Mário Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    MRIO CESARINY DE VASCONCELOS

    POESIA( 1 9 4 4 - 1 9 5 5 )A POESIA CIVIL DISCURSO SOBRE A REABILI-

    TAO DO REAL QUOTIDIANO PENA CAPI-

    TAL MANUAL DE PRESTIDIGITAO ESTADO

    SEGUNDO ALGUNS MITOS MAIORES ALGUNSMITOS MENORES PROPOSTOS CIRCULAO

    PELO AUTOR

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    P O E S I A

    Desenho pena de Joo Rodrigues

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    POESIA CIVIL

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    P R L O G O

    Um tempo havia

    muito feliz

    em que eu pediaao cu raiz

    A terra era

    julgava eu

    sala de esperacarinho meu

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    Nossa Senhora

    do Ma Ladro

    chegada a horada coroao

    Agrilhoado

    antes, depois

    chorei dobrado

    por ns os dois

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    PR L O G O

    Pelo caminho verde vem Maria

    A dos seios de rosa a dos olhos de me.

    Pelo caminho sbrio vem

    Maria

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    PR L O G O

    O jogral do cu

    riscou uma estrela no manto judeu

    E o milagre veio

    sem perdo nenhum sem forma sem meio

    Sobre a palha loura

    caiu o menino de Nossa Senhora

    Menino perfeito

    com fomes e prantos, com raivas e peito

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    /

    Ceclia pediu o cuNossa Senhora no

    Teresa pediu as dores

    Nossa Senhora no

    Ins falou ao Senhor

    Nossa Senhora no

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    Helena morreu no circo

    Joana fugiu de casaKuth cortou os cabelos

    Nossa Senhora no

    Senhora por humildadeNossa por submisso

    Madalena teve um filho

    Nossa Senhora no

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    Para que houvesse altar

    para nascer figura

    para o galo cantar

    noite escura

    Aquelaque em vida

    foi desapossada

    foi morta

    descida

    crucificada

    e ao terceiro dia

    no foi nada

    2

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    III

    E uma vez

    uma vez sNossa Senhora desesperou

    AH ... Ah .. . A H . . .

    Mas Nossa Senhora decncia

    claridade

    pureza

    maternidade

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    Na revolta que teve

    no durou Desapareceu

    na poalha do cu

    E assim que ela passa

    no andor

    Nossa Senhora do Exterior

    A que ficou no fundo

    a que no foi

    s ao poeta doi

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    IV

    Alta, seroal,

    na tarde canora

    vai Nossa Senhora

    pelo meloal

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    A ver o melo

    que se h-de comer

    se Jesus quiser antes da Paixo

    E quer dos maiores

    e procuram bem

    os olhos de me

    quebrados de dores

    Cu da Galileia

    que a viste furtar ;

    brisa, que ao passar

    na tnica feia

    No tiveste enleio

    nem religio

    que a coroao

    depois que veio

    Foi Nossa Senhora

    que est no altar

    sem poder andar

    livre como outrora

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    Quem ali sagrou

    para os filhos teus

    os pecados nossosa terra e os ossos

    do corpo de Deus

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    /. N. R. /.

    V

    Sobre a cruz o ergueram.

    Assim ele veio ao mundo.

    Pedro Paulo Simo

    Sobre a cruz o ergueram.

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    Cnticos de guerreiros

    (Pedro Paulo Simo)

    dios de velhos monges

    (assim ele veio ao mundo)

    Sobre a cruz o ergueram

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    VI

    Junto do rio cantam os galos

    de Jerusalm enquanto amanhece.

    Na relvagem os dorsos dos cavalos

    com uma nuds que entontece

    esperam a hora de amarr-los

    lida, me fulva do campo

    agora, numa estrela, todo branco

    e sbrio, enquanto cantam galos

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    v i l

    Nossa Senhora morreu

    hora da missa. Ningum percebeu.

    E o mundo que ela tanto amou

    no teve uma lgrima s!

    Mas soaram acordes finais

    quando ela, de morta, passou

    com crios de estrelas reais

    nos ps ainda sujos de p

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    Est agora mais perto do cu

    sem l ter entrado, porm.

    E pede, com o rosto seu

    naquele menino judeu,

    que oremos por ela tambm

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    NICOLAU CANSADO ESCRITOR

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    Nota do Fiel Depositrio

    Perdida, entre tanta outra coisa que se perdeu roda de 1944,

    a biografia de Nicolau Cansado moldada em verso jmbico por

    Papua de Arrebol; sumida com este nas ruas do Cais do Sodr

    a documentao para a descascagem ontolgica de um ser a todos os ttulos raro na literatura e na vida; inglriamente perdida tam

    bm a obra em prosa do autor do A TI (a qual nunca vi mas disse

    ram, em 1945, ser ainda melhor que os poem as): restam os versos

    que ora se publicam antecedidos de ntula crtica da incansvel

    polgrafa e companheira do poeta, D. Marlia Palhinha.

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    de Oliveira Guimares, lembra-me ter visto um flio rabiscado pelo

    poeta a quando da sua viagem a Espanha, onde, premido pela sua bem conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher, o mais possvel

    in loco, alguns quadros multmodos da guerra civil espanhola. Tanto

    quanto lembro, e j no lembro muito, tratava-se de um feixe de

    ditirambos ao pobre Federico claramente datados Agosto-Setembro

    de 1943. As numerosas imitaes feitas depois e at tambm l fora,

    deste tema de Cansado, nunca, quanto a mim, faro esquecer a impres

    so deixada pelo Mestre.

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    EM T O R N O D A POESIA D E C A N S A D O

    LISBOA, 1945 Os fortes laos de amizade que desde

    cedo me ligaram a Nicolau Cansado fazem com que seja a

    expensas de uma profunda mgoa que eu deva pr aqui

    uma por assim dizer restrio aos inditos vindos agora a

    lume : eles no sero compreendidos por toda a gente!Com efeito, s uma escassa roda de iniciados na ltima

    fenomenologia potica portuguesa (futurismo, sobrerrea-

    lismo, nervosismo, etc.) poder acolher sem surpresa toda

    a sua mensagem. Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a

    contradio fez a obra. E nisto, como em tudo, apesar de

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    umas coisas esquisitas, umas audcias alis mais brilhantes

    que fecundas, o poeta seguiu a tradio. Tive oportunidade

    de verific-lo ante o desprendimento que muitos homensda rua (eu buscava Cansado nas suas incurses aos ha-

    bitculos do povo) manifestaram pela Fantasia Gram-

    tica e Fuga, por exemplo *. Alguns chegaram mesmo a

    interromper-me nestes termos : (tentava eu explicar-lhes

    a grandeza e a utilidade do poema) : doutor, d cinco

    tostes para uma sopa, que ainda l no fui hoje!! Em

    contrapartida, os literatos tero com que regozijar-se. Esses,

    e mais quem anda a par, sagraro o poeta Cansado como um

    grande incompreendido, uma genial vtima de um meio

    estupefacto.

    *

    Falar do substractum da sua obra para qu ? De certo

    modo, a poesia o real absoluto, j o disse um editor que

    tambm escreve. Atravancador se torna portanto qualquer

    didatismo, e ainda mais no caso de Cansado. Este homem,que abandonou as concepes burguesas sem por isso ter

    * O poema deste ttulo foi perdido pela prpria Marlia Palhinha,

    no tendo aparecido at hoje qualquer cpia. M. C. V.

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    mudado de vida, um artista muito complexo. Formalmente,

    no raro v-lo brincar com as subtis experincias de um

    Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Maiakovsky, e,

    ento, que esplendor pico! Noutros, ainda, deita um olhar

    amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E Cames.

    Conhece a fase ntima. Atravessa a fronteira do religioso.

    E quando desistamos de ver nele qualquer coisa mais do

    que um jogral de prodigiosos recursos, eis que nos ofereceas iluminaes do Heri, do Raio de Luz, do A Ti! Obra

    pequena, sim, mas de tentado alcance e fo rte significado,

    ousando, mesmo, esperar repercusso, eu quero repeti-lo :

    ainda cedo para falar de Nicolau. No faltar, porm,

    gente disposta a acus-lo de ter, ele, o meu santo!, plagiado

    meio mundo e subsistido, como dizer ?, assim. Eternos incom-preensivos.

    Outra coisa : Cansado nunca versou o tema do amor.

    Inapetncia? Excesso de ombridade? Penso que nso. O

    amor , para muitos poetas de hoje, um tema de segunda,

    para no dizer terceira categoria.

    Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Can

    sado, certa vez, me disse. E todos compreendemos.

    MARLIA PALHINHA

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    OS POEMAS

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    Para A. Casais Monteiro

    M IG R A O

    Ah

    no me venham dizer

    ah

    no quero saber

    ah_quem me dera esquecer

    S e incerto que o poema aberto

    e a Palavra flui inesgotvel!

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    A TI

    minha casta esposa

    vais sofrendo ... E eu sofro

    de ver-te sofrer!Espera um pouco! Faamos

    como o caule da rosa

    des-

    fo-

    lhada

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    Nosso convvio triste . A vida, errada.

    S a tortura existe e o poema .

    AhTENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS.

    No queiras ah no queiras vir comigo

    para esta atmosfera

    do caf.

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    HERI

    Do claro sol e dum te atro cheo

    seriam dignas to notveis obras.

    noite, que em, teu seio tenebroso,

    to grandes fe itos de arm as escondeste!

    TOKQUATO TASSO Jeru

    salm Libertada

    Heri o meu nome.

    Meu olhar frio, arguto

    no v coisa que o dome.

    Meu esforo rudo e sano

    no desmaia um minuto.

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    Sou heri todo o ano.

    Quando passar por vs, naturalmente,eom este meu ar simples e no entanto diferente

    e no entanto diferente do ar do resto da gente

    no digais : fulano.

    Dizei : o Heri.

    O heri, simplesmente.

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    REABASTECIMENTO

    Vamos ver o povo.

    Que lindo .

    Vamos ver o povo.

    D c o p.

    Vamos ver o povo.

    Hop-l!

    Vamos ver o povo.

    J est.

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    BRASILEIRA

    Ao Manuel

    O vento no varria as folhas,O vento no varria os frutos,

    O vento no varria as flores ...

    E a minha vida no ficava

    Cada vez mais cheia

    De frutos, de flores, de folhas

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    0 vento no varria as luzes,

    O vento no varria as msicas,

    O vento no varria os aromas ...

    E a minha vida no ficava

    Cada vez mais cheia

    De aromas, de estrelas, de cnticos.

    O vento no varria os sonhos

    E no varria as amizades ...

    O vento no varria as mulheres ...

    E a minha vida no ficava

    Cada vez mais cheia

    De afectos e de mulheres.

    O vento no varria os meses

    E no varria os teus sorrisos ...

    O vento no varria tudo!

    E a minha vida no ficava

    Cada vez mais cheia

    De tudo.

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    LEVE

    Leveo roupo que foste

    e o horror de s-lo

    Leve

    o trao vermelho

    no cabelo

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    Leve

    o em forma de velho

    rosto aflito

    Leve

    o jasmim e a neve

    sobre o rito

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    R U R A L

    Como chove, Cacilda!Como vem a o Inverno, Cacilda!

    Como tu ests, Cacilda!

    Da janela da choa o verde um prato

    que deve ser lavado, Cacilda!

    E o boi, Cacilda!

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    E o ancinho, Cacilda!

    E o arroz a batata o agrio, Cacilda!

    J cozeste?

    Eu logo passo outra vez.

    Em prosa, provvelmente.

    Arrozinho, Cacilda!

    Os melhores anos da nossa vida, lida!

    Ausente.

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    POEMA

    Ao Paulo luard

    Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.

    Deix-lo.Coitadinho.

    Carvo de coque.

    Mat-lo. Devagarinho. L vai ele a reboque.Cavalo.

    Cavalinho.Cavalicoque.

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    RAIO DE LUZ

    Burgueses somos ns todos

    ou ainda menos.

    Burgueses somos ns todosdesde pequenos.

    Burgueses somos ns todos

    literatos.

    Burgueses somos ns todos

    ratos e gatos.

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    Burgueses somos ns todos

    por nossas mos

    Burgueses somos ns todos

    que horror, irmos.

    Burgueses somos ns todos

    desde pequenos.

    Burgueses somos ns todosou ainda menos.

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    UM AUTO PARA JERUSALM(fragmento segundo um conto de luiz pacheco)

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    Personagens, por ordem, de entrada no palco :

    0 Orador

    0 ServoPorteiro

    Matatias, o Sbio Rezingo

    Eleazar, o Intelectual Snobe

    Tobias, o SensatoO Menino Jesus

    0 Homem da Gestapo

    A cena passase num tugrio desmantelado que apresenta

    bem visvel o dstico AcdmicoClube dos Sbios de Je

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    rusalm. Tobias e Matatias usam tnica e compridas bar-

    bas, Eleazar jovem e traja com distino. O Orador veste

    um guardap cinzento, aberto, mangas arregaadas, chapu

    colonial. O Homem da Gestapo aprece numa luxuriosa

    fantasia abundando em, plumas e aknuletos. Capacete ro-

    mano na mo direita. Botas de tenente.

    No proscnio, cadeira e mesa D. Joo V, em cima de um

    estrado, para o Orador. Sobre a rhesa, um grande livro fechado, candeeiro, sineta, e o chapu do Orador. Atrs da

    mesa um vetusto relgio de caixa alta, sem ponteiros.

    O r a d o r saindo ao proscnio Minhas queridas se

    nhoras, estimados senhores : quando o pano cair sobre altima cena do mundo que j rola atrs desta cortina, per-

    cebereis que eu nem sequer chego a representar. Que vos

    aproveite a descoberta! Por expressa vontade do Autor o

    meu papel resume-se a, como se diz?, clarificar tudo o

    que vai passar-se neste palco. Por vezes intervirei tenho

    poderes para isso. Mas nunca directamente : por interposta

    figura. Assim uma coisa grega. Evidentemente, eu, como

    actor, quereria dar mais. Muito mais. Bastante m ais! No

    pde ser.

    >Enfim, quando as coisas no vo pelo caminho dos nossos

    desejos, o melhor que h a fazer levar os nossos desejospelo caminho que as coisas vo tomando, j Parece-nos. (Tira

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    um vasto leno do guardap e amarrao ao pescoo). Vou

    dar incio. (Dirigese sua secretria, sentase, abre o livro,

    faz uma rpida simulao de leitura e encara de novo io

    pblico.) A pea admirvel! (Indica o livro) Est aqui

    toda. Todinha! Uma maravilha. Garanto que nunca vistes

    disto em lado nenhum. certo que os actores vo entrar

    por a com roupas mais excelentes num espectculo de feira

    que no favor da vossa inteligncia. Mas no vos perturbeismuito com isso. tudo um tudo-nada para disfarar. O

    rapazinho que tambm no traz roupa de cristo tambm

    , oh se , para disfarar. (Alteando a voz) E assim que

    est certo porque sem disfarce no h cenas e sem cena

    no h teatro. (Abrese o pano) Ora muito bem : cena j

    ns temos. (Apontando) Um Acadmico-Clube dos Sbios de

    Jerusalm. Secretrias, tocheiras, janela para se poder res

    pirar... (Pe o chapu colonial na cabea). Ora pois;

    era isto no tempo em que os animais falavam;

    Jerusalm estava em festa e os meninos fugiam da com

    panhia dos pais;iam aos magotes para os brejos, berravam entre as silvas

    at vir a noite;

    outros metiam-se pelas veredas, iam para a feira ver os

    cavalinhos.

    Mas este, de que fala o grande livro, no fugira paragozos e arruaas;

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    fora procurar os Doutores.

    Entra o ServoPorteiro trauteando

    uma musicata qualquer. Acende as ve-

    las das trs mesas de estudo que atra-

    vancam o tugrio. A sua entrada inter-

    rompe o Orador, que o fita com cara

    de pouca pacincia.

    O r a d o r P s t! Quero a cena deserta.

    S e r v o - P o r t e ir o Tenho de sair j, meu senhor?

    O r a d o r Sabes muito bem que sim.

    S e r v o - P o r t e ir o J? J? Eu n o d e v i a t e r e n t r a d o .

    O p a n o s u b i a , v i a m - s e a s v e l a s j a c e s a s , e p r o n t o , n i n g u m

    d a v a p e la m in h a f a l t a .

    O r a d o r Ah isso com certeza.

    S e r v o - P o r t e i r o Sou um tolo, um frustre, um facil

    mente dispensvel. No sei ler nem escrever, embora o meuautor me faa falar com certa elegncia.

    O r a d o r Eu sei. As exigncias do estilo. Ests a para

    dar ritmo representao.

    S e r v o - P o r t e i r o Para dar ritmo, pois.

    Breve pausa.

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    O r a d o r Ento? Estamos espera!

    S e r v o - P o r t e i r o aproximandose do Orador Se sou-

    besses que bocados de ideias, que espcies de sentimentos

    fervilharam em mim quando me disseram : Tu fazes o

    Servo-Porteiro, fazes o escravo. Entras, acendes a velnha,

    e de boca bem fechada, tratas de sair. Claro que posso sair,

    sumir-me, no aparecer mais!O r a d o r o m a is c o r re c to .

    S e r v o - P o r t e i r o Escuta. Tu s quem tudo pode e man

    da neste palco enquanto durar a representao da nossa

    misria. Peo-te um acto grande, um acto que altere o curso

    de certos acontecimentos.

    O r a d o r tocando a sineta Peo que tirem este homem daqui para fora!!

    S e r v o - P o r t e i r o Diz-lhes, ao menos, quem sou! Ou

    quem o que fao nesta terra. No, o que fao, no! O que

    s vezes parece que gostaria de querer fazer...

    O r a d o r irado Mau! Eu no tenho o poder que me

    atribuis, no posso adiantar-me ao que est escrito neste

    livro!

    S e r v o -P o r t e i r o caindo aos ps do Orador Era to

    simples! Era to pequenino! Talvez at depois nem fosse

    precisa esta pea!

    O r a d o r Bom, de joelhos, no! Levanta-te, chega de

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    lamrias tolas. Se prometes sair mal lhes diga quem s...

    Mas tens de prometer!

    S e r v o - P o r t e i r o Juro, senhor, juro pela cabea do Pro

    feta!

    O r a d o r Este o Servo-Porteiro da douta Academia

    dos Sbios de Jerusalm. No serve para coisa nenhuma

    a no ser para o que no presta. Nasceu num dia em que

    a Terra se esqueceu de girar em volta do Sol...S e r v o - P o r t e i r o Ainda Moiss no tinha escrito as

    sacras tbuas!

    O r a d o r ...e o homem aproveitou a escurido para

    cometer j no se sabe que horrvel perfdia. Desde ento,

    ficou assim. No sabe quem , desconfia do que pode vir

    a ser e anda meio tonto procura de qualquer coisa. Numa

    palavra: este aquele que tendo sido criado com alma de

    criado assim criado ficou por dentro e por fora.

    S e r v o - P o r t e i r o num salto Mentes, ladro!

    O r a d o r friamente Eu sei que minto. E agora vai

    l para dentro. Ainda no foi a hora da tua verdade.

    O ServoPorteiro retirase desalen-

    tadamente.

    O r a d o r Safa! ia estragando tudo! (Retoma a sua mesa

    e a leitu ra):

    Ora pois ;

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    era isto no tempo em que os animais falavam ;

    e o menino Jesus fugiu mesmo : ia procurar os Doutores ;

    estes reuniam-se todas as tardes nesta cena que aqui vedes ;

    neste horrvel casaro judeu.

    Entra Matatias, o Sbio Rezingo;

    avana majestoso com vrios livros a

    tirorcolo. Vai para a sua secretria edispena para trabalhar.

    O r a d o r sem interrupo Reuniam-se sada dos

    seus empregos cinco horas cinco e meia ;

    e falavam de coisas vrias mas profundas : filosofia, reli

    gio, costumes principalmente costumes ; coisasestas muito acima dos entendimentos vulgares.

    Depois das falas vinham os trabalhos. Preparavam um livro

    obra colectiva a que eles davam suma impor

    tncia.

    Ttulo, ainda no tinham. L mais para o fim se veria ;

    mas era certo tratar-se das cem mais lindas maneiras de

    grafar o hebraico ;

    regras, acordos e apndices.

    M a t a t ia s J esperava isto mesmo. Os meus caros cole

    gas andam sempre atrasados. Depois, no h tempo para

    nada.

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    O r a d o r Matatias, o Sbio Rezingo. Doutor em Lite

    ratura, Crtica e Religies. Empregado nos correios desta

    cidade. Mulher e filhos na mais negra misria. Ligaesduvidosas, mas, no fundo, um excelente corao. s tu?

    M a t a t ia s Discordo de certos pormenores, mas, a trao

    largo, esse o meu retrato. Quem to forneceu?

    O r a d o r Est tudo neste livro, meu caro doutor. A vida

    e a morte, a noite e o dia...

    M a t a t ia s Sim ? Deixa-me ver...

    O r a d o r reconduzindo Matatias Querido Mestre!

    Nunca me perdoaria se, por mero instante que fosse, o

    desviasse de um trabalho que sei notvel e em boa hora

    posto em mos de V. Ex.a!

    M a t a t ia s Compreendo. Provvelmente...O r a d o r E j anteontem, com o sieur Mabuze... Belo

    sindrio. No acha?M a t a t ia s sentandose Muito obrigado. No viu por

    acaso, j, o doutor Tobias? Como diz? (outro tom) O mundo

    est cheio de tolos e os sbios nas mos deles!

    O r a d o r j sua banca Muito bem. Siga a pea!

    Entra Eleazar, o Intelectual Snobe.

    Fala atabalhoadamente e com requinte.

    E l e a z a r

    No ralhes, querido Matatias... Trago-te uma

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    em primeira mo! Calcula tu que Judite, conheces, Judite,

    a fmea pblica, teve o arrojo de ir ao palcio de Herodes

    protestar contra o imposto que acabam de lanar sobre a

    sua gente! (sentase) Ai, deixa-me contar... Foi um pape

    linho! Bateu com as mos, com os ps, com as ancas,

    porta dos ja rdins do palcio, e tanta bulha fez, tanta gente

    juntou, que Herodes apareceu janela do segundo andar e,

    zs! concedeu-lhe audincia!M a t a t ia s sem deixar os alfarrbios Sim ? E depois ?

    E l e a z a r Depois, no sei, s isto... Mas j h quem

    diga que Judite vai vencer Herodes numa batalha de pros

    tituta contra monarca!

    M a t a t ia s E por esses dichotes que te atrasas ?

    E l e a z a r No ralhes, Matatias, eu acho isto to sensa

    cional ! Ningum se atreve a levantar a voz quando Herodes

    est presente, e essa meretriz arrombou-lhe o palcio com

    as ancas! Que nmero para A Voz de Jerusalm! (inspi-

    rado) Vou escrever um poema!

    O r a d o r Eleazar!E l e a z a r Senhor...

    O r a d o r Diz a o p b l i c o q u e m s .

    E l e a z a r Eu, a falar de mim? Pois muito prazer. Sou

    Eleazar, o Intelectual Snobe. Tenho muito geito para abrir

    e fechar as portas por onde os outros entram e saem. (gesto)

    Reveste-me certa distino, atraio bem as mulheres e no

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    me queixo dos homens. Ando a ver se trabalho num jornal,

    A Voz de Jerusalm, escrevi uma tragdia ao gosto persa,

    A Tropa de Jerusalm, e tenho praticamente concludoscinco livros de versos proletrios, O Grito de Jerusalm.

    Mas to difcil publicar nesta terra! O jornalismo, ento,

    um horror! De forma que me decidi a trabalhar com os

    sbios e os filsofos... e aqui estou. So muito mais seguros.

    O r a d o r Eleazar.

    E l e a z a r Senhor.

    O r a d o r Diz com quem vives.

    E l e a z a r Ora. Que interessa isso a estes senhores?

    O r a d o r Interessa tudo muito a estes senhores.

    E l e a z a r Vivo com a minha irm que me sustenta,

    pois estou desempregado. Por enquanto. A ela no lhe custa :

    podre de rica. A nossa casa fica a quatro passos do trono

    de Herodes, na rua dos milionrios de Jerusalm. Mas eu

    detesto os ricos e estou ao lado dos pobres. So to infelizes

    coitadinhos!

    M a t a t ia s Pobres de Jerusalm! Que Messias vir parasalv-los! Cheiram to mal, os desgraados...

    E l e a z a r Mas os mais infelizes de todos ainda so os

    pobres de esprito, no verdade, Mestre?

    M a t a t ia s s um vaidoso, Eleazar! Seria melhor que

    desses conta do muito que h a fazer. Passaste a limpo o

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    propsito 4. do captulo 6 fascculo 2. da nossa grande

    obra?

    E l e a z a r dando um papelinho Aqui est, quase todo.

    (sonhador)'?Fi-lo ontem noite, ao sabor das estrelas e do

    vento do outono... Que cu maravilhoso o nosso, Matatias...

    Faz-nos esquecer a arrogncia dos legionrios de Roma.

    Ah! por falar nisso! Sabes que a minha irm vai casar com

    um fascista desses? A descarada!M a t a t ia s A uma e uma caem as praas fortes que

    outrora defendiam, com alto e so orgulho, o povo do Se

    nhor... Quem o intruso?

    E l e a z a r Um Marco Pncio, ou Marco Estrncio, ou

    l o que . Um Marco qualquer.

    M a t a t ia s Um i g n o r a d o ?E l e a z a r Ah, no. Um convencido. Passa as tardes a

    cacarejar-lhe os Cantos de Salomo.

    M a t a t ia s Que humilhao para a Casa de David!

    E l e a z a r Pois sim, mas ela gosta. J com muita negaa

    lhe pediu o intercmbio: quer ler autores romanos. Petrnio

    antes dos outros...

    M a t a t ia s escrevendo ...............le, como creme.

    E l e a z a r idem A ...............g, como j est.

    M a t a t ia s J ...............t a , c o m o c a p o t a .

    E l e a z a r Til, c o m o p a u - b r a s i l .

    O r a d o r Linda coisa ver trabalhar ! Mas h trabalho

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    que presta e trabalho que no presta. Prestar para alguma

    coisa a trabalheira destes dois doutores? (Entra Tobias

    que vai para a sua mesa sem interromper os doutos colegas).

    Os ltimos sero os primeiros. Quem d aos pobres empresta

    a Zus. Entre seja quem for no se mete o sarrafo. Boa

    noite, Tobias.

    T o b i a s Boa noite.

    O r a d o r E s t iv e s t e p a r a n o v i r .

    T o b i a s Pela terceira vez.

    O r a d o r Fazias mal. Hoje, se desses falta, acabava-se

    a obra... (volta a ler) Ora pois;

    era isto no tempo em que os animais falavam.

    Dizia-se que Herodes, pai de Salom, era um antigo aprecia

    dor de cabease que l nisso era ele como a filha

    servidas no prato todas em cima dos ombros nem uma;

    ora uma vez, no prprio dia que Jesus escolhera para falar

    aos doutores...

    (Batem a uma porta. O Orador entra em grande

    agitao) Respeitvel pblico! Chegou o momento! Chegou

    o grande momento! Oh, se neste teatro houvesse um

    carrilho, uma orquestra de cmara ou at mesmo um

    pfaro, digo-vos que neste momento tocariam msicas, ouvi-

    rieis sinos, assobiavam pfaros! No sabeis porqu? que

    no sabeis porqu? Ora, sabeis muito bem porqu. O menino

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    Jesus vai entrar neste palco! Ele, o filho do homem, ele,

    o nosso amor, ele, a nossa esperana, acaba de bater porta

    deste velho casaro judeu. Bateu porta porque umacriana, no sabe que a porta est aberta! Oh, no haver

    mais luz do que todas as luzes para iluminar a entrada do

    filho do homem! Eleazar! Bateram porta! Matatias! To

    bias! Larguem isso! Faam qualquer coisa! Oh meu Deus!

    (Tira o chapu, limpa o suor da cara e do pescoo e fica

    longo tempo de cara escondida entre as mos).

    T o b i a s sem deixar os alfarrbios Parece que bate

    ram a uma porta.

    M a t a t ia s Tolice.

    E l e a z a r Ouvi bater porta.

    M a t a t ia s No h porta, por que haviam de bater porta que no h?

    T o b i a s Ser o Presidente da Academia? Dizem que

    ele enlouqueceu.

    M a t a t ia s Impossvel. Alm de no haver porta, ele

    no precisa de bater.

    E l e a z a r trmulo E se fosse a polcia de Herodes ?

    M a t a t ia s exasperado Que parvoce, Eleazar! A po

    lcia de Herodes no bate s portas. Arromba-as.

    T o b i a s J tm batido, s para disfarar...

    E l e a z a r aterrado, erguendose Para melhor nos

    levar! ela! (grita) A Gestapo!

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    M a t a ti a s Se , estamos perdidos...

    T o b i a s Desterrados,..

    T o d o s Crucificados!

    M a t a t i a s O Tratado! Ateno ao Tratado!

    Escondem os livros debaixo das

    secretrias. Brevssimo silncio. Fora,

    batem de novo.

    M a t a t ia s m e lh o r i r l v e r.

    T o b i a s No. melhor esperar.

    A voz, fresca, de Jesus, ainda nos

    bastidores: No est ningum nesta

    casa? No aqui que se renem os

    Doutores? No ... (entra e fica um

    pouco confuso vista dos trs homens.

    Mas avana lentamente. Logo atrs,

    seguindoo, farejandoo, vem o ServoPorteiro).

    M a t a t ia s furioso Ora adeus! um garoto!

    T o b i a s No te exaltes, Matatias, Ainda bem que um

    garoto!

    M a t a t ia s repondo as coisas em cima da mesa- M a s

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    quando que ns vamos poder trabalhar!? Em casa de

    Eleazar no podia ser, por causa das bailias. Em minha

    casa, o que se sabe! No chalet do Tobias, foi o que se viu.

    / dramtico, pondo as mos) Eli, Eli, por que nos persegues?

    /Teremos de ir escrever para o deserto?

    T o b i a s O g a r o t o n o f a z m a l a u m a m o sc a. E d e c e r t o

    q u e e s t e e n t r o u a q u i p o r e n g a n o . . .

    J e s u s

    No foi engano, irmos doutores. Eu vim paravos falar.

    E l e a z a r Menino, temos mais que fazer!

    T o b i a s carinhoso Escuta, pequeno. Eu e estes se

    nhores que aqui vs, estamos a escrever um livro de que

    toda a Judeia se orgulhar. So cinco volumes, percebes?,

    cinco graaaaandes volumes onde se explica, grafa e determina a mais linda maneira de falar a nossa lngua. Ora

    Herodes, rei dos judeus, escreve e fala horrivelmente mal

    o hebraico...

    E l e a z a r .. .o aramaico.

    T o b i a s ...e se ele sabe do que estamos fazendo haver

    grande sarilho. De forma que das cinco s sete e meia no

    queremos gente estranha nesta douta Academia.

    E l e a z a r Livre-nos Deus!

    T o b i a s Enquanto no acabarmos esta obra...

    E l e a z a r ...A nossa grande obra.

    T o b i a s " ^ - . . .E tu vais brincar l para fora que para

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    ns continuarmos a labutar pela maior glria de Isel.

    Valeu? V, toma l meio dracma e no maces mais.

    J e s u s sumindo o meio dracma Mas eu preciso falar-vos. Andei lguas para vos falar.

    M a t a t ia s Tobias! Se essa criana no sai imediata

    mente, saio eu. No respeita a velhice, nem a doutorice,

    nem a filosofia, nem o silncio! Saio eu, compreendeis ?

    J e s u s batendo o p Ai, ai, i, ai! deixem-me falar!

    Deixem-me falar ou, com mil diabos, viro-os a todos em

    papagaios! Em papagaios, ouviram?

    E l e a z a r rindo a bandeiras despregadas Em papa ...

    em papa... Ah-ah-ah-ah! J ganhmos para o susto, agora

    para o tabaco! Matatias, ouamos o rapaz... Quanto mais

    no seja ele pode trazer nossa Academia a publicidadede que ela tanto necessita... Olhem-me estas paredes...

    T o b i a s Voto no intervalo. Livros so livros, descanse

    mos um pouco destas matemticas... (anda em volta de

    Jesus) Tantos so os casos maravilhosos e inexplicveis

    que se tm dado na Judeia ... Tantos rumores correm

    anunciando a vinda do Messias, salvador e redentor do

    povo eleito... No vir ele da parte desse que baptisava

    no Jordo? Se o expulsamos, ficaremos livres de um sen

    timento de culpa, para no dizer remorso ?

    E l e a z a r Alm disso, fazamos uma edio especial do

    Dirio de Jerusalm. Imagina que furo! UM GAROTO

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    DESCONHECIDO VAI FALAR AOS DOUTORES!! Isto

    em letra-caixo, cursivo dezasseis. E mais abaixo, para o

    normando sete: ontem, inesperadamente, entrou na Aca

    demia das Cincias, desta cidade, um garoto mal vestido

    que...

    M a t a t ia s Basta, Eleazar, basta! Ouamos o rapaz.

    Antes ele do que tu e creio que no te podes queixar...

    E l e a z a r

    sentandose Pronto.J e s u s Meus irmos...

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    LOUVOR E SIMPLIFICAODE LVARO DE CAMPOS

    ( fr a g m e n t o )

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    H uma hora, h uma hora certa

    que um milho de pessoas est a sair para a rua

    H uma hora desde as sete e meia horas da manhque um milho de pessoas est a sair para a rua

    Estamos no ano da graa de 1946

    em Lisboa a sair para o meio da rua

    Samos? mas sim, samos!

    Samos: seres usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas,

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    gente feliz gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefo

    nistas, varinas, caixeiros desempregadosuns com os outros, uns dentro dos outros

    tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos

    mictrios para apanhar elctricos,

    gente atrasada em relao ao barco para o Barreiro

    que afinal ainda l estava apitando estridentemente,

    gente de luto, normalmente silenciosa

    mas obrigada a falar ao vizinho da frente

    na plataforma veloz do elctrico em marcha,

    gente jovial a acompanhar enterros

    e uma me triste a aceitar dois bolos para a sua menina.

    H uma hora, isto: Lisboa e muito mais.Humanidade cordial, em suma,

    com todas as conseqncias disso mesmo

    e a sair a sair para o meio da rua.

    E agora, neste momento que horas so ?

    a telefonista guarda o baton na mala usa os auscultadoresliga elctricamente Lisboa a Santarm

    e comeou o dia

    o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou qual

    quer coisa

    para comear o dia

    o banqueiro sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou

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    um bocado na famlia

    e comeou o dia

    a varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira

    e comeou o dia

    o desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraa, e imagi

    nou-se banqueiro

    para comear o dia

    e o presidirio, ouvindo a sineta das nove,comeou o seu dia sem dar incio a coisa alguma.

    Agora fumo, trepidao,

    correias volantes de um a outro extremo da fbrica isolada,

    cigarros meio fumados em cinzeiros de prata,

    bater de portas p s! em muitas reparties,uma velha a morrer silenciosamente em plena rua

    e um detido a apanhar porrada embora acreditem nele.

    Agora pranto e pranto

    na bata da., manucure apetitosa do salo Azul.

    Agora, regresso, milhes de anos para trs,

    patas em vez de mos, beios em vez de lbios,crocodilos a rir em corredores bancrios

    apesar das mulheres terem varrido muito bem o cho.

    Agora tudo isto e nada disto

    em plena e indecorosa licenciosidade comercial

    pregando partidas, coando, arruinando, retorcendo o facto

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    atrs dos vidros

    um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre s ordens!(a velha j morreu e no seu leito de morte

    est agora um automvel verdadeiramente aerodinmico

    e a tocar telefonia: and you, and you my darling?)

    H uma hora, Isto! H duas, ISTO!

    E eu?

    Eu, nada. Eu, eu, claro...

    Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)

    e vejo um gato branco janela de um prdio bastante alto

    Penso que a questo esta: a gen te certa gen te sai

    para a rua,

    cansa-se, morre todas as manhs sem proveito nem glria

    e h gatos brancos janela de prdios bastante altos!

    Contudo e j agora penso

    que os gatos so os nicos burgueses

    com quem ainda possvel pactuar vem com tal desprezo esta sociedade capitalista!

    Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...

    No, a probabilidade do dinheiro ainda no estragou intei

    ramente o gato

    mas de gato para cima-nem pensar nisso bom!

    Propalam no sei que nusea, retira-se-me o estmago s

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    de olhar para eles!

    So criaturas, verdade, calcule-se,

    gente sensvel e s vezes boa

    mas to recomplicada, to bielo-cosida, to ininteligvel

    que j conseguem chorar, com certa sinceridade,

    lgrimas cem por cento hipcritas.

    E o certo que ainda tm rapazes de Arte, gente

    que ps a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite foi

    comprar para o cinema

    porque h que ir ao cinema, ele por fora, por amor

    de Deus, ah, no! no! isso no!, no se atravessem

    nesta bilheteira!!

    Vamos estar to bem! Vai tudo ser To Bonito!

    Ah, e quem que v o logro? A quem que isto cheira

    a rano ?

    Porque que a freguesa de Panos Limitada no exige trs

    quartas de cinema

    e sim trs quartas partes pretas de l carneira?Porque que a pianista compra do Alves Redol

    quando est a pensar nas pernas e no peito do louro gal

    yankee?

    E porque raio despede o senhor Director trs humlimos

    empregados

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    quando a verdade que j l vo trs meses e ainda no

    viu um que lhe enchesse as medidas?

    Com certa espcie de solidariedade

    lembro-me de ti, Mrio de S-Cameiro,

    poeta-gato-branco janela de muitos prdios altos

    Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,

    para dizer bravo e bravo, isso mesmo, ta l qual!

    Fizeste bem, viva Mrio!, antes a morte que isto,

    viva Mrio a lanar um golpe de asa e a estatelar-se todo

    c em baixo

    (viva, principalmente, o que no chegaste a saber, mas isso

    j outra histria...)

    E com uma solidariedade muito mais viva

    lembro-me de ti,'meu vizinho de baixo,

    sapateiro-gato-braneo mas no rs-do-cho, desta vez...

    curioso que no te possas suicidar

    s porque a tua janela est ao nvel do mundoe que cantes alegremente de manh noite

    com uma casa de seis andares em cima de ti.

    Tambm tu foste empurrado, tambm te disseram: Fora,

    gato!

    Mas achaste isso quase na tural (e no o , deveras?)

    E agora, guardando em ti todas as tuas grandes qualidades

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    vais vivendo um pouco margem, um pouco no quinto

    andar...

    Deito fora o cigarro que j me sabia a amargo

    e decido-me a andar mas para qu? Mas para onde?

    As lojas esto todas abertas mas nunca se viu coisa to

    fechada

    Ah! heris do trabalho, que coisas raras fazeis!No sou um proletrio v-se logo

    mas odeio cordialmente a gataria

    e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoolgico me atraem

    quanto mais estes! E aqui que comea o embrglio...

    0 pouco amor que eu tive burguesia

    deixei-o todo numa casa de passe

    quando me perguntaram: quer assim? Ou assim?

    E agora, era fatal, falto ao escritrio,

    falto ao escritrio, pontualmente, todas as manhs.

    Mas vejamos, minha alma, se podes, arrumemos

    um pouco a casa escura que te deram. -

    Eu

    estudei msica, como toda a gente

    (ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)

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    No. Por aqui no nos entenderemos.

    Estudemos outro papel. Outro fim. Outras msicas.

    Recomecemos: Um:

    Estes versos no querem de modo algum ser versos

    porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer

    versos versos

    est em muito maus lenis(este o primeiro artigo da minha constituio)

    Segundo:

    Apesar de tudo, sa para a rua com bastante naturalidade

    e que vi eu? Que isto? (E que esperava eu ver?)

    Terceiro:

    (E aqui comea, talvez, o desembrglio)

    vi tambm um vapor que ia para o Barreiro

    e tive pena de no ir com ele

    mas no sou um proletrio (no, ainda no)

    e atravessar a nado quem que disse que pode?

    Fiquei-me a v-lo: primeiro junto ao cais

    com um certo ar simptico de proletrio dos mares

    e apinhado de gente tanta espcie dela!

    Depois a meio do rio, destacado e ntido,

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    depois um ponto vago no horizonte ( minha angstia!)

    ponto cada vez mais vago no horizonte

    e de repente, ao virar uma esquina, j depois de outraesquina,

    vejo uma nova espcie de enforcado

    um homem novo em cima de um escadote

    a colar afixar cartazes deste gnero:

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    D I S C U R S O

    SOBRE A REABILITAO

    DO REAL QUOTIDIANO

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    DISCURSO

    1

    Quando aqueles que chegavam

    olhavam os que partiam

    os que partiam choravam

    os que ficavam sorriam

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    I I

    Como a vida sem caderneta

    como a folha lisa da janela

    como a cadela violeta ou a violenta cadela?

    Como o estar egpcio e mudado

    no salo do navio de espelhos

    como o nunca ter embarcado

    ou s ter embarcado com velhos

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    Como ter-te procurado tanto

    que haja qualquer coisa quebradacomo percorrer uma estrada

    com memrias a cada canto

    Como os lbios prendem o copo

    como o copo prende a tua mo

    como se o nosso louco amor loucoestivesse cheio de razo

    E como se a vida fosse o foco

    de um bao, lento projector

    e ns dois ainda fssemos poucopara uma tempestade de cor

    Um ao outro nos fssemos pouco

    meu amor meu amor meu amor

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    I II

    No pas no pas no pas onde os homens

    so s at ao joelho

    e o joelho que bom s at ilharga

    conto os meus dias tangerinas brancas

    e vejo a noite Cadillac obscenoa rondar os meus dias tangerinas brancas

    para um passeio na estrada Cadillac obsceno

    E no pas no pas e no pas pas

    onde as lindas lindas raparigas so s at ao pescoo

    e o pescoo que bom s at ao artelho

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    ao passo que o artelho, de propores mais nobres,

    chega a atingir o crebro e as flores da cabea,recordo os meus amores liames indestrutveis

    e vejo uma panplia cidad do mundo

    a dormir nos meus braos liames indestrutveis

    para que eu escreva com ela s at ilharga

    a grande histria do amor s at ao pescoo

    E no pas no pas que engraado no pas

    onde o poeta o poeta s at plume

    e a plume que bom s at ao fantasma

    ao passo que o fantasma ora a est

    no outro seno a divina criana (prometida)uso os meus olhos grandes bons e abertos

    e vejo a noite (on ne passe pas)

    Diz que grandeza de alma. Honestos porque.

    Calafetagem por motivo de obras.

    relativamente queda de gua

    e j agora h muito no doutra maneira

    no pas onde os homens so s at ao joelho

    e o joelho que bom est to barato

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    IV

    A velha que vende bananas

    o velho roxo de calor

    o rapaz que grita sacanas

    dem-me um pouco de amor

    A outra viagem por mar

    o jovem que j livreiroa camionete a esmagar

    o tmulo de S-Carneiro

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    0 sapato branco do ru

    a imobilidade do rato

    que ri a ala esquerda do hidro

    A mo erecta contra o cu

    o cu de sbito contracto

    a gua a morte a mosca o vidro

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    V

    Falta por aqui uma grande razo

    uma razo que no seja s uma palavra

    ou um corao

    ou um meneio de cabeas aps o regozijo

    ou um risco na mo

    ou um co

    ou um brao para a histria

    da imaginao

    Podemos pois est clarotransferir-nos

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    e imaginar durante um quarto de hora

    os sculos que viro os sculos um

    e dois

    da colonizao

    depois

    este cair na madrugada ardente

    na madrugada de constantemente

    sem sol

    e sem arpo

    Faltas tu faltas tu

    falta que te completemou destruam

    no da maneira rilkeana vigilante mortal solcita e

    obrigada

    no, de nenhuma maneira resultante!

    Nem mesmo o amor

    no o amor que falta

    falta uma grande realmente razo

    apenas entrevista durante as negociaes

    oclusa na operao do fuzilamento cantante

    rodoviria na chama dos esforos hercleos

    morta no corpo a corpo do ismo contra ismo

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Falta uma flor

    mas antes de arrancada

    Falta, Lautramont, no s que todo o figo coma

    o seu burro

    mas que todos os burros se comam a si mesmos

    e que todos os amores palavras propenses sistemasde palavras e de propenses

    se comam a si mesmos

    muitas horas por dia at de manh cedo

    at que s reste o a o b e o c das coisas

    para o espanto dos parvos

    que alis no esto a mais

    Isso eu o espero

    e o fao

    junto imagem da

    criana morta

    depois que Pablo Picasso devorou o seu figo

    sobre o cadver dela

    e longas filas de bandeiras esperam

    devorar Picasso

    que perto da criana, ao lado da boca minha.

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    V I

    Afinal o que importa no a literaturanem a crtica de arte nem a cmara escura

    Afinal o que importa no bem o negcionem o ter dinheiro ao lado de ter horas de cio

    Afinal o que importa no ser novo e galante

    ele h tanta maneira de compor uma estante

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    Afinal o que importa no ter medo : fechar os olhos

    frente ao precipcioe cair verticalmente no vcio

    No verdade rapaz? E amanh h bola

    antes de haver cinema madame blanche e parola

    Que afinal o que importa no haver gente com fome

    porque assim como assim ainda h muita gente que come

    Que afinal o que importa no ter medo

    de chamar o gerente e dizer muito alto ao p de muita

    gente :Gerente! Este leite est azedo!

    Que afinal o que importa pr ao alto a gola do peludo

    sada da pastelaria, e l fora ah, l fo ra ! rir

    de tudo

    No riso admirvel de quem sabe e gosta

    ter lavados e muitos dentes brancos mostra

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    VII

    Queria de ti um pas de bondade e de bruma

    queria de ti o mar de uma rosa de espuma

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    vm

    Um grande utenslio de amor

    meia laranja de alegria

    dez toneladas de suorum minuto de geometria

    Quatro rimas sem corao

    dois desastres sem novidade

    um preto que vai para o serto

    um branco que vem cidade

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Uma meia-tinta no sol

    cinco dias de angstia no foroo cigarro a descer o paiol

    a trepanao do touro

    Mil bocas a ver e a contar

    uma altura de fazer turismo

    um arranha-cus a ripar

    meia quarta de cristianismo

    Uma prancha sem porta sem escada

    um grifo nas linhas da mo

    uma ibria muito desgraadaum rocio de solido.

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    IX

    E preciso correr preciso ligar preciso sorrir

    preciso suor

    preciso ser livre preciso ser fcil preciso a

    roda o fogo de artifcio

    preciso o demnio ainda corpulento

    preciso a rosa sob o cavalinho

    preciso o revlver de um s tiro na boca

    preciso o amor de repente de graa

    preciso a relva de bichos ignotose o lago preciso digam que preciso

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    no falem mais logo mais noite mais nunca

    depois sim mas no preciso preciso preciso comprar movimentar comrcio

    preciso ter feira nas vrtebras todas

    preciso o fato preciso a vida

    da mulher-cadver at de manh

    preciso um risco na boca do pobre

    para averiguar de como que eles entram

    preciso a mquina a quatro mil vltios

    preciso a ponte rolante no espao

    preciso o porco preciso a valsa

    o estrdulo o roxo o palavro de costas

    preciso uma vista para ver sem perfumee outra menos vista para olhar em silncio

    preciso o logro a infncia depressa

    o peso de um homem demais aqui

    preciso a faca preciso o touro

    preciso o mido despenhado no tnel

    preciso foras para a hemoptise

    preciso a mosca um por cento domstica

    6 preciso o brao coberto de espuma

    a luz o grito o grande olho gelado

    10 preciso gente para a debandada preciso o raio a cabea o trovo

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    a rua a memria a panplia das rvores

    preciso a chuva para correres ainda preciso ainda que caias de borco

    na cama no choro no rogo na treva

    precisa a treva para ficar um verme

    roendo cidades de trapo sem pernas

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X

    As linhas os carros

    aerodinmicos

    a nuvem cinzenta

    por cima de mim

    a sapateirinha

    noiva de trs

    o jovem operriopresa de mil

    o salto que dei

    galgando o passeio

    o lpis mido

    no bolso de trs

    os versos que fao

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    sem grande alegria

    a voz dos amigos

    amigos amigos

    negcios parte

    sempre (qualquer dia)

    me daro alento

    Bem vem penseique a coisa era outra

    desculpa sou jovem

    tenho incongruncias

    Pensei... bem, pensei

    em vida que o fosse

    no deu resultado

    no d resultado

    Amigos, dizei,

    deu-vos resultado?

    Resultado o qu?

    Abrir a barragem

    vazar a dispensa

    brincar ao heri

    ou ser heri mesmo

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Heri? Heri como?

    Pois . Sou novato

    no tenho experincia

    J disse : pensei

    que fosse possvel

    mas pronto. Acabou.

    Juro envelhecer!

    enforcados

    o tempo passa

    o tempo passa

    que desgraa!

    Passa nada, amigos!

    A nica coisa que passa

    o publicista Azeredo

    que chauffeur de praa

    Paragem. Aprto.

    Vai isso? Vai isso?

    Vai mal, obrigado.

    Palestras? Pois sim,

    entrego depois ...

    E o que que ?Ah, isso, veremos.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Cinema. Teatro.

    Poesia, talvez.Bem, bem ...

    Bom, bom ...

    Sade.

    Adeus.

    Aperto. Partida.

    Fico no meu stio.

    L vem o elctrico

    amarelssimo.

    As ruas as casasde zincogravura

    os barcos que saem

    a barra que eu vejo

    o freio nos dentes

    do burro inocenteo forte em Monsanto

    o santo em Monforte

    o homem que fraco

    o homem que forte

    sempre (qualquer dia)

    me daro alento.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X I

    Hoje, dia de todos os demnios

    irei ao cemitrio onde repousa S-Carneiro

    a gente s vezes esquece a dor dos outros

    o trabalho dos outros o coval

    dos outros

    Ora este foi dos tais a quem no deram passaporte

    de forma que embarcou clandestinoN tinha poltica tinha fsica

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    mas nem assim o passaram

    E quando a coisa estava a ir a maistzzt... uma poo de estrienina

    deu-lhe a molesa ... foi dormir

    Preferiu umas dores parece que no lado esquerdo

    da alma

    Uns disparates com as pernas na hora apaziguadora.

    Heri sua maneira recusou-se

    a beber o ptrio mijo

    Deu a mo ao Antero, foi-se e pronto.

    Desembarcou como tinha embarcado :

    Sem Jeito Para o Negcio

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X II

    Estou muito zangado

    tudo isto cheira a trapo e a ervanria

    tudo isto cheira a hera para esttuas lricas e eu nasciem perfeitas condies de trabalho

    que fazer? que fazer?

    a oxidao seria um escndalo gigante

    um brao de cristal servindo de sirene

    s aves trpegas de tanta msica grtis

    Nem os teus olhos nem o teu cabelo

    8113

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    me tiram hoje deste vento de cinzas

    armazm de retm de sofistas menoreslata de tinta de borrar a vida

    enquanto no chega a mo definidora

    Zangado muito zangado

    o vento alisa as frinchas do organizado

    anoitecer geral

    e a morte ronda perto

    prxima como nunca da garganta dos lobos

    Vamos crianas para a cova espigar um rato cinzentovamos cessando connosco todo o murmrio

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X I I I

    Pequeno tambor orgia modesta

    o lago tranqilo a descolorao

    tintura de brancos e verdes floresta

    o lago tranqilo a prostituio

    candura doura nos olhos em festa

    mo no corao

    A bola de vidro rola vis-a-vis

    com as flores que altas so no jardim.

    H justos e rprobos porque o senhor quisvingar-se de ns porque sim

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X V

    Eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa)

    num caf da baixa por ser incapaz coitados deles

    de escrever os meus versos sem realizar de facto

    neles, e volta sua, a minha prpria unidade

    fumar, quere-se dizer.

    Esta, que no brilhante, que ningum esperavaver num livro com versos. Pois verdade. Denota

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    a minha essencial falta de higiene (no de tabaco)

    e uma ausncia de escrpulo (no de dinheiro) notvel.

    O Armando, que escreve minha frente

    o seu dele poema, fuma tambm.

    Fumamos como perdidos escrevemos perdidamente

    e nenhuma posio no mundo (me parece) mais altamais espantosa e violenta incompatvel e reeonfortvel

    do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros

    (excepto coisas como vergonha, naturalmente,

    e mortalhas)

    (Que se saiba) esta a primeira vezque um poeta escreve to baixq (ao nvel das priscas dos

    outros)

    Aqui, e em parte mais nenhuma, que cintila o tal condi-

    cionalismo

    de que h tanto se fala e se dispe

    discretamente (como quem as apanha).

    Sirva tudo de lio aos presentes e futuros

    nas tamnidas (vrias) da poesia local

    Antes andar por a relativamente farto

    antes para tabaco que para Cesariny(Mrio) de Vasconcelos

    117

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X V I

    Uma corda. Uma garganta.

    Duas dores. 0 Infinito.Um irmo que chora. Uma me que canta.

    E uma noiva que diz ai que eu grito.

    Um soluo uma noite uma aurora

    Uma mesa um suicida esquisito.

    Um irmo que sai porta fora

    Um menino que compra um apito.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Uma senhoria irritada

    Dois odores a gato pingado.

    Uma noiva inconformada, coitada.

    Uma mala muito bem fechada.

    Um quarto de novo alugado.

    Uma me que sorri. Algum que ama

    um corpo quente que nem qu.Uma rua cheia de lama.

    Uma noiva que sabe porqu.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X V II

    Ia muito bem a guiar o automvel

    quando ao fazer a mudana (necessria?)

    tudo mudou muito mais do que esperava:

    o automvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo

    e ela aflio! passou a ser apenas

    um busto fora do caixote fechadoe a dar manivela muito depressa ...

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    A rua era comprida? perguntou a que tambm estava

    quo contou de repente que com ela era assim:

    uma escada para o alto, que nunca mais acabava...Tambm havia quem viajasse muito

    todas as noites, e no mesmo sentido.

    lstava esse muito carsado, pois com os comboios normais

    basta no querer e pronto, mas se sonhono h manobra possvel, tem de se ir mesmo.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X V III

    hora X, no Caf Portugal

    mesa Z, sempre a mesma cena :uma toupeira ergue a mozinha e acena ...

    Dois picapaus querelam, muito entusiasmados :

    que a dita dura dura que no dura

    a dita dita dura dura desdita!

    Um pssaro cantor diz que isto assim penae um senhor avestruz engole ovos estrelados

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X IX

    A noite como um prego a noite loucaa noite com rvores na boca

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X X

    Arrumaram-se luz de um candeeiro

    a recolher esmolas.

    Mas quem passa, passa. Nem sempre h dinheiro.

    assim mesmo!... Bolas!

    No fazem pena. No fazem coisa alguma.

    Esto ali.

    Ela, tem a boca cheia de espuma

    e ele, cego, sorri.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    X X I

    E em toda a parte

    o sexo feminino estadista e general

    extra-strong e super-cream

    procura uma sada em caso de acidente

    mortal

    em toda a parteduplicaes de indivduos estranhos

    esperam indicaes teis com o auscultador no ouvido

    enquanto cinqenta anos de vida missionria

    fazem descer o preo do caf que tomamos

    com o vesturio em chamas

    em toda a parte

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    aparece a palavra Napoleo

    no cotovelo de indivduos portadoresdas mais recentes leis da maternidade

    tanto para senhoras como para os rapazes em toda a parte

    um mendigo dactilgrafo corta fiambre

    para a edificao da grande rvore

    enquanto o marinheiro limpa a sua unha

    em toda a parte

    e um crocodilo que nasceu de costas

    aguarda assim a deciso injusta dos tribunais competentes

    de toda a parte.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    POEMA

    PODENDO SERVIR DE POSFCIO

    Ruas onde o perigo evidente

    braos verdes de prticas ocultas

    duendes

    barcos de silncio que atravancamcadveres tona de gua

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    girassis

    e um corpo

    um corpo para cortar as lmpadas do dia

    um corpo para descer uma paisagem de aves

    para ir de manh cedo e voltar muito tarde

    rodeado de anes e de campos de lilases

    um corpo para cobrir a tua ausncia

    como uma colchaum talher

    um perfume

    Isto ou o seu contrrio, mas de certa maneira hiante

    e com muita gente volta a ver o que

    isto ou uma populao de sessenta mil almas devorando

    almofadas escarlates a caminho do mar

    e que chegam

    ao crepsculo

    encostados aos submarinos

    isto ou um torso desalojado de um versoe cuja morte o orgulho de todos

    plida cidade construda

    como uma febre entre dois patamares!

    Vamos distribuir ao domiclio

    terra para encher candelabros

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    leitos de fumo para amantes erectos

    tabuinhas com palavras interditas uma mulher para este que est quase a perder o gosto

    vida tome l

    dois netos para essa velha a no fim da fila no temos

    mais

    saquear o museu dar diadema ao mundo e depois obrigar

    a repor no mesmo stio

    e para ti e para mim, assentes num espao til,

    veneno para entornar nos olhos do gigante

    Isto ou um rosto um rosto solitrio como barco em demanda

    de vento calmo para a noitese ns somos areia que se filtre

    a um vento dbil entre arbustos pintados

    se um propsito deVe atingir a sua margem como as cor

    rentes da te rra nufragos e tempestade

    se o homem das penses e das hospedarias levanta a sua

    fronte de cratera molhada

    se na rua o sol brilha como nunca

    se por um minuto

    vale a pena

    esperar

    isto ou a alegria igual simples forma de um pulsoaceso entre a folhagem das mais altas lmpadas

    129

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    isto ou a alegria dita o avio de cartas

    entrada pela janela sada pelo telhado

    Ah mas ento a pirmide existe?

    Ah mas e ento a pirmide diz coisas?

    Ento a pirmide o segredo de cada um com o mundo?

    Sim meu amor a pirmide existe

    a pirmide diz muitssimas coisas

    a pirmide a arte de bailar em silncio

    e em todo o caso

    h praas onde esculpir um lrio

    zonas subtis de propagao do azul

    gestos sem dono barcos sob as flores

    uma cano para ouvir-te chegar

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    PENA CAPITAL

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    NOTCIA

    Enquanto trs camelos invadiam o aeroporto do Cairo

    e o pessoal de terra loucamente tentava apanhar

    os animais

    eu limpava as minhas unhas

    quando acabava de ser identificada a casa onde viveuMiguel Cervantes, em Alcal de Henares

    eu saa para o campo com Rufino Tamayo

    enquanto um portugus vivia trinta anos com uma bala

    alojada num pulmo

    chegava eu ao conhecimento das coisas

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Agora j no h braseiros os destroos foram

    removidos

    os animais espantaram-see como se isso no fosse desde j um admirvel e sur

    preendente esforo na nossa aco de escritores

    afogado num poo canta um homem

    ORADOUR- SU R- GLANE

    Gritos brancos gritos pardos gritos pretos

    no mais haver braseiros os destroos foram

    removidos

    E no esquecendo o esforo daquele outro

    que para aquecer o ambiente apareceu morto

    e no enviou convite nem notcia a ningum

    Mundo mundo vasto mundo

    (Carlos Drummond de Andrade)

    os conspiradores conspiram

    os transpiradores transpiram

    os transformadores aspiram

    e Deus acolhe tudo num grande cesto especial

    136

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    A lei da gravidade dos teus olhos, me,

    a lei da gravidade aqui est um poeta

    num barco a gasolina no no no um operriocom um martelo na mo muito depressa

    os automveis passam o rapazio grita

    o criado serve (se no servisse morria)

    os olhos em vo rebentam a pessoa levantou-se

    tantas crianas meu Deus l vai o meu amor

    Tambm ele passou trezentas vezes a rampa

    que estranhas coisas passaram os poetas que

    sabem

    construo construoprogresso no transporte

    ORADOUR- SU R - GLANE

    Souviens-toi

    REMEMBER

    137

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    H O M E N A G E M A CESRIO VERDE

    Aos ps do burro que olhava para o mar

    depois do bolo-rei comeram-se sardinhas

    com as sardinhas um pouco de goiabada

    e depois do pudim, para um ltimo cigarro

    um feijo branco em sangue e rolas cozidas

    138

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Pouco depois, cada qual procurou

    com cada um o poente que convinha.

    Chegou a noite e foram todos para casa ler CesrioVerde

    que ainda h passeios ainda h poetas c no pas!

    139

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    V IN T E Q U A D R A S P A R A U M D D

    Eu estou presente

    todo eu sou sim

    e de repente

    no dou por mim!

    Um bom vazio

    me vem encher

    (nem sinto o frio

    de me no ver)

    140

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Heris antigos

    olhos cientespassam amigos

    dizem parentes

    Passam os manes

    do eternal

    e os ademanes

    do amoral

    Passam aqueles

    com os aquelas

    tanto sou deles

    quanto sou delas

    Sou de ningum

    estou em olvido

    e mais despidoque Pedro Sem

    Coloraes

    Trigos e joios

    Caem avies?Chegam comboios.

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Os tristes olham

    o escasso cais

    que as ondas molham

    (gua demais ...)

    Os brios, esses

    passam de largo

    Ai S-Carneiro

    Carneiro amargo

    Praas pequenas

    como alapes.

    So os cinemas?Sero ladres?

    E eu que no puxo

    cabo ou comeo

    moderno bruxoolho; arrefeo.

    Esfriei a rua

    das Grandes Dores

    fritei-lhe a lua

    raspei-lhe as flores

    142

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    141/358

    Fui-me de lata

    sangrenta escura

    patrc ia pata

    da dita dura

    Esfriei-lhe o jeito

    de assassinar

    comi-lhe o peito

    mais pulmonar

    Esfriei as frentes

    esfriei as trazes

    fiquei sem dentesmerda, rapazes!

    Gritar no grito

    esperar demora.

    Viva o infinito!Ora, ora, ora.

    Altas, morenas,

    com janeles

    boas pequenas

    estas prises!

    143

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Do l por dentro

    gozos astrais.Anda-se menos

    pensa-se mais.

    burguesinhos

    que quereis fazerque heis-de fazer

    queridos vizinhos?

    Sabeis lutar?Sabeis perder?

    Viver? Morrer?

    Que heis-de fazer?

    Eu que no puxocabo ou comeo

    fluxo... defluxo... e

    no sei. Nem peo.

    E multido

    contente e s

    eles que so

    e eu que estou

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    143/358

    apenas vejo

    como se ouvisseum negro harpejo

    que nem florisse

    Pois no que vi

    no ver que he eu estou ali

    no estando l.

    10 145

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    144/358

    P A R A D A

    Com um grande termmetro no chapu

    e um certo ar marcial de gnero equidistante

    todos sairam hoje das suas casas na duna

    para a rua a soprar o vento que vem de longe

    a certeza que h-de vir de longea formiga que vem de muito muito longe

    146

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Os prisioneiros polcias dos polcias prisioneiros

    nas montras nos passeios por baixo dos bancos

    passam os pontos escuros para o outro lado

    sem esquecer o espelho

    sem esquecer o aranhio meticulosamente pequenino

    para fazer a surpresa

    sem esquecer a borboleta tonta que sobe no hori

    zonteda cor do sol

    o pescoo da nossa felicidade

    147

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    146/358

    DE PROFUNDIS A M A M U S

    Ontem

    s onze

    fumaste

    um cigarro

    encontrei-tesentado

    ficmos para perder

    todos os teus elctricos

    os meus

    estavam perdidos

    por natureza prpria

    148

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    147/358

    Andmos

    dez quilmetros

    a pningum nos viu passar

    excepto

    claro

    os porteiros

    da natureza das coisasser-se visto

    pelos porteiros

    Olha

    como s tu sabes olhar

    a ru a os costumesO Pblico

    o vinco das tuas calas

    est cheio de frio

    e h quatro mil pessoas interessadas

    nisso

    No faz mal abracem-me

    os teus olhos

    de extremo a extremo azuis

    vai ser assim durante muito tempo

    decorrero muitos sculos antes de ns

    mas no te importes

    149

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    148/358

    no te importes

    muito

    ns s temos a ver

    com o presente

    perfeito

    corsrios de olhos de gato intransponvel

    maravilhados maravilhosos nicos

    nem pretrito nem futuro tem

    o estranho verbo nosso

    150

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    A U M RATO M O R T O E N C O N T R A D O

    N U M PARQUE

    Este findou aqui sua vasta carreira

    de rato vivo e escuro ante as constelaes

    a sua pequena medida no humilha

    seno aqueles o que tudo querem imenso

    e s sabem pensar em termos de homem ou rvore

    pois decerto este ra to destinou como soube (e atcomo no soube)

    o milagre das patas to junto ao focinho!

    que afinal estavam justas, servindo muito bem

    para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar

    atrs de repente, quando necessrio

    151

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Est pois tudo certo, Deus dos cemitrios pequenos?

    Mas quem sabe quem sabe quando h engano

    nos escritrios do inferno? Quem poder dizer

    que no era para prncipe ou julgador de povos

    o mpeto primeiro desta criao

    irrisria para o mundo com mundo nela?

    Tantas preocupaes s donas de casa e aos mdicos

    ele dava!

    Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?Algum rapazola entendeu sua esta vida to mpar

    e passou nela a roda com que se amam

    olhos nos olhos vtima e carrasco

    No tinha amigos? Enganava os pais?

    Ia por ali fora, minsculo corpo divertido

    e agora parado, aquoso, cheira mal.

    Sem abuso

    que final h-de dar-se a este poema?

    Romntico? Clssico? Regionalista?

    Como acabar com um corpo corajoso e humlimo

    morto em pleno exerccio da sua lira?

    152

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    O J O V E M M G I C O

    0 jovem mgico das mos de ouro

    que a remar no se cansa muito

    e olha muito depressa (como se fosse de moto)

    veio hoje ficar a minha casa

    Vivia longe longe j se sabia

    to longe que era absurdo querer determinar

    metade campo metade luz

    a era a sua casa o stio onde era longe

    153

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    mesmo de olhos fechados (como ele estava)

    e de braos cruzados (como parecia dormir)

    o jovem mgico das mos de ouro

    que era todo de emprstimo minha noite

    que falou por acaso que nem se chamava assim

    (segundo tambm contou) tinha vivido h muito

    ele, que estava ali, era um falsrio

    um fugido de outro basta ver os meus olhos

    nada sabemos de ns a no ser que chegmos

    sem uma luz a escondernos o rosto

    belos e apavorados de estranhos casacos vestidos

    altos de meter medo s aves de longo curso

    nem h noites assim no h encontros

    ao longo das enseadas

    no h corpos amantes no h luzeiros de astros

    sob tanto silncio to duradoura treva

    e no me fales nunca eu sou surdo eu no te oio

    eu vou nascer feliz numa cidade futura

    eu sei atravessar as fronteiras das coisas

    olha para as minhas mos que te pareo agora?

    154

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    153/358

    No entanto surgiu como simples criana

    conseguia sorrir sentar-se verter guas

    com as mos na cintura livre naturalele que era um fantasma um fugido de outro

    um que nem mesmo se chamava assim

    o jovem mgico das mos de ouro

    desaparecido nu de todos os stios da Terra

    155

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    154/358

    UMA CERTA QUANTIDADE

    Uma certa quantidade de gente procura

    de gente procura duma certa quantidade

    Soma :

    uma paisagem extremamente procura

    o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)

    e o problema do quarto-atelier-avio

    156

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    155/358

    Entretanto

    e justamente quando

    j no eram precisos

    aparecem os poetas procura

    e a querer multiplicar tudo por dez

    m raa que eles tm

    ou muito inteligentes ou muito estpidos

    pois uma e outra coisas eles so

    Jesus Aristteles Plato

    abrem o mapa :

    di aqui

    di acol

    E resulta que tambm estes andavam procura

    duma certa quantidade de gente

    que saa procura mas por outras bandas

    bandas que por seu turno tambm procuravam imenso

    um jeito cerU/ de andar procura delesvisto todos buscarem quem andasse

    incautamente por ali a procurar

    Que susto se de repente algum a srio encontrasse

    que certo se esse algum fosse um adolescente

    como se uma nuvem um atelier um astro

    157

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    BARRICADA

    Quando j no pudermos mais chorar e as palavrasforem pequeninos suplcios e olhando para trs virmos

    apenas homens desmaiados, ento algum saltar para

    o passeio, com o rosto j belo, j espontneo e livre, e uma

    cano nascida de ns ambos, do mais fundo de ns, a

    exaltar-nos!

    Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados,

    abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre,

    para um salto no escuro, abandonados pelos lgubres deuses,

    pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e

    um pedais, pela moblia de duas cadeiras e uma cama feita

    para morrer de nojo. Minha criana a quem j s falta

    158

  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

    157/358

    cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual,

    tu segues-me; tu sabes que o caminho insuportvelmentepuro e nosso, um duende gritando no telhado as ervas

    misteriosas, um rapaz crescendo ao longo dos teus braos,

    um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o

    Rossio uma praa para fazer chorar. Salv, arquitectos!

    Mas choremos tanto que ser um dilvio. Automveis-

    -dilvio. Sobretudos-dilvio. Soldadinhos-dilvio. E quandoessa gua morna inundar tudo, ento, arquitectos, tra

    balhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade :

    vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas

    e arame.

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    POEMA

    Em todas as ruas te encontro

    em todas as ruas te perco

    conheo to bem o teu corpo

    sonhei tanto a tua figural

    que de olhos fechados que eu ando

    a limitar a tua altura

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    e bebo a gua e sorvo o ar

    que te atravessou a cintura

    tan to to perto to real

    que o meu corpo se transfigura

    e toca o seu prprio elemento

    num corpo que j no seu

    num rio que desapareceu

    onde um brao teu me procura

    Em todas as ruas te encontro

    em todas as ruas te perco

    i i

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    OS BANTS E AS AVES

    Junto da pobre praia sempre suja

    onde desconhecido o automvel por dentro

    ele repousa da sua longa misria

    ouvindo o pssaro-bicho canta que canta

    mirando o rio-pluma desce que desceo molhado batuque das cinturas

    Sobre a areia da cerca canta que canta

    ele repousa ignoto na sua mo

    que no tem que fazer. Na sua aurora

    que no tem que raiar. Na sua cama

    vincada h dois mil anos para ele

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    Convm que seja noite porque ele ri

    e o seu riso uma coisa insuportvel,uma ferica praia muito limpa

    coberta de pancada e de gua escura

    entrada da cerca canta que canta

    assomou para ele o noivo estranho

    com o seu passo de Um dia de descanso

    seu riso de gua doce pela boca

    (na cinta a chibatinha e a lanterna

    na mo os dedos com que guarda tudo)

    Condicionalismo econmico! Condicionalismo econmico!protesta o pssaro-bicho canta que canta

    gorgeia o rio-pluma desce que desce

    ao dente sexual do automvel por dentro

    No entanto eles entram na cubata

    juntos repousam nus do mesmo infernoseus corpos eriados de diamante

    seus olhos de mrmrio e de pacincia

    so uma grande selva inconquistvel

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    R A D IO G R A M A

    Alegre triste meigo feroz bbedo

    lcido

    no meio do mar

    Claro obscuro novo velhssimo obscenopuro

    nomeio do mar

    Nado-morto s quatro morto a nado s cinco

    encontrado-perdido

    no meio do mar no meio do mar

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    YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

    Entre ns e as palavras h metal fundente

    entre ns e as palavras h hlices que andam

    e podem dar-nos morte violar-nos tirar

    do mais fundo de ns o mais til segredo

    entre ns e as palavras h perfis ardentes

    espaos cheios de gente de costas

    altas flores venenosas portas por abrir

    e escadas e ' ponteiros e crianas sentadas

    espera do seu tempo e do seu precipcio

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    Ao longo da muralha que habitamos

    h palavras de vida h palavras de morte

    h palavras imensas, que esperam por ns

    e outras, frgeis, que deixaram de esperar

    h palavras acesas como barcos

    e h palavras homens, palavras que guardam

    o seu segredo e a sua posio

    Entre ns e as palavras, surdamente,as mos e as paredes de Elsenor

    E h palavras nocturnas palavras gemidos

    palavras que nos sobem ilegveis boca

    palavras diamantes palavras nunca escritaspalavras impossveis de escrever

    por no termos connosco cordas de violinos

    nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

    e os braos dos amantes escrevem muito alto

    muito alm do azul onde oxidados morrem

    palavras maternais s sombra s soluo

    s espasmo s amor s solido desfeita

    Entre ns e as palavras, os emparedados

    e entre ns e as palavras, o nosso dever falar

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    AUTOGRAFIA

    Sou um homem,

    um poeta

    uma mquina de passar vidro colorido

    um copo uma pedra

    uma pedra configurada

    um avio que sobe levando-te nos seus braos

    que atravessam agora o ltimo glaciar da terra

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    0 meu nome est farto de ser escrito na lista dos tiranos:

    condenado morte!

    os dias e as noites deste sculo tm gritado tanto no meupeito que existe nele uma rvore miraculada

    tenho um p que j deu a volta ao mundo

    e a famlia na rua

    um loiro

    outro moreno

    e nunca se encontraro

    conheo a tua voz como os meus dedos

    (antes de conhecer-te j eu te ia beijar a tua casa)

    tenho um sol sobre a pleura

    e toda a gua do mar minha espera

    quando amo imito o movimento das marse os assassnios mais vulgares do ano

    sou, por fora de mim, a minha gabardine

    e eu o pico do Everest

    posso ser visto noite na companhia de gente altamente

    suspeita

    e nunca de dia a teus ps florindo a tua boca

    porque tu s o dia porque tu s

    a terra onde eu h milhares de anos vivo a parbola

    do rei morto, do vento e da primavera

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  • 7/15/2019 Mrio Cesariny de Vasconcelos - Poesia (1944-1955)

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    Quanto ao de toda a gente tenho visto qualquer coisa

    Viagens a Paris j se arran jaram algumas.

    Enlaces e divrcios de ocasio no foram poucos.Conversas com meteoros internacionais tambm j por

    c passaram.

    Eu sou, no sentido mais enrgico da palavra

    uma carruagem de propulso por hlito

    os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas poronde passei uma s vez

    tudo isso vive em mim para uma s histria

    de sentido ainda oculto

    magnfica irreal

    como uma povoao abandonada aos lobos

    lapidar e secacomo uma linha frrea ultrajada pelo tempo

    por isso que eu trago um certo peso extinto

    nas costas

    a servir de combustvel

    e por isso que eu acho que as paisagens ainda ho-de vir

    a ser escrupulosamente electr