura
Compreender textos: i)
Identificar finalidades e funções da leitura, em função
do reconhecimento do
suporte, do gênero e da contextualização do texto, ii)
Antecipar conteúdos de texto
a serem lidos em função de seu suporte, seu gênero e sua
contextualização, iii)
Levantar e confirmar
hipóteses relativas ao conteúdo do texto que está
sendo lido, iv) Buscar pistas
textuais, intertextuais e contextuais para ler nas
entrelinhas (fazer
inferências), ampliando a
compreensão, v) Construir compreensão global do texto
lido, unificando e inter-
relacionando informações implícitas e explícitas, vi)
avaliar ética e afetivamente o
texto, fazer extrapolações
D8 – Identificar a finalidade
de um texto: antecipar a finalidade de um texto com
base no suporte ou nas
características gráficas do gênero ou reconhecer o
assunto, fundamentando-se
apenas na leitura individual do texto
17, 18 16, 17
D7 – Reconhecer assuntos de
um texto: antecipar o assunto
de um texto com base no suporte ou nas características
gráficas do gênero
15, 16 19
D10 – Inferir informação: 19, 20 18, 20
D 6 – Localizar informações explícitas em textos: a)
localizar informações em
diferentes gêneros textuais, com diferentes tamanhos e
estruturas e com distintos
graus de evidência da
informação
13, 14 13, 15
34
Tabela 1 - Quantidade e percentagem de questões por descritores e por eixo nos Testes 1 e 2
Descritores Quantidade/percentagem de
questões no Teste 1
Quantidade/percentagem de
Questões no Teste 2
Apropriação do sistema de escrita
D1 - Reconhecer letras 2 22% 3 37%
D2 - Reconhecer sílabas 5 56% 4 50%
D3 - Estabelecer relações entre fonema e grafema
2 22% 1 13%
Totais do eixo 9 100% 8 100%
Percentagem do eixo em relação às 20 questões 45% 40%
Leitura
D4 - Ler palavras 1 9% 3 25%
D5 - Ler frases 2 18,2% 2 16,7%
D6 - Localizar informações explícitas
2 18,2% 2 16,7%
D7 - Reconhecer assunto de um
texto 2 18,2% 1 8,2%
D8 - Identificar finalidade de um texto
2 18,2% 2 16,7%
D10 - Inferir informações 2 18,2% 2 16,7%
Totais do eixo 11 100% 12 100%
Percentagem do eixo em relação às 20 questões 55% 60%
Tabela 2 - Quantidade e percentagem de questões por descritores nos Testes 1 e 2
Descritores12
Quantidade/percentagem
de Questões no Teste 1
Quantidade/percentagem
de Questões no Teste 2
Apropriação do sistema de escrita
D1 - Reconhecer letras 2 10% 3 15%
D2 - Reconhecer sílabas 5 25% 4 20%
D3 - Estabelecer relações entre fonema e
grafema 2 10% 1 5%
Leitura
D4 - Ler palavras 1 5% 3 15%
D5 - Ler frases 2 10% 2 10%
12 O descritor 9 (D9) – Estabelecer relações entre partes do texto – não foi avaliado por razões técnicas
35
Descritores12
Quantidade/percentagem
de Questões no Teste 1
Quantidade/percentagem
de Questões no Teste 2
D6 - Localizar informações explícitas 2 10% 2 10%
D7 - Reconhecer assunto de um texto 2 10% 1 5%
D8 - Identificar finalidade de um texto 2 10% 2 10%
D10 - Inferir informações 2 10% 2 10%
Total 20 100% 20 100%
A análise dos quadros e tabelas possibilita fazer algumas considerações. Observa-se um
equilíbrio entre as questões destinadas a avaliação da leitura inicial – decodificação – e a
compreensão de textos, meta principal do ensino de leitura (BRASIL, 2008b, p. 43).
Na tabela 1, verifica-se que no teste 1, 45% das questões (9) relacionam-se às primeiras
competências, enquanto 55% (11) referem-se à compreensão de texto. No teste 2, percebe-se
uma pequena ênfase nas competências relacionadas à compreensão, com 60% de questões (12),
possivelmente porque a expectativa seja a de que os alunos tenham avançado nas suas
aprendizagens, de acordo com “o princípio de progressão do mais simples ao mais complexo.”
(BRASIL, 2008b, p. 34).
Conforme mostra a Tabela 2, dos três descritores que compõem o eixo “Apropriação do
sistema de escrita” (reconhecer letras, reconhecer sílabas e estabelecer relações entre fonema e
grafema), o que tem mais destaque é o que avalia a capacidade de reconhecer sílabas, com 5
questões (25%) no Teste 1 e 4 questões (20%) no Teste 2. Isso evidencia a concepção
representacional que tem os autores do Pró Letramento acerca do sistema de escrita alfabético,
como mostra o trecho a seguir: “Isso significa que seu princípio básico é o de que cada ‘som’ é
representado por uma “letra” – ou seja, cada “fonema” por um “grafema”. (BRASIL, 2008b, p.
31).
De acordo com o documento, na leitura, além da decodificação de letra por letra, é
preciso outros procedimentos como o de decodificar as partes da palavra, ou seja, as sílabas. É a
identificação das sílabas que garante à criança que ela possa ler palavras “que nunca foram vistas
antes, mesmo sem compreender o seu significado.” (Ibidem, p. 42). Mais do que isso, na visão
dos autores, “dominar as relações fonema-grafema significa, em última instância, dominar a
ortografia.” (Ibidem, p. 34).
Numa rede de ensino como a de São Bernardo do Campo, que se pauta pelo método
construtivista, as ideias acima causam bastantes melindres, já que é comum os professores
apresentarem as letras pelo nome, trabalharem com palavras ou pequenos textos e não
36
elucidarem as relações fonológicas. Tal procedimento, por vias que nos escapam, tem impacto na
escolarização de algumas crianças.
Por exemplo, ao acompanhar as aulas de professores que tinham em sua turma crianças
em situação de impasse na alfabetização, observei que muitas delas identificavam e grafavam as
letras do alfabeto, mas se embaraçavam com as sílabas e não conseguiam ler. Numa dessas
ocasiões em que eu estava numa classe de 1º ano do ciclo 1 para observar uma criança com
sinais de autismo, logo no terceiro mês do ano letivo, deparei-me com um menino que me pediu
ajuda para ler uma frase da sua folha de exercício.
Eu lhe disse: – Ah! Eu já ler. É você que tem de aprender! O garoto respondeu: – Eu não
sei ler.
Peguei a folha onde estava escrito “Qual o seu nome?” e solicitei-lhe a leitura
segmentando as palavras.
– O que está escrito aqui? O menino: [ke]. Perguntei: E aqui? Ele respondeu: [u].
– Essa é uma palavra difícil. Tá escrito “qual”.
Apesar de eu mostrar a palavra, ele não a tratava como tal por não saber formar sílabas.
Fui repetindo o procedimento até chegar à palavra “nome”. Escondi a sílaba “me” e perguntei: –
O que tá escrito aqui? O menino respondeu: – [ene]. Emendei: Como se fala [ene] com [o]? Ele
disse: [no]. Fiz a mesma pergunta com a sílaba “me” e pedi para ele juntar tudo. O garoto
decodificou: [nome].
Falei: – Pronto! Você leu. Como é que você disse que não sabe ler? E recuperei a frase
inteira, dizendo que era para ele escrever o seu nome.
Ele me devolveu com uma frase que se tornou inesquecível: – É só isso?
A professora desta classe era zelosa com cada criança, era daquelas que passavam de
carteira em carteira tirando dúvidas; a classe tinha número reduzido de alunos em função do
menino com autismo, e como é que ao ler o menino nomeava as letras mas não conseguia formar
sílabas? A minha hipótese segue na direção daquela levantada pelos autores e que foi
mencionada em capítulo anterior, ou seja, alguns professores deixam a criança a mercê de suas
próprias descobertas, como se fosse uma falta grave ofertar para os alunos informações a respeito
da diferença entre letra, sílaba e palavra.
Então, parece compreensível que a Provinha Brasil no que tange à leitura inicial, centre
suas questões na identificação de sílabas, pois possivelmente ai tem uma lacuna de ensino.
Retomando o Quadro 4, no eixo Leitura, composto por seis descritores – ler palavras, ler
frases, localizar informações explícitas, reconhecer assunto de um texto, identificar finalidade de
um texto e inferir informações – percebe-se o mesmo peso na quantidade de questões destinadas
37
a avaliar cada um dos descritores tanto no Teste 1 quanto no Teste 2. As pequenas variações
observadas no D4 e no D7 não são explicáveis por inferência.
No entanto, verifica-se pelo Quadro 2 que a compreensão de um texto está
principalmente baseada no reconhecimento das características do gênero (conforme os
descritores D6, D7, D8). Notamos nessa ênfase dois pontos que merecem ser abordados.
Primeiramente, a concepção sociointeracionista da linguagem, conhecida pelo conceito
de gênero do discurso, veiculada no texto do Pró Letramento é solidária aos PCN e ao seu
primeiro programa de formação de professores: o Profa.
Depois, observamos na Provinha Brasil um artificialismo das questões que tratam dos
gêneros textuais, principalmente se levarmos em consideração a abrangência nacional do teste.
No documento do Pró Letramento, o gênero do discurso é considerado uma estratégia
para favorecer o trabalho de compreensão a partir do reconhecimento das características dos
textos: “do que eles costumam tratar, como costumam se organizar, que recursos lingüísticos
costumam usar, para que servem.” (BRASIL, 2008b, p. 44).
A título de ilustração, tomamos a questão 17 do Guia de Aplicação do Teste 1, de 2011,
que avalia “a habilidade de identificar a finalidade de um texto com base nas características do
gênero e na leitura do texto completo.” (BRASIL, 2011c, p. 24), apresentada na Figura 1, para
tecer comentários tendo em conta as discussões empreendidas por Fabiano (2011).
Figura 1 – Trecho da questão 17 do Guia de Aplicação do Teste 1, 2011
38
Por estar desvinculado do seu suporte, o que faz com que nos escape a intenção do
escritor, a característica do texto acima que salta à vista é seu artificialismo. Marcuschi (2009, p.
3) lembra que “em muitos casos são as formas que determinam o gênero e, em outros serão as
funções. Contudo, haverá casos em que será o próprio suporte ou o ambiente em que os textos
aparecem que determinam o gênero presente.”
Assim sendo, quer se trate de uma propaganda de um cardápio de boteco para estimular o
freguês a consumir ou de um aviso de um cardápio de escola, ou mesmo uma receita, como foi
compreendido por muitos alunos, os textos escritos para estes usos não costumam ter pontuação,
nem marcadores – que são típicos de texto de internet – e nem cuidado com a utilização de
estruturas gramaticais, como o plural. Desse ponto de vista, o texto acaba sendo uma construção
escolarizada descolada da prática social, ou seja, se transforma em fixação de um modelo de
escrita (FABIANO, 2011, p. 3).
Será que questões como estas servem para avaliar as habilidades de leitura da criança? E
mais, será que o professor não segue tais modelos para ensinar seus alunos, numa espécie de
preparação para os testes, cristalizando o conceito de gêneros do discurso? Essas são perguntas
sem respostas a respeitos das teorias que embasam o ensino da língua e que estão estreitamente
relacionadas com o sucesso da alfabetização.
A questão mostrada na Figura 1 coloca-nos, ainda, outro problema que é o de
desconsiderar a diversidade linguística. Como ter garantias que uma criança de um rincão
qualquer deste País – e não precisamos ir muito longe, basta tomar como referência a escola que
ofertou os dados para este trabalho – conheça as expressões “carne ensopada” e “saladas”, senão
pelo cardápio escolar? Aqui parece valer um ideal de unicidade da língua já anteriormente
mencionado que afeta toda avaliação padronizada e de larga escala. Mas, será que no caso de
uma avaliação diagnóstica da alfabetização tal característica não traria prejuízos?
Na seção seguinte vamos acompanhar como os alunos de uma escola da rede de ensino de
São Bernardo do Campo se saíram na Provinha Brasil de 2011.
3.2 A Provinha Brasil na prática
O material utilizado para este estudo pertence à escola que será designada pela sigla JIF,
que fica localizada no Riacho Grande, subdistrito de São Bernardo do Campo, numa área de
manancial, na qual predomina a mata atlântica. A região, constituída pelos bairros do pós-balsa,
passou por ocupação territorial desordenada, prevalecendo habitações populares em contraste
39
com chácaras e sítios para uso aos finais de semana, bem como pequenos comércios e igrejas de
diversos credos. O local não possui infraestrutura adequada e em algumas residências há
ausência de água tratada e encanada, energia elétrica oficial e esgoto. A maior parte da região
não é servida por asfalto e para chegar e sair é preciso fazer a travessia da represa Billings por
meio de balsa. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2011).
A escola foi municipalizada em 1998 e, atualmente, atende o Ensino Fundamental I e a
Educação de Jovens e Adultos. Possui um total de 385 alunos matriculados no Ensino
Fundamental e 115 alunos na EJA. Começou a compor o Ideb em 2009, possivelmente por ter
sido considerada escola de zona rural. Obteve o índice mais baixo do Município, juntamente com
outra escola da mesma região do pós balsa.
Tabela 3 – Comparação entre o Ideb de São Bernardo do Campo,projetado e obtido, e o Ideb da escola
Ciclos Ideb São Bernardo do
Campo -projetado
Ideb São Bernardo do
Campo -obtido Ideb JIF
2005 - 4.9 -
2007 5.2 5.1 -
2009 5.3 5.6 4.2
2011 5.6 - - Fonte: Portal do Ideb. Acesso em 04 fev. 2012
A escola possui duas classes de 2º ano do ciclo inicial (Fundamental de 9 anos), uma em
cada período, e aquela que escolhemos para investigar é a do período da tarde pelo fato de
possuir uma criança com necessidades educacionais especiais. A classe tem 28 alunos.
Giovanna é uma menina nascida em 19/10/2003 e tem o diagnóstico médico de Síndrome
de Down. Está registrada no portal Gestão Dinâmica da Administração Escolar do Estado de São
Paulo (Gdae) como aluna que possui necessidades educacionais especiais na categoria de
“Deficiente Intelectual”.
A aluna tem o seguinte histórico escolar:
Quadro 3 – Histórico Escolar
Ano Classe/Ano-Ciclo Escola
2007 EI Classe 4 anos IV
2008 EI Classe 5 anos IV
2009 EI Classe 6 anos IV
2010 EF 1º ano inicial JIF
2011 EF 2º ano ciclo 1 JIF
2011 EF 3º ano ciclo 1 JIF
40
Giovanna freqüenta a escola desde os 4 anos de idade e à época da aplicação do Teste 2
da Provinha Brasil já tinha completado 8 anos, idade limite prevista para a alfabetização das
crianças segundo a meta do PDE.
Em 2010 e 2011 a aluna freqüentou o Atendimento Educacional Especializado (AEE).
Possui fala verbalizada sem fluência, compreensão dos espaços e regras do ambiente escolar, não
grafa letras nem números. Não se têm observáveis sobre leitura inicial – postura de leitor, se a
criança tem compreensão a respeito da orientação e alinhamento da escrita alfabética, se entende
a função de segmentação, se distingue letras de outras formas de grafias, entre outros. Então, a
princípio a Provinha Brasil poderia oferecer informações a respeito dos componentes
curriculares vinculados à aquisição da escrita que são obstáculos para a menina.
Como a proposta deste trabalho é a de averiguar em que medida a Provinha Brasil pode
ser colocada a serviço da aprendizagem das crianças com necessidades educacionais especiais,
apresentamos a correção do Teste 1 (Quadro 4) de todos os alunos da classe, incluindo a
Giovanna, para que a partir da análise comparativa dos resultados possamos levantar algumas
hipóteses. O teste foi aplicado e corrigido pela professora da turma.
O quadro a seguir foi montado a partir do modelo oficial com acréscimos de alguns
campos para possibilitar algumas análises cruzadas.
Quadro 4 – Ficha de Correção Teste 1
Nº
do
alu
no
ord
em a
lfab
étic
a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
To
tal
acer
tos
po
r
alu
no
D1 D1 D2 D2 D3 D2 D3 D2 D2 D4 D5 D5 D6 D6 D7 D7 D8 D8 D10 D10
C B D B D A A B D B A D C D C D A B D C
1 X X X X X X X 7
2 X X X X X X X X X X X X 12
3 X X X X X X X X X 9
4 X X X X X X X X X X 10
5 X X X X X X 6
6 X X X X X X X X X X X 11
7 X X X X X X X X X X X X X X X 15
8 X X X X X X X X X X X X X 13
9 X X X X X X X X X X X 11
10 X X X X X X X X X X X X X X 14
11 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
12 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
13 X X X X X X X X X 9
14 X X X X X X X X 8
15 X X 2
16 X X X X X X X X X X 10
17 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
18 X X X X X X X X X X X X X X 14
41
Nº
do
alu
no
ord
em a
lfab
étic
a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
To
tal
acer
tos
po
r
alu
no
D1 D1 D2 D2 D3 D2 D3 D2 D2 D4 D5 D5 D6 D6 D7 D7 D8 D8 D10 D10
C B D B D A A B D B A D C D C D A B D C
19 X X X X X X X X X 9
20 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19
21 X X X X X X X X X X X X X X X 15
22 X X X X X X X X X X X X 12
23 X X X X X X X X X X X X X 13
24 X X X X X X X X X X X X X X X 15
25 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
26 X X X X X X X X X X X 11
27 F F F F F F F F F F F F F F F F F F F F F
28 X X X X X X X X X X X X X 13
Qte 5 14 17 13 1 9 18 2 6 7 8 7 12 20 14 12 18 18 7 9
Média da Turma 12
Legenda:
Linha 1: Numeração das questões (1...20)
Linha 2: Descritores (D1...D10)
Linha 3: Gabarito
F: Faltou
Última linha: quantidade de alunos que não acertaram a questão (Qte)
Células na cor amarela: são as questões que avaliam as habilidades do eixo Apropriação do sistema de
escrita
Células na cor azul: são as questões que avaliam as habilidades do eixo Leitura
O panorama apresentado no Quadro 4 nos permite formular algumas suposições
confrontando a tabulação das provas com as diretrizes e esclarecimentos do Kit 1º semestre e 2º
semestre 2011, composto por quatro volumes (caderno do aluno, guia de aplicação, guia de
correção e reflexões sobre a prática). Não temos informação acerca das orientações dadas aos
alunos antes do início do teste, mas uma delas – que o aluno escrevesse seu nome na linha da
capa do caderno de questões – foi cumprida por todos, inclusive pela Giovanna, conforme
mostramos em seguida:
42
Figura 2 – Assinatura da Giovanna na capa do Caderno do Aluno do Teste 1
A observação da categorização dos procedimentos de resposta para “Faça um ‘X’ no
quadradinho” (Quadro 5) nos permite inferir que Giovanna entrou em conflito entre respeitar a
comanda (com uma lógica objetiva e universal) e seguir o seu raciocínio (a partir de uma lógica
particular), o que em si é produtivo porque demonstra que no momento da prova a garota estava
alerta e tentava realizar a tarefa. Em que lugar ela toparia com um desafio dessa monta senão na
escola?
Quadro 5 – Procedimentos adotados para responder a comanda “Faça um ‘X’ no quadradinho” - Teste 1
Procedimento Quantidade de vezes que usou o procedimento
Questões em que usou o procedimento
Marcou um quadradinho Seis Exemplo, 06, 07, 09, 11, 16
Marcou dois quadradinhos Quatro 01, 02, 04, 05
Marcou todos os quadradinhos Duas 03, 13
Deixou em branco todos os quadradinhos
Cinco 10, 12, 18, 19, 20
Registrou em todos os
quadradinhos grafos que
lembram letras
Duas 08, 14
Apagou quadradinhos 2 15, 17
Nas respostas, Giovanna marcou um quadrinho em seis questões, todas elas lidas pela
professora; deixou em branco cinco questões que envolviam leitura silenciosa. Apagou
quadradinhos em duas respostas e, neste caso, não se sabe se foi instrução dada pela professora,
pois dois outros alunos também tiveram o mesmo procedimento. Marcou dois quadradinhos em
quatro questões, possivelmente por ter ficado muito embaraçada com a sutileza das pistas. E
registrou grafos semelhantes a letras em todos os quadradinhos das questões 08 e 14,
43
possivelmente animada com os conteúdos das questões. A questão 08 é composta por imagens,
entre elas a de um gato em cujo quadradinho ela desenhou um grafo semelhante aquele utilizado
para escrever seu nome. A questão 14 é composta por nomes que terminam com a vogal o (João,
Paulo, Pedro, Tiago) e a leitura era silenciosa, de forma que Giovanna desenhou um grafo
semelhante a o em todos os quadradinhos. Aqui parece que pela impossibilidade de decodificar
os nomes, ela reconheceu em todos eles a constância da vogal o no final da palavra e, em
conflito, optou por quebrar a regra de resposta.
O que descobrimos em relação aos procedimentos que Giovanna adota para responder às
questões? Primeiro, que ela está implicada na tarefa e tentando raciocinar dentro dos padrões
compartilhados. Parece que tem entendimento das suas limitações em leitura, pois quando as
questões envolvem leitura silenciosa juntamente com enunciados longos, ela se abstém de fazer
marcações, da mesma forma que quando estamos em dúvida diante de uma questão, deixamos
em branco para retomar em outro momento. Por outro lado, percebe-se que está mais
familiarizada com intervenções orais, como deixa entrever pelas questões em que marcou um só
quadradinho, todas lidas pela professora.
Em segundo lugar, parece ter um espaço de ação pedagógica que poderia privilegiar as
escolhas e as variadas formas de se responder dentro de um padrão compartilhado, bem como
atividades que envolvessem leitura inicial (decodificação) de forma silenciosa, sem a intervenção
oral de um adulto ou parceiro mais experiente.
Advogamos que a diferenciação nos ritmos de aprendizagem está relacionada com o uso
que a criança faz da chave simbólica que recebe como contrapartida ao seu pertencimento à
ordem da linguagem, e este uso não é ensinado, pelo contrário, é apreendido por mergulho ou
imersão nos estímulos externos oferecidos pelas situações concretas e nos impulsos internos pela
mobilização de sensações e sentimentos. E a Provinha Brasil pareceu uma boa oportunidade para
Giovanna vivenciar conflitos e descobrir o que poderia entreabrir com o uso que faz da sua
chave simbólica. Nesse sentido, compartilhamos com a exposição dos autores do Pró Letramento
quando escrevem:
Inserir-se nas práticas sociais próprias à cultura escrita implica
comportamentos, procedimentos e destrezas típicos de quem vive no mundo da leitura. [...] Essas atitudes e comportamentos não se restrigem a um momento
específico, nem podem ser considerados capacidades relativas a uma idade ou
ciclo. Constituem componentes de todo o processo de escolarização e são fruto de um trabalho contínuo. (BRASIL, 2008b, p. 41).
A respeito do conteúdo das questões, Giovanna teve dois acertos (09 e 11) que nos
pareceram ter sido por acaso ou por ajuda de parceiro mais experiente, pois se tratam de questões
44
que avaliam, respectivamente, habilidades de ler palavra reconhecendo correspondência sonora
com aquela ditada pela professora, e reconhecer o assunto segundo as características do gênero,
questões que 26% dos alunos erraram.
A princípio, poderíamos supor que a menina ainda está longe das habilidades esperadas
para o eixo “Apropriação do sistema de escrita”, de acordo com o conceito dos autores, no
entanto a análise do Quadro 4 mostra que alguns alunos também não dominam as habilidades
deste eixo, o que nos faz conjeturar que existe uma lacuna no ensino destes conteúdos nesta
escola e, portanto, ficaria inviável justificar os embaraços da Giovanna com a língua apenas pelo
seu déficit cognitivo.
A fim de sustentar nossas hipóteses, apresentamos alguns indícios: 5 alunos (19%) não
conseguem diferenciar letras de outros sinais gráficos (questão 01); 14 crianças (52%) não
reconhecem os diferentes tipos de letras (questão 2); 17 alunos (63%) não conseguem identificar
o número de sílabas da palavra (questão 03). Duas outras questões que também avaliam a
habilidade de reconhecer sílabas (04 e 06), apesar de não ter uma percentagem tão alta de erros
quanto a questão 03, também denunciam falta de experiência dos alunos com este conteúdo. Mas
a maior percentagem de erros do eixo “Apropriação do sistema de escrita” está na questão 07
(67%, 18), que avalia a habilidade de estabelecer relação entre unidades sonoras de
correspondência única como letras e sílabas. De outro lado, a questão 08 que trata do
reconhecimento de sílabas e que teve apenas dois alunos que erraram (um deles a Giovanna) tem
como suporte imagens, o que facilita a associação com o som da sílaba. A única questão
pertencente a este eixo que, com exceção da Giovanna, os demais acertaram foi a de número 05
que avalia a habilidade de identificar letras com correspondência sonora única.
Considerando o conjunto de dados dessa escola, os achados evidenciam um desacordo
entre a proposta do Pró Letramento e aquela adotada pelo sistema de ensino, que não coloca
ênfase no trabalho com as relações fonéticas. Assim, seria de se esperar resultados mais
promissores no eixo leitura, que trata da compreensão de texto, mas não é o que nos mostra a
tabulação dos dados.
As questões que tratam da compreensão de texto mostram um tropeço da maioria dos
alunos quando se trata de compreender o texto a partir das pistas oferecidas pelos gêneros
textuais. Assim, 20 alunos (74%) não conseguiram localizar informações explícitas numa
questão que envolvia conhecimento acerca da forma de escrita de um bilhete (14). Nas questões
que tratavam de identificar a finalidade de um texto (17, 18) 18 alunos (67%) incorreram em
erro. O único aluno que chegou perto de acertar 100% (19) das questões errou a questão de
45
número 17, justamente aquela que, em seção anterior, utilizamos como exemplo para discorrer
sobre a escolarização dos gêneros textuais.
Estes resultados nos levam a questionar: existiria na Provinha Brasil um movimento de
privilegiar a compreensão de um texto a partir das características dos gêneros? Ou a proposta de
ensino dos gêneros textuais enfatizada no Pró Letramento não foi suficientemente assimilada
pelo grupo de professores dessa escola? Ou poderia estar acontecendo os dois fenômenos?
O que os dados permitem visualizar é que a ênfase dada pelo sistema de ensino à
produção escrita e a classificação dos alunos pelas hipóteses de escrita fez com que os
professores dessa escola se descuidassem do ensino da leitura de acordo com o escopo do
programa do MEC.
É esse desencontro entre as concepções de alfabetização que norteiam, de um lado, as
propostas curriculares dos sistemas de ensino e de outro, aqueles que ocupam a posição de
pensar sobre a educação nacional, que estamos considerando como as implicações ideológicas da
alfabetização.
A prevalência de uma concepção sobre outras como verdade inquestionável tendo em
conta a filiação político-partidária dos sistemas de ensino e da União, mesmo com o peso de um
Ideb alarmante, como é o caso desta escola, é o que estamos chamando de condicionante político
da alfabetização.
Mas será que seguindo a proposta de correção da Provinha chegaríamos a essas mesmas
conclusões? Vejamos.
Os desempenhos dos alunos são interpretados com base em cinco diferentes níveis de
desempenho, formulados a partir de um pré-teste, de acordo com análises pedagógicas e
tratamento estatístico conforme a teoria da resposta ao item13
(BRASIL, 2011b, p. 15).
Os acertos de cada aluno são transpostos para a Ficha de Correção que registra os totais
de acertos de todos os alunos. Em seguida, realiza-se o cálculo da média de acertos da turma
(Ibidem, p. 16).
Conforme esclarece o Guia de Correção, “as respostas dos alunos podem ser interpretadas
estabelecendo-se uma relação entre o número ou a média de acertos de um ou mais alunos e sua
correspondência com níveis de desempenho descritos para a Provinha Brasil”. (Ibidem, p. 17).
Na tabela 4 podemos acompanhar os quantitativos de alunos correspondentes aos níveis de
desempenho.
13 A teoria da resposta ao item corresponde a uma seleção e a conversão para uma mesma escala um conjunto de
itens de múltipla escolha que compõem um teste.
46
Tabela 4 – Distribuição da quantidade de alunos por nível de desempenho no Teste 1
Teste 1 – 1º semestre de 2011
Nível Quantidade de acertos Quantidade de alunos que acertaram
Percentagem de alunos que acertaram
1 Até 4 acertos 1 4%
2 De 5 a 9 acertos 6 22%
3 De 10 a 15 acertos 15 55%
4 De 16 a 18 acertos 4 15%
5 De 19 a 20 acertos 1 4%
Total de alunos 27 100%
Pela avaliação proposta pelo Guia de Correção temos o seguinte cenário: 1 aluno (4%)
em cada extremo de nível, ou seja, em estágio muito inicial em relação à aprendizagem da escrita
e neste se encontra a Giovanna, e dominando o princípio alfabético, apresentando excelente
desempenho em relação às habilidades avaliadas. No nível 2 encontramos 6 alunos (22%), com
habilidades básicas para ler palavras de ortografia menos complexas. Mais da metade dos alunos
(15; 55%) encontram-se no nível 3, quando consolidaram a capacidade de ler palavras e frases
com sintaxe simples, mas ainda assim crianças que apenas dominam o princípio de
decodificação. Este resultado é compatível com a média de acertos da turma que é de 12
questões (Quadro 4), correspondendo em termos de acertos ao nível 3. Outros 4 alunos (15%)
estão no nível 4 em que dominam a leitura de textos e utilizam diversas estratégias para sua
compreensão. Somados os alunos dos dois últimos níveis, apenas 18% (5) deles dominam a
leitura, o que não deixa de ser um resultado crítico depois de no mínimo um ano de
escolarização.
Logo, emergem duas explicações para quadro tão pouco prometedor: ou as crianças estão
nesse nível básico por conta da situação de desvantagem de seu ambiente social, quando não,
porque apresentam dificuldades de aprendizagem; ou os professores não estão ensinando como
deveriam. Uma visão tão dicotômica e ideológica somente pode acabar por responsabilizar os
agentes mais essenciais do processo educativo. Enquanto isso, os gestores dos sistemas de ensino
bem como os gestores escolares se eximem de suas obrigações. Da mesma forma, há uma
tendência por parte da academia de isentar as teorias, tomando-as como completas, sem furos, de
maneira que se existirem distorções, elas estão do lado de quem as disseminam. Daí esse clamor
constante pela formação continuada de professores, colocando-os continuamente na posição de
alunos e desapropriando-os de suas competências.
Mas será que alunos, professores, familiares e equipe escolar aprenderam algo quando se
depararam com o diagnóstico da Provinha Brasil do primeiro semestre? Vamos tentar responder
47
à pergunta fazendo a análise do Teste 2, do segundo semestre de 2011 nos mesmos moldes do
Teste 1.
3.3 Mudou o panorama da turma do Teste 1 para o Teste 2?
Um dos objetivos pedagógicos da Provinha Brasil é o desenvolvimento de ações para
corrigir as distorções ou insuficiências verificadas no processo de ensino-aprendizagem. Por isso
a ideia de aplicar dois testes no mesmo ano letivo.
Os resultados do Teste 2 realizado em novembro de 2011 estão dispostos no Quadro 6.
Quadro 6 – Ficha de Correção do Teste 2
Nº
do
alu
no
ord
em a
lfab
étic
a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
To
tal
acer
tos
po
r
alu
no
D1 D1 D1 D3 D2 D2 D4 D2 D4 D2 D4 D5 D6 D5 D6 D8 D8 D10 D7 D10
A A A D C D D B B C D C B D A D A C C C
1 X X X X X X X X X X X X X 13
2 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
3 X X X X X X X X X X X X X X X 15
4 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
5 F F F F F F F F F F F F F F F F F F F F F
6 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19
7 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 20
8 X X X X X X X X X X X X X X X X X X 18
9 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
10 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
11 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 20
12 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
13 X X X X X X X X X X X X X X 14
14 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
15 X 1
16 X X X X X X X X X X X X X X X 15
17 X X X X X X X X X X X X X X X X X X 18
18 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
19 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
20 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 20
21 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
22 X X X X X X X X X X X X X X X X 16
23 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19
24 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19
25 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
26 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19
27 X X X X X X X X X X 10
28 X X X X X X X X X X X X X X X X X 17
48
Nº
do
alu
no
ord
em a
lfab
étic
a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
To
tal
acer
tos
po
r
alu
no
D1 D1 D1 D3 D2 D2 D4 D2 D4 D2 D4 D5 D6 D5 D6 D8 D8 D10 D7 D10
A A A D C D D B B C D C B D A D A C C C
Qte 0 1 2 1 4 1 1 5 1 5 2 1 3 4 7 14 7 10 13 21
Média da turma 16
Legenda:
Linha 1: Numeração das questões (1...20)
Linha 2: Descritores (D1...D10)
Linha 3: Gabarito
F: Faltou
Última linha: quantidade de alunos que não acertaram a questão (Qte)
Células na cor laranja: são as questões que avaliam as habilidades do eixo Apropriação do sistema de
escrita
Células na cor verde: são as questões que avaliam as habilidades do eixo Leitura
O quadro 6 mostra uma turma mais homogênea em termos de habilidades de leitura,
cujos alunos agregaram aprendizados desde o Teste 1. Porém, mais uma vez começaremos a
discussão pelos resultados da Giovanna.
A menina aumentou a quantidade de grafos para escrever seu nome, como mostra a
Figura 3 abaixo, contudo parece que ainda mistura grafos que se assemelham a letras com grafos
que sugerem números. Supomos que ela estava num momento de fazer hipóteses sobre o
tamanho do seu nome, pois se percebe algo análogo a uma segmentação em três blocos de
grafos, como é a escrita do seu nome completo. Os grafos usados como letras (G, A, I, O, V)
pertencem, sem respeitar a ordenação, ao seu primeiro nome ou aos seus dois sobrenomes. As
demais garatujas parecerem ser imagens distorcidas de outras letras do seu nome completo.
Figura 3 - Assinatura da Giovanna na capa do Caderno do Aluno do Teste 2
49
Na questão exemplo Giovanna assinalou todas as questões o que evidencia que a
professora não seguiu as orientações do Guia de Aplicação que explica: “circule entre as
carteiras e verifique se os alunos compreenderam que devem marcar o “X” somente em um
quadradinho”. A criança ficou a mercê do que pode compreender, inclusive escrevendo “Gigi”
de maneira bem definida, na folha de exemplo. Tal fato comprometeu toda a realização da prova.
E, diferentemente do Teste 1, neste fez várias intervenções nas folhas das questões, dificultando
conjeturar acerca de um padrão e deixando margem para umas poucas inferências.
Quadro 7 - Procedimentos adotados para responder a comanda “Faça um ‘X’ no quadradinho” - Teste 2
Procedimento Quantidade de vezes que usou o procedimento
Questões em que usou o procedimento
Marcou um quadradinho Três 01, 04, 08
Marcou dois quadradinhos Uma 11
Marcou três quadradinhos Três 03, 06, 17
Marcou todos os quadradinhos Quatro 02, 05, 0, 097
Deixou em branco todos os
quadradinhos Nove 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20
Escreveu grafos nas folhas das
questões Quatro 02, 10, 13, 17
Preencheu as figuras com lápis
preto como se estivesse a pintá-los (essa atividade consta das
orientações do caderno de
aplicação)
Cinco 09, 10, 11, 13, 17
Giovanna faz intervenções, nos quadradinhos ou aleatoriamente pela folha, até a questão
13, percebendo-se, seguramente, seu envolvimento com a prova. A partir da questão 14 deixa os
quadradinhos em branco, e só faz mais uma intervenção na questão 17, tanto nos quadradinhos
como fora deles, possivelmente estimulada pela ilustração que dá suporte ao item. As questões
deixadas em branco estão relacionadas com leitura silenciosa, um padrão do primeiro teste que
se repetiu nesta segunda vez com quase o dobro de itens. Por outro lado, introduziu o
procedimento assemelhado a pintar figuras, ausente no teste anterior, denotando que apreendeu
algo das instruções da professora para a realização da prova.
O único acerto foi da questão 01 que avalia a habilidade de identificar letras de outros
sinais gráficos, pois neste segundo teste as alternativas de múltipla escolha estavam mais
discriminadas. A questão 04 apresenta um resultado importante para análise. Tratava-se de fazer
um “X” no quadradinho em que aparece apenas a primeira letra da palavra “laranja”, na qual a
aluna marcou somente um quadradinho corresponde à letra J entre um conjunto formado pelas
50
letras J, N, A, L. Embora a letra J apareça como primeira opção, Giovanna poderia ter repetido o
procedimento de marcar todas as respostas, como nas questões exemplo e de número 02. Enfim,
são pistas que a garota dá e que poderiam ser exploradas pela professora.
Considerando o caso da Giovanna, os resultados dos dois testes sugerem que a professora
não utilizou os achados do primeiro para inferir hipóteses ou conflitos da criança nem para
identificar quais componentes de ensino deveriam ser enfatizados. A docente poderia também ter
compartilhado os dados da Provinha com a professora de atendimento educacional especializado,
que teria contribuído com discussões ou desenvolvido recursos pedagógicos ou, até mesmo, ter
solicitado nossa assessoria, num esforço conjunto para potencializar o envolvimento mostrado
pela criança. Assim, tudo indica que para a professora a Provinha Brasil aplicada à Giovanna
teve finalidade burocrática, uma espécie de “cumprimento de tabela”.
A atitude mostrada pela professora é muito semelhante àquela descrita no estudo feito por
Castro (2007, p. 122), com professores da rede municipal de ensino de São Paulo, quando o
assunto é avaliação de crianças com deficiência, como se lê no trecho:
Evidencia-se, portanto, um fator interveniente na avaliação da aprendizagem dos alunos com necessidades educacionais especiais, qual seja: a expectativa
que se assenta na professora ao aceitar que as condições físicas ou
intelectuais do aluno serão inevitavelmente responsáveis por um
desempenho não satisfatório. Em função de tal expectativa, a identificação de um mau desempenho pelos procedimentos de avaliação não preocupa,
uma vez que já era esperado. Neste caso, a professora pode se eximir,
inclusive, da necessidade de buscar mudanças nas práticas pedagógicas.
Porém, de acordo com nosso entendimento a respeito da situação tratada, a distorção nas
expectativas de aprendizagem não deve ser imputada exclusivamente à professora. Os gestores
do sistema de ensino, a direção escolar e outros agentes que participam do processo educativo
também tem sua parcela de responsabilidade pela subutilização do instrumento, o que gera
prejuízos para todos os alunos e não somente para a Giovanna.
Além disso, sustentamos que a proposta de correção do Inep privilegia um tipo de
interpretação dos dados que põe foco exclusivamente nos alunos ao vincular a quantidade de
acertos a um nível de desempenho. É um tipo de análise importante, mas insuficiente. A análise
que propusemos de relacionar as questões aos descritores e identificar quais delas as crianças
erravam, possibilitou conjeturar a respeito de lacunas no ensino de componentes curriculares
enfatizados no programa do Pró Letramento.
Já os resultados da turma nos apontam duas interpretações, uma somando-se à outra. O
panorama é promissor se considerarmos que 67% dos alunos está no nível 4 e 11% deles se
51
encontra no nível mais elevado (Tabela 5), em outras palavras, 78% das crianças encontram-se
no nível de compreensão de textos.
Tabela 5 - Distribuição da quantidade de alunos por nível de desempenho no Teste 2
Teste 2 – 2º semestre de 2011
Nível Quantidade de acertos Quantidade de alunos que acertaram
Percentagem de alunos que acertaram
1 Até 4 acertos 1 4%
2 De 7 a 10 acertos 0 -
3 De 11 a 15 acertos 5 18%
4 De 16 a 19 acertos 18 67%
5 20 acertos 3 11%
Total de alunos 27 100%
A tabela 6 permite visualizar a distribuição de alunos por nível de desempenho
comparativamente nos Testes 1 e 2.
Tabela 6 – Distribuição de alunos por nível de desempenho nos Testes 1 e 2
Nível Quantidade de alunos
que acertaram Teste 1
Percentagem de
alunos que acertaram
Teste 1
Quantidade de alunos
que acertaram Teste 2
Percentagem de
alunos que acertaram
Teste 2
1 1 4% 1 4%
2 6 22% 0 -
3 15 55% 5 18%
4 4 15% 18 67%
5 1 4% 3 11%
27 100% 27 100%
A situação é preocupante se levarmos em conta a relação questões/descritores que as
crianças mais erraram, que no segundo teste foi a de número 20, a qual avalia a habilidade de
fazer inferências. Pela quantidade de alunos que erraram a questão (21; 93%) supõe-se
fragilidades no ensino do conteúdo.
Nesta mesma perspectiva de análise, outra questão que mais da metade da turma errou foi
a de número 16, que avalia a habilidade de identificar a finalidade de um texto. No caso, a
responsabilidade volta-se para os elaboradores da prova, pois se trata de uma questão cujo tema
“orienta como fazer um piquenique”, induzindo o aluno a equívoco. Se pensarmos nos gêneros
textuais como usos práticos da língua, o erro é facilmente explicado pelo artificialismo. Primeiro
porque é difícil imaginar que um piquenique possa ser orientado por escrito; segundo,
imaginando que se possa fazê-lo, nesta questão 16 a escrita do texto está confusa, num misto de
aviso, de narração, de lista, sem falar nos marcadores de texto de internet, como mostrado a
52
seguir. A pergunta é: Em que lugar, no seu dia a dia, uma criança vai se deparar com um texto
como esse?
Figura 4 – Trecho da questão 16 do Guia de Aplicação do Teste 2, 2011
Outro tipo de análise que traria informações preciosas seria a comparação do desempenho
nos Testes 1 e 2 por criança. Sem nos alongarmos, vamos nos deter em três situações. O aluno
número 5, que teve a pontuação mais baixa no primeiro teste faltou no segundo. O aluno de
número 27, que faltou na primeira prova teve a pontuação mais baixa na segunda. O único aluno
que fez 19 acertos na primeira vez acertou todas na segunda, o que nos faz pensar que esta
criança precisaria ter maiores desafios em termos de conteúdos curriculares de leitura.
Tomando como referência a apresentação e discussão dos dados, a intenção na seção
seguinte é a de refletir em que medida a Provinha Brasil, nesta escola, vem sendo utilizada
enquanto um instrumento de avaliação formativa.
3.4 É possível usar os testes padronizados como avaliação formativa para o aluno com
necessidades educacionais especiais?
Na edição de 2011 da escola JIF é possível concluir que nem o professor e nem os
gestores da equipe escolar utilizaram a Provinha como instrumento de avaliação diagnóstica da
alfabetização, uma vez que os cadernos do Teste 2 para a turma aqui analisada não haviam sido
corrigidos até o início do ano letivo de 2012. Assim os dados dos dois testes não foram
comparados e tampouco serviram para dimensionar o plano de ensino em leitura para a turma
que em 2012 estará cursando o 3º ano do ciclo inicial.
53
A avaliação formativa por meio de testes é mal entendida e mal usada nesta escola. Já a
avaliação padronizada para os alunos com deficiência ou transtorno global do desenvolvimento
costuma ser mal vista por boa parte dos educadores que se debruçam sobre o tema da educação
inclusiva, e não seria de surpreender que a escola JIF apenas reproduzisse tal discurso, não dando
o devido valor à produção da Giovanna na Provinha.
A concepção que segue essa linha de raciocínio pode ser encontrada no trabalho de
Castro (2007, p. 134), como segue:
Esta perspectiva [a flexibilização da avaliação] guarda relações com a
orientação trazida por Onrubia Goñi (2000), que reitera a importância da diversificação das sequências de situações e das atividades de avaliação que os
alunos realizam em função de suas características e necessidades educativas
particulares.
Tendo em vista o princípio da educação para todos, a concepção de avaliação referida
acima encontra respaldo na diferenciação curricular, cujas características, conforme menciona
Castro (2007, p. 126), estão comumente associadas à “preocupação com a individualização do
ensino, a diversificação das atividades, a valorização da aprendizagem cooperativa e propostas
de trabalho em grupo”.
Outra é a posição de Crahay (1999, 2002, 2007) que sem falar especificamente sobre
alunos com deficiência sensorial ou intelectual, problematiza aspectos preocupantes da educação
contemporânea como heterogeneidade das turmas, classes numerosas, produção de insucesso,
ingredientes típicos da universalização do ensino fundamental que tocam todo e qualquer aluno,
inclusive aquele com deficiência. É nesse terreno que o autor insere um debate entre a
modalidade de individualização do ensino e a pedagogia de domínio14
com sua visão de ensino
coletivo, que tem o seu pilar de sustentação nos testes formativos.
Citamos Crahay (1999, p. 284): “A avaliação formativa dirige-se ao aluno: é a ele que
esta diz respeito, em primeiro lugar. Implica-o assim na sua aprendizagem, através da
consciência que o aluno deve ter dela.”
Esse processo comporta um aspecto de feedback “que permite ao sujeito situar o
resultado da sua aprendizagem em relação ao objectivo a atingir” e um aspecto orientador que
possibilita o “ajustamento ou a reorientação da aprendizagem numa direcção mais apropriada ao
domínio da competência visada.” (Ibdem, p. 285).
14 Sobre a pedagogia de domínio, Crahay (2007, p. 199) escreve: “se presta a uma economia bem simples: a matéria
a ser assimilada é dividida em unidades de aprendizagem; cada uma é ensinada coletivamente, mas, no fim de cada
unidade, os alunos são submetidos a um teste formativo e se beneficiam, se não forem bem-sucedidos, de
procedimentos corretivos antes de passarem por um segundo teste formativo. Em princípio, o professor não avança
para a unidade seguinte sem que a unidade em estudo tenha sido dominada por todos.”
54
Para tanto, é preciso que o professor disponha de meios para recolher informações,
interpretar as respostas dos alunos, especialmente analisando os erros deles e adequar o ensino
ulterior em função da interpretação desses resultados.
Por intermédio de estudos comparativos, o autor aponta para a eficácia dos feedbacks
para os alunos com relação ao seu desempenho nos testes formativos, mencionando que a revisão
da literatura “sugere que a maioria dos alunos é capaz de regular a sua aprendizagem” e que “é
inútil investir em pesados procedimentos de individualização; são de fraca eficácia nos alunos
dos níveis primário e secundário.” (CRAHAY, 2002, p. 395).
A ideia de feedback utilizada pelo autor, que foca a responsabilização do aluno pelo seu
próprio aprendizado, coincide com a nossa perspectiva teórica embasada na Psicanálise e
apresentada no trabalho “Deficiência mental e discurso pedagógico contemporâneo” (CIRILO,
2008, p. 72), ocasião em que escrevíamos: “Se a psicologia comportamental pretende ser a
ciência da conduta, armando seu arcabouço teórico sobre o predomínio da consciência e da
vontade, a psicanálise introduz o reverso desse modelo, apontando o quilate das manifestações
do inconsciente, o que equivaleria dizer que o deficiente mental [...] teria parcela de
responsabilidade, no sentido de dar contribuição, na sua própria debilidade.” Explicitar para o
aluno nessa condição suas habilidades e os limites do seu raciocínio (dar-lhe feedback) já seria
um bom começo para responsabilizá-lo pelo seu aprendizado ou por uma posição de
desconhecimento.
Nesse sentido, um teste padronizado como a Provinha Brasil pode vir a ser uma
ferramenta de verificação formal das habilidades de leitura de uma criança suposta com
deficiência intelectual, contribuindo para que o professor apure seus instrumentos de avaliação.
Isso porque, como demonstra a pesquisa de Castro (2007, p. 111) a respeito da avaliação de
alunos com necessidades educacionais especiais, “esses alunos estão submetidos a uma avaliação
informal que até mesmo extrapola a sala de aula, ao serem atribuídas uma série de características
aos pais e definidos rótulos aos alunos em função dessa atribuição.”
De qualquer forma, mesmo dentro de um projeto universal como uma avaliação externa,
o tratamento e análise dos resultados deve ter um olhar apurado que dê conta da singularidade da
situação. Retomamos aqui ideias que esboçamos a respeito da criança com necessidades
educacionais especiais:
As possibilidades que aventamos não se referem aos deficientes mentais no plural ou em geral, mas são práticas que só podem ser construídas a partir do
particular encontro que ocorre dentro de uma sala de aula em que convergem o
aluno e sua história, o professor e sua experiência, a instituição escolar com seus regulamentos, o projeto pedagógico educacional e seus objetivos, as
diretrizes oficiais com suas formas de regulação universal, as expectativas dos
55
pais em relação à aprendizagem de seu filho e a intervenção de outros
educadores ou especialistas com sua pluralidade de visão de mundo. (CIRILO,
2008, p. 91).
Finalmente, no tocante ao resultado da Provinha é importante avaliar, além da produção,
como o aluno demonstra seu raciocínio e quais seus erros, para que o professor possa pesar as
possibilidades de intervenção pedagógica. (CRAHAY, 1999, p. 285 ; CASTRO, 2007, p. 134).
56
Considerações finais
A fim de discutirmos a pertinência da aplicação da Provinha Brasil para aluno com
necessidades educacionais especiais, partimos de uma pergunta focada no indivíduo. Na medida
em que fomos desenvolvendo o tema, nos deparamos com uma realidade multifacetada,
controversa e complexa que envolve o tema da alfabetização e da avaliação, colocando em pauta
as concepções do professor, o trabalho da equipe de direção escolar, os princípios e diretrizes do
sistema de ensino e, por conseguinte, a abordagem conceitual sustentada pelos documentos
oficiais de âmbito federal com respaldo da academia.
Chegamos a conjeturar que parcela do insucesso dos estudantes no processo de
alfabetização tem implicações ideológicas, na medida em que os programas de formação de
professores alfabetizadores pendem para esta ou aquela concepção sobre o sistema de escrita
alfabética e acerca do ensino da língua materna, o que nem sempre chega à ponta final – o
professor – com a mesma presteza com que são substituídas ou incrementadas nos programas
oficiais.
Por outro lado, também sugerimos que as divergências político-partidárias entre
municípios, estados e a União obstaculizam o debate das concepções dentro dos sistemas de
ensino, de forma que se possa alinhavá-las com as matrizes de referências das avaliações
externas, fenômeno que estamos chamando de implicações políticas do processo de
alfabetização.
Pareceu-nos, então, que ausência de um debate acerca dos dois temas no interior dos
sistemas de ensino, motivado pelos condicionantes políticos-ideológicos mencionados, cria uma
permanente tensão do lado dos professores, acabando em distorções conceituais quando não em
lacunas de ensino.
No tocante à avaliação, a análise dos dados da escola JIF demonstrou que não é um tema
que foi devidamente apropriado pelas equipes gestoras das escolas deste sistema de ensino, e que
no caso da Provinha Brasil a sua aplicação responde, em grande medida, a um propósito
burocrático. Nessa direção, os embaraços em se avaliar a aprendizagem do conjunto dos alunos
são potencializados quando se trata de avaliar o conhecimento adquirido pelo aluno com
deficiência ou transtorno global do desenvolvimento quando apresenta necessidades
educacionais especiais.
57
Além disso, a análise dos resultados da aluna suposta com deficiência intelectual permite
pensar que uma avaliação padronizada em larga escala nos moldes da Provinha Brasil pode vir a
ser uma ferramenta para fazer frente à costumeira avaliação informal a que a criança com
deficiência está submetida, e cuja ancoragem está na subjetividade de critérios extraídos do
comportamento, das relações familiares e das manifestações orgânicas e não propriamente na
aprendizagem dos componentes curriculares.
Por último, a apropriação por parte do professor de toda a gama de possibilidades e ações
que um instrumento de avaliação como a Provinha Brasil disponibiliza, requer uma nova relação
com a produção de saber que já havíamos designado (CIRILO, 2008) por implicação. Tal
postura viria na forma de uma descoberta, que propiciasse que o professor se desapegasse de
métodos pedagógicos generalizantes, que no mais das vezes o demitem de seu lugar de autor, e
se dispusesse a adotar uma postura investigativa a respeito dos processos de aprendizagem dos
seus alunos.
58
Referências
AFONSO, A. J. Avaliação educacional: regulação e emancipação. São Paulo: Cortez, 2005.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Programa de
Formação de Professores Alfabetizadores, 2001. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/apres.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2012.
______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Programa de Formação
de Professores Alfabetizadores: Guia do Formador, módulo 1, 2001b. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/guia_for_1.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2012.
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