Mariátegui

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GT 8. Marx e marxismos latino-americanos 132 Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina ISSN: 2177-9503 Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI 14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL GT 8. Marx e marxismos latino-americanos Nacionalismo e Nacionalismo e Nacionalismo e Nacionalismo e antiimperialismo em um text antiimperialismo em um text antiimperialismo em um text antiimperialismo em um texto o o o de Mariátegui de Mariátegui de Mariátegui de Mariátegui Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida Os breves 35 anos e 10 meses de vida de José Carlos Mariátegui transcorreram em um tempo histórico acelerado. Basta mencionarmos que foi o período das revoluções de 1905, na Rússia; 1910, no México; 1917 (fevereiro-março e outubro-novembro), na Rússia, desembocando na criação da URSS; fundação da III Internacional (Internacional Comunista), em meio a grandes esperanças de que a revolução proletária se expandisse pelo planeta; contenção desta onda revolucionária; ofensiva da direita em quase todo o mundo; intensas alterações no interior da URSS, que se expressaram no plano mundial, inclusive na atuação da III IC e dos partidos a ela vinculados; profunda crise econômica do capitalismo a partir de 1929. Tempo histórico que adquiriu maior velocidade depois que o grande marxista peruano consolidou o acerto de contas com sua “idade da pedra”, ou seja, tornou-se marxista, e passou uma temporada na Europa (outubro/1919-março/1923). Durante os sete anos que ainda lhe restaram, exerceu, na teoria e na prática, um marxismo aberto e criativo, na contramão do que ocorreria nas formações sociais que polarizavam a política mundial, Departamento de Política da PUC-SP. Coordenador do NEILS (Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais). Autor de Uma ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK. Florianópolis: EDUFSC, 2006. End. Eletrônico: [email protected]

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Lucio Flávio de Almeida

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  • GT 8. Marx e marxismos latino-americanos 132

    Anais do IV Simpsio Lutas Sociais na Amrica Latina ISSN: 2177-9503

    Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Sculo XXI

    14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL

    GT 8. Marx e marxismos latino-americanos

    Nacionalismo e Nacionalismo e Nacionalismo e Nacionalismo e

    antiimperialismo em um textantiimperialismo em um textantiimperialismo em um textantiimperialismo em um texto o o o

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    Lcio Flvio Rodrigues de Almeida

    Os breves 35 anos e 10 meses de vida de Jos Carlos Maritegui transcorreram em um tempo histrico acelerado. Basta mencionarmos que foi o perodo das revolues de 1905, na Rssia; 1910, no Mxico; 1917 (fevereiro-maro e outubro-novembro), na Rssia, desembocando na criao da URSS; fundao da III Internacional (Internacional Comunista), em meio a grandes esperanas de que a revoluo proletria se expandisse pelo planeta; conteno desta onda revolucionria; ofensiva da direita em quase todo o mundo; intensas alteraes no interior da URSS, que se expressaram no plano mundial, inclusive na atuao da III IC e dos partidos a ela vinculados; profunda crise econmica do capitalismo a partir de 1929. Tempo histrico que adquiriu maior velocidade depois que o grande marxista peruano consolidou o acerto de contas com sua idade da pedra, ou seja, tornou-se marxista, e passou uma temporada na Europa (outubro/1919-maro/1923). Durante os sete anos que ainda lhe restaram, exerceu, na teoria e na prtica, um marxismo aberto e criativo, na contramo do que ocorreria nas formaes sociais que polarizavam a poltica mundial,

    Departamento de Poltica da PUC-SP. Coordenador do NEILS (Ncleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais). Autor de Uma iluso de desenvolvimento: nacionalismo e dominao burguesa nos anos JK. Florianpolis: EDUFSC, 2006. End. Eletrnico: [email protected]

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    o que, de um modo muito especfico, inclua a prpria URSS, com impactos sobre a IC.

    Todavia, seria um equvoco inteiramente antimariateguiano atribuir as realizaes do Amauta nos planos cientfico, sindical e poltico simples genialidade de um indivduo. Em termos maquiavelianos, foi bafejado pela fortuna. Desfrutou na Europa de um extraordinrio campo de observao: fecundos debates intelectuais; onda de lutas operrias e populares; e, na sequncia, ascenso do fascismo. Saiu na hora certa, pois o fascismo italiano se consolidava, e voltou a uma Amrica Latina, que, no ps-primeira guerra, entraria em ebulio, inclusive por conta dos profundos deslocamentos que ocorriam no plano internacional, a comear pelos espaos abertos pela crise da hegemonia britnica.

    Apenas a ttulo de exemplo, enquanto a ordem republicana liberal sangrou ao longo dos anos 1920 no Brasil, sendo liquidada apenas a partir da chamada revoluo de 1930, no Peru, a crise econmica desencadeada pela primeira guerra mundial encontraria respostas que se chocariam com o civilismo em termos bem mais amplos1. J durante a guerra, lutas de trabalhadores foram muito intensas, at porque afetavam setores-chave da economia peruana (os voltados para a exportao). Em 1919, ocorreram diversas greves, o que desembocou em paralisao da capital e srias batalhas contra o aparato repressivo do Estado. Alm de coexistirem com levantes camponeses, estas greves tiveram amplo apoio de segmentos da classe mdia.

    A precoce derrubada do civilismo ocorreu com a vitria eleitoral, golpe de estado e implantao da ditadura (La Patria Nueva) de um dissidente, Augusto Legua. Especialmente nos trs primeiros anos de seu oncenio (1919-1930), o governo Legua implementou polticas relativamente progressistas. Atendeu a diversas reivindicaes dos trabalhadores urbanos e, em menor escala (e maior simbolismo), dos camponeses indgenas; ampliou o aparelho de Estado, o que, juntamente com o incremento da interveno estatal na economia, contribuiu para um forte aumento do proletariado e um exponencial crescimento da classe mdia; e incentivou pesadamente o ingresso de capitais estadunidenses nos principais setores da indstria peruana2.

    A simples posse de Legua no foi suficiente para aplacar a onda de manifestaes operrias e de classe mdia, inclusive no interior do santurio acadmico que, at pouco tempo atrs, era de uso exclusivo da nata da oligarquia peruana: a Universidad de San Marcos. Ali cursava Direito um

    1 Para a redao deste e dos dois prximos pargrafos, recorro a Klarn (2008) e Perics (2005). 2 O que, no frigir dos ovos, resultou mais em desnacionalizao do que em avano de uma poltica de desenvolvimento industrial.

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    destacado lder estudantil, Victor Haya de la Torre, que no encontrou grandes dificuldades em arregimentar colegas para as lutas de rua ao lado dos trabalhadores3.

    Esta caricatura avant la lettre de polticas que, mais tarde, seriam implementadas no Brasil e na Argentina, mas sem fortes vnculos orgnicos com as classes populares, abriu espao para que amplos segmentos destas se politizassem de maneira relativamente autnoma4. Legua encontrou dificuldades para reprimir uma onda de manifestaes quando, numa tentativa nada original de acoplar mais diretamente a Igreja Catlica legitimao de seu governo, props, em cerimnia pblica, que o Peru fosse dedicado ao Sagrado Corao de Jesus5. Ao menos por mais sete anos, este pas foi o cenrio de importantes esforos de luta organizada dos trabalhadores.

    O tempo voava e importantes mudanas ocorreram no interior da Internacional Comunista. Uma delas foi o crescente interesse pela Amrica do Sul, qual, no incio dedicara pouca ateno. Esta mudana se deve, no plano estratgico, atribuio de maior importncia questo nacional neste subcontinente.

    A posio regularmente adotada por Lenin consistia em defender o direito autodeterminao nacional, ou seja, constituio de Estados prprios por povos que lutassem para se libertar da dominao exercida por uma ou vrias potncias estrangeiras. A defesa do direito autodeterminao inseria-se, para Lenin, no campo democrtico. Pode-se mesmo afirmar que era uma extenso das lutas democrticas ao campo internacional (Almeida, 1997). Lutas democrticas que, em um momento de avano das foras revolucionrias, poderiam se acoplar a estas ltimas e engatar nova marcha rumo a uma transio socialista.

    Em um contexto de revoluo considerada iminente no plano internacional, Lenin no dedicou muita preocupao questo nacional na America Latina. Neste subcontinente, onde estados prprios j se haviam constitudo, em sua grande maioria no incio do sculo XIX, as questes nacionais eram dadas como resolvidas. De um ponto de vista revolucionrio, nada parecia indicar que, no bojo de um processo revolucionrio socialista em escala internacional leia-se, sobretudo,

    3 Devido ao apoio que prestou a estas lutas, Maritegui aceitou a presso do governo Legua e partiu, com bolsa concedida pelo Estado peruano, para a Europa, onde aprofundaria sua formao marxista. 4 Quijano (1985) apresenta uma arguta comparao do governo Legua com os seus contemporneos Irigoyen (Argentina) e Alessandri (Chile), que desfrutaram de condies mais favorveis para implementar polticas de corte antioligrquico. E aborda o processo de politizao das classes populares sob a influncia das revolues mexicana e sovitica. 5 Foi a vez de Victor Haya de la Torre, ativo participante dessas manifestaes, seguir para o exlio. No ano seguinte (1924), fundou a APRA (Aliana Popular Revolucionria Americana).

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    europia as novas comunidades forjadas ao longo do processo de transio para uma sociedade sem classes tivessem alguma semelhana com as formaes sociais capitalistas. At porque, ainda nas duas primeiras dcadas do sculo XX, os Estados nacionais no eram muito difundidos pelo planeta.

    Ao se certificar do que poucos intuam, ou seja, que a onda revolucionria no Ocidente encerrara-se, Lenin voltou seus olhos para os movimentos nacionalistas e antiimperialistas no Oriente, em especial os que ocorriam na China e na Prsia (atual Ir). Revelava-se mais uma vez enorme capacidade de anlise concreta da situao concreta e de, em funo da alterao desta, imprimir inflexes ttica e estratgia revolucionrias.

    Em 1929, bem depois da morte de Lenin, drsticas mudanas ocorriam em importantes aspectos abordados neste artigo. Stalin consolidava sua posio frente do Partido Comunista da URSS, ao mesmo tempo em que prosseguia o processo de centralizao autoritria do Estado sovitico. Dissipavam-se os aspectos socialistas e mesmo democrtico-burgueses das revolues de 1917. Parafraseando uma clebre metfora de Lenin, desenvolveu-se a eletrificao, mas se dissolveu o poder dos sovietes. No plano objetivo, as possibilidades de revoluo socialista internacional continuavam se deteriorando nos pases de capitalismo avanado. Contraditoriamente, tendia a se afirmar, no interior da IC, uma poltica voltada para o confronto direto entre trabalho e capital (a poltica de classe contra classe), o que levaria a resultados catastrficos para o movimento operrio, especialmente diante da mar montante do fascismo.

    A estratgia da IC para a Amrica Latina tambm sofreria uma significativa reviravolta, nem sempre marcada pela congruncia terico-poltica. Agora, no somente a questo nacional adquiria grande importncia como se consolidava a perspectiva etapista. A revoluo ocorreria em duas etapas, a democrtico-burguesa e a socialista, cada qual dirigidas por uma classe, a burguesia e o proletariado, respectivamente (Escorsin, 2006: 279-80). Apostava-se no potencial nacionalista dessas burguesias e se postulava uma estreita vinculao entre este nacionalismo e uma posio antiimperialista. O que, por sua vez, abria a expectativa de que houvesse uma predisposio de fraes dessas burguesias para formarem frente com as foras populares em certa fase da luta contra o imperialismo.

    Enfim, o processo de centralizao no se dava apenas no plano interno URSS, mas atingia a prpria organizao da Internacional Comunista.

    O contexto internacional tornava estas questes dramticas, pois diversos fatores como a abertura de margem de manobra propiciada pela crise de hegemonia britnica e necessidade de os Estados burgueses

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    controlarem o forte ingresso das classes populares na poltica (especialmente depois da revoluo de Outubro) , favoreceriam a emergncia e o espraiamento de diversos tipos de nacionalismo. No Peru, a forte presena de Haya de la Torre atuava no sentido de, em nome das peculiaridades da Amrica Latina, articular marxismo a nacionalismo, subordinando o primeiro ao segundo. Em contrapartida, a IC exigia que os comunistas peruanos: 1) rompessem com a APRA, que pretendia se tornar um partido; 2) fundassem imediatamente um partido comunista, vinculado III Internacional. Sob a liderana de Maritegui, rompeu-se com a APRA, mas o partido, criado em 16 de setembro de 1928, recebeu o nome de Partido Socialista do Peru, dotado de uma perspectiva fortemente crtica em relao ao etapismo6.

    Nos limites deste artigo, trata-se de examinar a posio de Maritegui sobre as burguesias nativas sul-americanas, tema que ocuparia lugar de destaque nos debates acerca da estratgia e da ttica revolucionria dos partidos comunistas do subcontinente at o final do sculo XX. Para isto, analisaremos um dos quatro textos, Punto de vista anti-imperialista, que Maritegui enviou para o Congresso Constituinte da Confederao Sindical Latino-Americana e para a Primeira Conferncia Comunista Latino-Americana, encontros realizados em maio e junho de 1929, respectivamente (Maritegui, 1988a)7.

    Em sua anlise, Maritegui tinha dois alvos bem precisos. O primeiro era justamente a tese, defendida pela IC, que atribua s burguesias nacionais latino-americanas o papel desempenhado por algumas burguesias asiticas, ou seja, o de burguesias nacionais, na medida em que eram impelidas ao confronto com a dominao imperialista. O segundo era no menos importante, dada a forte influncia exercida pela APRA: a prioridade conferida ao nacionalismo como via privilegiada da revoluo social latino-americana.

    Este texto de Maritegui, produzido em uma situao desesperadora dos pontos de vista pessoal e poltico, riqussimo. No existe aqui a menor pretenso de esgotar sua anlise ou mesmo de simplesmente mencionar a totalidade dos aspectos relevantes que apresenta para os marxistas do sculo XXI.

    Ao perguntar Hasta que punto puede asimilarse la situacin de las repblicas latinoamericanas a la de los pases semicoloniales, Maritegui demonstra aguda percepo das distintas dimenses de uma formao

    6 O balano destes acontecimentos cruciais ainda est em curso. Duas abordagens distintas e bem fundamentadas so feitas por Quijano (1991) e Escorsin (2006). 7 O primeiro em Montevidu e o segundo em Buenos Aires. Os demais textos so Maritegui (1988b; 1988c e 1988d).

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    social. Se, em um modo de produo, as estruturas jurdico-poltica e ideolgica no se resumem a meras expresses da econmica, isto menos ainda se aplica a uma formao social. Esta muito mais complexa, na medida em que consiste na articulao de distintos modos de produo, em geral sob a dominncia de um deles. Neste sentido, Maritegui, atento s particularidades das formaes sociais latino-americanas e estudioso profundo da formao social peruana, tece aguda observao a respeito do carter semicolonial dos pases deste subcontinente. Como ele prprio afirma, la condicin econmica de estas repblicas, es, sin duda, semicolonial, y, a medida que crezca su capitalismo y, en consecuencia, la penetracin imperialista, tiene que acentuarse este carcter de su economa (Maritegui, 1988a: 87).

    Por outro lado, diferentemente das burguesias nacionais dos pases efetivamente semicoloniais, as burguesias nacionais dos pases sul-americanos no vislumbravam motivos para confrontos com o imperialismo. Ao contrrio, consideravam muito mais proveitosa uma relao cooperativa e se sentiam suficientemente senhoras do poder poltico para no preocuparse seriamente de la soberana nacional. Como explicar este aparente paradoxo acerca destas burguesias de pases economicamente semicoloniais: possuem sentimento nacional, mas no so antiimperialistas?

    Ao A nosso ver, a resposta a esta pergunta exige que levemos em conta o carter profundamente antieconomicista da anlise mariateguiana e nos voltemos para sua abordagem acerca do Estado e da ideologia.

    Para Maritegui, El Estado, o mejor la clase dominante no echa de menos un grado ms amplio y cierto de autonoma nacional. (Ibidem). Esta fecunda formulao acerca do Estado possibilita integrar a dimenso jurdico-poltica ao prprio conceito de formao social. No caso das formaes sociais sul-americanas, a condio econmica semicolonial, mas existe um Estado nacional. Esta formulao possibilita responder a uma importante questo: por que estes Estados nacionais no se voltam contra a condio de semicolnia econmica qual est submetida a formao social de cuja coeso eles so os principais garantidores? Segundo Maritegui, justamente porque o objetivo fundamental do Estado organizar a dominao de classe (El Estado, o mejor la clase dominante!) e no lutar por uma relao efetivamente simtrica no sistema internacional. Maritegui acrescentar que la revolucin de la Independencia est relativamente demasiado prxima, sus mitos y smbolos demasiado vivos, en la conciencia de la burguesa y la pequea burguesa. (Ibidem). Portanto, mais uma vez, no se trata de supor equivocadamente a ausncia de sentimento nacional, mas de incorporar de modo mais preciso as determinaes polticas e ideolgicas anlise das formaes sociais.

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    Temos aqui uma abordagem claramente antieconomicista. Por um lado, ele leva em conta as determinaes econmicas (semicolonial). Por outro, a condio jurdico-poltica e ideolgica (tambm estrutural). Acrescente-se a referncia a um aspecto ideolgico mais especfico (e no estrutural): a memria da primeira independncia, que contribui para uma certa concretizao de uma regio ideolgica particular imprescindvel reproduo das condies estruturais da dominao burguesa: ideologia da soberania nacional. Talvez Maritegui no chegue a formular rigorosamente um conceito de Estado capitalista, examinando como se inserem, nas estruturas deste fundamental dispositivo de dominao burguesa, as determinaes ideolgicas que contribuem para que ele no aparea como um Estado de classe, mas de todo o povo nao. Mas est atento aos impactos ideolgicos produzidos pela existncia deste Estado nas formaes sociais dependentes latino-americanas.

    provvel que esta ausncia de uma conceituao rigorosa, ao menos neste momento de sua anlise, contribua para que ele desviasse rapidamente o foco para outra questo importantssima e tambm pouco analisada: a das variantes ideolgicas de uma ideologia dominante. E Maritegui est atento para as variantes burguesa e pequeno-burguesa da ideologia nacional.

    Em um caso como no outro, a direo da anlise certeira e aponta para a necessidade de se considerar tanto a condio econmica (semicolonial) como a jurdico-poltica e ideolgica (soberania estatal-nacional). Como j vimos, todas dimenses estruturais. Elas apontam para a constituio tendencial de um aparelho de Estado que se apresenta como a expresso do interesse geral da sociedade. Acrescente-se que a memria ainda forte da primeira independncia, ou seja, da libertao do jugo espanhol, fortalece esta ideologia nacional, e, no interior desta, a afirmao da existncia do Estado-nao soberano; mas no impulsionam uma luta antiimperialista. Em outros termos, as variantes burguesa e de classe mdia da ideologia nacional peruana caso mais conhecido por Maritegui no tendem para a luta antiimperialista.

    Desta forma, a concepo profundamente antieconomicista tambm orienta a distino efetuada por Maritegui entre nacionalismo e antiimperialismo. Na China,

    la colaboracin con la burguesa, y aun de muchos elementos feudales, en la lucha anti-imperialista... se explica por razones de raza, de civilizacin nacional que entre nosotros no existen. El chino noble o burgus se siente entraablemente chino. Al desprecio del blanco por su cultura estratificada y decrpita, corresponde con el desprecio y el orgullo de su tradicin

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    milenaria. El anti-imperialismo en la China puede, por tanto, descansar en el sentimiento y en el factor nacionalista. (Ibidem: 88).

    Maritegui destaca a existncia, aqui, de uma distino fundamental para a poltica revolucionria socialista: aquela entre nacionalismo e antiimperialismo. Foge aos limites deste texto analisar o quanto a ausncia de clareza acerca desta distino foi trgica para os movimentos socialistas no sculo XX; e a importncia que ela adquire para as lutas proletrias e populares no sculo XXI, em especial nos combates antineoliberais. O nacionalismo at pode embasar um sentimento e uma poltica antiimperialista. Mas no fatal que isto ocorra.

    A importncia da dimenso cultural destacada pelos efeitos que produz, por um lado, no caso chins e, por outro, no latino-americano (especialmente no Peru, caso que Maritegui conhece mais de perto). Se na China, existe uma identificao cultural de amplos setores das classes dominantes com o povo, na Amrica Latina ocorre o oposto: predomina o desprezo pelo povo, inclusive em funo do corte tnico. Os dominantes so brancos, descendentes de europeus e desprezam o nacional-popular:

    La aristocracia y la burguesa criollas no se sienten solidarizadas con el pueblo por el lazo de una historia y de una cultura comunes. En el Per, el aristcrata y el burgus blancos, desprecian lo popular, lo nacional. Se sienten, ante todo, blancos. El pequeo burgus mestizo imita este ejemplo. La burguesa limea fraterniza con los capitalistas yanquis, y an con sus simples empleados, en el Country Club, en el Tennis y en las calles. El yanqui desposa sin inconveniente de raza ni de religin a la seorita criolla, y esta no siente escrpulo de nacionalidad ni de cultura en preferir el matrimonio con un individuo de la raza invasora. Tampoco tiene este escrpulo la muchacha de la clase media. La huachafita que puede atrapar un yanqui empleado de Grace o de la Foudation lo hace con la satisfaccin de quien siente elevarse su condicin social. El factor nacionalista, por estas razones objetivas... no es decisivo ni fundamental en la lucha anti-imperialista en nuestro medio. (Ibidem).

    Concluso terico-poltica: nem sempre o nacionalismo importante para a luta antiimperialista na Amrica Latina. Na China, pde desempenhar um papel crucial, como, de fato, desempenhou8. Mas o mesmo no ocorreu no Peru e em grande parte dos pases da Amrica Latina. Por outro lado, importante perceber a distino que Maritegui faz entre as tendncias

    8 Embora, no decorrer do processo chins, o Kuomintantg tenha se transformado em uma fora anti-revolucionria e pr-imperialista. Foge aos objetivos deste artigo a tentativa de demonstrar a hiptese de que o nacionalismo acabou prevalecendo no interior do processo revolucionrio chins, imprimindo-lhe, a partir a vitria da corrente liderada por Deng Hsiao Ping, um carter nacional-burgus abertamente favorvel ao desenvolvimento capitalista.

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    ideolgicas burguesas e as populares, mesmo no interior do subcampo da ideologia nacional. No Peru, existia um nacionalismo burgus, inclusive com a presena do forte orgulho da luta pela independncia em relao ao domnio espanhol. Mas, como vimos, este nacionalismo burgus tem fraqussimo ou nulo potencial antiimperialista.

    Agora fica mais claro como o grande autor peruano era atento ao carter formal e, ao mesmo tempo, eficcia da soberania (dimenso ideolgica inclusa). Desta forma, pde analisar o processo pelo qual, em aparente paradoxo, a prpria soberania burguesa pode ser funcional para a articulao da burguesia nativa com a dominao imperialista. Eis uma formulao que atingia o cerne da particularidade das formaes sociais sul-americanas:

    Mientras la poltica imperialista logre manger los sentimientos y formalidades de la soberana nacional de estos Estados, mientras no se vea obligada a recurrir a la intervencin armada y a la ocupacin militar, contar absolutamente con la colaboracin de las burguesas (Ibidem: 89).

    Na seqncia, sempre analisando a ideologia da soberania sem reduzi-la a mera expresso da base econmica, mas atento ao seu papel especfico nas relaes internas e externas a uma formao social capitalista, ele efetua a distino entre formaes sociais coloniais e semicoloniais ou dependentes:

    Aunque enfeudados a la economa imperialista, estos pases, nos ms bien que sus burguesas, se considerarn tan dueos de sus destinos como Rumania, Bulgaria, Polonia y dems pases dependientes de Europa. (Ibidem).

    Assentadas as bases tericas de uma distino entre nacionalismo e antiimperialismo, Maritegui parte para o embate mais direto com a APRA. E d um salto terico surpreendente: no basta evitar a confuso entre nacionalismo e antiimperialismo; tambm preciso no confundir um antiimperialismo qualquer com socialismo revolucionrio. Talvez aqui resida uma importantssima originalidade do pensamento mariateguiano, inclusive no que se refere ao balano, neste sculo XXI, das tentativas de revoluo socialista realizadas no sculo XX. No somente antiimperialismo de forma alguma se confunde com socialismo, como tampouco desemboca necessariamente neste.

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    No fundo, a grande insistncia de Maritegui na crtica ao nacionalismo de carter burgus e pequeno-burgus que, em um duplo movimento que se restringe ao plano da retrica: 1) apresenta-se como antiimperialista; 2) apresenta este pretenso antiimperialismo como um movimento cujo desfecho necessrio o socialismo. Da a crtica contundente a lemas do tipo apresentado pela APRA: Somos de izquierda (o socialistas) porque somos anti-imperialistas.

    Para Maritegui, a mesma expresso antiimperialismo designa duas posies distintas e, frequentemente, opostas:

    1) A que considera o antiimperialismo como um fim em si mesmo. O suposto que o antiimperialismo leva espontaneamente (no se sabe como) ao anticapitalismo. No fundo, ainda permanece uma concepo prisioneira do nacionalismo.

    2) A concepo revolucionria, para a qual s a revoluo socialista pode impor ao imperialismo uma derrota definitiva e verdadeira.

    No contexto desta distino adquire sentido a enftica negativa de que, no poder, a burguesia ou a pequena burguesia possam hacer una poltica anti-imperialista. E Maritegui cita la experiencia de Mxico, donde la pequea burguesa ha acabado por pactar con el imperialismo ianqui (Ibidem: 90).

    Porm, a posio de Maritegui no se reduzia mera denncia do nacionalismo burgus ou pequeno-burgus, especialmente o que se apresentava sob as cores do antiimperialismo. Ao contrrio, o dirigente do PSP insistia na necessidade de os revolucionrios desenvolverem de todos os modos possveis as potencialidades do antiimperialismo de massas,

    sin prescindir del empleo de ningn elemento de agitacin anti-imperialista, ni de ningn medio de movilizacin de los sectores sociales que eventualmente pueden concurrir a esta lucha, nuestra misin es explicar y demonstrar a las masas que slo la revolucin socialista opondr al avance del imperialismo una valla definitiva y verdadera. (Ibidem: 91).

    Por mais incipientes que tenham sido suas formulaes, Maritegui acertou em cheio no que se refere a algumas caractersticas decisivas dos movimentos nacionalistas (inclusive o nacional-desenvolvimentismo) que marcaram a histria das formaes sociais dependentes na Amrica Latina. Basta mencionarmos os casos do peronismo, na Argentina, do cardenismo, no Mxico, do varguismo no Brasil ou do alvaradismo, no Peru. Essas formulaes tambm se aplicam aos movimentos terceiro-mundistas em outros continentes, inclusive aqueles que empunharam a bandeira do socialismo.

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    Qual a importncia das formulaes mariateguianas para a anlise dos movimentos e, principalmente, dos governos e movimentos nacionalistas que se pretendem antiimperialistas e anti-sistmicos na Amrica Latina contempornea? Eis a questo chave para a qual este texto nada mais oferece do que um simples fragmento de introduo.

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