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MARIANA LONDRES PINHA
Alfredo Andersen
Retratos da sociedade paranaense no início do século.
Monografia de Graduação, apresentado ao Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, sob orientação da Professora Doutora Ana Maria Burmester.
CURITIBA
1999
AGRADECIMENTOS
Agradeço a ajuda dos professores Ana Maria Burmester, Magnus
Roberto Pereira e Marcos Napolitano, do Departamento de História. Agradeço
aos colegas Isabelle Röcker, Mônia Silvestrin, Karyn Hornhardt, Rafael
Beltrami, Juliana Moraes, Paôla Manfredini e Janaína Bueno pelas dicas e
conversas. Aos amigos Carmem Lúcia e Dico Kremer pela ajuda na
manipulação de imagens. À família e aos amigos pela leitura e revisão,
paciência e ajuda operacional. A Juliano e Carolina pela boa vontade no Museu
Alfredo Andersen. Às professoras Rosemeire Odahara e Ana Paula Martins
pela atenção.
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES..............................................................................iii
1 INTRODUÇÃO................................................................................................01
2 O GÊNERO RETRATO................................................................................. 03
2.1 A REVOLUÇÃO BURGUESA E A EMANCIPAÇÃO DO GÊNERO.........03
2.2 O RETRATO NO BRASIL........................................................................ 11
2.3 A ARTE E O RETRATO NO PARANÁ.................................................... 16
3 ALFREDO ANDERSEN: VIDA E OBRA....................................................... 19
3.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E FORMAÇÃO ARTÍSITCA............................ 19
3.2 RETRATOS..............................................................................................30
4 ANÁLISE DE OBRAS....................................................................................46
4.1 O RETRATO DE VICENTE MACHADO.................................................. 47
4.2 O RETRATO DE OLÍMPIA CARNEIRO...................................................51
4.3 O RETRATO DE FREDERICO DE MARCO............................................53
5 CONCLUSÃO................................................................................................ 55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................58
FONTES.........................................................................................................59
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1. LEONARDO DA VINCI: A DAMA DO ARMINHO.........................................07
2. PIERO DELLA FRANCESCA: FEDERIGO DA MONTEFELTRO................07
3. JAN VAN EYCK: O CASAMENTO DE GIOVANNI ARNOLFINI..................08
4. HANS HOLBEIN O JOVEM: OS EMBAIXADORES FRANCESES NA
CORTE INGLESA........................................................................................09
5. MANUEL DA CUNHA: O CONDE DE BOBADELA......................................12
6. FRANCISCO PEDRO DO AMARAL: MARQUESA DE SANTOS................12
7. . SIMPLÍCIO RODRIGUES DE SÁ: D. MARIA II..........................................14
8. AUGUSTO MÜLLER: DONA ANTÔNIA ALVES..........................................14
9. RODOLFO AMOEDO: SENHORA COM BOÁ.............................................15
10. GUSTAV KLIMT: RETRATO DE FRIZTA RIEDLER....................................24
11. ALFREDO ANDERSEN: JOÃO MOREIRA GARCEZ..................................35
12. ALFREDO ANDERSEN: JOÃO NEGRÃO...................................................35
13. ALFREDO ANDERSEN: FRANCISCO NEGRÃO........................................35
14. ALFREDO ANDERSEN: AFFONSO ALVES DE CAMARGO......................35
15. ALFREDO ANDERSEN: ROMÁRIO MARTINS...........................................36
16. ALFREDO ANDERSEN: MANOEL CARNEIRO..........................................36
17. ALFREDO ANDERSEN: GENEROSO MARQUES (busto).........................37
18. ALFREDO ANDERSEN: FRANCISCO XAVIER..........................................38
19. ALFREDO ANDERSEN: GENEROSO MARQUES (a três-quartos)...........38
20. ALFREDO ANDERSEN: ANNA ALBINA ALVES BRANCO........................39
21. ALFREDO ANDERSEN: EMÍLIA ERICKSEN..............................................39
22. ALFREDO ANDERSEN: MÃE DE VISCONDE DE NACAR........................40
23. ALFREDO ANDERSEN: ESPOSA DE VISCONDE DE NACAR.................40
24. ALFREDO ANDERSEN: CAPITÃO DO NAVIO ..........................................42
25. ALFREDO ANDERSEN: EDMUND SIGMOND ...........................................42
26. ALFREDO ANDERSEN: GUIDO VIARO .....................................................43
27. ALFREDO ANDERSEN: MARIA AMÉLIA D’ASSUMPÇÃO ........................43
28. ALFREDO ANDERSEN: RODOLFO LANGE ..............................................45
29. ALFREDO ANDERSEN: ANNA LANGE......................................................45
30. ALFREDO ANDERSEN: VICENTE MACHADO...........................................47
31. ALFREDO ANDERSEN: OLÍMPIA CARNEIRO...........................................51
32. ALFREDO ANDERSEN: FREDERICO DE MARCO....................................53
33. ALFREDO ANDERSEN: ESBOÇOS..........................................................54
1 INTRODUÇÃO
Ir ao encalço de rostos de pedra e devolver-lhes a sua identidade, tirar notáveis dos grupos pictóricos em que se fundem, é, na tradição de Michelet, a louca ambição de ressuscitar indivíduos cuja ação e cujas paixões contribuíram, com a multidão de seus contemporâneos, para o destino de uma sociedade.
Georges Duby
A idéia desta monografia surgiu da vontade em pesquisar algo nos
campos de história e arte. A possibilidade de reconstituir alguns valores de uma
sociedade a partir de peças de arte, foi o que impulsionou este trabalho. Esta
pesquisa tem, portanto, o objetivo de discutir questões que envolvem estudos
de história e arte, não se tratando de um estudo em história da arte.
O pintor escolhido para tal estudo foi Alfredo Andersen, pintor de grande
importância para a história do Paraná, por ser considerado o fundador de uma
escola, e que viveu no Estado de 1893 a 1936, ano de sua morte. A sua
curiosa trajetória pessoal, que o levou de Cristiansand a Curitiba, assim como o
título de pai da pintura paranaense, foram algumas das questões que levaram
ao estudo da obra deste pintor.
Ao entrar em contato com a sua obra percebemos que o nome de
Alfredo Andersen era, e continua até hoje, comumente ligado a sua obra
paisagística (uma nova forma de representação da paisagem paranaense),
sem excluir, é claro, o reconhecimento do pintor como mestre. Percebemos
também, que por trás de sua renomada atividade como mestre havia uma outra
atividade que dava subsídios para a vida e a obra do pintor, uma vez que era a
sua principal fonte de renda: a pintura de retratos. A enorme quantidade destes
retratos, em que eram estampados rostos de diversos tipos de pessoas, que
tinham como característica comum serem contemporâneas ao pintor, levou a
uma série de possibilidades de uma pequena reconstituição da sociedade
paranaense no início do século.
Para que fosse possível esta reconstituição foi preciso, primeiramente,
um maior entendimento acerca do gênero retrato, e a partir de quando ele teria
sido entendido, tal como era, no início do século no Paraná. Em segundo lugar
foi necessária uma pequena reconstituição da história das artes plásticas no
Brasil, e as possíveis manifestações da representação individual através do
gênero retrato no país.
Outro estudo necessário foi o da história das artes no Paraná, até a
chegada de Andersen (que é considerado fundador da pintura no Estado).
Tivemos também que entender um pouco do que se passava na capital
paranaense de início do século, em termos políticos, sociais econômicos e
culturais. Todas estas informações nos ajudaram a entender a obra de Alfredo
Andersen, assim como a sua obra (através das pessoas retratadas, e da
própria história dos quadros) ajudou a reconstituir um pouco da sociedade em
que o pintor viveu e de seus personagens.
A trajetória pessoal do pintor, uma pequena biografia, foi relacionada
com as idéias que circulavam na Europa ( onde viveu até os 30 anos e obteve
sua formação artística ), que culminaram em importantes movimentos de
vanguarda. Neste estudo não tivemos a preocupação, comum em história da
arte, de situar o pintor em alguma escola ou estilo, apenas mostramos vários
pontos de vista sobre o autor a partir de artigos publicados em veículos de
época. A análise detalhada de alguns retratos teve como objetivo entender a
construção de uma imagem, que através de seus símbolos, representaria um
personagem e seus valores, e teria determinada função na sociedade.
2 O GÊNERO RETRATO
2.1 A EMANCIPAÇÃO E A DIVERSIFICAÇÃO DO GÊNERO
Os valores que surgiam e circulavam na Europa do final da Idade Média
permitiram uma vasta e inovadora produção artística e cultural. Esta produção
pode ser considerada inovadora não particularmente pelo seu estilo. A grande
inovação partiu da preocupação em transmitir experiências sobre as quais
gerações anteriores se calavam, atitude que decorria de uma mudança no
comportamento dos indivíduos em relação aos grupos familiares e sociais a
que pertenciam1. Esta nova perspectiva de relatos individualizados gerou uma
vasta produção, que se exprime particularmente em relatos literários e em
retratos, marcando gêneros que adquiriam novas características (na literatura
relatos pessoais, diários e biografia, e no retrato a emancipação e
diversificação do gênero).
Os valores humanistas que se espalhavam, carregavam consigo a
exaltação do indivíduo e da consciência de si. A consciência de si só se tornou
possível a partir de um distanciamento do indivíduo dos círculos da vida social.
Esse distanciamento gerou a valorização do indivíduo em seu mundo privado,
em sua particularidade, e que, no caso das artes plásticas decorreu em uma
grande produção retratística.
Em meados do século XVII, foi André Félibien quem, pela primeira vez,
sugeriu que o termo retrato deveria referir-se exclusivamente a representação
pictórica de seres humanos. Félibien propôs ainda que figura deveria referir-se
1 DUBY, Geoges (Org.). História da vida privada. Da Europa feudal à renascença. Trad.
Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. vol. 2, p. 527.
a representação de animais e representação deveria ser usado no caso de
plantas ou formas inorgânicas. Essa terminologia antropocêntrica marca o
início de uma nova concepção de ser humano, que, é claro, passaria a ser
representado de forma distinta na expressão artística.2
A representação da pessoa, que não é comum a todas as civilizações e
nem a todas as épocas, a renovação do retrato figurado (que ocorre no
Ocidente a partir de meados do século XIV), exprime a progressiva liberação
do indivíduo, saindo do quadro social e religioso, onde o haviam imobilizado a
adoração privada. Esse novo gênero de retrato traduz o apego à memória dos
indivíduos, e ao desejo dos homens comuns em marcar a sua imagem em
relação a gerações posteriores. Essa preocupação corresponde efetivamente a
condutas ativas e públicas, e de que o modelo proposto corresponde a um
ideal de vida.3
A burguesia de fins da Idade Média tinha uma nova concepção de si.
Sua auto-estima encontrava-se fortalecida pelos progressos técnico e
econômico, pelos resultados da expansão geográfica e da mobilidade social,
pela noção de autonomia do indivíduo. O retrato era o meio que conferia uma
forma simbólica a essa visão de mundo, desempenhando uma função
valorizada por diversos estratos da sociedade, em particular aqueles que
detinham o poder.
Os atributos dos novos valores não levam somente à popularização do
retrato. A linguagem simbólica também sofre transformação, mesmo em
retratos de pessoas públicas. Carlos IV é o primeiro soberano do Ocidente
2SCHNEIDER, Norbert. A arte do retrato. Trad. Teresa Curvelo. Köln: Taschen, 1997, p. 23. 2 DUBY, Georges. Op. cit., p 523.
medieval a substituir deliberadamente a perfeição dos símbolos monárquicos
pelo seu retrato fiel e dos membros de sua família. Entretanto, essa estética do
realismo não é sempre presente, mescla-se posteriormente com a reflexão
escolástica do sentimento do belo, e com estudos renascentistas acerca de
proporções humanas perfeitas. O realismo, na pintura ou na literatura,
traduziria a realidade sem o espírito, a justaposição de detalhes sem a idéia,
pois a grande evolução na descoberta do indivíduo se deve aos diversos
procedimentos de análise do real (diversos pontos de vista acerca do indivíduo,
decorrentes dos diferentes procedimentos de análise- confissões,
correspondência privada, difusão do espelho, técnica de pintura à óleo).
A pintura flamenga do século XV permite traçar um desses pontos de
vista acerca do indivíduo, pois é inspirada em uma visão simbólica. Trata-se de
uma das leituras do indivíduo. É por isso que este tipo de pintura deve ser
analisado tendo-se em mente os limites da fonte. O resultado a que se tem
acesso decorre de convenções sociais e das intenções do comanditário (no
caso da representação da figura pública, os trajes e a representação do espaço
pictórico denotam uma atitude). “O espírito no qual essas encomendas eram
executadas, a solução adotada para rosto e nome, dependem da história das
formas, da história da moda ou até da história social das representações.”4
Um primeiro movimento dessa pintura retratística a que nos estamos
referindo coloca o retratado no quadro de sua atividade profissional. O espaço
pictórico neste caso é preenchido por objetos que nos dão informações sobre o
espaço de trabalho, sobre o espaço cotidiano. Um segundo movimento pode
ser caracterizado pela atenção do retratista no rosto frontal ou de três-quartos,
4 Idem, p. 555.
suprimindo o cenário (substituindo por um fundo- figurativo ou não- e
suprimindo a ambientação), jogando com contrastes e utilizando a linguagem
de apenas alguns objetos (livro, flor, oração).
A complexidade do retrato é revelada pela sua retórica gestual, pelo
vocabulário de posturas físicas e expressões faciais, atributos que caracterizam
os modelos e a sua esfera de influência. O cenário também revela inúmeras
características. Tanto o cenário como a retórica gestual, o tipo de
enquadramento e até o olhar do retratado variam de acordo com o tipo de
representação que se deseja. Toda a composição que vemos no retrato é
resultado também de um pacto entre artista e cliente, além, é claro, da
formação do artista e das tendências de estilo a que foi submetido ou
acompanha.
O cenário em um retrato pode revelar o efeito pretendido. O pano de
fundo, quer seja de paisagem ou de interior, possui diversos elementos, que
convertem as idéias em objetos, símbolos representativos de tipos de práticas
sociais.
Na tradição retratística de fins da Idade Média, os objetos que
compunham os interiores remetiam tanto à esfera do privado (no caso de
objetos pessoais), como a esfera pública (no caso de objetos que associassem
o retratado a sua atividade). Os livros, além de remeterem a idéia do privado
(interesse pessoal) simbolizam a expansão do conhecimento. Outros símbolos
não podem ser relacionados com a aquisição do saber, remetendo para
convicções morais ou éticas do retratado, ou para a sua adesão a certas
virtudes. Como é o caso dos primeiros retratos modernos de mulheres, que
representavam quase sempre mulheres casadas, noivas e, ocasionalmente,
cortesãs. Nestes casos os objetos constituíam alusões a características
femininas, e o seu enquadramento preocupava-se quase exclusivamente com
a definição social e artística do papel desempenhado pelo sexo feminino na
sociedade (fig. 1).
Já os fundos de paisagem remetiam com freqüência à esfera
pública, como no retrato de Piero della Francesca (fig. 2), que mostra os
territórios governados pelo retratado. Muitas vezes as cenas pintadas no fundo
remetiam a alguma cena bíblica ou da mitologia grega, e estariam sugerindo
algo como um matrimônio ou a pureza da esposa.
Em ambos os movimentos o olhar do retratado, que algumas vezes mira
o espectador é de suma importância, pois tenta expressar características que
vão além de atributos físicos, tentam expressar um pouco da personalidade, da
alma do retratado. Além disso o jogo de olhares pode marcar a presença do
observador. Quando o olhar do retratado fixa o observador estabelece-se uma
ligação entre a realidade (ou a expressão da realidade) que se foi, e a ficção
que permanece.
A presença do observador é marcada no famoso retrato do casamento
de Arnolfini, de van Eyck (fig. 3). Primeiramente, através da inscrição na
parede, que marca a presença do pintor, e justamente acima do espelho que
reflete- além do casal de costas- o pintor e uma segunda testemunha da
ocasião que, ao que se leva a crer, seria um casamento. Neste caso, e também
a partir de toda a simbologia que envolve a composição, este retrato teria a
função de um documento.
Se o nosso subconsciente cria a expectativa de que o retrato nos dará
uma reprodução fiel da realidade ( por isso o fascínio exercido pelo gênero,
uma vez que se têm a impressão de que de certa forma o retratado ainda está
ali ), nem sempre o pintor (ou até o comanditário) teve a intenção de retratar o
que se via ,ou uma interpretação do que se via. Até a baixa Idade Média muitas
vezes imagens eram substituídas, como é o caso das efígies de alguns
príncipes que eram substituídas por de Imperadores Romanos, uma prova de
que, neste caso, a instituição era mais importante do que a imagem. Já citamos
o exemplo do Rei Carlos, que exigiu uma reprodução fiel da sua imagem,
mostrando que a pretensão de representar o real cresce , a partir de fins da
Idade Média.
Muitas vezes o pintor, seus modelos e seus comanditários obscurecem
intencionalmente as referências, tornando ainda mais obscura a interpretação
de um retrato. Esta interpretação que se busca envolve a questão de tratar-se
ou não de uma tentativa de representação do real, além de dar o acesso ao
pensamento simbólico da sociedade em questão (fig. 4).
Se as primeiras obras da escola flamenga caracterizam-se pela
preocupação em reproduzir a realidade exterior (que é caracterizada pela
preocupação com detalhe, o pormenor), os retratos pintados nos finais do
século XV foram, cada vez mais se preocupando com os estados íntimos, na
representação pictórica de atitudes mentais e morais. Essa tendência para a
psicologização gerava, em maior ou menor grau, um distanciamento da obra
em relação ao observador.
Natalie DAVIS5 nos recorda que o reconhecimento ou a identificação ,
em relações de intimidade, a noção de individualidade implícita neste
reconhecimento, só toma lugar como padrão de pensamento a partir da adoção
5In SCHNEIDER, Norbert. Op. cit. Nota 15
do direito Romano pela elite social. Neste caso o retrato era uma importante
forma de identificação do indivíduo, alterando a estética dominante e
intensificando as exigências naturais da imitação pictórica aproximada do real.
Esse critério da imitação fiel da realidade é mais tarde contrastado pelo
conceito de identidade expresso pela filosofia idealista alemã de Hegel. Em sua
Estética6, Hegel propunha que o retratista prestasse menos atenção ao caráter
exterior do modelo e mais a sua natureza espiritual. As normas estéticas
nascem a partir de estudos sobre proporções, sobretudo dos italianos. A
pintura de retratos da escola flamenga não se preocupa com os juízos de belo
ou feio, ou seja, estes pintores de retratos não se preocupavam em retratar um
ser humano idealmente proporcional, como aconteceria posteriormente.
A questão da tentativa de uma representação pictórica mais aproximada
do real, ou, por outro lado, mais preocupada com questões estéticas (conceito
do belo e proporcionalidade), assim como o princípio de uma tentativa de
psicologização por parte do pintor, levam a diferentes leituras e interpretações
de retratos. Uma vez que se parte de um princípio, qualquer que seja, a leitura
tomará determinado rumo. É por isso que a leitura de retratos, principalmente
se há o objetivo de traçar características psicológicas do retratado a partir de
sua fisionomia, pode ser problemática. Neste caso o mais correto seria
observar as relações existentes entre aspectos psicológicos e função social do
retrato.
2.2 O RETRATO NO BRASIL
No Brasil a pintura de retrato não teve uma tradição, mas pode ser
apresentada através de suas manifestações nos diversos períodos. No período
6 Idem, p. 23.
colonial a produção artística é quase que completamente voltada à
religiosidade. Enormes painéis são pintados mostrando figuras religiosas e
cenas bíblicas, sendo que esta intensa produção de arte sacra ocorre
principalmente nos estados do Nordeste. Dentre os pintores de painéis
religiosos do período destacaram-se José Joaquim da Rocha (autor da Nossa
Senhora de Assunção) e José Teófilo de Jesus, que, dentre inúmeros
trabalhos, decorou as paredes laterais da Capela do Santíssimo Sacramento
em Salvador.7 Nos estados do Sul os conhecidos retratos dos evangelistas são
de autoria do frei Jesuíno de Monte Carmelo.
Seguindo a tradição colonial, ressaltamos a obra de Manuel da Cunha,
filho de escrava e que viveu no Rio de Janeiro, e cuja alforria foi obtida em
função dos seus dotes artísticos. Além de painéis religiosos Manuel pintou
retratos como o do Conde de Bobadela (fig. 5), a pedido da Câmara Municipal,
e de Inácio Medela, em meados do século XVIII. O retrato do Conde de
Bobadela é considerado por Porto Alegre, que escreveu suas memórias em
1841, como sua obra-prima.8
A pintura de retratos de pessoas importantes e abastadas é
impulsionada pela vinda da corte para o Brasil. José Leandro de Carvalho,
autor do retrato de D. João VI, é considerado o retratista predileto da corte e da
nobreza do Rio de Janeiro. Após vencer um concurso instituído para a
execução de um retrato da família real, foi agraciado com a Ordem de Jesus
Cristo, transformando-se em poucos anos no pintor da burguesia portuguesa
da corte de D. João VI. Era ao mesmo tempo favorito do rei e da nobreza,
7 CIVITA, Victor. (Org.) Arte no Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1979. v.1, pág. 153
8 Sobre Manuel da Cunha ver A arte no Brasil, p. 262 vol.1.
sendo que retratos de D. João, D. Pedro I e Princesa Leopoldina são de sua
autoria.
Francisco Pedro do Amaral, considerado o último pintor fluminense
ligado à tradição colonial (dominada pelos estilos barroco e rococó) pinta
retratos importantes, como o da Marquesa de Santos (fig. 6). Este pintor
participou tanto da tradição colonial como das inovações trazidas pela Missão
Francesa, sendo professor substituto da Academia de Belas-Artes e aluno das
primeiras aulas ministradas por Debret.
A Missão Artística Francesa chegou ao Rio de Janeiro em 1816, para
ocupar os estabelecimentos de ensino criados pela Corte. As influências
sofridas pela chegada destes artistas vai marcar a cena artística no século XIX,
principalmente na região onde a corte estava instalada. O estilo Neoclássico
acompanha a Missão. Nesta fase o retrato de pessoas importantes continua a
se manifestar, como nos trabalhos de Jean-Baptiste Debret retratando
membros da família real e de cenas da Corte.
Alguns discípulos de Debret tornaram-se retratistas, como o pintor
Simplício Rodrigues de Sá, nomeado retratista oficial da Imperial Câmara em
1825, autor de retratos como o de Dona Maria II e de Dom Pedro I. (fig. 7)
Alunos da primeira geração formada pela Academia de Belas-Artes (finalmente
fundada em 1826) também se dedicaram à pintura de retratos de figuras
ilustres seguindo o estilo implantado pela missão.9 Desta primeira geração de
discípulos de Debret, formados pela Academia, destacam-se Manoel de Araújo
Porto Alegre, autor do retrato do Visconde de Sapucaí e Augusto Müller, que
9 Este panorama da Arte no Brasil foi traçado com base na Coleção Arte no Brasil, da Abril Cultural.
dedicou-se principalmente à pintura de retratos, como o de Dona Antônia Alves
de Carvalho (fig. 8)
Durante o século XIX grande parte da produção artística
brasileira é voltada para grandes cenas, bíblicas ou enaltecedoras do Império,
com destaque para as pinturas de Pedro Américo e Vítor Meireles, ambos
formados pela Academia de Belas –Artes, neste período a pintura retratística
não tem muita expressão.
Na transição do século XIX para o XX, e antecedendo o movimento
Modernista que eclode a partir da Semana de 22, o período em que se
encontram as manifestações artísticas brasileiras é denominado Belle Époque.
Este período caracteriza-se esteticamente pela grande variedade de estilos
apropriados dos movimentos que surgiram na Europa a partir de meados do
século; Neoclassicismo, Romantismo e Realismo. Neste período os retratos
pintados no Brasil não seguiam o mesmo estilo e nem cumpriam o mesmo
papel daqueles pintados nos períodos de Brasil Colônia e Brasil Império. Os
retratos desta fase em particular cumpriam diversas funções, de retratos de
cenas do cotidiano a retratos românticos, que não tinham o intuito de marcar
uma personalidade ou uma função social (fig. 9).
Alfredo Andersen pratica a sua produção artística, e mais
especificamente retratística da sociedade paranaense, neste período. Em
livros gerais de História da Arte no Brasil ele é situado no rol de artistas da
Belle Époque, por ser estrangeiro e ter tido formação na Europa, como a
maioria dos pintores do período. Apesar de ser contemporâneo a esta fase
denominada Belle Époque, Alfredo Andersen não tenta reproduzir, como os
pintores que podem ser enquadrados nesta fase, estilos característicos de
movimentos europeus ocorridos em meados do século XIX. Apesar de adotar
temáticas semelhantes as destes estilos (como as pinturas de gênero, cenas
do cotidiano, e paisagens locais), não se pode afirmar que Andersen tenha se
aproximado destes estilos.
2.3 A ARTE E O RETRATO NO PARANÁ
Até o estabelecimento do pintor Alfredo Andersen na capital paranaense
pouco se sabe sobre a produção artística (no que se refere às artes plásticas)
no Estado. Isto não significa que esta produção tenha sido inexistente, apenas
alcançou pouca expressividade, ou ainda não foi suficientemente estudada. Em
análise sobre as artes no Paraná, Carlos RUBENS10 chega a afirmar: ”O
Estado do Paraná permanece durante longuíssimos annos, entre os Estados
sem arte .(...) Se a situação na metrópole era precária, nos Estados era pior,
principalmente pela falta de ensino de desenho, indispensável às artes e à
indústria”.
Por estes motivos não se pode traçar nenhuma análise que caracterize a
pintura paranaense do período ou apontar características do gênero retrato.
Traçaremos um panorama dos pintores que estiveram no Paraná até o início
do século XX. Ressaltaremos que as pinturas de retratos que pontualmente
serão citadas não apresentavam o mesmo caráter daqueles retratos pintados
de membros corte e de famílias abastadas. No caso dos retratos pintados no
Paraná, eles constituíam mais um exercício da técnica, do que a tentativa de
representar alguma personalidade.
10 RUBENS, Carlos. Andersen. Pai da pintura paranaense. São Paulo: Genauro Carvalho, 1939, p. 14.
Frederico Guilherme Virmond é apontado como o primeiro pintor a
radicar-se no Paraná, tendo aqui chegado em 1883, procedente do Rio de
Janeiro.11 Alemão casado com portuguesa, resolveu permanecer em Vila Nova
do Príncipe, hoje Lapa, quando ali passava em direção ao Rio Grande do Sul.
Viveu 43 anos na Lapa (até 1823), onde exerceu diversas atividades; médico,
farmacêutico, construtor, compositor e pintor. Sua obra artística destaca-se
pelas miniaturas sobre marfim, pelica e papel. Na pintura destacou-se pelos
retratos de personalidades como Dom Pedro II e Carlota Joaquina, podendo
portanto ser considerado como o primeiro retratista a morar no Paraná.
John Henri Elliot, nascido nos EUA em 1809, foi encontrado em São
Jerônimo da Serra, Paraná, em 1874, dez anos antes de sua morte. De sua
produção pictórica , as mais antigas que se tem conhecimento são aquarelas
do Salto de Dourados, no Rio Paranapanema, de 1845. Retratou em aquarela
algumas cidades paranaenses, inclusive Curitiba em 1855, sendo este o
quadro mais antigo da paisagem curitibana que se tem notícia. Não se sabe se
Elliot dedicou-se à pintura de retratos especificamente.
Outro pintor de que se tem notícia, e que apesar de não ter se
dedicado ao gênero retrato pode ser considerado importante por constituir o
panorama das artes plásticas no Paraná no século XIX, é Guilherme Michaud.
Nascido em Vevey, Suíça francesa, em 1821 veio para o Brasil em 1849, para
trabalhar em uma fazenda no Rio de Janeiro. Chega em Superagui em 1854,
convencido pela propaganda de colonização do sul. Casa- se com uma filha de
pescadores locais com quem tem nove filhos. Em Superagui Michaud exerce
funções de professor, Juiz de Paz e agente postal. Sua obra artística é
11 Segundo a revista Panorama das Artes no Paraná, publicada pela Fundação Badep.
destacada em Paisagens Brasileiras, de Visconde de Taunay, que visitou a
península em 1885.
Destacaremos neste pequeno panorama a pintora Iria Correia. Seu
destaque se deve ao fato de ter sido a primeira pintora, de que se tem
conhecimento, nascida no Paraná (Paranaguá, 1839) , podendo por isso ser
considerada pioneira. Iria aprendeu técnicas de pintura com a professora
Jessica James, uma americana que lecionava no Colégio de Meninas. Mais
tarde aperfeiçoou-se com a Sra. Zoé Toulois, francesa que estava em
Paranaguá em função da construção da estrada de ferro. Na sua obra
encontram-se retratos, naturezas mortas, paisagens e composições. Seu
primeiro trabalho assinado data de 1856. Em 1866, participou da Exposição
Provincial do Paraná, realizada em Curitiba. Retratou pessoas da família e
personalidades de Paranaguá.
Outra personalidade importante na história da pintura no Paraná foi
Antonio Mariano de Lima. Nascido em Portugal, onde estudou cenografia,
desenho, pintura e escultura, veio a Curitiba em 1882 para fazer a decoração
do Teatro São Teodoro, a convite de Visconde de Taunay. Acabando a
decoração o pintor entrou com um projeto da fundação de uma escola de artes
e indústria, que funcionou de 1887 a 1900 sob sua direção (esta escola foi
importante para as artes plásticas no Paraná pois formou alunos como Paulo
D’Assumpção e João Turin, e foi esta escola que atraiu Alfredo Andersen
quando da sua primeira visita à capital). Apesar de ter um projeto de edifício
para a escola, Mariano de Lima deixou repentinamente a cidade em 1900.
Como podemos perceber, alguns artistas, anteriores a Andersen,
estiveram no Estado e retrataram as paisagens e a gente do Paraná (retratos).
Apesar destas obras serem pouco reconhecidas e estudadas elas constituem a
história da pintura no Paraná.
3 ALFREDO ANDERSEN: VIDA E OBRA
3.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E FORMAÇÃO ARTÍSTICA
No ano de 1892 desembarca no Porto de Paranaguá um jovem loiro, de
olhos azuis, estatura mediana, aparência nórdica. Naquele porto movimentado,
localizado em uma cidade eclética na população, desponta o jovem
carregando a sua bagagem e algumas telas. Trata-se do pintor norueguês
Alfredo Andersen que desembarcava do navio que o levaria a Argentina.
Natural de Cristiansand, pequena cidade ao sul de Oslo, na Noruega,
Alfredo Emil Andersen nasceu a 3 de novembro de 1860. Ao que tudo indica,
seu pai, comandante de um navio, gostaria que o filho estudasse engenharia
naval. Entretanto as viagens que Alfredo fazia acompanhando o pai parecem
ter estimulado mais significativamente o gosto pelas artes. Na Itália (para onde
foi com 14 anos com o intuito de entrar para uma academia), toma
conhecimento de grandes mestres da pintura, inclusive retratistas, como
Tintoretto, Tiepolo e Veronese. Antes de iniciar seus estudos em engenharia,
Andersen, então com 16 anos, envia desenhos para o pintor de decorações e
cenógrafo Wilhelm Krogh, que o aceita como aluno, na capital do país,
Cristiania (hoje Oslo).
Desistindo definitivamente dos estudos em engenharia, Andersen
ingressa, em 1879, na Academia de Belas-Artes em Copenhague, a mais
importante academia de artes da Escandinávia. Por quatro anos Andersen
acompanhou as aulas e lecionou na escola de desenho do Dr. Thelmann.
Acompanhando as tendências da Academia, o pintor ministrava sua disciplina
abolindo a cópia de gravuras impressas e adotando o uso do modelo-vivo. Seu
excelente desempenho como professor o levou a ser convidado a lecionar em
um ginásio.
No ano de 1883 Andersen retorna a Cristiansand onde abre um ateliê.
Realizou a sua primeira individual em 1884 e foi bem aceito pela crítica e pelo
público comprador. Até o ano de 1889 viveu da sua pintura na cidade natal,
vendendo paisagens e retratos, realizando exposições e participando
efetivamente da cena artística e cultural, o que pode ser comprovado pela
colaboração em diversos jornais.
Em 1889 Andersen parte para um cruzeiro de estudos. Na França,
vende um quadro para a coleção do Rei Oscar II ( Luar no mar). De Paris
Andersen retorna a Noruega para pintar alguns retratos, atividade que já tinha
se tornado a sua fonte de renda. Em 1891 pinta em Cristiansand o famoso
retrato do escritor Knut Hamsund, quando este estava fazendo um ciclo de
palestras na costa sul da Noruega.
Sobre as idéias que circulavam na Noruega nestes anos, historiadores
da arte norueguesa apontam o surgimento do movimento naturalista, e dentro
deste, Alfredo Andersen é apontado como um dos líderes da corrente ultra
naturalista, que teria se irradiado da Alemanha para a Escandinávia, nas
proximidades de 1880 :”Andersen, companheiro de geração de Knut Hamsund,
o grande novelista de ‘Vitória’, de Asta Nielsen, a criadora do cinema-arte, de
todas as mais altas figuras representativas do naturalismo humaníssimo que
sucedeu a palpitação trágica e ao ideologismo social de Ibsen e Kirkegaard”12
No ano de 1891 o pintor embarca em um navio que viajaria por diversos
países. Visita, entre outros lugares, México, Barbados, Inglaterra, e, no Brasil, a
Paraíba do Norte. Na Inglaterra estuda técnicas de pintura de retratos. Em
1892, partindo da Inglaterra, Andersen decide fazer uma viagem a América do
Sul. Nesta viagem, por motivos controversos (uma quebra no motor do navio,
uma briga a bordo, ou a tentativa de esquecer um amor), o artista desembarca
em Paranaguá.
Ao chegar ao Brasil a sua formação artística já se encontra consolidada.
É interessante ressaltar que a sua trajetória artística se deu, no tempo e no
espaço, concomitante a outros movimentos. No espaço de tempo em que
Andersen permaneceu na Europa , de 1860 a 1891, uma infinidade de
movimentos artísticos, chamados de vanguardas, eclodiram e tiveram as suas
idéias espalhadas através da capital artística que era Paris.
Edvard Munch foi um dos artistas que se aproximaram de Andersen.
Ambos nasceram no início da década de 60 (1863 e 1860), em cidades muito
próximas (Drammen e Cristiansand), mas seguiram carreiras artísticas
distintas. Edvard Munch externou a sua insatisfação à ordem estabelecida e
aos padrões artísticos no seu estilo, e na origem psicológica da sua pintura.
Munch, assim como seus compatriotas Ibsen e Strindberg, estava muito mais
preocupado com sentimentos do que com objetos, e acima de tudo, com os
seus efeitos sob as pessoas e seus relacionamentos. Essa nova temática, que
privilegia mais as sensações do que a representação de objetos figurados, é
extremamente inovadora e faz parte da série de mudanças que ocorre na arte
a partir de fins do século XIX. Mudanças políticas, sociais, econômicas e até o
avanço tecnológico- como por exemplo o advento da fotografia, que possibilita
na pintura uma série de outras leituras da realidade, como esta de Munch a
partir de sensações- fornecem o pano de fundo para uma série de mudanças
12
Revista Festa, Rio, 1928.
na concepção do eu (aqui podemos até citar os avanços da psicanálise) e na
sua exteriorização pela arte.
Munch é apontado como um dos representantes do movimento
expressionista. “O que era em certo sentido peculiar e particular em Munch era
que dentro da sua formação européia tradicional, ele forjou uma técnica visual
expressiva, combinando a linha da Art Nouveau com cores que variam do ácido
ao sentimental em uma composição vigorosa que com freqüência remete a Van
Gogh.”13
Essa aproximação estilística de Munch e Van Gogh não parece ter sido
acidental, uma vez que Munch estabeleceu contato com este e mais Paul
Gauguin em viagem a Paris em 1889. Munch teve contato também com
pintores alemães. Em 1892 ele é convidado a expor na Verein der Berliner
Künstler, tendo a sua exposição fechada pelos organizadores após grande
controvérsia, o que ajudou a chamar a atenção de pintores alemães, levando a
fundação da Berlin Secession.
Os movimentos de vanguarda que apareceram nesta época eram
fundados por artistas de formação tradicional como Munch, Van Gogh,
Gauguin, Klimt (Andersen vinha da mesma formação, apesar de não fundar
nenhuma vanguarda). E, nestes movimentos, os artista vão contra os ideais de
sua formação artística acadêmica e contra o sistema político e cultural
estabelecido, o que fica bem claro no movimento Secessionista Vienense.
Estes artistas utilizam-se da técnica e da cultura que lhes foi ensinada e
devolvem à sociedade uma outra concepção de arte.
13 BRITT, David. (Org.). Modern Art: Impressionism to post-modernism. London:Thames and Hudson, 1992, p. 124
É também nesta época que a existência de apenas um centro produtor
de cultura desaparece. Paris continua a ser um ponto de referência em matéria
de idéias, mas não é mais o centro produtor de movimentos artísticos. A
circulação de informações dá-se a partir de Paris, mas surgem outros pólos
produtores de cultura: Alemanha, Espanha, Áustria, Itália, Escandinávia. Todos
estes movimentos têm características comuns: são movimentos periféricos, e
querem romper com a arte tradicional que sempre remetia ao centro –Paris.
Cada movimento, ou pintor em particular, externou este desejo de forma
distinta, em sua arte ou na sua trajetória de vida.
No caso do movimento Secessionista Vienense, a ruptura se deu
através de um novo estilo de arte. Esta nova concepção tinha um caráter
político-contestador, e rejeitava o realismo fisicista em que tinha sido criada. O
pintor Gustav Klimt liderava este grupo de artistas heréticos de idéias
semelhantes. “ Com outros intelectuais da sua classe e geração, Klimt partilhou
de uma crise de cultura, caracterizada por uma combinação ambígua entre
revolta edíptica coletiva e busca narcisista de um novo eu. O movimento da
Secessão na arte moderna-equivalente austríaco do art noveau- expressou a
busca confusa de uma nova orientação de vida na forma visual.”14
Após alguns anos de reclusão social, decorrentes até do caráter do
movimento que liderava, Klimt ressocializa-se como pintor da elite, e dedica
seus talentos a pintura de retratos. É interessante notar que Klimt conseguiu
marcar seu estilo até neste gênero que é tão ligado a um tradicionalismo
acadêmico. Em uma série de retratos pintados entre 1904 e 1908 Klimt estende
o domínio do ambiente para a pessoa representada, sendo que o próprio
14 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 203.
ambiente torna-se cada vez mais abstrato e figurado, com elementos que
servem de ornamentação ou de sugestão simbólica.
Estes retratos de Klimt são chamados de a-sociais, justamente pela
mescla de realismo e símbolos. No retrato de Margaret Stonborough-
Wittgenstein, encomendado pelo pai da moça como presente de casamento, o
rosto e as mãos da figura mostram serenidade e refinamento, e o corpo se
perde nas roupas como dita a tradição retratista mais antiga. Já o segundo
plano é tratado de modo novo, como um espaço hermético e estilizado, um
quadro belo mais irreal para a vida do sujeito. No retrato de Frizta Riedler (fig.
10) , a estilização do ambiente estende seu poder até o sujeito humano. A
janela em mosaico retrata o mundo exterior da natureza, trazendo-o para
dentro do desenho, emoldurando o rosto da pessoa como se fosse um toucado
(semelhança que remete a um retrato de Velasquez). A ambientação do retrato
faz uma alusão estilizada a história aristocrática.15
A revista norueguesa Kunst & Kultur, de 1940, aproxima a
trajetória de Alfredo Andersen a do pintor Paul Gauguin. A grande inovação
trazida por Gauguin para a arte foi a ligação entre dois mundos, o pintor
conseguiu viver a existência que evocou na sua obra, mostrou que o exotismo
do Pacífico Sul era algo mais do que a magia artificial que fascinava a Europa
através de reportagens jornalísticas. Nesta aproximação não há referência ao
estilo, uma vez que Gauguin é localizado no movimento simbolista, que
caracteriza-se pela existência de uma idéia independente na pintura. Em
comparação a Van Gogh, sobre Alfredo Andersen se diz: “Tal como Van Gogh,
o qual, segundo as observações de Jean Alzard, procurou encontrar durante
15 Idem, p. 232.
anos, mas só ao conhecer a Ile de France e os horizontes mediterrâneos é que
adquiriu verdadeira consciência do seu valor, o artista norueguês se libertará
sob o influxo dos relumbramentos tropicais, e ganhará inteira majestade
vencendo os desafios dêstes planaltos. E isso porque não só as coisas aqui
pareciam vibrar como se fôssem sêres. Também a alma , a ansiedade, o sonho
engrandeciam a paisagem.”16
Na biografia escrita por Valfrido Piloto, a formação artística de Andersen
é caracterizada como “artística clássica, por isso seu trabalho pode ser
considerado fecundo e admirável de uma Academia”17. Andersen é
considerado, nesta biografia, como um pintor de orientação clássica, que
“resiste a todas as turbulências vanguardistas, a pororoca revolucionária, aos
demolidores como Andrés Rexesz, que defendendo o cubismo afirmava que a
pintura do século XIX e do início do XX deturpava a realidade, exigindo com
Picasso e outros a frente, a proscrição da beleza na arte”18. Para Andersen
“sem verdade não há arte, é nela que está a beleza”. Talvez seja por isso que
admita-se que a obra de Andersen não fora revolucionária, face à vanguarda
européia, ou a brasileira dos anos 20 e 30, mas de uma beleza profundamente
sincera.
Andersen tinha a necessidade de fundir a arte na realidade. Para ele “a
arte era representação emocional do motivo vivido na natureza e na luta
quotidiana do mundo”. Concorda portanto com Fernando Pamplona que diz: “o
fim da arte é agradar a sensibilidade, encher de poesia ou de intensidade
16
PILOTO, Valfrido. O acontecimento Andersen: registros sobre a vida e a glória de Alfredo Andersen. Curitiba: Mundial, 1960,p. 10.
17 Idem, p.9. 18 Idem, p. 43.
dramática o mundo das cousas, revelando-nos a sua graça oculta- é enfim,
lapidar, enriquecendo-o , o diamante bruto do real”19.
As grandes viagens realizadas por Andersen, antes do seu
estabelecimento no Paraná, denotam um desejo de sair do circuito europeu e
livrar-se de certas amarras do tradicionalismo da cultura européia, assim como
a vontade de experimentar um outro estilo de vida. Os motivos que o levaram a
estabelecer-se justamente em Paranaguá, e posteriormente em Curitiba,
depois de ter conhecido tantos outros lugares no mundo, ainda parecem
obscuros para muita gente. Uma norueguesa da passagem por Curitiba, Sra.
Aslaug Sigmond, que depois veio a se tornar amiga do pintor perguntou como
Andersen havia parado aqui, e obteve a resposta: “Porque gosto daqui.”20
Em Paranaguá o jovem conhece a descendente de índios Carijós, Ana
de Oliveira, com quem iria posteriormente casar-se e ter quatro filhos. Durante
os dez anos em que fica na cidade Andersen pinta paisagens, o porto, cenas
cotidianas e retratos. Leciona e troca suas obras por mercadorias, para poder
sobreviver.
Andersen estabelece-se em Curitiba quando vem, a convite da família
Cenjart, para pintar um retrato, em 1903. Andersen já visitara Curitiba em 1893,
quando conheceu a Escola de Belas Artes e Indústrias, na época administrada
por Antonio Mariano de Lima (transformada posteriormente em Escola
Feminina, e descaracterizada completamente). Andersen acreditava que um
país só adquiriria desenvolvimento pleno, se a seus cidadãos fosse ensinado
19 Idem, p. 54. 20 Revista Kunst & Kultur, 26, 1940.
técnicas de desenho e pintura. Andersen afirmava: ‘ um país poderá atingir a
independência econômica através do desenho’21.
Em Curitiba, Andersen concilia a sua produção artística com o
magistério. Apesar de nunca conseguir fundar uma escola assim como
concebera, Andersen lecionou na Escola Alemã e dava aulas particulares na
sua residência, hoje Museu Alfredo Andersen, desde 1915. Na sua escola,
ensinava desenho e pintura principalmente para moças de família, mas seu
maior desejo era criar uma escola pública de desenho.
O título que Alfredo Andersen recebe de ‘pai da pintura paranaense’,
tanto em suas biografias como em artigos de jornais, se refere mais
especificamente a sua atividade como professor do que a sua obra. “Alfredo
Andersen assume um caráter sensacional e de enorme importância para o
ensino artístico no Brasil.(...) Faz mais do que qualquer estrangeiro: funda a
pintura paranaense. Andersen ensina e enriquece o Paraná com uma plêiade
de artistas que honram o Brasil e preparam novos valores. Durante quase meio
século o pintor norueguês produz e ensina, tornando-se o Pai da pintura do
Paraná”22
Quando o Dr. Vicente Machado ( retratado por Andersen em 1906) era
governador do Estado promete a Andersen sua Escola de Belas Artes, quando
este decidira voltar à Noruega, promessa que nunca cumpriu. Em meados da
década de 20 é a vez de Affonso Camargo de prometer a escola sonhada por
Andersen, porém mais uma vez o projeto é engavetado em função da
revolução de 30. O fato de o governo paranaense nunca ter dado os subsídios
21
RUBENS, Carlos. Andersen: o pai da pintura paranaense. São Paulo: G.Carvalho,
1938, p. 23.
necessários à construção do projeto da escola leva a uma série de críticas,
como a de Valfrido Piloto, na revista Cruzada, publicação paranista de 1933:
“Oxalá, um dia, o govêrno paranaense que deseje alcançar para si um dos
mais invejáveis títulos de benemerência, qual o do protetor da cultura artística,
resolva efetivar a creação da Academia de Belas Artes do Paraná, colocando,
conforme antigas, reiteradas e sempre falhadas promessas- o glorioso mestre
a frente dessa escola. Nesse dia o Paraná terá pago uma dívida de honra, e
levantado uma obra que se faz cada vez mais imprescindível”.
Em vida o pintor e ‘mestre’ recebeu do governo do Estado o título de
cidadão honorário de Curitiba, título inédito na cidade. “Curityba fará obra de
inteira justiça lhe conferindo o título de cidadão paranaense, em homenagens
aos seus esforços pela preocupação artística dos nossos conterrâneos, e pela
divulgação das feições maravilhosas da nossa natureza”.23
O mérito do artista é portanto ressaltado, por críticos e jornalistas da
época, pela sua produção paisagística e pela formação de uma geração de
pintores nascidos no Paraná, como Frederico Lange de Morretes, João Ghelfi,
Gustavo Kopp, Maria Amelia de Assumpção, Estanislau Traple, Thorstein
Andersen, Theodoro de Bona, Annibal Schleder.
A partir do início do século ,e durante a permanência de Alfredo
Andersen em Curitiba, a cena artística e cultural da cidade é marcada pela
grande circulação de idéias, que caracteriza um ambiente de efervescência
cultural, um dos reflexos do surto econômico da erva mate que ocorre neste
período. Como resultado deste momento de fertilidade um grande número de
publicações circula na cidade, discutindo questões acerca da cidade.
22 Idem, p. 25. 23 Revista A República, 28 de junho de 1926.
Nestas publicações são abordados temas como o progresso e a
boêmia, a modernidade e a urbanização, temas que condiziam com o ideário
impregnado nas cidades brasileiras no início do século XX. Outras revistas
divulgam idéias de movimentos específicos, como o paranista e o simbolista. O
pintor Alfredo Andersen não participa diretamente destes movimentos, mas
exerce a sua atividade artística neste meio, e, o mais importante, propicia,
através da sua atividade como professor, o respaldo técnico para a formação
de uma primeira geração de pintores.
‘Cada quadro foi sendo um teste convincente, naquela paranização de
Andersen. O interêsse estava no pinheiro, e êste sugeria que buscasse, o
artista, nas múltiplas vidas que se retratavam em sua imponência. “24
A produção artística de Andersen, tanto em linhas gerais como quando
este estava em Curitiba, constitui-se de três linhas temáticas; paisagens, cenas
do cotidiano e retratos, sendo que algumas vezes os temas encontram-se
mesclados em uma única obra. A sua obra paisagística é considerada
particularmente importante pelo pioneirismo em relação a representação da
paisagem paranaense. As imagens reproduzidas pelo pintor são
posteriormente evocadas e apropriadas pelo movimento paranista.
3.2 RETRATOS
A obra retratística de Andersen é regularmente mencionada, mas tanto
nas suas biografias como nos artigos de publicações que circulavam nas
primeiras décadas do século, esta seção da sua produção não é evocada nem
enaltecida. Através do panorama traçado das artes no Paraná podemos
perceber que Andersen também pode ser considerado pioneiro na pintura do
gênero retrato, principalmente levando-se em conta que ele foi o primeiro pintor
a retratar toda uma geração de pessoas ( tanto pela quantidade como pela
variedade de retratos ). A obra retratística de Andersen também deve ser
enfatizada por tratar-se da mais extensa no conjunto de sua obra.
Alguns trechos de publicações da época ressaltam a importância do
gênero retrato, tal como na revista República de 1926: “Nos trabalhos do
professor eminente não há o que preferir. No retrato, difficilmente se encontrará
hoje, em todo o nosso paiz, quem se aproxime do seu pincel maravilhoso que
faz viver a figura, que ella imprime o caráter personalíssimo que lhe é próprio, a
par de uma técnica magistral do desenho e colorido.” Ou na Revista Festa, de
1928: “Como retratista Andersen é muito pessoal no que se refere ao colorido.
Quase nunca vê as cores que nós, brasileiros temos. Vê-nos vermelhos, como
são os seus patrícios escandinavos. Em compensação, a construção, o
desenho são sólidos e acertados. A psicologia, excelente”. Na Illustração
Paranaense, de 1930: “ Este mesmo artista, que desde o início de sua gloriosa
carreira pendeu por excellencia para o lado do difficilimo retrato, no qual se
revelou um profundo pesquisador de segredos no caracter physionomico,
conseguindo realizar neste campo da arte inconfundíveis producções...”
Um dos retratos mais famosos referidos na época é o de Knut Hamsund,
pintado por Andersen ainda na Noruega. Quando o pintor retorna ao Brasil,
depois de uma temporada de dois anos na terra natal (1926-1928), traz consigo
este retrato além de outros por lá executados. O retrato de Hamsund adquire
em Curitiba um valor especial, pela composição e pela natureza do retratado.
“O governo norueguês ofereceu-lhe a direção de uma escola de pintura.
Andersen recusou e retornou ao Paraná, trazendo inúmeras telas, pintadas na
24
PILOTO, Valfrido. Op. cit, p. 32
mocidade, entre as quaes um primoroso retrato do grande escritor Knut
Hamsund”25. A importância do quadro como documento é ressaltada em artigo
da Revista Festa, 1928: “O artista nos volta, trazendo, por ele realizada, uma
admirável galeria de paisagens e de retratos da gente de mais relevo de sua
terra, de Knut Hamsund, e de outros menos conhecidos aqui, e que, por
felicidade do Brasil (assim ganham tão preciosos documentos), eram amigos
do artista”. Este retrato de Hamsund foi depois adquirido pelo Sr. Sigmond, um
amigo norueguês do pintor que morava no Brasil.
Essa recorrência do gênero pode ser explicada por alguns fatores.
Primeiramente devemos lembrar que pintar retratos era uma atividade rentável,
e que no caso de Andersen era provavelmente a sua mais importante fonte de
renda, que além de pagar as contas servia de subsídio para a realização das
aulas de pintura realizadas em sua residência-ateliê. Outro fator que
possibilitou o enorme número de quadros deste gênero foi o desejo das
pessoas de serem retratadas por Andersen, desejo este que pode ter várias
razões.
A existência de um motivo maior que o simples desejo da representação
por parte dos retratados ou pelo seu comanditário é expressa pelo fato da
cidade no início do século estar voltada para o progresso, para o uso da
máquina, sendo que seria mais óbvio o uso da fotografia para esta
representação. Em revistas da época26 percebemos a recorrência da temática
da ‘máquina’, enaltecendo a técnica. ‘O mercado agora lhe oferece (ao
burguês) a possibilidade de adquirir uma série de objetos que são a última
25 Revista Illustração Paranaense, n. 6 ano IV, 1930. 26 MONUMENTA. Crônicas de revistas do início do século em Curitiba. 1907-1914. Curitiba : Aos Quatro Ventos, 1998.
palavra em termos de produção técnica, objetos que passarão a figurar no
interior da casa, alterando, em determinados momentos, as relações sociais e
o espaço interior. Se antes havia retratos a óleo nas paredes, certamente agora
haverá um móvel que passará a exibir retratos fotográficos’27. O que levaria
então a esse interesse pela representação através da pintura ?
Esse interesse tardio pelo gênero, que como vimos na Europa Medieval
e no Brasil colonial trazia o intuito de uma representação distinta do indivíduo,
pode ter sido gerado, primeiramente, pela anterior falta deste tipo de pintura,
assim de forma mais consistente, no Estado do Paraná. A trajetória de
Andersen foi tão reveladora que chega a modificar uma psique coletiva,
embelezando e enriquecendo a sociedade, e acaba se transformando em um
ato coletivo de contrição e reconhecimento.28
O desejo de uma representação distinta do indivíduo também pode ter
impulsionado esta vasta produção. Grande parte das telas encomendadas
eram de políticos ou pessoas ilustres da alta sociedade, o que pode mostrar o
desejo de uma representação distinta, neste caso daqueles que só poderiam
(ou talvez nem isso) ver o seu rosto estampado em fotografias.
Não se sabe ao certo quantos retratos Andersen pintou durante a sua
permanência em Curitiba. Este número torna-se ainda mais aproximado pelo
fato de que grande parte dos retratos de que se têm conhecimento não levam a
sua assinatura, sendo portanto atribuídos a Andersen. O Museu Alfredo
Andersen tem em registro hoje (tendo em vista que o número de retratos de
Andersen que se toma conhecimento cresce regularmente) cerca de 300
retratos (dentre assinados e atribuídos).
27 RUBENS, Carlos. Op. cit., pág. 18.
Grande número dos retratos pintados por Andersen no Paraná é de
políticos, ou outras pessoas públicas importantes. A tentativa de representação
do poder é evidente. Muitos desses retratos eram encomendados por
instituições, e não necessariamente pelo retratado. Em uma carta de Andersen
a Valfrido Piloto ele menciona que iria conversar com o então presidente da
província, Dr. Affonso Camargo, para tratar da Escola de Desenho e da
execução de retratos para a Galeria de Presidentes, encomendada pelo
governo do Estado.
Estes retratos de políticos são muito semelhantes na sua composição.
Em sua maioria trata-se de bustos, sem a utilização de cenários no espaço
pictórico, apenas com o uso de fundos de cores neutras, algumas vezes o
escuro homogêneo, outras tons de verde, e outras raras vezes tendendo para o
vermelho. O uso de cores vivas nos seus retratos, acompanhando a sua
formação nórdica é muitas vezes criticado:”... da mesma forma, a quente
coloração de carnes, sistematicamente rubra, que parece, trouxera da arte
flamenga, se lhe tem modificado, o que naturalmente se havia de dar em um
artista de tão séria e meticulosa faculdade de observação” 29. Andersen
preparava as suas próprias tintas, como consta em artigo da época: “Métier
excelente à velha maneira clássica, aprendida diretamente dos trabalhos de
Leonardo, Andersen faz ele próprio as suas tintas, ele próprio prepara suas
telas, como faziam na Renascença”.30
Durante as sua aulas muitas vezes Andersen propunha aos aprendizes
que confrontassem retratos pintados por ele, como entre numerosíssimos
28 Baseado na descrição de Valfrido Piloto, p. 11 e 13. 29 PILOTO, Valfrido.Op. cit. p, 59. 30 Revista Festa, 1928.
exemplo, dois retratos, dos ex-presidentes de Estado e senadores Carlos
Cavalcanti e Generoso Marques. “Era um contrapor de estilos diversos, era a
evasão do sombrio para os contrastes saudáveis, a superação do antigo, do
academicismo, por algo irriquieto, sem rótulos de escolas, culminando, mesmo
o acento revolucionário, ao ser estudado o último retrato da esposa do artista,
ou de Monsenhor Celso, ou aquela decisiva eclosão da juventude e de
provocante modernidade, que é o seu auto-retrato.”31
Em muitos dos retratos de políticos, falando particularmente dos bustos,
a expressão facial é valorizada, principalmente, quando o fundo é escuro. Em
muitos destes bustos o retratado não mira o espectador, olhando ligeiramente
para fora da tela. Este artifício gera uma maior distância entre o observador e o
retratado, deixando assim a imagem também mais distante, ficando mais claro
o caráter da representação do poder, como é o caso dos retratos de Moreira
Garcez (fig. 11), João Negrão (fig. 12), Affonso Camargo (fig. 13) e Francisco
Negrão (fig. 14).
Destes quatro retratos o de Moreira Garcez parece o mais informal, talvez
pelas vestimentas, um pouco menos sóbrias, e do sorriso sugerido em seus
lábios, que denotam ligeira expressividade. Podemos perceber que em todos
esses retratos a expressividade se dá apenas através do olhar, sendo que
Manoel Carneiro ainda é retratado com marcas de expressão na testa. Affonso
Camargo, o único que olha levemente para o espectador e volta-se para o lado
esquerdo, é retratado com seus óculos inseparáveis, que marcam a sua
personalidade.
Romário Martins e Francisco Negrão miram diretamente o espectador. O
busto de Francisco Negrão, mais fechado em seu rosto em relação aos
demais, destaca-se pela expressividade alcançada. O artifício utilizado por
Andersen de uma perspectiva um pouco mais de baixo (muito utilizado por
31 PILOTO, VALFRIDO. Op. cit. p. 17
Rubens quando este retratava aristocratas), deixa o retratado com um incrível
ar de superioridade, realçando a sua dignidade e seu estatuto social. O fundo
escuro ressalta as cores de seu rosto. O retrato de Romário Martins
assemelha-se muito do de Manoel Carneiro, tanto no enquadramento como no
uso das cores, com a diferença que Romário Martins olha fixamente para o
observador.
Igualmente um busto, um dos retratos de Generoso Marques (fig. 17)
(1929), difere dos outros bustos analisados anteriormente pela posição do
retratado, praticamente de perfil, perspectiva reminiscente da tradição antiga de
retratos. A escolha desta perspectiva por Andersen pode ser interpretada como
uma tentativa de afastar ainda mais os olhares do observador, uma vez que
trata-se de uma homenagem póstuma, possivelmente encomendada por uma
instituição. Neste retrato Generoso Marques mira um ponto fora do quadro,
distante. A sua aparência e as suas vestimentas são muito semelhantes às do
outro retrato pintado por Andersen em 1912, o que leva a crer que o pintor
baseou-se em uma foto ou no próprio retrato anterior.
As semelhanças, técnicas e de composição, destes retratos que
mencionamos pode ser explicada pela semelhança entre os retratados, todos
políticos notáveis, e pela finalidade dos retratos, ilustrar galerias ou pinacotecas
mostrando para a população o poder público. A função social destes retratos,
mesmo antes de estes serem concebidos por Andersen, era a de representar o
poder. Estes retratos também se assemelham nas suas dimensões. Nestes
retratos Andersen busca um estilo acadêmico, com traços bem delimitados,
que dê conta de aproximar a imagem de uma representação realista.
Políticos também foram retratados em composições de três-quartos,
sentados, como é o caso do primeiro retrato de Generoso Marques (fig. 18), e
do retrato de Francisco Xavier (fig. 19). Neste caso a semelhança encontra-se
no enquadramento. O quadro de Francisco Xavier é o menos formal, tanto pela
expressão do retratado, que parece muito à vontade, como pela ambientação,
o tipo de poltrona, a mesa com alguns escritos, que tanto poderiam ser objetos
de uso privado como público. A vestimenta formal segue a linha da
representação dos homens públicos. Este é um dos poucos retratos de
pessoas públicas em que Andersen utiliza-se de cenário para enriquecer a sua
composição.
Já o retrato a três-quartos de Generoso Marques não tem ambientação,
e a poltrona é de gabinete, o que dá um caráter mais formal para o quadro.
Este retrato não foi encomendado para fazer parte da galeria de presidentes, e
sim, provavelmente, para decorar um gabinete, como o faz até hoje, no salão
da diretoria do Museu Paranaense, antigo palácio do governo. Nestes dois
retratos a três-quartos, o retrato mira o espectador, gerando menos
formalidade, e no caso de Generoso Marques, Andersen utiliza-se de detalhes
(vestimentas e acessórios), para construir o personagem. Em Francisco Xavier
os detalhes no retratado não são tantos, a personalidade é construído pela
expressão e pelos objetos do cenário.
Andersen também recebia encomendas de damas da sociedade.
Analisaremos quatro retratos que parecem, pelo seu estilo, encomendados por
senhoras da sociedade, ou pelos seus maridos ou família. A formalidade
destes quadros afasta um pouco a possibilidade de eles terem sido um
presente de Andersen para as retratadas. Nestes retratos, todos bustos com
fundo escuro e homogêneo, o pintor preocupa-se com os detalhes que
remetem à feminilidade, nas vestimentas das retratadas, uma vez que não há
fundo com cenário nem ambientação (apenas o encosto de uma cadeira no
retrato de Anna Albina Alves Branco- fig. 20).
O retrato de Emília Ericksen (FIG. 21) foi provavelmente um daqueles
trazidos por Andersen quando este retornou da Noruega (junto com o famoso
de Knut Hamsund), uma vez que não se tem referência à esta dama por aqui, e
pela natureza do seu sobrenome. Neste retrato a sóbria feminilidade é
ressaltada pelo véu que esconde o cabelo e cai pelo rosto, e pelo detalhe do
ornamento cor-de-rosa na cabeça. A retratada não mira o observador, olha
levemente para fora do quadro. A idade lhe é revelada pelos cabelos grisalhos
e algumas rugas. A expressão fica por conta do olhar. Andersen dá um certa
cor a personagem pelo tom rosado das bochechas e dos lábios.
Nos retratos da mãe de Visconde de Nacar e de sua esposa (fig. 22 e
23), uma mesma encomenda, Andersen ressalta a posição social das retratas
através de suas jóias, como faziam os retratistas de fins da Idade Média para
indiciar fortuna. Estas jóias, junto com as delicadas vestimentas, também
evocam a feminilidade. O uso das rendas e de roupas mais decotadas
distingue estes retratos do anterior, deixando-os menos sóbrios. As retratadas
miram o espectador, e neste caso a posição escolhida foi o busto central. Fica
claro que a esposa de Visconde é mais jovem, e ela não usa véu, mostrando
seus cabelos.
O retrato de Anna Albina Alves Branco faz parte de um retrato duplo, de
seu marido Romão R. de Oliveira Branco. A tradição de retrato duplo de casais
é antiga, desde os cônsules romanos com uma releitura na escola italiana. A
vestimenta é sóbria e o broche, com a foto do marido, remete ao matrimônio. A
única expressividaede, em meio a sobriedade da roupa e do véu se dá através
do olhar.
Estes quatro retratos, classificados como retratos de damas da
sociedade, seguem explicitamente uma mesma linha de estilo, composição e
símbolos. Andersen resolve o problema da representação da elevada posição
social das retratadas através da sobriedade da composição e do
enquadramento. O gênero feminino é evocado através de pequenos detalhes
nas vestimentas, e a riqueza através das jóias. O observador fica um pouco
mais próximo fazendo agora uma relação com os retratos dos políticos, através
do olhar direto, o que deixa a representação em um patamar intermediário
entre público e privado. A função social destes retratos não era a mesma,
oficial, dos retratos de políticos, que ficariam em palácios, estes retratos
provavelmente seriam pendurados em salões das residências, as vistas dos
convidados.
Além de ter no retrato uma forma de ganhar um dinheiro, Andersen
também retratava seus amigos e discípulos e os presenteava com os quadros,
como diz seu biógrafo e amigo Valfrido Piloto: “Visitava-lhe, eu, o atelier, quase
todos os domingos pela manhã. São daqueles contatos (...) a consideração
com que me distinguiu o velho artista, culminada em comovente gesto de sua
parte: como jamais eu me aproveitara dos seus convites para que posasse, e
como de parte de meu Pai, também seu amigo, êsse fora igualmente o
proceder, Andersen pinta-lhe um retrato póstumo, em 1934, apõe-lhe amistosa
dedicatória, e leva-o, êle mesmo, de surprêsa, à minha residência.”32
A partir deste depoimento suspeitamos que assim tenham sido pintados
os retratos de Edmund Sigmond (fig. 24), Guido Viaro (fig. 25), Maria Amélia
D’Assumpção (fig. 26), Rodolfo e Anna Lange (fig. 27 e 28) e do capitão do
navio (fig. 29).
O enquadramento dos bustos do capitão do navio, de Sigmond e Guido
Viaro são muito semelhantes, fechados em seus rostos. Podemos perceber
que o traçado nestes quadros é mais solto do que nos retratos de políticos ou
de damas da sociedade. A perfeição dos traços não é mais tão importante, as
pinceladas são mais soltas (e nestes casos Andersen é aproximado do
impressionismo, ou neo-impressionismo, por alguns críticos, como Pietro Bo
Bardi), e o uso de luz e sombra nos rostos dos retratados é mais evidente.
A informalidade nestes quadros é marcada pelas vestimentas menos
formais, o uso das cores com mais intensidade (que difere dos tons sóbrios dos
retratos de políticos e damas), e pelo olhar dos retratados, nos três casos muito
expressivos. A posição da cabeça do capitão do navio e o uso do cachimbo no
espaço pictórico revelam naturalidade na composição. O retrato de Guido Viaro
difere no uso das cores dos outros dois (cores mais frias), e Andersen utiliza-se
de um cenário como pano de fundo, que dá um caráter mais privado à tentativa
de representação, Andersen usa os objetos do espaço pictórico para dar um
caráter privado a figura pública de Guido Viaro. A liberdade de composição e
estilo do retrato do capitão do navio, assim como o nome do quadro nos
deixam a pergunta se este foi um retrato ou uma composição de Andersen.
32 PILOTO, Valfrido. Op. cit. p. 15.
O retrato de Maria Amélia D’Assumpção, um de dois pintados por
Andersen, a coloca exercendo a sua atividade como pintora. Apesar de a
ambientação utilizada por Andersen (a tela, o fundo do ateliê, a paleta, os
pincéis) remeterem à sua atividade profissional, e consequentemente a sua
pessoa pública, as roupas, casuais, e a posição da retratada, revelam o seu
mundo privado. Diferente dos retratos de damas da sociedade, Maria Amélia
não é retratada com jóias que evoquem sua feminilidade ou riqueza. Neste
caso a sua maior riqueza é o seu talento como pintora. As cores desta
composição são notavelmente mais quentes do que nos outros retratos que
analisamos de mulheres. Sobre o retrato de Maria Amélia: “Pintou-lhe
Andersen o retrato, e essa homenagem ele prestou a todas aquelas das suas
discípulas de pintura, nas quais se capacitava encontrar apurado talento
artístico. Aliás são dois retratos, um dos primeiros tempos e outro moderno,
dos mais preciosos êsses trabalhos do artista norueguês.” 33
O retrato duplo do casal Lange pode ter sido encomendado pelo casal
ou pode ter sido um presente do pintor, mas não importa, o que percebemos é
que estes retratos possuem a mesma sobriedade, uso de cores, traços e
composição dos retratos de políticos ou de damas da sociedade. Entretanto as
vestimentas não são tão formais. Sabemos que o casal retratado nestes bustos
era muito amigo do pintor Andersen, e pais do pintor e discípulo Lange de
Morretes, o que deixa uma ambigüidade em relação ao resultado final
alcançado por Andersen.
A partir destas análises comparativas, pudemos reconstituir, ainda que
de forma superficial, a trajetória da construção destes retratos. De maneira
geral, pudemos concluir que Alfredo Andersen buscava, em cada um de seus
33 PILOTO, Valfrido. Op.cit. p, 34.
retratos, a composição e os elementos que dessem um caráter único a cada
uma das pessoas retratadas. Uma linha pode ser traçada sobre cada tipo de
retrato, a partir de suas semelhanças, o que não destitui o caráter único de
cada peça.
4 ANÁLISE DE OBRAS
Analisaremos neste capítulo três retratos de Andersen de forma mais
detalhada. A escolha destes retratos se deve pela riqueza de detalhes na
composição e pela disponibilidade de reproduções. Como pudemos perceber a
grande maioria dos retratos pintados por Andersen foram bustos, de diversos
tipos de pessoas, de diferentes classes, e retratos que teriam funções distintas
na, e para, a sociedade. Estes três quadros têm grandes proporções e um rico
espaço pictórico. Usaremos as definições simbólicas de CHEVALIER34, assim
como as teorias de GOMBRICH 35sobre psicologia da representação pictórica.
Gombrich utiliza-se da psicologia para resolver problemas gerados pela
representação em arte. A psicologia da representação pictórica, neste caso é
utilizada para resolver o problema do enigma do estilo, e para que entendamos
o impacto das forças sociais sobre a nossa atitude com relação à
representação na arte. Para tanto Gombrich desce à análise psicológica do que
está verdadeiramente em causa no processo da formação e interpretação da
imagem.
34 CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Diciomário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1989.
35
GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Trad. Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
Para o autor, as imagens formadas por um artista são resultado das
imagens assimiladas na squemata e dos modelos que o artista aprendeu a
manipular. Ou seja, neste processo de criação de imagens (que para Gombrich
não é uma criação pura e mais uma apropriação) um esquema pré-feito, que
segue toda uma tradição da imagem, fala mais forte. Este esquema, que está
na mente dos criadores, seria a chamada squemata.
4.1 O RETRATO DE VICENTE MACHADO
O primeiro retrato a ser analisado é o de Vicente Machado (fig. 30), datado de
1906. Além de suas dimensões exageradas (250 x 146 cm), esta tela
apresenta uma riqueza de elementos de composição.
Neste quadro o retratado encontra-se em pé praticamente no centro da
composição. Vestindo trajes formais e elegantes- uma longa capa escura no
mesmo tom de calças escuras, sapatos clássicos bem engraxados, camisa e
gravatas claras- o retratado se encontra apoiando sua mão direita sob um livro
que está em cima de uma mesa de pés bem trabalhados. Com a mão esquerda
o retratado segura com firmeza , o que seria possivelmente um documento.
Sua aparência é jovem e seu olhar austero. Como cenário uma ambientação
detalhada reproduz a janela e as paredes de um gabinete. Sob o piso
geométrico, no canto direto do quadro, encontra-se uma rosa.
As dimensões da tela e o posicionamento da figura podem ser
explicados pela grande importância política que o retratado tinha na ocasião.
Vicente Machado da Silva Lima traçara uma carreira política de importância
notável no Paraná. Formado bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo
Vicente Machado foi promotor público, secretário do governo da província,
professor, juiz municipal, deputado provincial, estadual e federal, presidente da
Assembléia Legislativa Estadual, chefe de polícia, vice-presidente do Estado,
Senador e presidente do Estado em 1893 e 1904.
Este retrato foi pintado por Andersen no início do século, apenas quatro
anos depois de ele ter se estabelecido na cidade de Curitiba. Vicente Machado
encontrava-se na ocasião com 47anos, e faleceria no ano seguinte.
Este retrato de uma figura pública seria um dos poucos onde a
ambientação é tão precisa. Em muitos retratos de políticos Andersen pintava
apenas um fundo escuro, como dita a tradição nórdica de retratos. Neste o
retratado encontra-se em um cenário detalhado. No caso de Vicente Machado
fica clara a intenção de mostrar um homem sério (não apenas pela sua
vestimenta, mas pela sua localização espacial na composição e pela sua
expressão), exercendo alguma atividade político-burocrática, provavelmente a
sua última função anterior ao retrato, a de presidente da província.
O cenário de fundo é provavelmente o de um grande palácio de
governo- o que confirma a intenção de Vicente Machado em ser associado a
seu maior posto alcançado- com enormes janelas e cortinas pesadas e uma
coluna. A coluna, um elemento essencial na arquitetura, o eixo de construção
que liga níveis, simboliza solidez, social ou pessoal. A coluna com capitel
(como é o caso), representa a árvore da vida, onde a base seria a raiz, o corpo
o tronco, e o capitel a folhagem. A coluna também já foi muito utilizada para a
representar a afirmação do self. A imagem da coluna também pode ser
associada ao suporte de conhecimento e ao poder, através da ligação entre o
céu e a terra, e pode ser vista como um símbolo da imortalidade.
A janela, que se encontra ao fundo da figura, apesar de não revelar
nenhuma paisagem externa, pode ser vista como uma ligação entre mundo
interno e externo, um elemento de receptividade, e que no caso da janela
retangular representa a receptividade terrestre.
A dureza da figura do político é realçada pela geometricidade do piso,
que é contrastada pela enigmática presença da rosa, repousando sob o piso.
No Ocidente a rosa simboliza a taça da vida, a alma, o coração, o amor, o
centro místico. No caso de Vicente Machado a relação com a vida afetiva pode
ser descartada, uma vez que este retrato tinha uma função estritamente
pública. A rosa pode ser uma representação do sangue derramado, o símbolo
de um renascimento mítico. A rosa vermelha é associada ao objetivo da grande
obra.
O livro onde Vicente Machado repousa sua mão direita é um símbolo
explícito de conhecimento, e da expansão do conhecimento, e demonstra que
a atividade do retratado estava diretamente ligada à intelectualidade. O livro é o
símbolo da ciência e da sabedoria. Um livro fechado representa a matéria
virgem, e esconde sentimentos e pensamentos.
A natureza do documento segurado pela mão esquerda do retratado não
nos é revelada, mas deduz-se que seja um documento de natureza política. O
documento pode sugerir a solidez da trajetória política do retratado, ou remeter
a um famoso discurso republicano proferido quando este ainda estava na
universidade. O anel na mesma mão, no local onde deveria haver uma aliança
caso Vicente Machado fosse casado, revela a sua atividade profissional. Estes
elementos da composição confirmam o desejo de Vicente Machado em ser
visto como uma figura pública, uma vez que todos remetem à sua atividade
profissional.
A relação entre Alfredo Andersen e Vicente Machado, além de
profissional, era calcada em uma empatia mútua. Alguns relatos pessoais de
Andersen nos revelam esse relacionamento próximo : “...Mais tarde fiz uma
exposição num dos salões do Museu Paranaense, onde eu vendi alguns
quadros e entre eles, dois ao Dr. Vicente Machado. Naquela ocasião expus o
retrato do Dr. Gutierrez, recebi a encomenda de um retrato do Dr. Vicente
Machado, pela Colônia Síria daqui. Mais tarde recebi outra encomenda do Dr.
Vicente, retrato que se encontra no Museu Paranaense (...)”.36 “O grande
retrato do presidente ia ser exposto no salão do museu. No dia da abertura da
exposição recebi a notícia que o presidente havia morrido. Eu, porém era
amigo e grande admirador, e prometia a mim mesmo de continuar a obra por
ele pedida.”37
4.2 RETRATO DE OLÍMPIA CARNEIRO
Este retrato (fig. 31) tem proporções semelhantes ao de Vicente
Machado, e um espaço pictórico igualmente rico. Neste caso trata-se de um
retrato encomendado por uma dama da sociedade, e que representava
portanto se não poder, status. Apesar de um retrato como este ser utilizado
para representar uma pessoa pública, os elementos tem uma caráter pessoal e
remetem ao mundo privado.
36
RUBENS, Carlos. Op. cit, p. 40
37 PILOTO, Valfrido. Op. cit, p. 49.
A Senhora Olímpia Carneiro encontra-se sentada em um sofá listrado,
amarelo e cinza, segurando displicentemente um lenço na mão direita. Apesar
de usar um vestido longo, seus trajes não são totalmente formais. A textura do
tecido do vestido, assim como as jóias (anéis e colar) remetem à feminilidade a
à riqueza. A aliança é retratada representando o matrimônio.
A fisionomia da Sra. Olímpia é séria, com alguma expressividade nos
lábios e olhar distante, que não mira o observador. Seus cabelos estão presos,
o que deixa a figura em uma situação não tão íntima, uma vez que os cabelos
correspondem a função social, espiritual, individual ou coletiva. Nas mulheres
os cabelos presos representam luto ou submissão :” Como a cabeleira é uma
das principais armas da mulher, o fato de que esteja à mostra ou escondida é,
com freqüência, um sinal de disponibilidade”.38
Ao lado da retratada, recostados no sofá, encontramos um tecido escuro
e possivelmente uma bolsa, acessórios explicitamente femininos. Sob o sofá
um tapete vermelho, que destoa do assoalho verde, retratado ao fundo. Esta
linha entre assoalho e tapete delimita a fronteira entre o íntimo, privado,
representado pelo tapete que é um elemento importante da vida familiar,
pessoal, do exterior, representado pelo piso que vai até uma janela. A cortina
vermelha representa esta passagem entre os dois mundos. A cor vermelha das
cortinas, do tapete e do pequeno banquinho no canto inferior diretor remete à
felicidade e alegria.
A paisagem externa retratada ao fundo é tipicamente paranaense, pela
vegetação de araucárias. Esta paisagem parece ser um grande jardim,
remetendo às propriedades da família Carneiro.
4.3 RETRATO DE FREDERICO DE MARCO
Frederico de Marco, famoso médico e cientista, é retratado em seu
ambiente privado, provavelmente sua biblioteca, sentado em uma cadeira (fig.
32). Através dos estudos preliminares (FIG. 33) podemos perceber a
preocupação de Andersen em achar a melhor posição para representar o
retratado absorto em seus pensamentos, o que remete a sua atividade de
cientista.
Apesar de Frederico estar em um ambiente íntimo as suas roupas são
formais e sóbrias. Pelos gestos percebemos que não há diálogo com o
observador, o médico mira um ponto fora do quadro.
No primeiro plano os objetos remetem um pouco à vida pessoal, como
os charutos na mesinha. No fundo os objetos remetem à vida profissional, uma
estante repleta de livros, um crânio sob um pedestal, e a cortina vermelha. Os
livros, como já citamos, remetem ao conhecimento, a sabedoria. O pedestal
tem a função de suporte e glória, manifesta a grandeza humana ou divina.
Este pedestal dá suporte ao crânio, que representa a sede do pensamento e
comando supremo, o principal dos quatro centros da representação do homem.
O crânio representa ainda o céu do corpo humano, o renascimento após a
morte corporal. A atividade do médico, e um de seus principais projetos como
cientista, o de desenvolver uma substância capaz de ressuscitar os mortos,
estão representadas pela presença do crânio.
38 CHEVALIER, Jean. Op.cit. verbete cabelos
5 CONCLUSÃO
Alfredo Andersen morreu na cidade de Curitiba no ano de 1936.
Infelizmente o pintor não chegou a ver em vida o seu sonho, o de dirigir uma
escola popular de desenho e pintura, realizado. Alguns anos depois do seu
falecimento a sua residência- ateliê, e que era o local onde ele ministrava as
suas aulas particulares, foi transformada em Casa Alfredo Andersen, e
posteriormente em Museu Alfredo Andersen.
Se o caráter do pintor como mestre é sempre o mais ressaltado,
quizemos deixar claro o caráter inovador do pintor, que fica mais evidente na
sua trajetória de vida e na sua postura perante a sociedade paranaense do
que na sua obra. Em um ambiente político que estava mais preocupado com o
progresso, e com a formação de uma identidade regional (movimento
paranista), Andersen, uma pessoa que vinha de fora, tenta mostrar caminhos
para essas duas maiores preocupações, apesar de não se envolver
diretamente nessas questões. A resposta para o progresso, para Andersen,
consistia em uma educação popular mais consistente e que envolvesse a
pintura e o desenho. A resposta para a criação de uma identidade é dada na
própria forma de representar o Paraná, em suas paisagens, e na forma de
representar pessoas das diversas classes da população, em seus retratos.
Através da análise dos retratos, aliada a uma leitura de seus símbolos e
aliada a uma pequena biografia dos retratados, pudemos perceber uma série
de características comuns, de estilo e composição, entre as obras dos
diferentes grupos.
Podemos afirmar, em linhas gerais, que Andersen utilizava-se de
diferentes símbolos para representar diferentes personagens, e que os retratos
tinham funções distintas na sociedade.
Fica claro nesta análise que Andersen concebia a composição, que iria
resultar em formas distintas de representação, a partir de um esquema pré-
feito, que estava relacionado com a função que cada quadro teria, ou até em
quais paredes a peça seria pendurada.
Um melhor conhecimento da história de cada quadro facilitaria e
enriqueceria as análises. Entretanto a partir do pouco que sabemos sobre cada
quadro pudemos chegar a algumas generalizações. Uma delas é que o pintor
tinha um estilo mais solto nas pinceladas ao retratar algumas pessoas
próximas, o que foi suficiente para que ele fosse chamado de impressionista,
ou neo-impressionista. Como já dissemos este trabalho não teve o objetivo de
localizar a obra de Andersen em algum estilo, classificações que cabem a
historiadores da arte, e que aliás são instrumentos dos historiadores da arte.
Se este trabalho não chegou a muitas respostas, que ao menos tenha
levantado uma série de perguntas. Conseguimos alcançar um dos objetivos, o
de mostrar as possibilidades que giram em torno de um documento
iconográfico, e de um estudo em história e arte.
Conseguimos traçar, através de documentos de época e da sua própria
obra, um pouco da trajetória de um pintor e da sociedade em que viveu e
produziu a sua obra.
Esperamos que, cada vez mais, o olhar das pessoas recaia sobre esse
tipo de documento iconográfico, e que, como afirmou Georges Duby, no texto
que serve de epígrafe a este trabalho, tirar notáveis dos grupos pictóricos em
que se fundem, seria, segundo Michelet, a ambição de ressuscitar indivíduos e,
consequentemente reconstituir, de certa forma, a sociedade em que viveram.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 BRITT, David. (Org.). Modern Art: Impressionism to post-modernism. London:Thames and Hudson, 1992.
2 CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Diciomário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
3 DORE, Helen. A arte dos retratos. Trad. Bazán Tecnologia e Lingüística. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1996.
4 GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Trad. Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
5 MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
6 PILOTO, Valfrido. O acontecimento Andersen: registros sobre a vida e a glória de Alfredo Andersen. Curitiba: Mundial, 1960.
7 RUBENS, Carlos. Andersen: o pai da pintura paranaense. São Paulo: G.Carvalho, 1938.
8 SCHNEIDER, Norbert. A arte do retrato. Trad. Teresa Curvelo. Köln: Taschen, 1997.
9 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
10 GÊNEROS NA PINTURA. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1995. 39p.
11 SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. Alfredo Andersen. Caderno da Artes Plásticas. Vol. 01.
12 PANORAMA DA ARTES NO PARANÁ. Dos Precursores à Escola Andersen. Curitiba: Banco de Desenvolvimento do Paraná, 1975.
FONTES
1 Diário da Tarde/ 02 de Maio 1919.
2 Diário da Tarde/ 27 de Junho de 1919.
3 Revista A República/ 28 de Junho de 1926.
4 Diário da Tarde/ 18 de Agosto de 1927.
5 Revista Festa/ 1928.
6 Revista Illustração Paranaense/ 30 de junho de 1930/ ano IV.
7 Revista A Cruzada/ 1933.
8 Revista Paranista/ Setembro de 1933.
9 Diário da Tarde/ 05 de Abril de 1934.
10 Diário da Tarde/ 04 de Novembro de 1940.
11 Revista Kunst & Kultur/ ano 16/ 1940
12 O Dia/ 22 de Junho de 1944.
13 Revista Panorama/ Novembro de 1955.