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MARIA TRINDADE MARTINS DOS SANTOS A MEMÓRIA NO ESPAÇO DA ESCRITURA DE QUARTO DE HORA: CONTOS DE MARIA LÚCIA MEDEIROS. PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA PUC-SP São Paulo 2006

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MARIA TRINDADE MARTINS DOS SANTOS

A MEMÓRIA NO ESPAÇO DA ESCRITURA DE QUARTO DE HORA: CONTOS DEMARIA LÚCIA MEDEIROS.

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EMLITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

PUC-SP

São Paulo2006

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MARIA TRINDADE MARTINS DOS SANTOS

Dissertação apresentada como exigência parcial paraobtenção do grau de Mestre em Literatura e CríticaLiterária à Comissão Julgadora da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, sob orientaçãoda Profª Drª Maria José Pereira Gordo Palo.

São Paulo2006

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Banca Examinadora:

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Para Marilena, irmã mais amada, meuporto seguro, sem a qual eu não teriarealizado esta façanha.

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A voz poética é, ao mesmo tempo,profecia e memória. A memória é umespelho mágico de onde a imagem nãose apaga, mesmo depois de passada.(Paul ZUMTHOR, A letra e a voz, 1993,p. 139).

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Agradecimentos

A Deus, pela oportunidade de crescer e pelo sustento fiel ao longo de todo o percurso.

A Marilena, presente de Deus, companheira de todas as horas e incentivadora

imperturbável deste e de tantos outros projetos de minha vida.

A mana Zuleide pela mão sempre estendida, meu apoio nos momentos difíceis.

A minha família pela compreensão das ausências em tantos momentos importantes de

nossas vidas.

A Profª Drª Maria José Palo que orientou esta dissertação, apoiando-me integralmente

ao longo de todo o trajeto, o meu profundo reconhecimento e carinho ad aeternum.

A Profª Drª Maria Aparecida Junqueira e a Profª Drª Maria dos Prazeres Mendes pela

espetacular contribuição por ocasião do Exame de Qualificação deste estudo.

A Profª Noemia Davidovich Fryszman e a Profª Drª Maria Aparecida Junqueira pela

delicadeza em aceitarem fazer parte da Banca de Defesa desta Dissertação.

A todos os professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica

Literária – PUC-SP que, de algum modo, contribuíram para a continuidade de minha

formação acadêmica.

A Ana Albertina, Secretaria do Programa, pelo apoio tão importante nas horas de

dificuldades.

A Eunice Ferreira dos Santos, amiga de todas as horas, por segurar minhas mãos nos

tantos momentos em que pensei desistir.

A Maria de Fátima Nascimento, amiga de longas datas, pelo incentivo inicial sem o qual

eu não teria realizado esta dissertação.

A Honorino Carneiro (PROPESP-UFPA), amigo querido, pelo incentivo nos momentos

difíceis e pela luta em prol da bolsa de estudos.

A CAPES e a Universidade Federal do Pará que, em parceria, me concederam a bolsa

de estudos do Programa Institucional de Capacitação Docentes e Técnicos – PICDT, a

qual tornou possível a realização desta Dissertação de Mestrado.

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RESUMO

O propósito desta dissertação é estudar o processo de criação poética no

livro de contos Quarto de Hora de Maria Lúcia Medeiros, publicado em 1994, em Belém

do Pará, Brasil. É um processo ficcional que, em vista das múltiplas marcas estilísticas,

apresenta similaridades com o discurso da oralidade, enquanto lendas ou histórias

infantis, além das próprias fronteiras literárias, no domínio das artes visuais.

Duas hipóteses foram trabalhadas nesta investigação: uma referente à

natureza ambivalente do discurso em primeira pessoa; outra referente à presença da

narrativa memorialista no ensaio poético. Ambas são fundamentadas nas teorias dos

Formalistas Russos, Paul Zumthor, Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Gaston

Bachelard, principalmente.

O estudo dos contos foi baseado na análise e construção de procedimentos

cinematográficos, que sugerem imagens processadas como recolhas do relato da ilusão

oral. A inter-relação tempo-espaço é trabalhada na seqüência narrativa pela imaginação

e memória, nos três capítulos, enquanto uma relação complementar que resulta na

apreensão de uma narrativa fragmentada e plural, como uma figura espiral, que não

tem início, meio e fim – inconclusa.

O espaço da memória fundamenta o princípio da criação da imagem da lenda

em Quarto de Hora, que encontra sua representação na origem da linguagem humana,

na voz, e nas gestualidades da expressão poética, nos limites da prosa.

PALAVRAS-CHAVE: Conto memorialista, oralidade, memória coletiva, poética, Maria

Lúcia Medeiros.

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ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to study the poetic creation process in the

book of short stories Quarto de Hora by Maria Lúcia Medeiros, published in 1994 in

Belém do Pará, Brazil. It is a fictional process that, in view of the multiple stylistic marks,

has similarities with the oral speech while legends or children’s stories, beyond its own

literary limits, in the realm of the visual arts.

Two hypotheses were operated in this investigation: one relative to the

ambivalent nature of the discourse in first person; the other relative to the presence of

the memorialist narrative in the poetic essay. Both of them are supported on theories of

the Russian Formalists, Paul Zumthor, Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Gaston

Bachelard, chiefly.

The study of short stories was based on the analysis and construction of

cinematographic procedures that blow up images processed as recollections of the oral

illusional report. The time-space interrelation is operated in the narrative sequence by the

imagination and memory, in the three chapters, as a complementary relation that results

in the grasping of a fragmented and plural narrative, as a spiral figure, that has no

beginning, no middle, and no end–incomplete.

The memory space provides the principle of creation of the legend’s image in

Quarto de Hora, which finds its representation in the origin of the human language, in the

voice, and in gesticulations of the poetic expression at the threshold of prose.

Keywords: Memorialist short story, orality, collective memory, poetics, Maria

Lúcia Medeiros.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1

CAPÍTULO I – A CIDADE BRANCA ........................................................................... 10

1.1 A infância da memória ........................................................................................... 10

1.2 Imagens em rotação ficcional ................................................................................ 23

1.3 Espaços: passagem dos ritos ................................................................................ 41

CAPÍTULO II – HISTÓRIAS QUE CONTAM OUTRAS .............................................. 48

2.1 Entre o lugar da memória e o lugar da escritura ................................................... 48

2.2 A temporalidade no espaço das horas lembradas ................................................ 63

2.3 Entre o contar e o recontar .................................................................................... 73

CAPÍTULO III – O CONTO: ENTRE A PROSA E A POESIA ................................... 81

3.1 Fragmentação e memória .................................................................................... 81

3.2 A invenção na urdidura do narrar ........................................................................ 90

FINAL DE UM QUARTO DE HORA ......................................................................... 120

ANEXOS ..................................................................................................................... 124

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 155

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INTRODUÇÃO

Maria Lúcia Fernandes Medeiros1 nasceu no dia 15 de fevereiro de 1942, em

Bragança, ao norte do Estado do Pará, onde viveu até os onze anos de idade, quando

seu pai, no início dos anos 50, transferiu a família para Belém, capital do Estado. É o

que afirma a escritora:

Eu nasci em Bragança, uma cidade simples do interior, com um trem de ferro e umrio na frente. Tive, portanto, uma infância bem brasileira: quintal, primos, frutas, tios,igreja, cinema Olympia. Em Belém já cheguei quase adolescente e meus fantasmasviviam sob as mangueiras, nas ruas largas, na arquitetura imponente de uma cidadede 250 mil habitantes que era Belém dos anos 50.2

A vinda para a capital proporcionou-lhe um leque de novas opções e, entre os

arroubos adolescentes e a vida “bem comportada” dentro dos muros das escolas

religiosas, o cinema tornou-se sua mais nova paixão:

Adoro escrever (e guardar), amo Cinema e, como adolescente na década de 50,sabia muito mais do que se passava por Beverly Hills através das fofocas de LouellaParsons, do que sobre Círio de Nazaré, Ver-O-Peso, Amazônia, Copacabana (nãotínhamos a Belém-Brasília), como assídua leitora de Cinelândia.3

1 A inclusão dos dados biográficos de Maria Lúcia Medeiros, nesta dissertação, justifica-se porque setrata de uma escritora que, além de ter falecido recentemente, é pouco conhecida fora dos circuitosliterários e culturais da região Norte do país.2 Vídeo documentário Escritura Veloz (1995), que focaliza a vida e a obra da escritora, editado porMariano Klautau com produção de Cláudio de La Roque.3 Maria Lúcia MEDEIROS. Auto-apresentação. In: ABRAMOVICH, Fanny. Ritos de passagem de nossainfância e adolescência. São Paulo: Summus, 1985, p. 89.

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Aos 19 anos, em 1962, Maria Lúcia Medeiros anunciou aos pais que sairia de

casa para viver “um regime de concubinato... (bela confusão armada na família)”4, com

Mariano Klautau, que era comunista e desquitado.

Em março de 1964, com o golpe militar deflagrado, para não ser presa, Maria

Lúcia Medeiros fugiu. Dois anos depois, ao regressar, recuperou a família e os estudos,

formando-se, anos mais tarde, em Letras.

Em 1978, já atuando como professora de Literatura Brasileira e Literatura

Infanto-Juvenil junto a Universidade Federal do Pará, concluiu o curso de

Especialização em Teoria da Literatura.

Além da docência, ela experimentou uma única vez um cargo administrativo,

quando assumiu, pelo período de dois anos, a vice-direção do Centro de Letras e Artes

da Universidade Federal do Pará.

Aposentada, durante alguns anos, ao lado do escritor paraense Max Martins,

coordenou a área de linguagem da Fundação Curro Velho e Casa da Linguagem,

tornando-se responsável pela formação de uma geração de novos leitores.

Maria Lúcia Medeiros demorou algum tempo para revelar-se escritora. A

estréia ocorreu em 1985 quando, aos 43 anos, publicou o primeiro conto Corpo Inteiro,

antecedido por uma Auto-apresentação, na coletânea Ritos de passagem da nossa

infância e adolescência, organizada por Fanny Abramovich e publicada pela editora

Summus. A porta estava aberta: era o passo inicial de um período que não mais seria

interrompido.

Em 1988, seu primeiro livro solo, Zeus ou A menina e os óculos, foi publicado

em São Paulo, pela editora Roswitha Kempf. Na seqüência, saíram da gaveta Velas,

por quem? (1990), Quarto de Hora (1994) e Horizonte Silencioso (2000).

Em 2001, a escritora começou a sentir os primeiros sintomas da esclerose

lateral amiotrófica, doença que, aos poucos, lhe tiraria os movimentos. A enfermidade

tirou-lhe a fala, mas não lhe roubou a palavra, pois, ao preservar a lucidez mental e a

mobilidade das mãos, escreveu até os últimos momentos de sua vida.

Em 2003, a editora Amazônia Livros e Vídeos Ltda publicou o livro Antologia

de contos, que traz recordações relacionadas aos tempos da adolescência.

4 Idem, ibidem.

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Em 2004, a Secretaria Executiva de Cultura do Pará presenteou a escritora,

com a publicação do sexto livro, O lugar da ficção, que inclui contos e poemas.

Maria Lúcia Medeiros faleceu no dia 08 de setembro de 2005, aos 63 anos,

deixando onze contos inéditos, que foram escritos pouco antes de sua partida. Estes

contos, marcados pelas reminiscências da infância em Bragança e pelas relações com

a família, foram reunidos pela própria escritora, pouco antes de sua morte, no livro Céu

caótico5, ilustrado com fotografias produzidas nas oficinas da Foto Ativa pelo método

artesanal Pinhole e selecionadas pelo fotógrafo Mariano Klautau, filho da escritora.

Editado pela Secretaria Executiva de Cultura do Pará, o exemplar foi lançado, como

homenagem póstuma, no dia 25 de setembro de 2005, por ocasião da IX Feira Pan-

Amazônica do livro.

Um primeiro contato com os contos produzidos pela escritora provavelmente

causará a qualquer leitor, além de um pronto sentimento de provocação, uma

impressão de profunda estranheza, geralmente acompanhada por uma ironia

amargurada. Não foi diferente em meu caso, quando, ainda por ocasião do curso de

especialização em Teoria da Literatura, li alguns contos de Maria Lúcia Medeiros. Fiquei

tão encantada, que selecionei, do livro VP (1990)6, alguns contos para análise e

posterior elaboração da monografia final do curso. Desde então, passei a acalentar o

desejo de pesquisar a produção literária da escritora.

Esse desejo aumentou quando, no Natal de 1996, uma amiga presenteou-me

com o exemplar QH (1994)7. Um livro estonteante que, além de provocar profunda

estranheza em função da urdidura textual e da linguagem meio arcaizante, foge

totalmente aos moldes de elaboração dos dois primeiros livros publicados.

Foi esse interesse que me levou a escolher a obra meideiriana como temática

de minha pesquisa de mestrado. Espero, ainda abrir uma via de contato com a escritura

desta contista, cuja prosa, descontínua e fragmentada, denuncia um texto que, pela

própria complexidade estilística, se mostra no limítrofe da poesia.

5 Os livros que compõem o conjunto da obra antológica de Maria Lúcia Medeiros, nesta dissertação, terãopor referência siglas: Zeus ou A menina e os óculos (1988) – ZMO; Velas, por quem? (1990) – VP;Quarto de hora (1994) – QH; Horizonte silencioso (2000) – HS; Antologia de contos (2003) – AC; Lugarda ficção (2004) – LF e Céu caótico (2005) – CC.6 Segundo livro de Maria Lúcia Medeiros, publicado em 1990, pela editora CEJUP, em Belém do Pará.7 Terceiro livro de Maria Lúcia Medeiros, publicado em 1994, pela editora CEJUP, em Belém do Pará.

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No conjunto, a obra de Maria Lúcia Medeiros, visivelmente apoiada numa

estratégia de conto elaborado a partir de imagens, possui uma virtualidade poética, que

remete à construção de um Eu centrado em questões existenciais relacionadas à

infância, ao (des)amor, à mulher, à solidão, à dor, à morte e à inexorabilidade do tempo.

Um Eu de linguagem que se inscreve, quase sempre, no registro da insatisfação interior

face às ilusões do mundo, em relação aos sentimentos humanos.

Essa pragmática indica que a produção literária de Maria Lúcia Medeiros

segue os passos de uma literatura intimista à medida que remete a um discurso

subjetivo amparado pela ação da memória e imaginação.

Ao tratar da literatura confessional, Philippe LEJEUNE (apud REMÉDIOS,

1977, p. 12-13), na obra L’autobiografhie em France, define a autobiografia como “um

relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, dando

ênfase à sua vida individual e, em particular, à história de sua personalidade”. O teórico,

entretanto, reconhece os limites desta definição, razão pela qual sugere uma série de

elementos organizados em categorias diferenciadas a serem considerados como

critérios: forma da linguagem (narração e em prosa), tema (a vida individual), situação

do autor (identidade do escritor enquanto pessoa real, com o narrador do discurso

enquanto uma entidade fictícia) e a posição do narrador (identidade do narrador com a

personagem principal numa retrospectiva de relato).

Philippe Lejeune admite que é difícil estabelecer fronteiras entre romance

autobiográfico e autobiografia, pois nem sempre a afirmação da identidade é indicador

seguro de autenticidade do relato, nem sempre o subtítulo (romance ou autobiografia) é

confiável e nem sempre a autobiografia é reconstituição verídica de uma vida ou a

verdadeira história de uma personalidade, até porque a autobiografia pode ser

considerada como um ato literário e, portanto, ficcional.

A partir desse aspecto conceitual, escolhi para o corpus desta pesquisa o

terceiro livro de Maria Lúcia Medeiros, intitulado QH, que foi publicado em 1994, pela

editora CEJUP (Belém-Pará), com o propósito de investigar quais são os modos de

manifestar o discurso do Eu na urdidura textual que, pela via da memória e do

esquecimento, reconta sua própria história, pelo remeter da tradição oral.

Outrossim, a fortuna crítica atual relacionada à produção literária da escritora

ainda é escassa, visto que se resume às orelhas de livros e a raros comentários. Esta

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escassez da crítica destinada ao livro QH reclama sobre o corpus uma leitura ao

mesmo tempo enigmática e parcial.

QH compõe um volume escrito em apenas sessenta e quatro páginas, que se

divide em duas partes. A primeira, que dá nome ao livro, escrita ao longo de quarenta e

três páginas, mais longa, está dividida em quatro partes, sem títulos, separadas apenas

por numeração arábica, e recebe o título Quarto de Hora.

A segunda parte, intitulada Horas, é formada por quatorze narrativas curtas,

totalmente inclassificáveis, por não especificarem seus gêneros, questão que

justificaremos neste estudo.

Escritas, em simultaneidade com o Quarto de Hora8, essas pequenas

narrativas, além de aparentemente interpenetradas, podem ser encaixadas na narrativa

maior como se fossem um ponto de apoio explicativo para o primeiro texto, ou como se

fossem outras histórias que emergem do interior da narrativa inicial. Seria, ao que tudo

indica, o que Tzvetan TODOROV (apud BARTHES, 1976, p. 235) denominou de

encaixamento como sendo a “inclusão de uma história no interior de uma outra”, que

seria o modo como o narrador associa as histórias dentro de uma mesma narrativa, o

seu enredamento.

Na tentativa de descrever o ambiente estrutural do corpus, antecipa-se que a

narrativa Qh, em nenhum momento, faz alguma referência ao título do livro. Será a

micronarrativa PN, apresentada na segunda parte, que irá referir-se a essa expressão

de temporalidade:

Um quarto de hora queimando no meu pulso. Meu pulso cego guardador apenas deum quarto de hora. Esses ponteiros esguios e negros, esses ponteiros presos naredoma de cristal também me prendem e vêm de muito longe.Um quarto de hora aviltante a esmagar os lençóis e estraçalhar cortinas. Punhaladadesferida à luz da Lua, vômito de sangue na espuma da praia. (Qh, p. 56 – Grifosmeus).

8 As narrativas que compõem o corpus, objeto de nossa experimentação e análise, também receberãosiglas: Quarto de hora (Qh); Horas (Hs); A fronte pálida (FP); Tanto abril a passar (TAP); Teus braços secruzam (TBC); Teu ofício de mensagem (TOM); A pedra, a claridade (PC¹); Mentiras e verdades nomesmo chão (MV); A pedra, a claridade (PC²); Passaporte e nave (PN); História e personagem (HP); Apartir dali crescia a escada (CE); A poeira da noite (APN); Na vigília que engendro nessas folhas (NV); Amão que semeia tintas (MS) e A febre, o húmus (FH).

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Trata-se de quinze minutos ou um quarto de hora, que representa um lapso

de tempo muito curto para o Eu-narrador mergulhar longamente no mais profundo de

um sofrimento interminável.

Ao posicionar-se por esta fala, em entrevista concedida para a elaboração do

vídeo-documentário Escritura Veloz (1995)9, Maria Lúcia Medeiros afirmou que:

A expressão quarto de hora vem exatamente de um sofrimento muito grandepassado num tempo muito pequeno e é essa a ligação que esse livro tem com ocontemporâneo. É uma coisa de superposição de imagens, quer dizer umavelocidade muito rápida, um tempo muito pequeno para um longo sofrimento. Issotudo tem a ver com o que o homem vive hoje. (Grifos meus).

São estas imagens superpostas e velozes, atemporais, emergindo da ação e

lógica da memória, que serão arranjadas na contigüidade narrativa textual. A memória é

a matéria-prima de QH. Pela memória, o seu discurso poético resgata a oralidade

esquecida, os mitos pessoais e os sentimentos perdidos, com o propósito de perpetuá-

los pela fonte da tradição.

A própria escritora, ainda no vídeo-documentário Escritura Veloz (1995),

reitera essa percepção:

As minhas histórias nascem de imagens, de gestos, de olhares, de figuras e quandodigo isso... Acho que o que eu quero dizer é que elas nascem num espaço que é oespaço da memória e transitam para um outro espaço que é o espaço da escritura.Esse percurso é que é o mistério.Em exemplo claro é que no Quarto de Hora há uma personagem que fala de umtítulo de história que se chama Inês e o Poço. Essa Inês é a imagem de umanegrinha que ia buscar água no poço quando eu era criança. Essa imagem danegrinha faz um percurso do espaço da memória para o espaço da escritura quesofre uma modificação. Esse percurso é libertação, mutação.A memória, eu acho, é um armazenamento de coisas. Então essas imagens estão láe no momento em que elas fazem um percurso para o espaço da escritura elastambém atravessam o tempo e se tornam atemporais. (Grifos meus).

9 Vídeo editado por Mariano Klautau e produzido por Cláudio de La Roque, em 1995, que focaliza o perfilda vida e obra de Maria Lúcia Medeiros.

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As imagens emergem e antecipam as histórias de mistérios e encantamentos

que, visitadas pela cultura humana, focalizam a transitoriedade da vida e a fugacidade

do tempo. Minha preocupação está, a princípio, voltada para o percurso que fazem

essas imagens, pelo deslocamento do espaço da memória para o espaço da escritura,

a produzir textos de uma discursividade poética pessoal.

Ante a polêmica oralidade/escritura, já se considera literário aquilo que a

sociedade guarda na memória, fortalecendo a idéia de que a literatura é, a um só

tempo, voz e letra. A voz se faz letra, a letra carrega a voz, que convida à leitura, que

cativa o leitor. Neste percurso, narrador-contador, autor, leitor-ouvinte adentram o

mundo ficcional em que o imaginário é experimentado como forma de recriar a

realidade, sabendo que a narração oral proporciona a aproximação da realidade do

texto escrito como uma forma genérica.

Pelo enfoque dado e pelos objetivos deste estudo, partimos de uma

investigação teórica sobre a problemática do gênero prosaico contemporâneo, com

ênfase no conto, que se mostra no limítrofe da poesia. Essa circunstancialidade dada e

criada pela escritura de QH, em narração simultânea de imagens testemunhadas por

um Eu que lembra outros Eus, transforma a escritura – do individual para o coletivo –

funde prosa à poesia, simulacro que parece recuperar uma nova forma para o conto

poético. A escritura, enquanto produto da ação da memória e voz, exibe as formas do

conto oral?

Focalizamos as características evidenciadas no corpus selecionado, para

verificar, em razão da multiplicidade de traços estilísticos, o processo de criação poética

da autora, que se revela como o próprio ato de narrar oral, a cumprir o trajeto escritural.

A articulação desse problema deu origem as seguintes hipóteses: a natureza

ambivalente da narrativa em primeira pessoa, ao nível do discurso, gera a fusão de

duas enunciações (o Eu que lembra e o Eu que narra); e, os contos de Maria Lúcia

Medeiros presentificam uma narrativa memorialista experimental à espera de um

gênero em forma.

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Esta investigação segue o percurso da própria narrativa, visto que cada dado

lembrado pela narradora-protagonista representa um elemento que lentamente monta o

texto, erguendo-se numa tentativa de configurar-se como imagem poética.

Nossa argumentação segue de perto os pensamentos dos Formalistas

Russos, Paul Zumthor, Henri Bergson, e outros que possam melhor nos auxiliar na

resposta ao problema, em capítulos a saber:

O primeiro capítulo, intitulado “A cidade branca”, trata do cenário imaginário

onde se passam as histórias/memórias brotadas da errância da narradora-protagonista.

À luz das teorias relacionadas à memória e a oralidade, destaca-se a lenda da cidade

de cor branca, metáfora significativa da duração espacial de quinze minutos e as

imagens que acompanharão os passos da narradora-protagonista em todo o percurso

da narrativa.

A questão da oralidade será abordada com ênfase nos estudos de Boris

Eikhenbaum, para quem a entonação das manifestações orais e os aspectos rítmicos

indicam os traços poéticos da prosa, e Paul Zumthor que, como oralista, admite existir

nos textos escritos uma espécie de oralidade secundária à medida que eles conservam

acentuadas marcas orais.

Ainda, nesse capítulo, com ênfase nos estudos desenvolvidos por Gaston

Bachelard, focalizaremos a superposição de imagens que formam a contigüidade das

narrativas em QH. Destacaremos, na ocasião, que memória e invenção dialogam

permanentemente com a imaginação a ponto desta também representar uma

determinante na evolução da narrativa. A imaginação, assim, seria o encontro com a

memória, cujo ponto comum residiria no exercício da liberdade a reanimar e, quiçá,

moldar a memória, a ponto de se poder pensar que uma organização da imaginação

seria tão poderosa e eficaz como a própria ordem do pensamento. Por essa via, a

palavra poética seria o olho da imaginação a ser iluminado pela luz da memória, que

possibilita ao homem ver o mundo exterior e o mundo interior num equilíbrio de formas.

À luz do pensamento de Maurice Halbwachs, ao término do capítulo,

focalizaremos a memória entendida como fruição de imagens-lembranças que estão

ligadas ao coletivo, pois as lembranças mais individuais sempre interagem com o grupo.

Por isso, a imagem do espaço-cidade ficcional, enquanto um depósito e um dispositivo

material concreto, dos sonhos coletivos, ergue-se no vazio dos enigmas, como um

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discurso onde é possível dizer e significar tudo e, sobretudo, permitir trazer às águas do

presente tudo aquilo que ficou esquecido no tempo pretérito.

No segundo capítulo, intitulado “Histórias que contam outras”, focaliza-se o

modo como se encadeia o discurso narrativo, a construção da memória e do tempo-

espaço, visto que QH marca uma grande temporalidade, corporificada a partir de uma

dilatação incessante de narrativas marcadas pela ilusão oral do relato, à imagem dos

inúmeros narradores/contadores que permeiam o discurso narrativo.

Ainda neste capítulo, à luz do pensamento de Walter Benjamin, mostraremos

que a possibilidade de narrar nasce com a memória, pois toda a história, enquanto fruto

da experiência (Erfahrung), sempre implica a evocação do pretérito, de onde, via

rememoração, o contador/narrador recupera as imagens perdidas no tempo.

Essas memórias em travessia discursiva, nessa perspectiva, na voz do

contador/narrador, materializam, conscientizam e coletivizam o passado, o presente, e,

por conseguinte, projetam o futuro, a garantir a cadeia da tradição que se manterá viva

de geração em geração.

Esse processo de deformação temporal, evidenciado em QH, em narração

simultânea de imagens testemunhadas por um Eu que lembra outros Eus, indica que o

conto, ao exibir as marcas da oralidade, a remeter os momentos imprecisos do fluxo de

consciência, avança sobre os limites entre a prosa e a poesia, questão que será

abordada no terceiro capítulo desta dissertação, intitulado “O conto: entre a prosa e a

poesia”.

Ao retomarmos a relação tempo-memória, focalizaremos, neste capítulo, que

a fragmentação da escritura em QH, a qual tende a estimular não aquilo que está na

memória, mas, sobretudo, os vazios, o “buraco da memória” que, no dizer de Paul

ZUMTHOR (1997, p. 21), constitui o momento da criação poética. Esse processo de

fragmentação, em QH, provoca um olhar de ruptura e estímulo à medida que instiga o

leitor/ouvinte a procurar os elos, as histórias e a própria coerência da estrutura

escritural.

Por fim, a última etapa trata das conclusões alcançadas, a partir do estudo do

processo de construção da escritura em QH que, enquanto produto da ação da

memória e da voz, passa a exibir as formas de um conto marcado pela ilusão do relato

oral.

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CAPÍTULO I

A CIDADE BRANCA

A história humana, como a dos povos, é feita tanto delendas quanto de realidade, e não estaríamosexagerando se afirmássemos que a lenda é umarealidade superior. Digo a lenda, e não o relato; o relatodecompõe, a lenda constrói. E todo ser humano étestemunha, quando se lembra de sua infância, de umainfância legendária. Toda infância é, no fundo damemória, legendária. (Franz HELLENS. ApudBACHELARD, 2001, p. 130).

1.1. A infância da memória

O primeiro olhar lançado sobre a narrativa Qh10, que abre as páginas do

terceiro livro de Maria Lúcia Medeiros, intitulado QH (1994), denuncia um enredo muito

complexo e de difícil penetração. Trata-se de uma história que aconteceu há muito

tempo, “numa cidade toda branca à beira de um rio não tão largo mas de verdade tão

10 Texto apresentado na primeira parte do livro Quarto de Hora, publicado em Belém, pela editoraCEJUP, no ano de 1994.

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profundo e de águas muito escuras" (Qh, p.11), povoada por pessoas que mantinham

hábitos estranhos e reservados.

Os habitantes que formavam essa comunidade isolada, além de sofrerem

grande influência do rio, levavam uma vida extremamente monacal, repleta de ritos,

cânticos suaves e palavras encantatórias. Aparentemente, reinava entre eles, que eram

contritos e religiosos, um profundo equilíbrio e exatidão, marcados por alguma coisa

muito misteriosa.

Seus meios de subsistência eram a lavra, o plantio, a colheita e o comércio.

Na época da colheita, entre rituais e cânticos, eles negociavam no mercado localizado

na parte mais alta da cidade:

Em tempo de colheita abria-se o mercado e era no rumo dele que se movia aquelasilenciosa legião, deixando pelos caminhos aromas de legumes e frutas. [...] osruídos e as vozes, de natural tão baixas, alteavam-se em cânticos tão maviosos eera esse canto que permeava a venda e as trocas.Moviam-se cantando que era a forma de comunicar uns aos outros que o desejohavia sido atendido, que havia pão e hortaliças [...] (Qh, p. 12-13 – Grifos meus).

Nessa comunidade, os homens eram os senhores aos quais se devia

obediência total. Por isso, na cidade branca, não se podia desejar além do permitido. O

desejo refreado era uma característica daquele lugar, principalmente em relação às

mulheres que só podiam desejar sem ímpetos e viviam subjugadas aos seus maridos. E

se, por acaso, alguma mulher transgredisse a algum desses costumes, ela era punida

severamente, e pagava pelo seu “crime” com a própria vida:

E não falaram elas [...] porque, surpreendidas, encenaram cenas de mentira, gestosde crianças quando pilhadas em malfeitos. E o ódio deles aflorava pelas barbasnegras, pelos pomos-de-adão a subir a descer, eles engolindo em seco, a quasefurar a garganta, pelos fios dos bigodes a acompanhar a boca em torcedura.E contou minha mãe que foi só um momento, o pesado momento em que os punhaisforam expostos e apontados e que, estando elas em banho e soltos os cabelos, elesos cortaram, mas, não satisfeitos, os tosaram indo além, feixes e feixes de madeixascrescendo nas abas do rio, em horto transformado. (Qh, p. 41-42 – Grifos meus).

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Os únicos prazeres possíveis aos habitantes estavam ligados aos atributos

da natureza, aromas dos legumes, às cores das frutas no mercado e ao banho de rio

tomado à noite, ao regressarem para suas casas, o que representa sensações de

prazer da oralidade em vozes de silêncio:O regresso para as casas era feito não mais silenciosamente, dizia ela. Os cânticoselevavam-se à medida que o caminho encurtava. [...]Essa parte da história eu sorvia com tal prazer que minha mãe adivinhava-me eaninhando-me em seu regaço adocicava de tal modo a voz e repetia sem cansaço, orumor das águas, os corpos emergindo e submergindo, os cabelos que eu imaginavacrinas, secando ao vento da noite. (Qh, p. 13 – Grifos meus).

Esta lenda, sob a voz da contadora de hábitos, modos e tradições de uma

comunidade isolada, caracterizada por princípios fechados, vai servir de fio condutor

para a construção da narrativa Qh. A imagem da mãe está intimamente ligada à história

da cidade branca, mais uma imagem na memória da filha.

A filha-narradora, ao relatar sua própria história, numa relação primeira,

relembra os tempos da infância, lugar da memória, de onde emergem as imagens da

mãe e da lenda, na qual encontra a imagem de uma cidade branca que, localizada às

margens de um rio estreito, muito profundo e de águas escuras, possui ruas bem

traçadas e um mercado construído em lugar bem alto.

De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa cidade toda branca àbeira de um rio não tão largo mas de verdade tão profundo e de águas muitoescuras. [...]Equilíbrio e exatidão existiam no traçado das ruas, na firmeza do solo, no troncoenvelhecido das árvores [...]Para controlar-me a ânsia, minha mãe estendia-se exageradamente ao falar dascores das frutas e da frescura das folhas para, ao fim de tão comprido narrar, sabersaciada a minha curiosidade, confessando-me que era da terra fértil que todos senutriam. O mercado lá no alto, as portas abertas [...]. (Qh, p. 11-12-13 – Grifos meus).

A princípio, três narradores ocupam o espaço da escritura. Os não-ditos do

texto, porém, logo no início da narração, indicam que a lenda acompanha os povos, há

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muito tempo, pois ao iniciar a narrativa encaixante11 “Meu avô, pai de meu pai, tinha um

amigo” (Qh, p.11); subentende-se a existência de outros narradores, que contavam a

mesma lenda, em tempo de oralidade em transmissão de tradição, conforme diagrama

apresentado a seguir:

HISTÓRIA PRINCIPAL A LENDA DA CIDADE BRANCA

Qh

Primeiros ouvintes / Intérpretes / Contadores =Avô – Pai – Amigo.

(Tempo Pretérito – Mais distante)

Num primeiro momento, a narradora-protagonista, sem nome12 e

materialmente sem teto, recorda a história da infância, quando ouvia sua mãe,

personagem também inominada, contar com a maestria dos grandes narradores orais13,

pois inventava situações, omitia fatos e fazia suspense com o propósito de persuadir a

filha que desejava saber qual seria o final da história. Um final enigmático e misterioso

porque nunca lhe foi revelado:

11 Trata-se de uma denominação usada por Tzvetan TODOROV (2003, p. 126), nos estudos quedesenvolveu sobre a estrutura das narrativas para explorar o procedimento de encaixe, questão que seráabordada no último capítulo desta dissertação.12 A criação de personagens anônimas, ou nomeadas por graus de parentesco ou profissão, representauma constante na produção literária de Maria Lúcia Medeiros.

13 A título de curiosidade, assinala-se que Marina WARNER (1999, p. 56), no livro Da fera à loira: sobrecontos de fadas e seus narradores, ao apontar o papel ímpar das mulheres na narração de histórias,resgata a tradição de Sibila, profetisa do Oráculo de Apolo, que, frente à expansão da cristandade, seesconde em uma gruta e pratica suas artes mágicas, dentre as quais destaca-se a tarefa de contarhistórias de fadas. Esses contos, conhecidos por muitos como contos das velhas, contos das avós,

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Vem daí o papel que me cabe nessa história transmudada até aos ouvidos de minhamãe, que a confiou a mim por adivinhar nos meus olhos sinais seguros decuriosidade por histórias de mistérios e encantamentos. [...].Minha mãe, só hoje compreendo, temia por mim que queria com fragor saber o fimda história. [...].Assim, por muitos e muitos anos, acreditei ser esse o final da história. (Qh, p. 11-13– Grifos meus).

Percebe-se que, naquele tempo de prefação, a filha-narradora vivia num

ambiente limitado, exclusivamente sob a égide do discurso materno que lhe contava

parte de tudo que sabia, como se pode observar neste diagrama seqüencial:

Qh

Mãe-Narradora = Segunda Ouvinte / Intérprete / Contadora (reconta a Lenda da Cidade Branca e encaixa outras histórias: Jornada dos sete dias e a Narrativa das águas e das Lágrimas). (Tempo Pretérito – Mais próximo)

Enquanto o texto escrito é uma espécie de registro, a contação de uma

história representa uma atividade oral. Entretanto, há textos escritos que se oferecem

ao leitor como uma enunciação de vozes capazes de criar a ilusão do relato oral. Essa

problemática levou Boris EIKHENBAUM (1989, p. 72-73), nos estudos que realizou

sobre a teoria da prosa, valorizar a palavra oral que existe em toda narrativa. Para ele,

contos das fiandeiras, denotam a luta das mulheres para expressarem sua opinião em uma sociedadetipicamente masculina.

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a entonação das manifestações orais e os aspectos rítmicos são procedimentos

poéticos da prosa.

Boris EIKHENBAUM desenvolveu sua teoria, com maior propriedade, no

estudo que fez sobre o conto O Capote, de Gogol, pois, ao mostrar como o texto foi

construído, deu ênfase para os aspectos fônicos da prosa que criam a ilusão do relato

pela oralidade da narrativa, via expressão da palavra no envelope sonoro. É o que nos

diz EIKHENBAUM (1989, p. 90):

Tudo isto indica que a narrativa direta se encontra na base do texto de Gogol, o qualse organiza a partir de imagens vivas da língua falada e de emoções inerentes dodiscurso. [...] esta narração [...] reproduz as palavras por intermédio da mímica e daarticulação. As frases são escolhidas e ligadas menos segundo o princípio dodiscurso lógico do que segundo o princípio do discurso expressivo, no qual aarticulação, a mímica, os gestos sonoros, assumem um papel particular. É aí queaparece o fenômeno de semântica fônica da sua linguagem: o envelope sonoro dapalavra, o seu caráter acústico, tornam-se significativos no discurso de Gogol,independentemente do sentido lógico e concreto. (Grifos meus).

À luz do pensamento de Boris EIKHENBAUM, compreende-se que um dos

aspectos mais significativos em QH reside no tom pessoal com que a narradora-

protagonista relata os eventos diegéticos. Apesar de não existir nenhum tipo de diálogo,

o discurso direto da narradora assume um tom prosaico e constrói uma narrativa plena

de oralidade, como neste fragmento:

Muitas vezes deixava exausta minha pobre mãe de tanto que eu queria saber, dequantas pessoas habitavam aquele lugar, quantos iam ao mercado, de que maneiraas mulheres tinham seus filhos. [...].Nesse contar e recontar, contou-me da esfera que gira, do catavento, da Lua e datranslação e da rotação da Terra. Enquanto isso a nossos pés a tempestade gemia,inundando o campo. E assim, porque continuasse a manter os olhos secos, deitei-lhe olhar de tanto orgulho que a reverenciei, ajoelhada, beijando-lhe a barra dovestido.(Qh, p. 11-12-14 – Grifos meus).

Esse tom pessoal da fala da narradora-protagonista ocorre pela inclusão da

primeira pessoa, o que lhe permite falar como se estivesse conversando. É um relato

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quase confessional que assume enquanto fala e, por isso, torna-se mais suscetível às

alternâncias de expressão.

Qh, apesar de ser um texto escrito e destinado à leitura, traz no corpo de sua

escritura a vibração da voz, pois, ao ser lido, deixa-se ouvir, razão pela qual integra-se

no que Paul ZUMTHOR (1993, p. 18) denomina de oralidade secundária, própria dos

textos que, embora escritos, conservam acentuadas e profundas marcas orais, como

neste outro fragmento:

Vigilante, minha mãe percebeu que alguma coisa começava a abreviar-se, que euiniciava por descobrir naquela história as fibras do infortúnio. Assim, na hora em queela narrava a batida dos corpos na água, eu insistia com ela para me fazerconfidências, para dizer-me de onde vinham os soluços, para onde iam os gemidos.[...].

A despeito da convicção contida nas palavras dela, imaginava eu que nem todosretornassem para suas casas [...] (Qh, p. 14 – Grifos meus).

Observa-se que a mãe-narradora transmitia à filha-ouvinte, numa relação

predominantemente verbal, a história da cidade branca. Essa relação remete à idéia de

performance enquanto materialização de uma mensagem por meio da voz humana, ou

como conceitua Paul ZUMTHOR (2005, p. 87): “aquilo que denomino performance, na

acepção anglo-saxônica do termo, é o ato pelo qual um discurso poético é comunicado

por meio da voz e, portanto, percebido pelo ouvido”. Entende-se, portanto, que a

performance representa o exato momento da recepção, quando a mensagem, emitida

pelo intérprete, é realmente recebida pelo ouvinte.

Ao discutir a função do intérprete e do ouvinte, Paul ZUMTHOR (1997, p.

225-242) conceitua o primeiro como um “indivíduo de que se percebe, na performance,

a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista” e o segundo como aquele que “possui dois

papéis: o de receptor e o de co-autor”. A relação entre ambos é indissolúvel e

indissociável, pois não há intérprete se não houver ouvinte e vice-versa.

O papel do intérprete é mais importante que o do compositor, diz ZUMTHOR,

porque é o seu desempenho performático que irá determinar as reações auditivas,

emocionais e corporais do ouvinte. O auditório (ouvinte) tende a associar a autoria da

obra ao intérprete e não ao compositor, pois a poesia oral assume um caráter de

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anonimato se for considerado que o discurso, por ser fragmentado, não consegue

manter sua autonomia. Paul ZUMTHOR (1997, p. 223), entretanto, salienta que “invocar

o anonimato de um texto [...] não é constatar a simples ausência de um nome, porém

uma ignorância enorme a este respeito” porque “a performance jamais é anônima”. Não

se preocupar com o autor sobre o que se ouve, não implica a negação de sua

existência, mesmo que se esteja diante de um texto mítico.

A performance do intérprete é responsável por sua força enquanto

disseminador do texto oral. A intimidade do intérprete com o poema, ou do narrador

com a história que conta, vai ser avaliada em função do efeito que sua performance

exercerá sobre o ouvinte: convencimento, emoção, desprezo. Por isso, não se pode

ignorar que nem sempre o que é dito ou interpretado está adequado ao ouvinte ali

presente. É preciso haver uma empatia entre intérprete e ouvinte para que haja um bom

resultado final.

A qualidade da performance depende da completa interação entre intérprete,

texto e ouvinte. O papel do ouvinte é idêntico ao do intérprete à medida que, enquanto

parte principal da recepção, recria, conforme seus anseios pessoais, tudo que lhe é

transmitido pelo intérprete. Essa recriação, diz Paul ZUMTHOR (1977, p. 242), origina

uma “nova performance: o ouvinte torna-se por seu turno intérprete, e, em sua boca, em

seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical”. Conclui-se que o poema

transita pela voz de diversos intérpretes, como uma produção coletiva, e é isso que

garante a preservação das fórmulas e a conseqüente renovação da tradição. É o que

se observa em Qh à medida que a lenda da cidade branca transita pela voz de vários

intérpretes, que outrora foram ouvintes: o avô, o pai, o amigo, a mãe, a filha e a “voz em

cantochão”.

A narradora-protagonista, ao excluir a terceira pessoa, assume o lugar e o

tempo de uma falsa primeira pessoa para, numa seqüência narrativa, do passado ao

presente, recontar ao ouvinte, agora sob a lógica memorialista, um reconto prefacial em

série – “tempos de prefação”, como se observa neste fragmento:

Cuidei nessa noite de todas as tarefas adultas porque assim movia-me, adulta eancestral, como se já fosse minha a história dela, a minha história agora repassada.[...].

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Por isso não chorei quando, no sétimo dia, ela morreu em paz deixando-me históriade imaginação, iniciando-me em reino inexorável e tantas vezes insondável. [...]. Absorta nesses pensamentos tristes, dei-me conta, uma vez mais, de queprincipiava, a partir daí, meu exercício de narrar e que, ao olhar para frente e seguirem direção ao rio, deixara para trás a casa, meu abecedário, meu tempo deprefação. (Qh, p. 18-20-21 – Grifos meus).Qh conta duas histórias: a lenda da cidade branca, constantemente retomada

ao longo da narrativa, e a história da narradora-protagonista que, ao contar sobre o

percurso da sua própria existência, a partir das lembranças retidas na memória em

relação à lenda e aos ensinamentos herdados de sua mãe, entrelaça à sua própria

história novas narrativas à medida que põe a nu toda sua perplexidade diante da

trajetória existencial, deixando transparecer que tem consciência do quanto a vida é

fugaz e que sua palavra será incapaz de deter a marcha inexorável do tempo. É o que

se busca demonstrar com o diagrama abaixo:

Tempo Presente

Qh

Filha-Narradora = Terceira Ouvinte / Intérprete / Contadora (pelo reconto da Lenda, conta sua própria história (História Secundária)

e cria novas histórias (memória + imaginação) que atravessam oespaço da narrativa Qh a projetar as horas lembradas: O Cavalo de

Fogo / A velha Roufenha / O vale das Sombras /A Queda no Abismo.

* Os Anjos * A Região dos Mortos * Nascimento / Destino * Isolamento / Solidão * O Poder da Palavra

* A Passagem do Tempo * História e Pré-história

* Os Fantasmas Interiores * Insatisfação Interior

Hs * As Rezas / Tragédias / O Fantasma

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* Histórias de Assombração / Memória dos Velhos * As histórias que surgem da memória * A Criação Artística: Pintura e Literatura * A Origem: onde tudo começou

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Observa-se nesse diagrama, traçado aos moldes de uma ampulheta, que a

narradora-protagonista, ao recontar a lenda da cidade branca, sente-se impulsionada a

contar outras histórias que, em movimentos centrípetos e centrífugos, giram em torno

da história principal. Assim, se a ampulheta for virada, o tempo recomeça a contagem

para o contar de uma nova história, a evidenciar que esse movimento espiralado

temporal, num continuum vaivém, marca não o fim da história, mas o início de outras

histórias que permanecerão para sempre nos gestos e na voz de outros narradores,

para não dizer, trovadores.

Cabe ressaltar que a narradora-protagonista, para formar essa rede de

histórias, sempre se serve de infinitas metáforas, palavras ramificadas que adentram

por labirintos, a inserir o leitor-ouvinte num enigma interminável, o que lhe obriga

atravessar o texto, também em movimento giratório, para ir em busca de relações

possíveis, capazes de unir os fios que montam a narrativa como se fosse um enorme

quebra-cabeça. Entende-se, por isso, que, para melhor compreender a escritura de QH,

se faz necessário manter o espírito em movimento, o olhar sempre novo, a procurar o

“aqui”, o “ali”, o “outro lado”, o “atrás”, o “acolá”, pois é somente por meio de um olhar

estratégico, móvel e atento que se consegue descortinar cada nó proposto, cada

mundo microscópico oculto que se forma nos interstícios, fora do alcance do olhar

comum que só consegue enxergar a aparência das coisas.

Essa percepção indica que Qh é uma narrativa contemporânea porque, além

de contar várias histórias como se fosse uma única, não revela o final de nenhuma,

apesar de admitir que “esperar o final é querer a história, é merecê-la pelo direito da

espera, é possuir infinitamente, ad aeternum...” (Qh, p.14 – Grifos da autora). O mais

importante fica subentendido, oculto no relato à espera da tensão do deciframento,

como ensina Ricardo PIGLIA (2004, p. 91-92), no livro Formas breves, quando trata das

teses sobre o conto:

O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentidooculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma históriacontada de modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço dessa

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narração cifrada. Como contar uma história enquanto se conta outra? Essa perguntasintetiza os problemas técnicos do conto.Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes.A versão moderna do conto [...] abandona o final surpreendente e a estruturafechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-la. A históriasecreta é contada de modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contavauma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas históriascomo se fossem uma só. [...] o mais importante nunca se conta. A história éconstruída com o não-dito, com o subentendido e a alusão. (Grifos meus).

Observa-se, em Qh, uma dilatação incessante de narrativas orais. Nesses

textos escritos, marcados pela oralidade, uma narrativa pode sempre levar a outra, pois

há um excedente que fica fora do desenvolvimento fechado da intriga que é completado

por outra narrativa, e esta, por sua vez, geralmente é completada por outra. Nessa

reduplicação, o fragmento, além de estabelecer uma relação de similitude com a

estrutura original, ele próprio incorpora novos fragmentos. É uma narrativa dentro de

outra narrativa que se direciona sempre ao infinito, como dois espelhos confrontados.

Tzvetan TODOROV (2003, p. 132), no texto Os homens-narrativas, considera que essa

capacidade de se multiplicar infinitamente é a essência das narrativas construídas por

meio do processo de encaixe:

Toda narrativa deve tornar explícito o seu processo de enunciação; mas para tanto énecessário que uma nova narrativa apareça, na qual esse processo de enunciação éapenas uma parte do enunciado. Assim, a história contante torna-se sempre tambémuma história contada, na qual a nova história se reflete e encontra sua própriaimagem. Por outro lado, toda narrativa deve criar outras; no interior dela mesma,para que suas personagens possam viver; e no exterior dela mesma, para que sejaconsumado o suplemento que ela comporta inevitavelmente. (Grifos meus).

Assim, entre sendas secretas e enigmas, começa a narrativa Qh, cuja história

revela a construção de um Eu que faz da ação da memória instantes de duração

poética de imagens em substituição. A narradora-protagonista mostra-se na vertigem do

tempo e das horas, vítima de um perpétuo esfacelamento em que instante após

instante tudo é demolido: suas vivências se perdem e, ao mesmo tempo, todos os

acontecimentos externos são tragados num contínuo passar.

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Na temporalidade, tudo é destruído/construído, a exemplo do que afirma

Samuel BECKETT (2003, p. 9-11), no trabalho que desenvolveu sobre Proust, autor da

Recherche:

As criaturas de Proust são [...] vítimas desta circunstância e condição predominante:o Tempo [...] Não há como fugir das horas e dos dias. Nem de amanhã nem deontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nósdeformado. [...] Sobreveio uma deformação [...] Não estamos somente cansados porcausa do ontem, somos outros, não mais o que éramos, antes da calamidade deontem. (Grifos meus).

Em Qh, a temporalidade é um princípio submisso ao tempo da lembrança. A

narradora-protagonista reflete sobre aquilo que passa, se esgota, se corrói e se perde,

à medida que narra e descreve um mundo efêmero e evanescente. Por isso, entende-

se que o essencial nessa narrativa não reside no esforço da memória para recuperar o

passado sob o olhar do presente, nem na reflexão sobre o tempo, mas na busca de

uma verdade em relação às questões existenciais.

Nessa perspectiva, o título QH, em seus múltiplos sentidos, remete à imagem

de um tempo que não ultrapassa os quinze minutos que, ao ser criado pela linguagem,

marca o tempo que a narradora-protagonista tem para contar histórias, a representar,

por conseguinte, o tempo mínimo de uma memória que traz novas ligações em blocos

de imagens claramente divididos. De modo que todo o exemplar evidencia a

representação de um tempo ínfimo onde, na simulação da dor existencial, conta e

reconta a angústia interior, a expressar a dor inerente ao próprio “exercício do narrar”

(Qh, p. 21), visto que o tempo de apenas quinze minutos ser muito breve para criar

tantas histórias. Daí a sensação do sonhar, pois as imagens oriundas do sonho,

enquanto fenômeno do sono e da imaginação, para citar CHEVALIER e GHEERBRANT

(2005, p. 845-847), apresentam-se como uma peça teatral, ou mesmo uma tela de

cinema que, organizadas em atos e/ou blocos, são montadas de modo a projetar um

longo percurso em frações de segundos, o que possibilita uma imediata visualização

global do tempo-espaço onde se passa a história, como é possível observar neste

fragmento:

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O regresso para as casas era feito não mais silenciosamente, ela dizia. Os cânticoselevavam-se à medida que o caminho encurtava. Tochas acesas, a cidade enchia-sede sombras e iam todos lavar os corpos no rio, água tépida àquela hora da noite.Essa parte da história eu sorvia com tal prazer que minha mãe adivinhava-me eaninhando-me em seu regaço adocicava de tal modo a voz e repetia sem cansaço, orumor das águas, os corpos emergindo e submergindo, os cabelos que eu imaginavacrinas, secando ao vento da noite.[...] eu, exausta de tanto sonhar, adormecia embalada pelos ruídos dos corpos nusbatendo nas águias do rio.Assim, por muitos e muitos anos, acreditei ser esse o final da história. A paciênciabíblica de minha mãe fê-la esperar até que eu aprendesse a não sucumbir àpassagem da beleza ou, nas palavras dela, saber juntar lavra e colheita. (Qh, p. 13).

Percebe-se, à luz desse fragmento, que QH evidencia o uso da técnica de

montagem14, visto que a história é contada por meio de blocos narrativos condensados,

a projetar um cenário que se move rapidamente entre os espaços construídos com o

mínimo de palavras, a denunciar uma escritura ágil, o que colabora para que a leitura

da narrativa seja feita de uma só sentada.

Do tempo de prefação, a narradora-protagonista guarda e revela pelo

discurso, imagens analógicas à natureza do rio em fluxo, análoga à memória, “stream of

consciousness” de um narrar em cascata, cenas em turbilhão – “fio da história”:

Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela não chegousozinha. Veio ela e veio o rio, veio o fio da história, explícito luar a tudo envolver, fioretomado e devidamente seguido, os corpos voltando a banhar-se e o desfechoavermelhando as águas. (Qh, p. 23 – Grifos meus).

Lembrar da “cidade toda branca” (Qh, p. 11) é trazer ao presente do narrado

as imagens imaginárias das ovelhas sacrificadas, cujo rubro sangue desenhava no

chão, formas estranhas em contraponto com a imagem das mulheres sacrificadas pelos

maridos, que enlutava e avermelhava o rio, imagens nas quais o atributo “branco"

contrastado ao vermelho gera estranho confronto – morte e luto; as vozes (murmúrios,

gemidos e cantos suaves); a colheita; o mercado; os aromas e os intermináveis banhos

de rio na escuridão da noite.

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Da jornada realizada em sete dias surgem meta-imagens, gestualidades: os

gestos (semear, colher e morrer); o sangramento dos pés da protagonista após longa

caminhada; os vultos de passagem e a região dos mortos (a peregrinação); o olhar

cauteloso da mãe-narradora e seus gestuais de quiromancia; a inutilidade das lágrimas

frente aos infortúnios da existência humana; o banho de rio e a travessia na infinita

ponte em meio à escuridão; a dor, figurada, primeiro, nas contrações e contorções de

um parto assistido pela mãe-narradora (nascimento – “livro da vida”); e, depois, na

morte da mãe (o fim existencial – o fechar do livro).

Essas imagens em rotação irão compor a contigüidade da narrativa em Qh,

fazer das leis da semelhança o princípio da descontinuidade da paisagem poética.

1.2. Imagens em rotação ficcional

A escritura de QH apresenta uma precisão vocabular, pela riqueza de

imagens, que povoam a memória e a imaginação da narradora-protagonista, e pelo teor

de intertextualidade e evocação poética transportados para a narrativa na arte de

construir a linguagem poética personificada no reconto da lenda da cidade branca.

Essas características, arrisca-se afirmar, buscam atingir o estado de síntese pela

escolha das palavras e das imagens que aguçam a imaginação do leitor. A imaginação

é o vetor da criação poética. A missão do poeta consiste em atrair essa força poética

que se encontra no imaginário para convertê-la em descarga de imagens. É, pois, pela

imaginação que o homem consegue dar forma às coisas mais tênues e encontrar seu

ponto de equilíbrio enquanto ser no mundo.

14 Observe-se que a técnica de montagem, enquanto linguagem cinematográfica, evidenciada em QH,será estudada no último capítulo desta dissertação.

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A esse respeito, Robert AVENS (1993, p. 41), no livro Imaginação e

realidade, registra, à luz do pensamento kantiano, dois tipos de imaginação: a

reprodutiva e a produtiva ou transcendental.

A imaginação reprodutiva, oriunda da tradição aristotélica, diz respeito a uma

reprodução de impressões causadas pelos sentidos que são armazenadas na memória.

Por isso, o seu funcionamento está sujeito à lei da associação e tem como propósito

solidificar o caos de sensações, numa imagem, a ordená-la para que a mente,

voluntária ou involuntariamente, possa vir a contemplá-la em tempos futuros. Trata-se,

pois, de uma percepção, visto que a imagem é produzida a partir dos sentidos retidos

na memória. É o que se encontra em Henri BERGSON (1999) para quem a memória é

sempre uma conservação do passado, a evidenciar que a imaginação reside na

evocação.

A imaginação produtiva, por sua vez, é compreendida como um poder ativo

espontâneo, que se inicia por si mesmo por meio da combinação de elementos

sensoriais com a apreensão intelectual. A imaginação é, nesse sentido, não apenas

uma fonte da arte, mas o poder e o agente de toda percepção humana, a representar,

por conseguinte, um modo de estabelecer uma relação de profundidade com o mundo.

Dentre outros seguidores, essa posição é defendida pelos filósofos do imaginário,

especialmente à luz dos pensamentos de Gaston BACHELARD (2001) e Gilbert

DURANT (2002).

Entende-se, nessa perspectiva, que a imaginação, além de sua função

reprodutiva, proporciona a capacidade de ver o lado interior das coisas, a mostrar ao

homem que existe mais na sua experiência de mundo do que ele costuma perceber.

Faz-se necessário, portanto, sair de uma visão literal da realidade para ir ao encontro

da capacidade de uma visão noética que requer a manutenção da consciência do

cotidiano.

Essa ambigüidade da função imaginativa vai redundar no valor e na posição

que os sistemas filosóficos lhe dedicam na formação do conhecimento. Desse modo,

ora a imagem é considerada cópia fiel da sensação, inteiramente enraizada no corpo,

mesmo que apareça voluntariamente, ora a imagem é uma espécie de transposição da

sensação para uma realidade trans-sensorial, embora conserve as relações de situação

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e qualidade do mundo sensível. A imagem, nesse sentido, distancia-se da percepção

para intelectualizar-se, simbolizar-se.

À luz dessa ambigüidade, quando se focaliza as imagens-lembranças em QH,

torna-se necessário trazer Gaston BACHELARD à vizinhança de Henri BERGSON,

visto que se evidencia na narrativa imagens provenientes tanto da memória-fluxo-de-

duração-interior quanto do devaneio poético, entendido fenomenologicamente como um

aspecto da descontração, enquanto pulsões inconscientes das forças oníricas que se

manifestam na vida consciente, pois o pensamento bachelarniano, fundamentado na

Ciência (razão) e na poesia (devaneio), revela a plenitude da vida, ao mesmo tempo,

que reivindica a interioridade da existência e do sonho.

Compreende-se, por essa via, que o processo imagético e onírico é perene

no ser humano e a imaginação faz parte do processo criador. Poesia e imaginação são

dotadas de uma magia encantatória que desperta no homem a cosmologia da imagem,

ao transformar as palavras em símbolos que transmitem sonhos e memórias

partilhadas, como nestes fragmentos:

Então, movendo-se vagarosamente e uma distância considerável, ofereceu-se aosnossos olhos o desenrolar de um espetáculo, eu diria uma procissão, um cortejo dealmas deste mundo e de outros. Todos encapuzados, uns apoiados nos outros,rezavam ou murmuravam rezas que aos nossos ouvidos chegavam qual barulhar devento. [...]Não me lembro ao certo por quanto tempo foi feita a travessia, mas ao rompercautelosa a manhã, sem mais Lua, com romaria transportada a outras plagas, minhamãe apressou nossa marcha, nós que retornávamos da região dos mortos, daquelecampo desnudo com seiva e húmus a escorrer pelos cabelos. Levada para dentro dacasa, minha mãe agasalhou-me e dormi profundamente por um longo tempo. (Qh, p.15-16).

Observa-se, à luz desse fragmento, que a narradora-protagonista, ao

relembrar a lenda na gestualidade e voz materna, entremeia à imagem da cidade

branca outras imagens que pintam um cenário insólito como se ela entrasse num

mundo sobrenatural15. Lembranças imagéticas que, em tempos primevos, foram

15 Apesar desta dissertação não se restringir ao estudo da literatura fantástica, entende-se necessárioassinalar que, segundo Tzvetan TODOROV (2004, p. 30-31), as narrativas que evidenciam a inexistênciade fronteiras entre o real e o imaginário, cuja ambigüidade se mantém até o fim da história, classificam-se

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compartilhadas pela mãe e pela filha, visto que ambas atravessaram e retornaram da

“região dos mortos”.

Essa profusão de imagens, que evidencia nitidamente a fronteira entre o real

e o imaginário, por conseguinte, instiga o leitor a duvidar quanto à veracidade da

história, a instalar um sentimento de ambigüidade, pois se torna difícil precisar de onde

surgiram tais imagens. Seriam elas provenientes da memória-fluxo-de-duração-interior,

de que trata Henri BERGSON ou frutos de um devaneio, a evidenciar as pulsões

inconscientes das forças oníricas, como registra Gaston BACHELARD? Difícil

responder. Compreende-se, entretanto, que a questão não está centrada nessa

resposta, mas no modo como é construída a narrativa em QH, visto que a imaginação

consiste tanto na evocação das lembranças, quanto na construção de imagens

arranjadas livremente pela fantasia. De um ou outro modo, a imaginação da narradora-

protagonista, pelo reconto da lenda, está sempre associada à percepção e à memória.

Segundo Gaston BACHELARD (2001, p. 5-6), é pela imaginação que se dá

força às imagens poéticas, porque na fenomenologia do devaneio poético, qualquer

imagem é capaz de revelar o mundo. A poesia é o fio condutor das imagens e da

imaginação, e representa a tomada de consciência dos fenômenos que ocorrem na

alma do sonhador.

Os poetas, ao canalizarem a memória e a imaginação na essência das

imagens, trazem para a escritura a cosmicidade das imagens que evocam recordações

e devaneios. Por isso, continua Gaston BACHELARD (2001, p. 119-166), a poesia

passa a ser “uma força de síntese para a existência humana” porque, ao unir

imaginação à memória, revela estados de alma: “o poeta dá à imagem um destino de

grandeza”.

A imaginação é uma rede complexa de relações e aparece, no dizer de

Gilbert DURAND (2002, p. 18 – Grifos do autor), como o “denominador fundamental

onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano”. No domínio da

imaginação, a imagem não pode ser degradada, pois ela é sempre portadora de um

no gênero do fantástico, pois o “fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta,deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é ahesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimentoaparentemente sobrenatural.O conceito do fantástico se define pois com relação aos de real e de imaginário”.

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sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária. Neste aspecto,

Gilbert DURAND compartilha da mesma concepção de Gaston BACHELARD, quando

enfatiza que a imaginação é uma “potência dinâmica que ‘deforma’ as cópias

pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações

torna-se fundamento de toda a vida psíquica porque ‘as leis da representação são

homogêneas’” (DURAND, 2002, p. 30).

Para Gaston BACHELARD (2002, p. 17-18), a imaginação “não é a faculdade

de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a

realidade, que cantam a realidade”. A poesia, assim, constitui a matéria-prima para a

fenomenologia da alma, pois suscita imagens cósmicas que pertencem ao universo da

consciência humana.

A imaginação faz a correspondência entre as imagens e as palavras e, nesta

associação, o texto poético é uma fonte de evocação da memória e da recordação. Por

isso, analisar as imagens da infância pela obra literária e pela palavra poética é uma

forma de adentrar no universo misterioso da imaginação simbólica, pois a arte é

portadora de vozes que repercutem ecos ontológicos, voz que ecoa os tons da natureza

e do homem.

As imagens da infância, presentes em Qh, confirmam a manifestação de uma

infância permanente e, neste sentido, os devaneios são a continuidade dos devaneios

dos tempos primevos. Entretanto, para que essas imagens retornem ao presente do

narrado com a mesma beleza, a alma e o espírito devem estar em comunhão, já que os

dois não possuem a mesma memória. Só quando entram em harmonia é que a

imaginação e a memória atingem a plenitude do devaneio, momento em que se imagina

reviver integralmente o passado. Assim, o poeta lança um convite à imaginação, a

imaginar a infância perdida, a inventar o passado, como se o devaneio voltado para a

infância devolvesse vida às vidas que não aconteceram, mas que foram pelo menos

imaginadas. O devaneio poético resgata estas imagens que ficaram na memória,

esboçando a profundidade do tempo e da alma de criança num passado desaparecido.

Neste sentido, diz Gaston BACHELARD (2001, p. 119), “a poesia é uma força

de síntese para a existência humana”, pois ela possibilita analisar a infância de forma

tão mágica, que traz para o espaço da obra poética o mesmo maravilhamento da

infância vivida. As recordações da infância marcam a memória com signos indeléveis,

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lembranças revividas apenas no devaneio e que permite canalizar memória e

imaginação na essência das imagens poéticas, como neste fragmento:

Ao alcançarmos o que parecia ser um patamar, agarrei-me ao corpo de minha mãechorando. É que vislumbramos estendida à nossa frente a mais infinita ponte que eujamais vira. Então, ainda em silêncio, minha mãe aninhou-me e, comigo em seusbraços, iniciou a travessia em meio à escuridão e ao vento.Cessado o medo, fui tomada por tão intensa sensação de quietude ao perceber quenão havia sinal de tropeço nem vacilo em sua caminhada. Fechei os olhos porqueacreditei que minha mãe possuía asas e que, se perigo houvesse, ela e eu nosdistanciávamos dele cada vez mais. (Qh, p. 18 – Grifos meus).Percebe-se, neste fragmento, que a riqueza das imagens ganham grande

poder enunciativo à medida que remetem à proteção materna. O medo inicial é anulado

pela presença da mãe, enquanto símbolo de força, calor e ternura, que projeta na

imaginação do Eu lírico uma sensação de paz, leveza e tranqüilidade.

A imagem materna, guardada na memória, é uma presença viva na vida

adulta da narradora que, com saudade, lamenta sua ausência em momentos de

desproteção, como neste outro fragmento:

Se estivesse eu com minha mãe ao lado e fosse noite, viria em sopro cálido o Anjoda Prudência a adormecer a filha e descansar a mãe, mesmo ao relento. Mas euestava só e deveria por assim estar, suportar o cansaço e o medo por maior quefossem. (Qh, p. 25 – Grifos meus).

Imagens em rotação reconstituem instantes que se perderam no turbilhão do

tempo. Estabelecem-se correspondências temporais e o presente da narradora-

protagonista entra em comunicação com o passado, deslocando-a para outras cenas,

outros espaços e novos lugares do presente:

[...] ao levar-me para fora e empreender a caminhada, ainda fazia escuro. Minhamãe tinha pressa. Meus pés, de muito calcarem a terra, começaram a sangrar,provocando a impaciência de minha mãe que precisou desviar trajeto à procura deum fio d’água para lavar-me as escoriações. [...].Na verdade, ao me fazer em descida, eu vislumbrava lá no alto escarpas medonhas,o ventre de um abismo colossal de inacreditável altura, que me desgovernavaladeira abaixo [...], meus pés já tão feridos [...]

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[...] lá onde corriam em celeridade as águas de um rio a desaparecer por baixo daspedras. Segurei-me porque o chão começava a fazer-se escorregadio e ocorreu-me a idéiade aproximar-me d’água para poder lavar o sangue dos meus pés. [...]. (Qh, p. 15-35).

Observa-se, neste fragmento, que a narradora-protagonista anônima

reencontra-se com o passado, reintegra-o ao presente. A flagelação dos pés que, em

tempos primevos, é conseqüência de longa caminhada em campo aberto empreendida

ao lado da mãe, personagem também anônima, no presente do narrado, assume um

outro espaço: descida brusca em abismo profundo.

A narradora-protagonista, com fragmentos e lembranças que, tal um

arqueólogo, escava da memória, constrói a imagem de sua trajetória, que culmina, anos

mais tarde, com a chegada a um bosque, onde ouve outra voz, personagem totalmente

anônima:

[...] Mais adiante um páramo tranqüilo em meio ao bosque e, em grande roda aberta,grupo de homens, mulheres com crianças a apoiar o queixo e ouvir histórias saídasde uma voz em cantochão, narrativa a escorrer sobre a terra [...]Meu avô, pai do meu pai, tinha um amigo... Pus-me em retirada devagar ao tempode escutar, [...] palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar... (Qh, p.41-43 – Grifos da autora).

Nota-se, neste fragmento, que a lenda da cidade branca é repetida, ao longo

do tempo, na voz de muitos outros narradores. Por isso, ao fazer da oralidade um ato

ficcional, a autora incorpora velhas narrativas orais na textualidade de Qh, dá voz aos

velhos contadores de histórias, personificados na imagem do avô, do pai, do amigo, da

mãe, da voz em cantochão e da própria narradora-protagonista que, na ausência da

primeira narradora, toma para si o “exercício de narrar” (Qh, p. 21) numa continuidade à

semelhança de uma Sherazade.

Cabe assinalar que, nesse sentido, o homem, desde o mais remoto dos

tempos, em função da própria necessidade de sentir, pensar e agir, acumulou

experiências, exercitou seu talento artístico, criou hábitos e costumes, observou o

modelo de seus antepassados, dos quais assimilou os ensinamentos, de modo a formar

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seu patrimônio cultural que, ao ser transportado aos seus descendentes, representa a

memória fecunda das sociedades humanas. Assim, cada geração16 recebeu de seus

antepassados um acervo de bens e valores que procurou absorver, conservar,

dinamizar, enriquecer, para, por sua vez, transmiti-lo à geração seguinte, para que esta

procedesse da mesma maneira com a subseqüente, e como em cadeia, seguidamente,

pelos tempos futuros.

Nessa perspectiva, cada comunidade, ao transmitir, geralmente por meio da

palavra oral, as impressões e vivências, explicar fantasticamente os fatos e fenômenos

da natureza, contar histórias, viagens, episódios do cotidiano, enaltecer os feitos de

seus heróis, embelezados pela fantasia e admiração que suas façanhas lhes

estimulavam à imaginação, criou inegáveis fontes de grande valor, a originar o que se

conhece e é denominada tradição oral. Entende-se, portanto, que a tradição é formada

pela ação direta da memória, cujos fios emaranhados enredam como uma rede de

referências oriundas das gerações antecedentes como no dizer de Luís da Câmara

CASCUDO (1971, p. 42-48) “a memória é a imaginação do povo, mantida e

comunicável pela tradição, movimentando as culturas convergidas para o uso, através

do tempo”. Mas adiante, registra o folclorista que a tradição “reúne elementos de

estórias e de história popular, anedotas reais ou sucessos imaginários, críticas sociais,

vestígios de lendas, amalgamados, confusos, díspares, na memória geral”, a significar

que todos os povos possuem os seus contos, as suas legendas17, os seus mitos, as

suas fábulas, as suas cantigas maviosas em noites enluaradas, os seus ditados

populares, os seus versos improvisados, que formam um elo contínuo e progressivo,

revelador da cultura nacional.

Não seria inútil observar que se torna muito difícil estabelecer uma diferença

precisa entre as lendas, os mitos, os contos e as fábulas, pois essas categorias

apresentam-se bastante entrelaçadas. Esse problema, ao que parece, vem de longe

visto que o próprio Luís da Câmara CASCUDO (1971, p. 53) considera fábula como

16 Em verbete de qualquer dicionário de Língua Portuguesa, a palavra geração diz respeito adescendência, a significar a linhagem dos indivíduos nascidos numa mesma época.17 Segundo André JOLLES (1976, p. 30-46), a legenda, oriunda da cultura ocidental, é o nome que, naIdade Média, era dado a uma narrativa sobre a vida dos santos e mártires para ser lida nos refeitóriosdos conventos. Trata-se de uma “forma simples”, pois surge a partir de “uma disposição mental que levaa multiplicidade e a diversidade do ser e dos acontecimentos a cristalizarem para assumir uma certa

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sinônimo de mito. Por sua vez, Max MÜLLER (Apud CASCUDO, 1971, p. 64) registra

que o mito passa ao estado de lenda e esta se transforma em conto. O mesmo ocorre

com André JOLLES (1976, p. 61), quando afirma que, na prática, não há uma “distinção

rigorosa entre sage (saga), mythus (mito) e märchen (conto)”. Torna-se, portanto,

quase impossível diferençar essas categorias, pois uma mesma narrativa pode contar

um mito, uma lenda, um conto ou uma fábula, como salienta Mircea ELIADE (2002, p.

172) quando afirma que “a distância que separa os mitos dos contos é menos nítida do

que nas culturas em que existe um profundo abismo entre a classe dos “letrados” e o

“povo” (como foi o caso no antigo Oriente Próximo, na Grécia, na Idade Média

européia). Os mitos são freqüentemente misturados aos contos [...], aquilo que se

reveste do prestígio de um mito em uma tribo será apenas um simples conto na tribo

vizinha”.

Concorda-se, frente a tantos pensamentos desencontrados, que realmente

inexiste uma linha divisória capaz de separar essas categorias. Entretanto, para o

andamento desta pesquisa, é preciso voltar o olhar para a lenda enquanto narrativa de

caráter fantástico e/ou fictício que, transmitida pela tradição oral, geralmente fornece

justificativas plausíveis e até certo ponto aceitáveis para coisas que não têm

explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou

sobrenaturais.

Ao referir-se sobre as lendas, Luís da Câmara CASCUDO (1984, p. 51)

registra que elas são “iguais em várias partes do mundo, semelhantes a dezenas de

séculos, diferem em pormenores, e essa diferenciação caracteriza, sinalando o típico,

imobilizando-a num ponto certo da terra. Sem que o documento histórico garanta a

veracidade, o povo ressuscita o passado, indicando as passagens, mostrando, como

referências indiscutíveis para a verificação racionalista, os lugares onde ocorreu o fato”.

A lenda, nessa percepção, é um elemento de fixação que se caracteriza em função de

sua vinculação, na memória do povo, a um marco geográfico, ou a algum vulto da

História, ou a um evento da comunidade.

configuração; sempre que tal diversidade [...] possa ao mesmo tempo querer dizer e significar o ser e oacontecimento”.

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A lenda da cidade branca, em QH, é uma narrativa de autoria

desconhecida18, disseminada desde o mais remoto dos tempos (amigo, avô paterno),

que, ao focalizar os hábitos e os costumes de uma determinada comunidade, se

caracteriza por um sentimento de fatalidade, marcado pelo cruel assassinato das

mulheres consideradas transgressoras. Segundo os pesquisadores, esse tipo de

episódio trágico, próprio das narrativas lendárias, é relevante porque fixa a presença do

destino (aquilo contra o que não se pode lutar), a demonstrar que o pensamento

humano é dominado, direta ou indiretamente, pela força do desconhecido.

É importante perceber que a lenda da cidade branca, no transcurso de sua

peregrinação, sofreu algumas transformações, conforme o olhar de cada intérprete que,

em função de sua própria pessoalidade e o tempo/espaço onde estava inserido,

preencheu lacunas e/ou deixou de acrescentar outros elementos. Entretanto, a base de

criação da lenda (estrutura e forma interna) permaneceu a mesma, pois os inúmeros

contadores, entre as gerações, continuaram a relatar os fatos ocorridos numa cidade

toda branca, localizada às margens de um rio profundo e de águas escuras, habitada

por uma comunidade isolada que possuía hábitos e costumes estranhos, a destacar os

ritos, os cânticos, os meios de subsistência e, principalmente, a punição com instinto de

crueldade.

Esses elementos, que permaneceram inalterados, indicam que a lenda da

cidade branca, oriunda da tradição oral, permaneceu como uma forma simples, pois

conseguiu sobreviver, ou para lembrar André JOLLES (1976, p. 48), “cristalizar-se na

memória” do povo com as mesmas características dos tempos remotos. Por isso,

compreende-se que a lenda da cidade branca é a personificação da memória da

comunidade que, ao materializar as marcas da memória e os emblemas de uma

geração, garante a imortalidade das coletividades por onde passou.

Nessa perspectiva, a memória, o tempo e a imaginação, via oralidade,

revelam-se, em Qh, como canais que buscam manter a tradição e ajudam a entender o

fenômeno que ocorre na consciência humana. A infância está na origem dos maiores

18 Cabe assinalar que os folcloristas focalizam as lendas como narrativas anônimas. Entretanto,compreende-se que essas narrativas, para lembrar Paul ZUMTHOR (1977, p. 223), não podem serconsideradas anônimas porque sempre existe um autor por trás do intérprete. A “performance jamais éanônima” e o fato do ouvinte não se preocupar com o “autor daquilo que ouve [...] não implica que elenegue sua existência, mesmo que seja mítica”.

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devaneios, das maiores imagens, pois a beleza das imagens está presente no fundo de

cada memória.

Encontra-se, na coletânea Parva Naturalia, parte da teoria do conhecimento

aristotélico que versa sobre inúmeros temas, dentre os quais destacam-se a alma, a

sensação e o sensível, a memória e a reminiscência, o sono e a vigília, a longevidade e

brevidade da vida e os sonhos. Aristóteles (1986, p. 290-293), nesse trabalho, distingue

a memória propriamente dita (a mneme – faculdade de conservar o passado) da

reminiscência (a mamnesi – faculdade de invocar voluntariamente o passado), e

salienta que “as impressões sensoriais representam a fonte básica de todo o

conhecimento [...] que as percepções trazidas pelos sentidos são primeiramente

tratadas pela faculdade da imaginação”.

Essas imagens tornam-se materialidade para a faculdade intelectiva. Daí a

imaginação ser entendida como um ponto intermediário entre a percepção e o

pensamento. Essa parte da alma é responsável pela produção de imagens, que

possibilita os processos superiores do pensamento.

A memória, para o filósofo, não é nem sensação nem julgamento, mas um

estado (afeição, afeto) de um deles, quando o tempo já passou. Logo, só as criaturas

vivas, que têm consciência do tempo, podem recordar pela imaginação. A imaginação e

a memória pertencem à mesma parte da alma. Todas as coisas que são imagináveis,

em conseqüência, representam essencialmente objetos da memória. Então, como se

pode lembrar de alguma coisa que é apenas sensação e não um fato?

Entende-se que o afeto, produzido na alma pela sensação, deve ser

considerado como um tipo de primeiro retrato, o estímulo produzido pela memória que

imprime uma espécie de semelhança do objeto lembrado. É a chamada imaginação

reprodutiva, visto que a imaginação é tida como reprodução de impressões causadas

pelos sentidos e guardadas na memória. Assim, seu funcionamento está sujeito à lei de

associação, cujo propósito é solidificar, numa imagem, o caos de sensações, e a ela

cabe ordená-lo para que a mente possa contemplá-la.

A memória, sob esse prisma, é uma fruição da imagem. Fruição que é

ampliada pela reflexão e leva a imagem ao acontecimento do passado como uma

recordação. A matéria da recordação, como propriedade exclusiva do homem, é algo

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que deriva e implica a inteligência visto que auxilia o reconhecimento de algo já

passado, em tempo pretérito.

A reflexão, neste sentido, deve partir do princípio que a capacidade humana

tem para recuperar as coisas vividas e pela potencialidade do imaginário verbalizar

cenas e fatos. Assim, a memória literária não passa apenas pela autoria, por aquele

que lembra, mas pelo narrador, enquanto entidade fictícia, que traz para a urdidura

textual uma somatória de experiências de linguagem. Experiências que são sempre

revigoradas por vocalidades líricas. Em Qh, a narradora-protagonista traz para o

presente do narrado muitas lições, herança materna, que são constantemente

presenciadas, ao longo da narrativa, como atritar as pedras para acender a fogueira e

aquecer a noite fria ou o olhar cauteloso diante de paisagens desconhecidas à imagem

do gesto materno:

Até que, pequena elevação, e nos surgiu pela frente enorme descampado que elaperscrutou cuidadosa, olhando para um e outro lado como se alguém houvessefaltado ao encontro. [...].Embevecida, detinha-me a espiar movendo a cabeça para a direita e para aesquerda, tomando assunto, apertando o olhar em tantas direções, cheirando no arum cheiro que era meu, como se fosse o regaço materno a exalar a essência domeu próprio começo. (Qh, p. 15-31-32 – Grifos meus).

A expressão da temporalidade em um texto de caráter subjetivo,

comprometido com a história de quem conta, extrapola o real vivido. Aquilo que se

convencionou chamar de realidade em relação ao passado, dificilmente pode ser

definido ou isolado com precisão. Não se pode confundir a realidade com aquilo que é

contado, pois a narrativa escrita a partir das imagens que surgem da memória, apesar

de dar ao texto uma impressão da realidade, ao mesmo tempo, se escreve e se constrói

pelas possibilidades e aberturas do ato da invenção. Portanto, se há uma permuta entre

o real e o imaginário, certamente haverá muito mais espaço para o simulacro.

O sujeito que lembra é um usuário do discurso autoral, da estruturação dos

fatos, mas é muito mais um manipulador da função estética, dramática e lírica de todas

as suas lembranças, em torno do desdobramento do sujeito que viveu, agora, sua

personagem, uma entidade de papel. Neste caso, o autor-escritor-narrador passa a ser

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o sujeito do verbo: “eu me lembro”, “recordo bem”, ou passa a ser o objeto direto ou

indireto de pessoas, coisas e fatos lembrados, em pronomes possessivos ou oblíquos,

como ocorre em QH:

1. Lembro-me bem que, ao falar do mercado, minha mãe demorava-se em detalhestão especiais que durante longos anos esqueceu de acrescentar que ele se erguiana parte mais elevada da cidade.[...]. (Qh, p. 12 – Grifos meus).

2. Neste quarto, senhora, recomponho as formas, dou ordem às coisas. Este quadrotorto na parede tem mil anos e esta figura esquálida no leito de agonia tem um anjopor trás que tem mil anos. O tempo envelheceu as tábuas deste chão pelo peso doscorpos, pelas marcas dos pés que têm mil anos. (PC², p. 54 – Grifos meus).

3. [...] Houve um tempo, senhor, em que eu tecia estranha rede, mas dormia sempreao relento, o frio fustigando, a poeira da noite e as luzes lá longe onde jamais pudechegar. (PN, p. 60 – Grifos meus).

Esta subjetividade poética em primeira pessoa, e em outras nela contidas,

são desdobradas em sujeitos nas histórias lembradas e constituem a garantia da

coerência interna do texto. Pelo fato de ser a primeira pessoa aquela a estruturar a

narrativa, por meio de verbos rememorativos, tem-se garantido o presente narrativo,

estruturador e selecionador das lembranças.

Käte HAMBURGER (1986, p. 233-234) considera esse tipo de narração

“como uma forma autobiográfica que relata eventos e experiências referidas ao

narrador-eu”. Entretanto, “é a verificação da sua localização que esclarece a

procedência autobiográfica da narração em primeira pessoa, revelando os motivos

pelos quais ela se diferencia da autobiografia propriamente dita”. Ou seja, o que vai

definir o caráter literário de uma narração em primeira pessoa é a noção de enunciado

entre a realidade “autêntica” ou “inautêntica”. Se “autêntico”, estaremos diante da

narrativa em primeira pessoa, que equivale ao enunciado de uma realidade fictícia.

Essa não-realidade, marcada pela ilusão e aparência, define o caráter ficcional da

narração em primeira pessoa.

Os relatos autobiográficos mostram-se diretamente ligados à experiência

humana do tempo, no seu devir irrefreável, como afirma Paul RICOUER (Apud REIS,

1987, p. 386):

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Existe entre a atividade de contar uma história e o caráter temporal da experiênciahumana uma correlação que não é puramente acidental, mas representa uma formade necessidade transcultural. Ou, dito de outro modo: que o tempo torna-se tempohumano na medida em que é articulado num modo narrativo, e que a narrativaatinge a sua significação plena quando se torna condição da existência temporal.(Grifos meus).

Em QH, o tempo psicológico apresenta-se filtrado pelas vivências da

narradora-protagonista, em função da transformação e do redimensionamento do

tempo da história, quer por alargamento, redução ou dissolução. Este tempo, por estar

diretamente ligado ao devir da personagem, é também o referencial das mudanças, dos

desgastes e erosões que sobre ela provocam a passagem do tempo e as experiências

nele vividas. Assim, pelos processos técnico-narrativos em que se destaca o monólogo

interior, o discurso tende a refletir essa temporalidade difusa, sem fronteiras nem

balizas, experiência de um tempo espesso e relativizado em função da peculiar

subjetividade da personagem.

Pela memória, o homem consegue interligar o ontem ao amanhã, pois, ao

atravessar o presente, pode compreender o instante atual como extensão mais recente

de um passado, que ao tocar no futuro, novamente recua, e já se torna passado. É

dessa trajetória que ele pode reter momentos e guardá-los, fazê-los durar, como numa

gaveta para, numa ampla disponibilidade, usá-las num futuro ignorado e imprevisível.

Daí as intenções reestruturarem a memória, fatores relevantes para o processo criador.

Ao evocar um ontem, próximo ou distante, e projetá-lo sobre o amanhã, o

homem dispõe em sua memória de um instrumental para, a qualquer tempo, interligar

experiências antigas com as novas. O espaço vivencial da memória, portanto,

representa uma ampliação multidirecional do espaço físico natural da narrativa.

Do ponto de vista operacional, a memória corresponde a uma retenção de

dados já interligados aos conteúdos vividos no tempo pretérito. Assim, de modo similar

ao da percepção, pelos processos ordenadores da própria memória, articulam-se limites

entre o que lembramos, pensamos, imaginamos, e as infinidades de incidentes já

vividos, como se observa em Qh:

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Às minhas costas, o Sol partia-se escarlate e eu precisei descansar em algumasombra para melhor abstrair a vermelhidão. [...].Eu precisava daquela luz arrancada do atrito das minhas mãos contra as pedraspara que meu ser se acalmasse e me fosse possível possuir trilha e sossego. Afogueira crepitou a noite inteira e longa e os demônios afastavam-se para perscrutaros dias profundos. (Qh, p. 24-31 – Grifos meus).

Além de atualizar um conteúdo anterior, cada instante relembrado constitui

uma situação em si nova e específica. A memória, por esse ângulo, é não-factual (vida

vivida) e está sempre aberta a outras seleções. É o que afirma Gilles DELEUZE (2003,

p. 56-57), no livro Proust e os signos, nos estudos que desenvolveu sobre a Recherche:

A memória involuntária tem uma característica específica: ela interioriza o contexto,torna o antigo contexto inseparável da sensação presente. [...] O essencial namemória involuntária não é a semelhança, nem mesmo a identidade, que sãoapenas condições; o essencial é a diferença interiorizada, tornada imanente. Énesse sentido que a reminiscência é o análogo da arte e a memória involuntária oanálogo de uma metáfora: ela toma dois objetos diferentes [...] e envolve um nooutro, faz da relação dos dois alguma coisa interior. (Grifos meus).

O mundo imaginário do homem é composto, na essência, pelas associações

das imagens e, ao usar a palavra para representar as coisas, ele destitui os objetos das

matérias e do caráter sensorial que os distingue para convertê-los em simulacros.

Octávio PAZ (2003, p. 45), no livro Signos em Rotação, referindo-se à

narrativa, afirma que:

Na prosa, a unidade da frase é conseguida através do sentido, que é algo como umaflecha que obriga todas as palavras a apontarem para um mesmo objeto ou parauma mesma direção. Ora, a imagem é uma frase em que a pluralidade designificados não desaparece. A imagem recolhe e exalta todos os valores daspalavras, sem excluir os significados primários e secundários.(Grifos meus).

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Nesse sentido, as imagens visualizadas em Qh, testemunhadas pela visão e

pela experiência individual em conjunto com o coletivo, sustentam-se por si mesmas, à

medida que remetem ao próprio sentido daquilo que diz a poeta, sem excluir seus

significados primevos. A imagem do rio em fluxo, por exemplo, não é a mesma imagem

de um rio existente na vida real, mas ambas possuem realidade e consistência, apesar

de viverem em esferas diferentes, pois representam duas ordens de realidades

paralelas e independentes.

Detentora de múltiplas significações, a palavra imagem é fruto da imaginação

da poeta, visto que as imagens são sempre simulacros. A palavra imagem, segundo

definição de Octávio PAZ (2003, p. 37-38), corresponde a “toda forma verbal, frase ou

conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema”. Diz, ainda,

Octávio PAZ (2003, p. 48-49), no livro Signos em Rotação, que:

A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a exprime.[...] a imagem é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vezque tentamos exprimir a terrível experiência do que nos rodeia e de nós mesmos. Opoema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo.Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas sobre as suas própriasentranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a não-significação. (Grifosmeus).

O mundo da palavra poética, na voz do poeta, é entendido como uma forma

de comunicação entremeada de silêncios, lacunas, subentendidos e desvios, cuja

comunicação só é possível em imagens. Isso significa que indagar sobre as

representações da cidade branca na escritura de Qh é, basicamente, ler textos que, ao

lerem a cidade, levam em consideração não só os aspectos físico-geográficos

(paisagem urbana), os dados culturais mais específicos, os costumes, os tipos

humanos, mas principalmente a cartografia simbólica, em que se cruzam o imaginário,

a história, a memória da cidade e a cidade da memória. É, enfim, considerar a cidade

branca como um discurso, verdadeiramente uma linguagem a ser decifrada.

A cidade escrita é, como propõe Roland BARTHES (1987), no ensaio

Semiologia e Urbanismo, resultado da leitura, construção do sujeito que a lê, enquanto

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espaço e mito cultural, pensando-a como condensação simbólica e material e cenário

de mudança, em busca de significação.

Escrever a cidade no espaço ficcional é também lê-la; é imaginar uma forma

para essa realidade móvel. Por isso mapear seus sentidos múltiplos e suas múltiplas

vozes e grafias é uma operação poética que procura apreender a escrita da cidade e a

cidade como escrita, num jogo aberto à complexidade, cujos fios enigmáticos são

decifrados pelo ato de narrar.

Acredita-se que, nessa perspectiva, a cor branca já denuncia os múltiplos

sentidos da cidade em Qh, visto que essa cor, segundo CHEVALIER e GHEERBARNT

(2005, p. 141-142), enquanto “ausência total ou a soma de todas as cores”, está

sempre à espera de deciframento e, por conseguinte, ela reflete naquela comunidade a

inércia de sua própria aparência, como é possível observar neste fragmento:

[...] se passou há muito tempo, numa cidade toda branca à beira de um rio [...] deáguas muito escuras.[...] os moradores da cidade mantinham hábitos de tal reserva e recolhimento [...].Organizavam tão rapidamente suas famílias que os jovens não eram vistos naspraças, [...] acostumei-me a não pensar nos jovens, imaginando que jovens nãoexistissem ali.Os senhores zelavam por suas senhoras e as senhoras retribuíam zelo e proteção,encerrando-se no interior das casas a educar os filhos, ensinando-lhes, além dehábitos saudáveis, línguas mortas. [...].As mulheres casadas viviam decerto como monjas e se alguém desejava, desejavasem ímpetos, [...]Desejavam todos que os dias fossem calmos [...] que as vidas fossem ordenadas.[...] Equilíbrio e exatidão existiam no traçado das ruas, na firmeza do solo [...].Em tempo de colheita abria-se o mercado e era no rumo dele que se movia aquelalegião [...]Moviam-se cantando que era a forma de comunicar uns outros que o desejo haviasido atendido [...] e que continuavam todos naturalmente felizes.E vieram os ceifeiros [...] expressão deles de ódio, contrapartida à exclusão quesofreram de suas mulheres soltas em banho de rio, soltas em banho de solidãocompartilhada. [...]Feridas, as mulheres atiravam-se para os braços do rio [...] e assim os ceifeirosenlutavam o rio, avermelhando-o [...] e por isso os homens choravam a suaexclusão. (Qh, p. 11-12-13-41-42 – Grifos do texto).

Percebe-se, à luz desse fragmento, que a cartografia simbólica em QH, a

gerar um texto profundamente complexo, já é visível desde as primeiras linhas, visto

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que a cor branca da cidade contrasta com a cor negra das águas do rio. Veja-se,

enquanto o branco simboliza a perfeição e o equilíbrio à espera de preenchimento, o

negro, sua contra-cor, segundo Carl Gustav JUNG (Apud CHEVALIER e

GHEERBARNT, 2005, p. 633), representa o lado sombrio da personalidade, a

simbolizar o estado primitivo do homem, onde predomina o instinto assassino. De modo

que, a partir desse cenário, Qh instiga o leitor a procurar os motivos para contrastes que

já denunciam um clima de mistério com a possibilidade de um final trágico.

Nota-se o reflexo dessa perfeição aparente no “traçado das ruas”, na

inexistência dos jovens, a significar ausência de vida ou mesmo de cor, no exagerado

recato das mulheres, no ensino das “línguas mortas” e, até mesmo, no ato de desejar.

Entretanto, esse cenário, com a chegada da colheita, muda relativamente porque as

mulheres, antes enclausuradas em suas casas, podem ir ao mercado realizar as trocas,

momento em que a cidade começa a receber novas cores, visto que, na voz dos

cânticos, ganha uma pincelada de vida, a equiparar-se com a vida que ganham as

mulheres.

Assim, nesse vaivém temporal, tanto a cidade quanto seus habitantes sofrem

transformações, visto que a lenda termina quando os “ceifeiros” assassinam

covardemente suas esposas, que, sem autorização, foram tomar banho de rio. O

cenário, antes inerte, que na época da colheita ganhava uma pincelada de cor, agora

se transforma num ambiente desolador: as mulheres são mortas, o rio é destruído, os

homens choram o desaparecimento do rio e, por conseguinte, a cidade branca perde

sua beleza porque o rio deixou de existir, a significar que a morte, enquanto um rito de

passagem, representa o fim de tudo que existe na natureza, a confirmar que o percurso

existencial é transitório e evanescente.

As imagens, que compõem o cenário imaginário da narrativa Qh, aparecem

entremeadas de silêncios, enigmas, lacunas, subentendidos e desvios, a exemplo dos

verbos “adivinhar, pressentir e pressagiar”, cujas imagens conotam o clima de mistério,

da existência de um segredo que somente os iniciados na oralidade têm o direito de

transmitir.

A protagonista possui uma inclinação natural para pressentir os

acontecimentos futuros e, apesar destes nunca serem confirmados pela mãe-narradora,

passa a imaginar “que os jovens não existissem ali naquele lugar” e “que nem todos

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retornassem para suas casas” e começava a entrever “espectros, alguns que ficavam

suspensos na flor das águas” (Qh, p. 12-14), para além das palavras atentamente

ouvidas, que serão aos poucos elucidados pelos fragmentos da lenda encaixados à

grande temporalidade.

Estas imagens-lembranças estão diretamente ligadas ao coletivo, pois só

emergem da imaginação da narradora em contínua geração de simulacros.

1.3. Espaços: passagem dos ritos

Maurice HALBWACHS (2004, p. 54), nos estudos empreendidos acerca da

memória, apresentados no livro A memória coletiva, salienta que as lembranças, apesar

de aparentemente individuais, sempre interagem com o grupo, a sociedade e as

instituições, pois a memória é construída no contexto dessas relações. Logo, a

rememoração se faz na tessitura da memória dos diferentes grupos com que o

indivíduo se relaciona, pois:

Entre as lembranças que evocamos à vontade e aquelas que nos fogem,encontraríamos na realidade todos os graus. As condições necessárias para queumas e outras reapareçam não diferem a não ser pelo grau de complexidade. Asprimeiras estão sempre ao nosso alcance, porque se conservam em grupos nosquais somos livres para penetrar quando quisermos, nos pensamentos coletivos comque permanecemos sempre em relações estreitas; tanto que todos os seuselementos, todas as ligações entre esses elementos e as passagens mais diretas deuns aos outros nos são familiares. (Grifos Meus).

Entende-se, à luz do pensamento de Maurice HALBWACHS, que nem

sempre lembrar é reviver, mas reconstruir, por meio de imagens e idéias do presente,

as experiências vividas no passado. A memória é trabalho, razão pela qual as imagens

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não retornam ao tempo presente exatamente como foram em tempo pretérito. Por mais

nítida que se pareça a lembrança de um fato antigo, ela jamais será a mesma imagem

experimentada na infância, primeiro, porque já não se é o mesmo de antes, e, depois,

porque a percepção atual alterou-se e, com ela, as idéias e os juízos de realidade e de

valor. Por essa via, Maurice HALBWACHS amarra a memória individual à memória do

grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória de cada comunidade.

As imagens que compõem as horas relembradas, em Qh, emergem de dois

tipos de memória: de um lado, a individual que guarda detalhes da vida pessoal; de

outro, a coletiva que busca preservar o passado de uma comunidade, da qual a

protagonista parece ser um membro privilegiado. Por isso, o presente da escritura

condiciona o resgate dos tempos primevos.

Do espaço da memória individual, surge a imagem da mãe, personagem da

lembrança em sua corporeidade de voz narrativa, que se transforma numa espécie de

obsessão para a protagonista que, de modo ininterrupto, recorda sua voz, seus gestos

e seus ensinamentos, buscando mantê-la sempre viva no presente da narrativa:

Cuidei então que enlouquecia, que tonteava e não havia mais a mão materna aoalcance da minha mão. Gritei por seu nome mil vezes, mesmo sabendo que ela nãopodia socorrer-me. Chamei por ela mesmo assim, para ter a sensação de que elaexistira, para que meu grito a confirmasse por brevíssimo instante. [...].Aos tropeços, reencontrei a trilha, ao mesmo tempo que me enredava no fio dahistória, retomado. O silêncio engolia meu respirar, o ruído dos meus passos evoltava aos meus ouvidos rumor de água e de lamento. Caminhava dentro donegrume e solitária, a sentir em meus ouvidos a voz de minha mãe em confidência.(Qh, p. 24-25 – Grifos meus).

Observa-se que a figura materna, enquanto idéia de limite, segurança,

proteção, nascimento e morte, associa-se às imagens da cidade branca, da água, da

voz, do silêncio e da terra.

O espaço-cidade, em Qh, marca duas paisagens diferentes: de um lado, a

cidade branca que abriga uma sociedade patriarcal; de outro, a protagonista infante,

exclusivamente sob a égide da mãe-narradora, numa implícita cidade na qual

participam as práticas sociais e as simbólicas e imaginárias, emolduradas numa

paisagem onde é ausente a imagem masculina.

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Ao tratar sobre o tema espaço-cidade, Ítalo CALVINO (1990, p. 44), no livro

As cidades Invisíveis, salienta que “ocorre com as cidades o mesmo que nos sonhos;

tudo o que se imagina pode ser sonhado, mas até o sonho mais inesperado é um

enigma que esconde um desejo, ou, pelo contrário, um temor. As cidades [...] são

construídas de desejos e de temores, embora o fio de seu discorrer seja secreto, suas

normas absurdas, suas perspectivas enganosas, e cada coisa esconda outra”. Por essa

via, entende-se que a cidade ficcional, enquanto um depósito e um dispositivo material,

concreto, dos sonhos coletivos, ergue-se no vazio desses enigmas, como um discurso a

partir do qual é possível dizer e significar, e, sobretudo, trazer à vida o que está morto,

permitir que apareçam os fantasmas e os espíritos das coisas esquecidas no tempo

pretérito.

A cidade branca, nessa perspectiva, erige-se como protagonista e ao mesmo

tempo cenário, como ambiente de vivências das contradições e complexidade de suas

personagens e histórias, visto que, enquanto representação da existência humana,

materializa a estrutura dinâmica da vida civilizada. Entretanto, essa cidade branca, que

deveria abrigar e proteger seus habitantes/filhos, transgride sua própria significação à

medida que se transforma numa dupla potência destruidora/construtora, pela ação da

memória narrada:

As mulheres casadas viviam decerto como monjas e se alguém desejava, desejavasem ímpetos, [...] A claridade da manhã só tinha sentido porque iluminava osinteriores e nunca se ouviu dizer que a luz crescente provocasse suspiros emalguém. [...] e que continuavam todos naturalmente felizes. (Qh, p. 12-13 – Grifosmeus).

A mãe, na ausência da imagem paterna, torna-se uma figura parental única,

um objeto continente que combina os atributos de ambos os sexos. Logo, enquanto a

dominação patriarcal, como reflexo do mal, é elevada à máxima potência na lenda da

cidade branca, o espaço em que vive a protagonista infante reflete um ambiente onde é

possível, sempre num íntimo contato com a natureza, numa atitude que já remete ao

futuro errante da filha liberta dos ritos do patriarcalismo do passado, aprender o

necessário para seguir os tortuosos caminhos da existência.

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A imagem materna, enquanto receptáculo e matriz da vida, segundo Mircea

ELIADE (2001, p. 116), no livro O Sagrado e o Profano, associa-se misticamente com a

mãe telúrica. A imagem primordial da Terra-Mãe é decorrente de seus vínculos com a

dimensão do feminino e do maternal, o que remete à idéia de gênese, semente,

gestação, parto e nascimento. Por essa via, nascer é cair do ventre materno; morrer é

retornar à terra-mãe. A terra, portanto, inclina-se ao húmus – “Embora a terra fresca

guardasse há tão pouco tempo o corpo amado, os anjos mais humildes do céu

ajudavam-me...” (Qh, p. 20) – matéria responsável pela sua fertilidade, que a deixa

pronta para gerar uma nova vida.

A passagem entre a terra fértil (a Grande Mãe) e a mulher, que, no

pensamento de Mircea ELIADE (2001, p. 119), apenas imita e repete “o ato primordial

da aparição da Vida no seio da Terra”, é uma constante em Qh, como neste fragmento:

A tempestade da véspera deixara o campo vicejante e, ao nosso redor, o mundogerminava. Minha mãe trazia desanuviado o semblante e muitas vezes surpreendia-lhe o riso escorrendo pelo canto do lábio, enquanto ela esfregava nas mãossementes e frutos, como se brincasse de ser mãe silvestre, tão adubada eu a sentiapelos odores despendidos, pela frescura do ar, pelas groselhas e amoras colhidasem suas mãos. Com gestos de leveza e no mais completo silêncio reverenciou os ramos tocando ocaule, examinando as folhas, deslizando os dedos pelos nódulos, resinas e liquens.(Qh, p. 16-17 – Grifos meus).

Observa-se que, nessas horas relembradas, mãe humana e Terra-Mãe

fundem-se num mesmo objeto, como se uma fosse o espelho da outra. Ambas,

responsáveis pela vida que nasce, refletem segurança, calor, alimento, ternura e

proteção.

Ao tratar sobre os mitos da mãe telúrica, Qh reelabora as idéias de

fecundidade e riqueza à medida que constrói as imagens do campo vicejante e da mãe

humana que se projeta, em voz narrativa, tão adubada quanto a mãe silvestre. São

imagens alusivas que reforçam a idéia de solo fértil, bons frutos e uma ótima colheita.

Na ação de plantar, colher e morrer, idéias essencialmente religiosas, revelam-se o

mistério da criação da vida, que exprime a grande inquietação da alma humana, como

se observa neste outro fragmento:

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(...) fez-me olhar demoradamente a natureza, as árvores e a terra escura onde todasas coisas se assentavam. Ajoelhadas as duas, fez-me fechar os olhos e escavarcom as mãos em volta das plantas pequenas para que, tateando, eu sentisse nosdedos a dureza da raiz e de que maneira estavam presas à terra. Depois, fez gestosde semear e gestos de colher, fez gestos de morrer e contou-me a história até o fim.Jurei não esquecer o rosto dela e o pranto que verteu ao terminar. (Qh, p. 14-15 –Grifos meus).

A terra, enquanto símbolo de fecundidade e renovação, retorna ao fio da

narrativa para, entre os gestos feitos, ensinar o percurso empreendido por qualquer ser

vivente. Assim, terra, homem e natureza assumem uma correlação especular.

O espaço da memória individual convive na coletiva, funde-se no branco que,

como absoluto, remete tanto à idéia de ausência de cor, quanto a soma de todas as

cores e, por isso, segundo CHEVALIER e GHEERBRANT (2005, p. 141), pode

aparecer “no início ou no fim da vida diurna e do mundo manifesto, o que lhe confere

um valor ideal, assintomático”.

A cor branca, quando relacionada ao fim existencial, determina o momento da

morte, razão pela qual é considerada como uma cor de passagem, onde se manifestam

todas as transformações do ser e do renascer: morte e renascimento. Por essa via,

afirma CHEVALIER e GHEERBRANT (2005, p. 142), que “o término da vida – o

momento da morte – é também um momento transitório, situado no ponto de junção do

visível e do invisível e, portanto, é um outro início”.

Diz a lenda que era “uma cidade toda branca à beira de um rio não tão largo

mas de verdade tão profundo e de águas muito escuras” (Qh, p. 11). Percebe-se que a

cidade branca, enquanto uma ausência que precisa ser preenchida, contrasta com a

cor negra das águas do rio não muito largo.

A princípio, a imagem da água representa fonte de vida, meio de purificação e

centro de regenerescência. “O contato com a água”, diz Mircea ELIADE (2001, p. 210),

“comporta sempre uma regeneração” à medida que “a imersão fertiliza e multiplica o

potencial da vida”. Nesse sentido, encontra-se, na cidade branca, os moradores que,

cansados da labuta, ao entrarem nas águas do rio, recuperam as forças interiores, o

que significa um momento de vacuidade, de esquecimento, de onde eles saem

renovados e prontos para recomeçar um novo tempo, como neste fragmento:

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[...] Tochas acesas, a cidade enchia-se de sombras e iam todos lavar os corpos norio, água tépida àquela hora da noite. [...].Ao deixarem as águas do rio, narrava ela, só se ouviam os cânticos que silenciavamcompletamente às portas das casas. (Qh, p. 13-14 – Grifos meus).

Gaston BACHELARD (2002, p. 48-49), indo mais além, salienta que a água

traz em si a referência de ser portadora de adornos, visto que não se configura apenas

como água, mas como água emoldurada dos rios, igarapés, lagos, cachoeiras e mares.

Por essa via, destacam-se “as águas profundas, pesadas e escuras que anunciam as

tragédias, os pesadelos, a dor e o sofrimento”. Observa-se que, em Qh, a cidade

branca é banhada por um rio de águas profundas e muito escuras. Essa imagem

metaforiza, de um lado, pela própria tortuosidade do rio, o curso da existência humana

e as flutuações dos desejos, e, de outro, em função da cor escura das águas, o destino

do devaneio da morte, pois as águas pesadas estão associadas às grandes tragédias.

É o que se pode afirmar com base neste outro fragmento:

A cada lavagem dos corpos, a cada submersão, alguém de verdade se finava,alguém de verdade jazia sepultado entre o limo e a pedra. [...]Feridas, as mulheres, atiravam-se para os braços do rio e iam ao encalço delas osmatadores, fatídico mergulhar em cima dos corpos inânimes para perpetuar aimolação. E assim os ceifeiros enlutavam o rio, avermelhando-o. As mulheres oescolhiam como leito de vida e de morte [...]. (Qh, p. 25-42 – Grifos da autora).

Sobre essas imagens que emergem da imaginação do poeta, Gaston

BACHELARD (1974, p. 376), no livro A poética do espaço, assevera que:

As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma história e uma pré-história. Sãosempre lembrança e lenda ao mesmo tempo. [...] Qualquer grande imagem tem umfundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal põecores particulares. Assim, também, só quando já se passou pela vida é que sevenera realmente uma imagem descobrindo suas raízes além da história fixada namemória. No reino da imaginação absoluta, somos jovens muito tarde. É precisoperder o paraíso terrestre para vivê-lo verdadeiramente, para vivê-lo na realidade desuas imagens, na sublimação absoluta que transcende qualquer paixão. (Grifosmeus).

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Em Qh, a narradora-protagonista é totalmente anônima. Entretanto, pelas

suas próprias deambulações, percebe-se que se trata de uma personagem adulta e,

por isso, possuidora de uma história. Por essa via, ao mergulhar no passado, como

quem faz uma reflexão sobre a própria existência, sua imaginação elabora a história e a

pré-história de um tempo pretérito que, ao se corporificarem em voz narrativa, geram

novas imagens, geralmente de fundo onírico, a formar outros espaços como se

estivesse diante de uma nova vida. Entende-se, portanto, que a matéria narrativa em

QH é formada exclusivamente por um fluxo de imagens, que fazem um longo percurso

do espaço da memória para o espaço da escritura, onde o mais importante não é a

seqüência cronológica, mas o tempo dado e recriado pela recordação dos

acontecimentos guardados na memória, a gerar novas histórias, conforme se pode

observar no seguinte diagrama:

HISTÓRIAS EM ROTAÇÃO FICCIONAL

QH

Qh

HISTÓRIA PRINCIPAL A Lenda da Cidade Branca (Transmissão oral)

Primeiros Ouvintes / Intérpretes Contadores = Avô – Pai – Amigo. Quatorze pequenas ficções (Tempo Pretérito = mais distante) Ouvinte / Intérprete = Leitor

Segunda Ouvinte / Intérprete Hs Contadora = Mãe-Narradora

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(Tempo pretérito = mais próximo)

Terceira Ouvinte / Intérprete Contadora = Filha-Narradora (Tempo Presente) Quarto Contador / Intérprete da

Lenda da Cidade Branca = a Voz em Cantochão

(Transmissão Oral / Tempo Futuro)

Ouvinte = Filha-Narradora

CAPÍTULO II

HISTÓRIAS QUE CONTAM OUTRAS

Contando história, os homens articulam suasexperiências do tempo, orientam-se no caos dasmodalidades de desenvolvimento, demarcando comintrigas e desenlaces o curso muito complicado dasações reais dos homens. Desse modo, o homemnarrador torna inteligível para si mesmo a consciênciadas coisas humanas, que tantos sábios, pertencendo adiversas culturas, opuseram à ordem imutável dosastros. (Paul RICOEUR, Le temps et le philosophies,1978).

2.1. Entre o lugar da memória e o lugar da escritura

A palavra narrar, que significa contar, relatar, aproxima-se do que os gregos

antigos chamavam de épikos, espécie de poema longo que contava uma história e

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servia para ser recitado. Narrar sempre pressupõe o outro, razão pela qual toda história

ser destinada à contação ou à leitura. E se “as coisas são prenhes da palavra”, como

afirma Mikhail BAKHTIN (2003, p. 271), ao contar uma história fala-se de coisas

habituais, extraordinárias e, muitas vezes, repletas de mistérios, que só se revelam no

ato da escuta ou na suposta solidão da leitura.

Todo homem, para citar Walter BENJAMIN (1996, p. 224-231), é sempre um

historiador à medida que cria histórias, relata fatos ou registra suas memórias. Assim, o

ato de contar uma história faz com que ela seja preservada do esquecimento, além do

que se cria a possibilidade de recontá-la de modo diferente, pois o sentido das histórias

só se constrói no olhar do outro e na relação com outras histórias, como neste

fragmento:

Organizavam tão rapidamente suas famílias que os jovens não eram vistos naspraças, nem nas esquinas, nem nas mesas de bilhar. Ao insistir com minha mãesobre mesas de bilhar, ela tergiversava, falava dos jogos e terminava por retificar osjogos, suprimir praças e confessar que as esquinas ela inventara, inutilizando ocolofão. Desse modo também acostumei-me a não pensar nos jovens, imaginandoque jovens não existissem ali. (Qh, p. 11-12 – Grifos meus).

Observa-se que a mãe-narradora, neste fragmento, reconta a história da

cidade branca, de acordo com sua experiência pessoal à medida que inventa espaços

inexistentes à lenda da qual, no passado, também foi ouvinte. É assim, diz Paul

ZUMTHOR (1977, p. 242), que o “intérprete, ao imprimir na história as marcas da sua

vida íntima, consegue enriquecer e transformar as tradições”.

Toda história, continua Walter BENJAMIN (1996, p. 205), “é ela própria, num

certo sentido, uma forma artesanal de comunicação [...] Ela mergulha a coisa na vida

do narrador para em seguida retirá-la dele [...] se imprime na narrativa a marca do

narrador, como a mão do oleiro na argila do barro”. Por essa via, pode-se ir mais além e

perguntar se a ligação que o narrador tem com sua matéria (a vida humana) não é, ela

própria, uma relação artesanal, ou se sua tarefa não consiste, precisamente, em

trabalhar a matéria-prima das experiências – as dos outros e as suas próprias – de

maneira sólida, útil e única.

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A possibilidade de narrar nasce com a memória, pois toda história implica na

evocação do passado, de onde, pelo ato de lembrar, se recupera as imagens perdidas

no tempo. A memória, diz Walter BENJAMIN (1996, p. 211-212), “é uma tessitura feita a

partir do presente que nos empurra em relação ao passado, uma viagem imperdível,

uma viagem necessária, para que a gente possa trazer à tona os encadeamentos da

nossa história, da nossa vida, ou da vida do outro”. Por isso, ao contar uma história,

visita-se o passado, na tentativa de buscar o presente, onde as histórias se manifestam,

trazendo à tona os fios, os feixes que ficaram esquecidos no tempo. O que se busca, no

momento do relato, não é apenas recuperar informações sobre uma história que ficou

perdida no tempo, mas estimular em todos que dela se sentem parte integrante, o

despertar de novas histórias, para que se produzam outros sentidos em outras

relações.

É nesse fio da larga rede da narrativa memorialista que a memória se

embasa e se embaça, em que o ver e o ouvir entram na busca do reviver, oscilando

entre o vivido e o imaginado, o ouvido e o visto, numa força documental muito vigorosa,

possuindo grande poder ficcional, e é dessa mescla que a memória se constrói e se

reconstrói a criar novos espaços.

Há muitos séculos, o conceito de memória e o modo como ela funciona tem

sido objeto dos estudos de filósofos e cientistas. A memória é, em verbete de dicionário

de Filosofia (2000, p. 656), “a possibilidade de se dispor das idéias, impressões e

conhecimentos passados que, de algum modo, estão disponíveis para serem

evocados”. Por essa via, compreende-se que a memória pode ser constituída a partir de

dois momentos distintos: a retentiva, responsável pela conservação ou persistência de

tudo que se ouve, vê ou vive; a recordação, que é a capacidade de evocar, quando

necessário, o conhecimento passado e torná-lo atual.

Essa perspectiva projeta dois tipos de memória: memória-conservação e

memória-lembrança. A memória-conservação é a possibilidade de preservar todas as

coisas que se deseja guardar e, porque retidas em algum lugar da mente, podem ser

recuperadas a qualquer tempo. A memória-lembrança é a capacidade que tem o

homem para acionar as coisas guardadas na memória-conservação, e reatualizá-las,

por evocação, no ato de lembrar, recordar, o que revela uma preocupação em reter os

conhecimentos, para recuperá-los sempre que for necessário e, com isso, evitar a

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perda total dos acontecimentos passados. Entende-se, portanto, que o ato de recordar

põe em movimento as idéias, impressões e conhecimentos disponíveis, o que torna

possível ao homem expor suas memórias, narrar suas histórias.

Em Qh, a tensão entre esses dois tipos de memória constrói o espetáculo

narrativo. A narradora-protagonista, ao recordar a imagem materna, retoma o “fio da

história” da cidade branca para, a partir dela, contar sua própria história e criar novas

histórias, como é possível observar neste fragmento:Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela não chegousozinha. Veio ela e veio o rio, veio o fio da história, explícito luar a tudo a envolver,fio retomado e devidamente seguido, os corpos voltando a banhar-se e o desfechoavermelhando as águas.A cada colheita, quando os cânticos prenunciavam a alegria, os senhores vigiavamsuas senhoras e se de algumas não se visse mover os lábios, adivinhava-se quehaviam sido tocadas pelo ímpeto da emoção, que desejavam bem mais além dacolheita, que não pertenciam mais àquela legião exata e que naquela cidade brancaà beira de um rio...[...] À medida que concentrei lembranças e soltei a imaginação, foi como se eutivesse tomado assento em dorso de cavalo de fogo [...] (Qh, p. 23-24 – Grifos dotexto).

A narradora-protagonista, para construir sua identidade – história de vida,

precisa rememorar o passado, razão pela qual lembrar da lenda, dos ensinamentos,

dos lugares, das pessoas, da mãe e das coisas, torna-se um exercício contínuo ao

longo da narrativa. Entende-se que essa busca é uma maneira de conhecer a si

própria, pois, como diz Mircea ELIADE (2002, p. 105), “o ‘esquecimento’ equivale ao

‘sono’, mas também a perda de si mesmo, ou seja, à desorientação, à cegueira (a

venda sobre os olhos) [...] aquele que tem um Mestre competente consegue livrar-se

das vendas da ignorância e atingir finalmente a perfeição”. Assim, à medida que a

narradora reconstrói a lembrança da lenda, o espaço em que viveu na infância, os

ensinamentos recebidos da mãe, a vida começa a existir e se estende à narrativa.

Entretanto, essa estratégia só é possível com os olhos abertos, atentos a uma realidade

que se coloca à sua frente, como neste fragmento:

Um dia, não sei se porque pensou na morte e no esquecimento, pegou-me pela mãoe levou-me para fora. E de um lugar mais alto que a casa, fez-me olhar

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demoradamente a natureza, as árvores e a terra escura onde todas as coisas seassentavam. [...].Então, movendo-se vagarosamente e a uma distância considerável, ofereceu-se aosnossos olhos o desenrolar de um espetáculo, eu diria uma procissão, um cortejo dealmas deste mundo e de outros. [...].Assim, ainda pedinte de um clarão que me alumiasse os passos, imaginei que viesseem meu socorro um Anjo da Noite, um anjo parceiro da minha aventura.Por isso abri exageradamente os olhos para um vulto que vi assomar diante de mim,pousado na pastagem. (Qh, p. 14-15-25 – Grifos meus).

É preciso saber olhar para poder ver, perceber com clareza as imagens que

surgem da memória para, a partir delas, ser possível criar outros espaços e novas

imagens. O ato de abrir os olhos, para Henri BERGSON (1999, p. 11), significa estar

diante de imagens e, para captá-las, é necessário despertar todos os sentidos, pois, “no

sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra”, as imagens só são

“percebidas quando abro meus sentidos, despercebidas quando os fecho”. Para evocar

o passado em forma de imagem, continua Henri BERGSON (1999, p. 90), “é preciso

poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso saber

sonhar”.

Em QH, via contínua movimentação da narradora-protagonista no

tempo/espaço textual, cada fragmento de memória constitui um mecanismo que coloca

a narrativa em funcionamento, pois a ação é sempre promovida pelo ato de recordar

fatos pretéritos, como se observa reiteradamente nos seguintes fragmentos:

1. Havia motivos para crer ter sido a visão do sangue o que me fez pensar no fim dahistória. Dei-me conta nessa hora que, ao tentar lembrar-me dela, minha história seenredava em outra história e eu, em vão empenho, a perdia em esquecimento. (Qh,p. 40 – Grifos meus).

2. Não sei se até o final desta viagem o senhor me terá ao seu lado a escutarminhas histórias sobre mortos, moribundos e ausentes, alguns vivos, sim, ou melhordizendo, todos muito vivos saltando das minhas lembranças. (PN, p. 60 – Grifosmeus).

3. Nesse espaço a memória inscreve, pela ausência, história e personagem, apassagem nossa, nossa ida e nossa volta, trajeto e rota que vai do lugar de sombradeste quarto à esfera azulada e mítica de onde deito olhar de dor para narrar-te.(HP, p. 57 – Grifos meus).

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No contexto mítico, recordar significa resgatar o momento originário e torná-lo

eterno em contraposição à experiência ordinária do tempo como algo que passa, escoa

e se perde. A recordação, como resgate do tempo, confere desta forma imortalidade

àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável se não fosse re-

atualizado. Entretanto, o papel da memória não é apenas o de simples reconhecimento

de conteúdos passados, mas um efetivo reviver que leva em si o todo ou parte de tudo

que se perdeu no tempo. É graças à faculdade de lembrar que, de algum modo,

escapa-se da morte. A memória, assim, situa-se como fenômeno de vida, que garante o

estar vivendo e possibilita ao homem a noção exata de sua posição no mundo.

A memória, diz Pedro NAVA (1999, p. 9), no livro Baú de Ossos, é o elemento

básico na construção da tradição familiar:

Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho – porque só estesabe que existiu, em determinada ocasião, o indivíduo cujo conhecimento pessoalnão valia nada, mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética. Só ovelho sabe daquele vizinho de sua avó sem lembrança nos outros e sem rastro naterra – mas que ele pode suscitar de repente (como o mágico que abre a caixa dosmistérios) na cor dos bigodes, no corte do paletó [...] – para o menino que estáescutando e vai prolongar por mais cinqüenta, sessenta anos, a lembrança que lhechega, não como coisa morta, mas viva qual flor toda olorosa e colorida, límpida enítida e flagrante como um fato presente. E com o evocado vem o mistério dasassociações, trazendo a rua, as casas antigas, outro jardim, outros homens, fatospretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era parte inseparável e quetambém renasce quando ele revive – porque um e outro são condições recíprocas.(Grifos meus).

Toda memória humana, como é possível observar neste fragmento, é sempre

a memória de alguém. De uma pessoa determinada e dotada de um sentimento

especial. Sentimento definido por um nome próprio e também pelo limite entre a pessoa

e o mundo exterior. A memória de cada indivíduo, assim, apresenta duas faces: uma se

refere ao Eu, a outra, ao olhar que cada pessoa tem sobre si mesma. Por isso, ninguém

pode ser privado de memória sem ser despossuído de identidade. Sem memória, o

indivíduo não se reconhece porque deixa de existir. Nesse sentido, todo indivíduo é

memória, embora, não seja, apenas, memória. Assim, as lembranças que se pode

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invocar à vontade ou os restos registrados das experiências vividas representam a

matéria-prima da memória humana.

Por sua natureza factual, a memória retém prioritariamente aquilo que

interrompe a monotonia habitual, o que se afasta da rotina, surpreende e impressiona.

Entretanto, ela é, também, herdeira da percepção dos sentidos, da imaginação, dos

sonhos e das ilusões, como um contínuo de fatos descontínuos.

Henri BERGSON (1999), no livro Matéria e memória: ensaio sobre a relação

do corpo com o espírito, problematiza a inserção do espírito no mundo material

conforme a hipótese de que o passado, integralmente embalsamado na memória, é

filtrado pelo espírito, o qual seleciona apenas as lembranças úteis para agir no

presente.

A duração, enquanto tempo específico da existência, é apreensível

unicamente pela intuição porque não se limita a injunções teleológicas e mecânicas. O

tempo real é exatamente a duração vivida pela consciência e a realidade pela

modificação qualitativa, onde o real é duração pura. Para BERGSON (1999, p. 31), a

duração pura implica numa transformação constante, que está intimamente ligada à

atividade da memória, pois:

Por mais breve que se suponha uma percepção, [...] ela ocupa sempre uma certaduração, e exige conseqüentemente um esforço da memória, que prolonga, uns nosoutros, uma pluralidade de momentos. Mesmo a subjetividade das qualidadessensíveis [...] consiste sobretudo em uma espécie de contração do real, operada poressa memória. [...] a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com umacamada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto elacontrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição daconsciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento dascoisas. (Grifos meus).

A duração, responsável pelo redimensionamento das imagens, representa um

progresso contínuo do passado que, por inteiro, se estende ao presente e ali mora, real

e atuante. A memória, por essa via, funciona como um veículo de continuidade do

tempo cuja função organizadora do conjunto de imagens pretéritas possibilita a

representação do real presente.

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A duração interior, via memória, prolonga o passado para dentro do presente.

Assim, a memória conserva o passado, que sobrevive, quer chamado pelo presente

sob as formas das lembranças, quer em si mesmo, em estado inconsciente. A

lembrança é a sobrevivência do passado, que se conserva no espírito de cada

indivíduo, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças, que costumam

aparecer e desaparecer independente da vontade individual, como é possível observar

neste fragmento:Relembrando as luas que haviam passado, dei-me conta ainda uma vez, que eutomara a dianteira, que o novelo escapara e que a linha que minha mãe atara aomeu tornozelo, em sendo frouxa ou estando retesada, revelaria a firmeza do avançarou meu itinerário indeciso a quando de caminho bifurcados.Levou-me a relembrança a interromper a passada, a sentar-me numa pedra e chorarpor minha mãe. Eu pensava nela como um vulto que saía da sombra para meuconsolo. Fundo (seco) mergulho do qual emergi renovada para recomeçar atrajetória. (Qh, p. 21 – Grifos meus).

Observa-se, no fragmento acima, que a narradora-protagonista relembra

voluntariamente a imagem das luas contempladas em tempos primevos. Em

contrapartida, essa imagem, de modo involuntário, traz, à tona do presente, a

lembrança da imagem materna, a desencadear no Eu lírico um duplo sentimento: dor e

aceitação. De um lado, as lágrimas denotam a dor em função da perda e da própria

impotência que sente o homem diante da certeza da morte; e, de outro, o vulto, saído

da sombra, consola o Eu lírico que, ao tomar consciência da sua própria finitude, aceita

seu destino, renova-se e segue sua jornada.

Essas imagens pessoais, reafirma Henri BERGSON (1999, p. 120),

“constituem, reunidas, o último invólucro de nossa memória. Essencialmente fugazes,

elas só se materializam por acaso, seja porque uma determinação acidentalmente

precisa de nossa atitude corporal as atraia, seja porque a indeterminação mesma dessa

atitude deixe o campo livre ao capricho de sua manifestação”. A lembrança-pura,

portanto, quando se atualiza na imagem-lembrança, aquela que opera nos sonhos, nos

devaneios e na poesia, traz à tona da consciência um momento único e irreversível da

vida, como ocorre na narrativa Qh, onde a lenda da cidade branca e as outras histórias,

o sonho e a vigília, as lembranças e os devaneios tecem os momentos mais oníricos de

QH, a exemplo deste outro fragmento:

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Às minhas costas, o Sol partia-se escarlate e eu precisei descansar em algumasombra para melhor abstrair a vermelhidão. Recostado o corpo em árvore velha,meu pensamento fugiu e fugiu. À medida que concentrei lembranças e soltei aimaginação, foi como se eu tivesse tomado assento em cavalo de fogo e dar coices,[...] a dar meia volta e sacudir enlouquecido a crina para que meu corpo fraquejasse,para que eu não tivesse mãos tão fortes para a sustentação. [...].Cuidei então que enlouquecia, que tonteava e não havia mais a mão materna aoalcance da minha mão. [...].[...] um vulto que vi assomar diante de mim, pousado na pastagem. Parecia à minhaespera e era um cavalo, a cauda a balançar. Tive medo pela primeira vez. Seria ocavalo enlouquecido das horas passadas, a querer incendiar-me novamente ocorpo? (Qh, p. 24-25).

A memória propriamente dita não necessita da repetição para conservar uma

lembrança. Pelo contrário, ela guarda alguma coisa, fato ou palavra únicos, irrepetíveis

e mantidos por cada indivíduo em função do seu significado afetivo, valorativo ou de

conhecimento. É por isso que se guarda na memória aquilo que possui maior

significação ou maior impacto, mesmo que seja um instante fugaz, curtíssimo e que

jamais se repetiu ou se repetirá. É por isso também que, muitas vezes, não se guarda

na memória um fato inteiro, mas apenas um pequeno detalhe que, quando lembrado,

traz de volta o todo acontecido. A memória, por essa via, representa um fluxo de tempo

interior.

Em QH, esse extremo invólucro da memória, que se materializa na imagem-

lembrança, enquanto memória-fluxo-de-duração-pessoal, se comprime e se repete em

círculos inteiros e concêntricos. Há momentos em que as lembranças da narradora-

protagonista se encaixam tão perfeitamente na percepção presente que se torna difícil

discernir onde termina a percepção e onde começam as lembranças, como neste

fragmento:

Em contrações pedi, em grito mudo implorei e, tal força de vendaval a empurrar-meos pés, rolei por precipício que não tinha fim. Enfim rolou meu corpo por depressãoprofunda, o oco, o vazio, a queda livre e, em desespero, implorei que chegasse emalgum lugar.Chorei. E se meu pranto em água se tornasse, eu seria naquele dia a fonte-mãe-do-rio a fluir e encharcar aridez e tanta pedra de tanto que eu chorava. Levou um

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tempo, levou um longo tempo até que os soluços fossem se acalmando e eupudesse erguer meu rosto em primo gesto, depois o torso e por fim deparasse,suspenso à minha frente, vulto de guerreiro em finda guerra, corpo envolto em mantoque se abria, o braço sobre o peito, os pés esconsos em nuvem de poeira.Evanescente e transitória, a visão do guerreiro foi obra de um breve instante, pois sedesfez, fugaz e esplendorosa diante de mim em desfalecimento, verdade em mentiratransformada, as pálpebras pesando como chumbo. (Qh, p. 28-29).

Percebe-se, neste fragmento, que a memória se pauta pelos detalhes dos

movimentos corporais: o vendaval, a queda livre, o medo, a lágrima, o rio, o escoar do

tempo, a visão, a dor e o sono. O Eu lírico mostra-se perdido de si e, entre devaneios,

desloca-se no tempo e no espaço da narrativa.

Confrontam-se, no estudo bergsoniano, a subjetividade (o espírito), associada

à memória, e a pura exterioridade (a matéria), que se filia à percepção. Entretanto, falta,

a rigor, um tratamento da memória como fenômeno social, pois não há uma

tematização dos sujeitos que lembram, nem das relações entre os sujeitos e os fatos

pretéritos.

Essa lacuna foi preenchida por Maurice HALBWACHS (2004) que, ao

relativizar a teoria bergsoniana, buscou demonstrar que o social está inscrito na

memória individual. A memória mais individual é sempre social, pois seus quadros são

feitos de noções que refletem uma significação social e a visão de mundo de um grupo.

A lembrança é uma reconstrução do passado a partir da representação que um grupo

possui de seus interesses atuais, como ocorre em Qh à medida que a narradora-

protagonista, ao exteriorizar um sentimento de solidão, procura reconstruir sua história

a partir das lembranças dos fatos pretéritos, como é possível observar neste fragmento:

Percebera minha mãe que assim seria para acontecer? Eu desirmanada dela a cadaterreno vencido, a cada estância alcançada, a cada chão palmilhado? Experimenteigritar seu nome, mas por maior que fosse a força dos meus remos, o que me saiu dagarganta foi um balbucio e assim tão frágil que nada me aconteceu no corpo, quenada me aconteceu no peito. (Qh, p. 35).

Maurice HALBWACHS (2004), ao estudar os “quadros sociais da memória”,

insistiu na importância da memória familiar, memória fecunda e cuja história é

construída em função de trocas e intercâmbios com outras famílias, pois as relações

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entre os grupos familiares são formalizadas em uma norma coletiva, uma imagem ideal

de si, que é o espírito de família. Assim, a especificidade da memória familiar reside na

acumulação simultânea de uma memória interna, feita das relações entre a família, e da

memória externa, formada pelo contato com outros grupos. A memória individual,

portanto, é formada a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças

são construídas no interior do grupo, razão pela qual a origem de várias idéias,

reflexões, paixões e sentimentos atribuídos ao homem são, na verdade, inspiradas pelo

grupo. É o que ocorre em QH à medida que a memória individual da narradora-

protagonista é formada a partir da memória familiar, cuja história é construída em

função das trocas com outros grupos familiares, como é possível observar nestes

fragmentos:

1. Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo. Vem daí o papel que me cabe nessahistória transmudada até aos ouvidos de minha mãe, que a confiou a mim poradivinhar nos meus olhos sinais seguros de curiosidade por histórias de mistérios eencantamentos.De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa cidade toda branca [...](Qh, p. 11).

2. [...] Meu pai enviou-me a estâncias tão longínquas que herdei desse tempo umfraseado ondulante, palavras aéreas, fiz-me reticente. [...].[...] A terra, este chão que recebe nossos corpos, eu palmilhei sem ódio, um sógemido, um só vazio. Pacíficos são os dias agora, sem mais mistérios. Aprendi noslivros, meu pai ensinou-me a encontrar o húmus, plantar, colher, matar a sede,conhecer a febre, germinar, dilacerar, fazer tarefas. (FH, p. 63)

Observa-se, no primeiro fragmento, que a memória individual da narradora-

protagonista, em relação ao relato da lenda da cidade branca, é fruto de uma memória

coletiva, pois todas as imagens-lembranças emergem, internamente, da memória da

mãe-narradora, e, externamente, das inter-relações entre o amigo do avô, o próprio avô

paterno e o pai, a sugerir que a origem da lenda parte de múltiplas idéias inspiradas por

diferentes grupos sociais, no transcorrer do tempo e nos vários locais onde a lenda foi

divulgada oralmente.

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O segundo fragmento, de igual modo, confirma que a memória individual da

narradora-protagonista, em relação à construção de sua identidade, também é

influenciada pela memória coletiva à medida que, de um lado, sintetiza um aprendizado

adquirido a partir da figura paterna, e, de outro, um aprendizado herdado de sua

relação com outros grupos familiares, a sugerir que, por mais individual, a memória

humana é sempre fruto das relações sociais.

As lembranças podem, a partir da vivência em grupo, ser reconstruídas ou

simuladas. Podem-se criar representações do passado assentadas na percepção de

outras pessoas, no que se imagina ter ocorrido ou pela internalização de

representações de uma memória histórica, pois, para Maurice HALBWACHS (2004, p.

76-78), a lembrança “é uma imagem engajada em outras imagens”. Percebe-se que o

processo formador da memória, de certo modo, também está relacionado com a

seletividade à medida que a lembrança é formada pelos materiais que estão no

presente, à disposição, no conjunto das representações que povoam a consciência

atual do homem.

Fruto dessas relações sociais, a memória é socializada pela linguagem. A

linguagem unifica, reduz e aproxima, no mesmo espaço histórico e cultural, vivências

muito diversas como as imagens dos sonhos, as lembranças e as experiências

recentes. A linguagem modela a memória no seu conteúdo mais íntimo, pois, ao reter

ou organizar os dados, deixa entrar na memória individual todas as informações que

jamais teriam sido percebidas se não fosse a relação com o grupo. Eis porque é

possível recolher o relato de ancestrais e guardá-lo na memória, deslocar o passado do

indivíduo para além do nascimento e identificá-lo ao passado dos que viveram antes

dele, como é possível observar neste fragmento que compõe uma das narrativas,

inseridas nas Hs:

Às vezes, tarde da noite, meu coração se agita de prazer. É meu avô que nãoconheci a repartir o pão, a arrear os cavalos indo para o mato. [...]E esta negra, que reza e desconjura e diz ter conhecido os assassinos de meu pai,visitado o covil onde, escondidos, pensaram as armadilhas. [...]Meu avô, cuja voz não ouvi no passado, ouço neste tempo presente e nestas noites,atravessando as salas, as soleiras, fechando e abrindo as janelas, nos vãos e nos

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desvios, acima da minha cabeça, abaixo dos meus pés, ao meu lado, esquerdo, atosse dele do outro lado da rua, o seu fantasma, ubíquo. (PC², p. 54-55).

Observa-se, neste fragmento, que só é possível conhecer a imagem do avô

paterno em razão das relações que a narradora-protagonista mantém com o grupo

social, de onde surge a imagem da negra para contar histórias. Histórias sobre o fim

trágico do pai e, quiçá, do avô paterno, que não chegou a conhecer, mas, em razão dos

relatos que ouviu, consegue traçar um perfil, a ponto de ouvi-lo, em performance, nas

noites do tempo presente.

Parece impossível a evocação completa do passado porque das coisas e das

pessoas só ficam as lembranças fragmentárias. Entretanto, para citar novamente Pedro

NAVA (1999, p. 26), “pode-se tentar a recomposição de um grupo familiar desaparecido

usando como material esse riso da filha que repete o riso materno, essa entonação de

voz que a neta recebeu da avó, a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas

há muito abafadas por um punhado de terra”. Isso significa que a tradição se

estabelece pela via da ação direta da memória.

Todo grupo social possui um saber cumulativo que se origina da memória e

se exterioriza pela linguagem, pois cada cultura é sempre determinada pelo uso que a

sociedade faz da memória. Por essa via, a tradição oral, além de servir de alicerce para

a construção da história de uma sociedade, é fundamental para a manutenção dos

costumes, apesar de possuir destino incerto uma vez que qualquer tradição oral pode

sobreviver inexplicavelmente ou desaparecer de modo definitivo. Entretanto, a

reminiscência, assevera Paul ZUMTHOR (1997, p. 33-34), surge para impedir o

extermínio da edificação “das passarelas entre um passado fabuloso e nosso pobre

presente, entre este e um futuro que só tem por fim o Outro Mundo”.

As culturas, continua Paul ZUMTHOR (1997, p. 15) “só se lembram

esquecendo”. A memória é, por excelência, seletiva, pois a lembrança, à medida que

seleciona ou segrega os elementos indesejáveis, guarda apenas aquilo que, por algum

motivo, tem, ou teve, algum significado. Assim, grupos e indivíduos articulam suas

experiências passadas para, a partir delas, formularem suas próprias histórias. Por isso,

em cada grupo social, cada indivíduo percebe a memória de modo diferenciado visto

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que, inconscientemente, seleciona elementos do mundo que o cerca, em função de

suas próprias necessidades. Nesse sentido, tanto a memória quanto a percepção

conferem, implicitamente, a cada elemento selecionado e guardado um valor especial.

A memória coletiva captura os fragmentos significantes para, posteriormente,

transformá-los em elementos de tradição. Desse processo seletivo, surge o desejo de

esquecer, que constitui um mecanismo usado para excluir da tradição os elementos

indesejáveis. Essa idéia de esquecimento, entretanto, sofre uma mudança significativa

quanto à sua simbologia, pois, se para os antigos gregos a fonte lethe significava o

esquecimento enquanto parte integrante da morte, para Paul ZUMTHOR (1997, p. 15-

16) “o esquecimento implica um desejo latente” de lembrar o que ficou esquecido. O

esquecimento “não anula, ele pole, apaga, e, por isto, clarifica o que deixa na

lembrança”. O esquecimento, portanto, representa o objeto detonador da ação narrativa

porque, muitas vezes, é aquilo que está esquecido que vai gerar uma dinâmica nova e,

conseqüentemente, trazer à tona do presente as lembranças de fatos antigos.

A ação da memória, insiste Paul ZUMTHOR (1997, p. 21), “gera incessantes

tensões, como uma corrente energética entre um pólo individual e o pólo coletivo do

desejo de poesia: entre o que mantém a tradição e o que ela preferiu esquecer”. Assim,

o que se relata, numa performance, existe na “memória do executante como um todo:

com suas zonas incertas, suas vibrações, seu movimento”, como ocorre em Qh onde se

observa que a memória se constrói sobre esse movimento constante entre o lembrar e

o esquecer. É o que se percebe nestes fragmentos:

1. A cada colheita, quando os cânticos prenunciavam a alegria, os senhoresvigiavam suas senhoras e se de algumas não visse mover os lábios, adivinhava-seque haviam sido tocadas pelo ímpeto da emoção, que desejavam bem mais além dacolheita, que não pertenciam mais àquela legião exata e que naquela cidade brancaà beira de um rio...Daí os gemidos e os soluços abafados pelos cânticos, ruídos que eu escutara semclarins anunciadores que melhor conduzissem a história narrada por minha mãe. Sóos gemidos e soluços, os sons amargos. (Qh, p. 23-24 – Grifos do próprio texto).

2. Experimentei pensar em minha mãe, mas minha memória ainda não retemperadanão a trazia mais, por maior que fosse o esforço em recobrá-la. Não, ela não viriaem relembrança e além do mais, eu perdera minha imagem junto a dela e arelembrança só a encontrava em vulto e muito velha, a languescer-se. E eu,esquecida de mim infante, a aprender com ela. (Qh, p. 34 – Grifos meus).

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Percebe-se que, enquanto no primeiro fragmento, os grifos do texto indicam a

voz da mãe-narradora ecoando na memória da filha, que lembra da lenda da cidade

branca; no segundo fragmento, o esquecimento corrói-lhe intensamente a lembrança,

de modo quase irreversível, pois a filha já não consegue retomar a imagem materna na

exata proporção dos tempos primevos. Entretanto, a filha tenta, insiste na lembrança

com o propósito de manter viva sua história. O texto, para adquirir vida, necessita dessa

memória do passado que é tecida entre os vãos ou brechas criados pelo conjunto de

lembranças da narradora-protagonista. São nesses vãos, denominados por Paul

ZUMTHOR (1997, p. 21) de “buraco da memória”, que nasce a ficção. Por isso,

assegura ZUMTHOR (1997, p. 16), “o esquecimento constitui antes um dos

fundamentos de toda ficção, aos níveis do imaginário e do discurso”, como é possível

observar neste fragmento de QH, onde a vontade de lembrar (memória voluntária) pode

desencadear a lembrança involuntária de fatos, que se tinha imaginado perdidos para

sempre:

[...] Havia motivos para crer ter sido a visão do sangue o que me fez pensar no fimda história. Dei-me conta nessa hora que, ao tentar lembrar-me dela, minha históriase enredava em outra história e eu, em vão empenho, a perdia em esquecimento.Envidei grandes esforços, busquei em tentativas a assim fiz tantas vezes erapossível fazê-lo para, ao cabo de tanto imaginar, perder de vez por todas o fio daminha própria história.Ao dar-me conta de tão grande esquecimento, não me abateu sequer o desconsolo.Fiz-me a caminho e meus pés pisavam leve porque leve se fazia o ar da noite e eucom minha história sepultada. Sem começo, fim e intermédio, via-me nascer naqueleinstante sem nascituro querer ser. [...][...] histórias saídas de uma voz em cantochão. Apurei os sentidos todos, juntei asmãos em concha e escutei....E vieram os ceifeiros que foi o nome pelo qual minha mãe os nomeou, fazendo osinal da cruz diante de mim. [...]Reconheci de pronto a história que minha mãe contava para mim em noitesprimevas. (Qh, p. 40-41-42).

Entende-se, a partir deste fragmento, que a memória, em QH, oscila entre as

memórias voluntária e involuntária. A narradora-protagonista explora a memória

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voluntária, do querer lembrar, que depende de elementos dispersos e externos, como

objetos, lugares, paisagens e histórias de outras pessoas. A protagonista sustenta-se

na proposta do dizer tudo, que significa dizer o que é lembrado e o que é esquecido.

Esse dizer tudo, portanto, significa comunicar os lapsos, os esquecimentos, as

lembranças fugazes e incongruentes, com o propósito, talvez, de mostrar o quanto é

problemático e complexo a recuperação do tempo passado. O esquecimento, portanto,

não é visto como perda, mas como um elemento formador do processo de

rememoração. É nesse momento que o esforço do ato de lembrar, a ação da memória

voluntária, pode desencadear um processo involuntário, ou inconsciente, de conexões.

2.2. A temporalidade no espaço das horas lembradas

Na moderna teoria da literatura, o tempo e o espaço são considerados

categorias literárias, pois desempenham um papel fundamental, sobretudo, na estrutura

da narrativa e do drama, gêneros que giram em torno da representação da ação.

O tempo real do discurso é diferente do tempo dos acontecimentos

(dimensão episódica da narrativa), pois a narrativa nunca é um registro puro do

imediato uma vez que, a partir do tempo do discurso em que se apóia e toca à

realidade, introduz um outro tempo, imaginário, não mensurável pelos ponteiros do

relógio. Em função desse teor ficcional, o discurso entra por meio do enredo, que

reorganiza os acontecimentos e cria um tempo fictício que pode durar um segundo ou

até “mil e uma noites”, conforme o entendimento do receptor.

O tempo imaginário, condicionado pela linguagem, afirma Benedito NUNES

(2003, p. 25), “jamais se reveste da continuidade do tempo real” e por isso, para

concretizar-se, depende “de um número finito de frases”, o que implica na interrupção

das fases, na suspensão dos momentos e nos períodos vazios. Entretanto, Anatol

ROSENFELD (Apud NUNES, 2003, p. 25) assevera que nesse tempo fictício, “há

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também passado, presente e futuro, mas essas fases não dependem, como na

realidade, do fato de se definirem em relação ao autêntico actu in esse do presente.

Devido a isso, o presente não goza, na ficção, do caráter preferencial que lhe cabe na

realidade”.

Entende-se, portanto, que, no tempo imaginário, passado, presente e futuro

deslocam-se constantemente e, por conseguinte, unem entre si momentos que são

separados pelo tempo real. Eis porque é possível, na ficção, inverter a ordem dos

acontecimentos ou confundir a diferença entre eles, de tal modo que, continua Benedito

NUNES (2003, p. 25), “será capaz de dilatá-los indefinidamente ou de contraí-los num

momento único, caso em que transforma no oposto do tempo, figurando o intemporal e

o eterno”, como ocorre em QH que, iniciado in media res, apresenta uma estrutura

circular, aberta como uma espiral, sempre pontilhada por sentidos ambíguos e

significações simbólicas.

Essa quebra da linearidade, estratégia usada para alterar a ordem dos

acontecimentos da história ao nível do discurso, permite a exploração de uma

superposição de blocos narrativos, onde o pretérito, o presente e o futuro aparecem

entrelaçados, desordenados, a gerar novos tempos e novos espaços, como nestes

fragmentos:

1. Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo. Vem daí o papel que me cabe nessahistória transmudada até aos ouvidos de minha mãe, que a confiou a mim [...].De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa cidade toda branca [...].Para controlar-me a ânsia, minha mãe estendia-se exageradamente ao falar dascores das frutas e da frescura das folhas para, ao fim de tão comprido narrar, sabersaciada a minha curiosidade, confessando-me que era da terra fértil que todos senutriam [...].Pressentindo que eu me desviava da história [...] minha mãe pegou-me pela mão elevou-me para fora [...]. Depois fez gestos [...] e contou-me a história até o fim. Jureinão esquecer o rosto dela e o pranto que verteu ao terminar.Ao enxugar o pranto, exortou-me à obediência e à temperança a fim de bem cumprirjornada dos sete dias, naquele exato dia iniciada.Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo... Pus-me em retirada devagar ao tempode escutar, em me distanciando, a voz em cantochão, abrindo caminho em meio aoarvoredo, palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar... (Qh, p. 11-13-14-15-43 – Grifos do texto).

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2. Às vezes, tarde da noite, meu coração se agita de prazer. É meu avô que nãoconheci a repartir o pão à porta, a arrear os cavalos indo para o mato. Mergulhojunto com o meu coração o fundo do meu peito e lamento a perda da visão da Luaque passeia além das telhas. Este aposento é sombra eu lhe asseguro. Esteaposento é água, elemento primeiro cuja tepidez não me deixa sair à rua. Aqui éentranha, sim. E esta negra, que reza e desconjura e diz ter conhecido osassassinos de meu pai, visitado o covil onde, escondidos, pensaram as armadilhas.(PC², p. 54 – Grifos meus).

Observa-se, no primeiro fragmento, que a evocação familiar “meu avô, pai de

meu pai, tinha um amigo”, ao iniciar a narrativa Qh, aparece no texto para indicar um

tempo pretérito muito distante, lugar de onde surgiu a lenda da cidade branca, pois, na

seqüência e de modo instantâneo, essas personagens desaparecem para ceder lugar

ao reconto da lenda, que se presentifica, via memória, na voz da narradora-protagonista

(“De tudo somente sei que se passou há muito tempo”). Entretanto, entre as brechas da

memória, a impressão que se tem é de ouvir a lenda pelo reconto in presentia da mãe-

narradora que conta e reconta a lenda, conforme suas impressões individuais, num

tempo pretérito mais próximo do presente narrado.

Nesse contar e recontar, a mãe-narradora interrompe constantemente a

história, que, numa seqüência de ida e volta (passado presente), é entrelaçada

a outras histórias, como as histórias contadas durante a “jornada dos sete dias”, que

rapidamente são projetadas em outros espaços e num tempo mais próximo do presente

vivido. A lenda da cidade branca, nesse movimento circular, é contada na íntegra, mas

seu epílogo, aos olhos do leitor/ouvinte, permanece velado até o final da narrativa,

quando a narradora-protagonista, depois de muito deambular, reconhece a história pelo

reconto de uma voz desconhecida (Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo...).

Na seqüência, a protagonista retoma a caminhada em direção ao futuro,

ocasião em que os tempos pretérito, presente e futuro aparecem nitidamente

entrelaçados, a sugerir que, na performance, não há memória individual, pois o Eu que

lembra se dissolve ao entrelaçar seu imaginário pessoal com o imaginário da

comunidade. Por isso, o tempo da tradição, personificado por meio da lenda guardada

na memória da comunidade, é um tempo circular, no qual o fim já está na origem, o que

lhe garante a imortalidade.

Retirado da segunda parte do exemplar QH, intitulada Hs, formada por

quatorze pequenas narrativas, o segundo fragmento resgata as imagens do avô

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paterno e do pai da narradora-protagonista, como a explicar as origens, onde tudo

começou. Percebe-se, por exemplo, que a narradora-protagonista não conheceu o avô,

mas ela, em função das histórias que ouviu contar, consegue traçar um perfil da

personagem, que se caracteriza como alguém solidário e apaixonado por cavalos. Da

imagem do pai, entretanto, só é possível conhecer, pela voz da negra, o fim trágico de

sua existência, pois a narradora-protagonista mantém essa personagem velada até à

última narrativa das Hs, intitulada FH, quando, ao retornar às raízes mais profundas de

sua origem, revela os traços marcantes do pai e a influência que exerceu na construção

de sua identidade individual, a sugerir que as últimas páginas de QH encetam o início

da narrativa que, via memória, marca uma grande temporalidade, corporificada a partir

de uma dilatação incessante de narrativas orais.

Nessa linha de pensamento, toda obra literária, seja de caráter épico ou

narrativo, apresenta, no mínimo, dois tempos interligados, uma vez que a narrativa

desdobra-se em três planos: o da história (conteúdo), o do discurso (forma de

expressão) e o da narração (ato de narrar).

O tempo do discurso, afirma Tzvetan TODOROV (Apud, NUNES, 2003, p.

27), “é, num certo sentido, um tempo linear, enquanto que o tempo da história é

pluridimensional. Na história muitos eventos podem desenrolar-se ao mesmo tempo.

Mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida a outro; uma figura

complexa se encontra projetada sobre uma linha reta”. A história, em função dessa

pluridimensionalidade temporal, permite que vários fatos ocorram ao mesmo tempo,

num processo de simultaneidade, o que possibilita os retrocessos e as antecipações,

ora suspende a irreversibilidade, ora acelera ora retarda a sucessão temporal, pois,

conforme as estratégias poéticas e as retóricas da linguagem que formam o discurso, o

tempo pode aparecer dilatado em longos períodos de duração, ou reduzido a minutos,

ou se pluralizar pelas linhas de existência das personagens, ocasião em que

dimensionam os acontecimentos e suas relações.

O tempo, nesse sentido, depende do ato da leitura por meio da qual se

realiza. Entretanto, é necessário observar que o tempo da narrativa varia de acordo

com a relação entre os dois tempos: o efetivo do discurso e o imaginário da história.

Observa-se que, em QH, o tempo e a estrutura narrativa formam uma só unidade, razão

pela qual é impossível perquirir um, sem levar em consideração o outro.

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A começar pela imagem da espiral19, constante na capa do exemplar, pode-

se afirmar que, no universo de QH, tudo se direciona para uma grande temporalidade,

que se corporifica por meio da memória. É o que se busca demonstrar a partir deste

diagrama20:

QUARTO DE HORA

Em verbete de qualquer dicionário de símbolos, a espiral “evoca a evolução

de uma força, de um estado [...] manifesta o aparecimento do movimento circular saindo

do ponto original e prolongando-se até ao infinito: é o tipo de linhas sem fim que ligam

incessantemente as duas extremidades do devir [...]. A espiral é e simboliza emanação,

extensão, desenvolvimento, continuidade cíclica, mas em progresso, rotação criadora

[...] a permanência do ser sob a fugacidade do movimento [...] um sinal de equilíbrio no

desequilíbrio, da ordem do ser no seio da mudança”.

A espiral, nessa linha de pensamento, assevera CHEVALIER e

GHEERBRANT (2005, p. 399), na “sua dupla significação de involução e de evolução

19 A imagem da espiral, visualizada na capa do exemplar QH, é uma criação do artista plástico ValdirSarubbi, primo de Maria Lúcia Medeiros.20 Procurou-se, neste diagrama, apresentar uma imagem aproximada à imagem da espiral que sevisualiza na capa do exemplar QH.

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[...] se une ao simbolismo da roda” que, em função de seus movimentos circulares,

simboliza o tempo em seu sentido cósmico. Por isso, entende-se que, em QH, a espiral

representa a essência do mistério da vida. Assim como se centra, a espiral também

pára, se encontra, se retorce para, em seguida, descer e subir em graciosas curvas.

O tempo, como a espiral, se retorce em torno de si mesmo. A vida, de igual

modo, corre por estradas sinuosas, os seres se encontram em determinados pontos de

suas caminhadas, se entrelaçam, se afastam, partem, retornam às origens. O ponto de

partida também é o ponto de chagada, o que remete às questões do retornar sempre,

dos reencontros e das renovações, como é possível observar nestes fragmentos:

1. [...] deparamos a um canto com uma mulher jovem e padecente, quase desnuda,a carecer de auxílio, alívio para as dores do parto [...].Abria-se naquele momento para mim, o livro da vida. [...]O sofrimento que findava, o tinir da tesoura na bacia esmaltada, a alfazemaespraiando-se pelos panos e pelos cantos, estendiam-se diante dos meus olhosmaravilhados, tal linha ou cordão a prender e desprender a linha da vida, inebriandoa todos nós, assistentes do mundo, a cuidar da mãe e do filho, todos agora em bem-estar compartilhado. [...]O resto do caminho de volta ela venceu apoiada em meu braço e em silêncio.Palavras ditas, gestos feitos. Por isso, não chorei quando [...] ela morreu em paz [...](Qh, p. 19-20).

2. Nasceste em noite de loucura, [...] aproximação maravilhosa, encontro aquecido acada segundo em que tua imagem mergulhava em nitidez.Ver teu ombro primeiro, depois a nuca e ver ainda inflamar-se o desejo de trazer-teinteiro [...] acariciar com meu temor a fronte pálida [...]Vigília iniciada, vigília empreendida [...] demarcar território e edificar o tempo namemória [...] a dor foi imposta sem misericórdia. (FP, p. 47- grifos meus).

Percebe-se, no primeiro fragmento, um encontro de gerações: as velhas

parteiras, a menina auxiliar-aprendiz e a jovem mulher que, entre as dores da

concepção, traz à vida uma criança, a enfatizar o mistério da vida que se entrelaça ao

mistério da morte quando, na seqüência, a mãe-narradora completa o ciclo existencial,

a sugerir, ao mesmo tempo, a renovação e a dor da orfandade pela perda do ente

amado.

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O segundo fragmento, retirado da primeira narrativa que inicia as Hs,

complementa o quadro narrativo-descritivo do fragmento anterior à medida que detalha

o nascimento, enfatiza o sentimento de proteção materna e sugere o percurso

existencial por caminhos tortuosos, marcados pela “dor imposta sem misericórdia”. A

dor, portanto, aparece como um ponto comum no estágio da existência: nascer,

crescer, amadurecer e morrer.

QH, nesse sentido, focaliza a origem, pois o homem, em função do próprio

tempo, está sempre em devir; e, a cada lapso temporal, transforma-se porque, formado

de espírito (imortal) e matéria (mortal), vem à vida pelo nascimento, cumpre seu destino

(transformação interior e exterior) e morre na matéria, pois o espírito, imortal na

essência, renascerá para o recomeço de uma nova vida, num outro plano, a sugerir

que, como o tempo, o espírito é uma energia imortal e, por conseguinte, sempre se

renova.

Em função disso, pode-se, ainda, afirmar que as espirais também circulam

dentro de cada indivíduo, pois a energia, onde o espírito e a matéria se encontram na

forma mais perfeita, circula em espiral, e o tempo, por ele mesmo, não existe, uma vez

que o futuro não é ainda, o passado não é mais e o instante presente acabou de ser.

Essa compreensão, continua CHEVALIER e GHEERBRANT (2005, p. 876), ruma para

o conceito agostiniano do tempo: “imagem móvel da imóvel eternidade”.

Santo AGOSTINHO, em suas Confissões (Apud PIETTRE, 1997, p. 29-32),

introduz no pensamento ocidental uma experiência psíquica do tempo, um conceito

compreendido subjetivamente, no interior do homem, que abre um novo campo de

reflexão: a temporalidade. A condição específica do homem, enquanto ser, não é

apenas saber que nasce, e morre “no” tempo, mas, sobretudo, ter consciência dessa

condição temporal e mortal. Essa experiência do tempo está diretamente ligada à idéia

de memória e atenção, uma vez que o tempo se apresentaria como passagem, e só

assim pode ser medido, e se pode ser medido, existe, pois pode ser percebido no seu

instante. É o que se depreende da explicação agostiniana:

O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. Éimpróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvezfosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente

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das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minhamente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visãopresente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. [...] Opresente do passado é a memória; o presente do presente, a atenção; o presente dofuturo, a espera. (Grifos meus). À luz dessa reflexão, o tempo existe, porque pode ser medido e

experenciado, em cada ação concretizada, a exemplo da linguagem, a partir da qual só

é possível contar uma história no momento em que ela já esteja guardada na memória.

Por isso, o presente do contar só se realiza no passar da imagem lembrada na atenção,

que na verdade está impressa na memória e, por conseguinte, guarda todos os

acontecimentos da história que ainda não foi contada. É o que ocorre em Qh a partir da

imagem da cidade branca, guardada na memória dos muitos narradores.

Primeiro, num tempo pretérito bem distante, o avô paterno contava a lenda

que guardava na memória; depois, a mãe-narradora, num tempo pretérito mais próximo,

conta e reconta a lenda da cidade branca, cuja imagem lembrada na atenção está

impressa na memória; posteriormente, a mesma imagem invade a atenção do tempo

presente da filha-narradora, a gerar um novo tempo e criar novas histórias, como é

possível observar nestes fragmentos:

1. Dei-me conta de que a morte de minha mãe passava a delimitar o tempo, que aoreferir-me a ela eu já deveria dizer no tempo em que minha mãe vivia ou quando euera pequena e tinha minha mãe por perto. [...] dei-me conta [...] de que principiava, apartir daí, meu exercício de narrar [...]. Aos tropeços, reencontrei trilha, ao mesmo tempo em que me enredava no fio dahistória, retomado. O silêncio engolia meu respirar, o ruído dos meus passos evoltava aos meus ouvidos rumor de água e de lamento. [...] (Qh, p. 21-25 – Grifos dotexto).

2. Meu avô, cuja voz não ouvi no passado, ouço neste tempo presente e nestasnoites, atravessando as salas, as soleiras, fechando e abrindo as janelas, nos vãos enos desvios, acima da minha cabeça, abaixo dos meus pés, ao meu lado, esquerdo,a tosse dele do outro lado da rua, o seu fantasma, ubíquo. (PC², p. 55 – Grifosmeus).

3. Aprendi nos livros, meu pai ensinou-me [...]. Mas desse tempo recuado só éconhecido o que narro, minhas entranhas não perpetram nenhum crime, nãosugerem nenhum sangue. Eu tenho a minha história, versão reticente ou não,encantatória ou não. Só vossa crença, só meus dias. (FH, p. 63-64 – Grifos meus).

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A narradora-protagonista, no primeiro fragmento, mostra a consciência de sua

condição temporal e mortal. O tempo, que condiciona a vida, é delimitado pela morte, a

sugerir a fusão das três fases: o passado (vivido pela mãe e pela filha), o presente

(sentimento de dor e desproteção em razão da orfandade) e o futuro (incerteza diante

do desconhecido e a obrigação de seguir adiante).

A imagem materna, entretanto, permanece viva na memória da filha que, ao

selecionar das lembranças os fatos mais marcantes, começa a reconstrução de sua

própria história no exercício do narrar. Assim, como a memória não tem tempo e opera

com grande liberdade entre o lembrar e o esquecer, ela retorna às origens, conforme os

fragmentos dois e três, na tentativa de traçar um percurso temporal iniciado a partir das

imagens do avô paterno, que não chegou a conhecer, e do pai, de quem herdou muitos

conhecimentos. Observa-se, desse modo, que há nesse processo rememorativo uma

intuição de um devir, do próprio devir do homem que, no tempo, envelhece, cumpre seu

destino e fecha o ciclo com a morte, num processo de constante renovação.

O tempo, em QH, guarda um profundo apelo à memória por se tratar de um

passado que se reconstrói e de um presente que se esvai enquanto vivido. Por isso, a

memória e a experiência formam o alicerce primordial para a distinção dos eventos,

denominados anteriores (pretérito) e posteriores (futuro) a fluírem incessantemente pelo

presente. Logo, não se pode tratar do tempo sem resvalar na memória porque é por

meio das lembranças que o tempo e o espaço se constroem.

Os espaços revisitados pela narradora-protagonista, entre as brechas da

memória, são projetados em função da dinâmica do tempo, a cujo devir a própria

protagonista é afetada, tanto em termos psicológicos quanto ideológicos. É o que

sugere as últimas linhas da narrativa Qh:

Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo...Pus-me em retirada devagar ao tempo deescutar, em me distanciando, a voz em cantochão, abrindo caminho em meio aoarvoredo, palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar...Esperar o final é querer a história, é merecê-la pelo direito de espera, é possuirinfinitamente, ad aeternum... (p. 43 – Grifos do texto).

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Percebe-se, neste fragmento, que a narradora-protagonista, ao ouvir a lenda

da cidade branca, não se sente mais presa “ao pé da vertigem narratória” (Qh, p. 14)

como nos tempos primevos. Ao contrário, distancia-se e, em silêncio, segue seu rumo

sem olhar para trás, como se tivesse perdido o interesse pelos momentos sublimes

vividos no pretérito, a sugerir que, com a passagem do tempo, ela transformou-se e,

nesse estágio da vida, quiçá na velhice, conhecedora de todas as histórias, adquiriu

consciência de que a ressurreição oral da lenda será incapaz de recuperar e trazer

integralmente o passado ao momento atual. Logo, não há outra saída a não ser

“recomeçar a trajetória e seguir em direção ao rio” (Qh, p. 21) que ainda está à sua

espera.

Nesse plano móvel do tempo presente, a narradora-protagonista, ao provocar

a rememoração por meio dos inúmeros relatos orais, dos gestos, das imagens

sagradas, das exuberantes paisagens, dos costumes, dos objetos vários, dos livros

lidos, das viagens, dos cheiros das frutas e dos legumes, da casa paterna, das obras de

arte (pintura e literatura) e dos intermináveis banhos de rio, reconstrói um espaço/tempo

que se materializa no aqui-agora do momento vivido. Por essa via, o tempo se faz

denso e compacto e, para citar Mikhail BAKHTIN (1993, p. 211), à medida que “o tempo

se derrama no espaço e flui por ele, torna-se artisticamente visível e transforma-se

numa quarta dimensão”, o que remete ao princípio da cronotopicidade.

Nesse processo de deformação temporal, QH estrutura-se por meio do

encaixamento onde o tempo/espaço se fundem num todo indissolúvel, tanto no nível do

enredo como no das imagens isoladas, pois tudo acontece simultaneamente e sempre

em função das lembranças de fatos passados, o que remete aos momentos imprecisos

do fluxo de consciência que, expandidos na direção do pretérito ou projetados rumo ao

futuro, constituem o curso temporal da duração interior. De modo que, por essa via, as

personagens, mais do que elementos da história, funcionam como fonte de informação

do passado, elementos fundamentais para a construção do discurso ficcional.

O processo reiterativo do contar e recontar, característico do discurso de QH,

à medida que rediz o relato, contribui para o fortalecimento de verossimilhança ficcional

que se situa na ambivalência entre verdade e mito, por meio da estrutura textual. O

presente resulta do passado e engendra o futuro. O tempo imbrica-se em passado e

presente, onde um se faz existir pelo outro. Passado e presente pressupõem o futuro, a

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formar uma só totalidade significativa. Afinal, “esperar o final é querer a história, é

merecê-la pelo direito da espera, é possuir infinitamente, ad aeternum” (Qh, p. 14). E,

assim, entre o lembrar e o esquecer, a tradição permanecerá viva na memória das

gerações futuras, pois é no reconto de uma nova história, diz Walter BENJAMIN (1996,

p. 211), que se encontra “a memória épica e o caráter artístico da narrativa”, questão

que será tratada a seguir.

2.3. Entre o contar e o recontar

Evidencia-se na escritura de QH as marcas da oralidade, que traz consigo as

tradições, os mitos e as lendas contadas de geração em geração. Essa oralidade, a

princípio, aparece na multiplicação incessante de histórias, como as Mil e uma Noites,

que Tzvetan TODOROV (2003, p. 124) definiu como as narrativas de encaixe

(embeldding), ou, numa relação de similitude, à idéia da mise en abyme, que Lucien

DÄLLENBACH (1977, p. 52) define como se fosse um espelho interno à obra que

reflete a totalidade do relato por meio da reduplicação, questão que será abordada no

terceiro capítulo desta pesquisa.

As histórias dentro da história sempre exercem um papel iluminador, pois se

constituem como portadoras de um segredo ou de um enigma que, ao serem contadas,

oferece a possibilidade de decifração do sentido de uma vida ou de um destino de uma

personagem. Em QH, essa histórias, que brotam do espaço-cidade branca, se

apresentam como cacos descontextualizados que clamam por redenção. A lenda da

cidade branca presentifica esses fragmentos de outros tempos que, enquanto carregam

a memória de sua própria temporalidade, engendram um novo significado ao se

recomporem em novos espaços que reatualiza seu sentido. Assim, ao mesmo tempo

em que desmancha o espaço, o tempo e os significados, a lenda recria tudo isso ao

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estabelecer, graças a esse movimento de desmancho e recriação, um princípio que

descreve e reorganiza o próprio modo de ser do conto.

O imaginário resgatado pelo círculo dos contadores de histórias – velhas

narrativas orais portadoras de um significado que espelha a condição das personagens

e recupera, no universo do conto, o espaço do sagrado e do mito – fala de um mundo

onde a experiência ainda conta e, mesmo que fragmentariamente, encerra um instante

de iluminação que cria a identidade e desvenda o destino da narradora-protagonista.

De modo particular, QH reflete um momento de cruzamento entre a experiência coletiva

e a experiência individual, de que trata Walter BENJAMIN (1996, p. 201) quando afirma

que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a

relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”,

como é possível observar neste fragmento:

Minha mãe, braço esquerdo levantado, proferia devagar nomes, nomes que atéentão eu nunca ouvira proferidos mas que sabia pertencer a pessoas, uns muitosnomes de santos e pecadores. Minha mãe, dura mulher erecta a preparar-me,instigar-me, braço esquerdo erguido. [...].Depois, tomou-me as mãos e fez-me repetir palavras tão belas que hoje ao pensá-las, penso inevitavelmente na luz que possuíam. Todas tinham luz, hoje sei, cedidapor minha mãe para que mais e mais eu me enfeitiçasse por elas. [...].Ao entreabrir a porta que rangia, deparamos a um canto com mulher jovem epadecente, quase desnuda, a carecer de auxílio, alívio para as dores do parto.Minha mãe ajoelhou-se ali mesmo e eu fui postar-me à cabeceira para enxugar osuor que porejava da testa da infeliz a cada puxo [...].Os restos do parto confiados a mim foram enterrados ao lado da casa. E assim eu fizcom minhas próprias mãos e aprendi. (Qh, p. 16-17-19 – Grifos meus).

Percebe-se, neste fragmento, que a mãe-narradora, ao recontar a lenda da

cidade branca, atualiza a sua história pessoal e a própria história universal à medida

que entremeia à lenda outras histórias que revelam tanto os aspectos físicos, culturais e

intelectuais, quanto às experiências vivenciais que cada ser humano possui e

compartilha com o grupo social ao qual pertence, o que revela o aspecto atemporal do

conto e, ainda, os aspectos de vitalidade e reelaboração presentes no ato de contar,

pois há sempre algo que remete ao contexto e a singularidade de quem conta.

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Dentro desta perspectiva, a mãe-narradora, ao longo da “jornada dos sete

dias” (Qh, p. 15) que marca o período de iniciação, transmite à filha-ouvinte, numa

relação puramente oral, toda sorte de ensinamentos sobre a posse e manipulação de

um saber adquirido no passado, relacionados às curas, aos sortilégios e aos ritos de

purificação, a prepará-la para a passagem de mais uma etapa da vida. Assim, a mãe-

narradora, enquanto contadora de histórias, ao lembrar outros Eus, assume a

responsabilidade de transmitir às novas gerações as experiências adquiridas por meio

da memória coletiva, a qual está impregnada de um caráter extremamente prático e fiel

a uma sabedoria que se mantém atual através dos tempos, pois é o resultado das mais

variadas experiências de vida, com as quais o homem ainda hoje se identifica.

Compreende-se, nessa perspectiva, que essa possibilidade de resgate em

relação ao pretérito, enquanto tradição, se apresenta no conceito de Erfahrung

(Experiência). Erfahrung vem do radical fahr que significa percorrer, atravessar uma

região, e, por conseguinte, Erfahrung tem esse sentido exato de algo para ser contado.

Erfahrung é a experiência narrada, transmitida, tradicionalmente, do passado, coletiva e

oralmente, capaz de desalienar o homem em relação à sua própria história e a história

do outro. É, pois, a partir da experiência que se consegue materializar, conscientizar e

coletivizar o passado, o presente, e, conseqüentemente, projetar o futuro, como nos

ensina Walter BENJAMIN (1996, p. 114):

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aosjovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de formaprolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas depaíses longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudoisso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devemser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam sertransmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por umprovérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando suaexperiência?

Dentro dessa perspectiva, entende-se que o ouvinte/leitor, ao entrar em

contato com uma história, também refaz as vivências ali presentificadas, juntamente

com o contador/narrador, o que confere mais um aspecto vital e enraizador deste ato,

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naquilo que ele proporciona de encontro e experiência compartilhada entre os

contadores, seus ouvintes e todos os elementos por ele presentificados. De modo que

tanto o contador/narrador como seu ouvinte/leitor entram em contato com temas

estruturais da experiência humana, para além do conteúdo ali expresso e se encontram

naquilo que possuem de universal. É o que se busca focalizar neste diagrama:

TEMPO-ESPAÇO EXISTENCIAL

TRADIÇÃO(Autor desconhecido)

Passado Remoto(Ancestralidade)

A Lenda da Cidade Branca (Texto Oral)

Mãe-Narradora (Ouvinte Silente = Passado) (Contadora/Intérprete = Presente) Passado Presente Futuro

Filha

(Ouvinte Silente = PASSADO)

Passado Presente Futuro

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Entende-se, a partir desse diagrama, que sua linha de pensamento incide

diretamente em Qh, pois a mãe-narradora, enquanto disseminadora da lenda da cidade

branca, presentifica em si todas as personagens – desde os antepassados, autor, texto,

leitor, ouvinte – envolvidos no ato de contar, a sugerir um elo sem começo e sem fim,

como se fosse uma espiral, pois sempre existirá um ouvinte/leitor com o propósito de,

no futuro, manter viva a tradição pelo reconto da lenda, a criar um espaço existencial ad

aeternum (Qh, p. 14). Essa relação remete tanto às dimensões temporais de passado,

presente e futuro, quanto ao próprio tempo existencial, ou seja, naquilo que o ato de

contar uma história pode trazer de inaugural e singular à experiência do

contador/narrador e, também, do ouvinte/leitor.

A experiência é o alicerce dos momentos da vida em que o sujeito se inteira

de si mesmo, por meio da atualização de um tempo guardado na memória, da qual

retorna para redimensionar o presente e abrir novas perspectivas para o futuro.

Entende-se, assim, que a narrativa é uma forma de alimentar o sujeito de experiência,

já que nela é resgatada uma memória coletiva (futuro de um espaço-tempo remoto),

que é incorporada à memória do ouvinte/leitor e, por conseguinte, poderá transmiti-la a

outros, os quais, por sua vez, também poderão recontá-la de maneira diversa, pois

cada ouvinte, ao tornar-se intérprete, diz Paul ZUMTHOR (1997, p. 242), transforma-se

em “co-autor” da história que conta, somando a ela elementos próprios de sua

experiência pessoal, “e, em sua boca, em seu gesto”, a história pode sofrer uma

profunda modificação. Por isso, insiste Walter BENJAMIN (1996, p. 198), “a experiência

que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E,

entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias

orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, como anônimos são os inúmeros

contadores/narradores, em QH, que, em performance enquanto espécie de oralidade

secundária, se encarregam de disseminar às gerações futuras a lenda da cidade

branca, a exemplo deste fragmento:

[...] passando a linhas ondulantes da própria natureza que minha mãe escavava coma voz, cambiando impulsos, aliviando densidades, atando-me por fim, ao pé davertigem narratória. [...].

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E minha mãe gesticulava e gatimonhava para melhor reiterar expressão deles deódio, [...].E aí foi o final quando eles enterraram os punhais em tenro peito, os ais e osdasaires.E era esse o momento em que minha mãe animava a narrativa porque erguia-se epercorria distância de uns dez metros, mãos para trás do corpo, olhar preso no chãoou nos meus olhos, para um e outro lado, para esquerda e para a direita, dolorosoescutar, angustiante deambulação [...]. (Qh, p. 14-41 – Grifos do texto).

É importante compreender os modos de narrar inventados pelos narradores

que fazem circular a voz pelo registro escrito, o que também implica numa

representação da voz, pois as marcas da oralidade ou da vocalidade, como prefere

Paul ZUMTHOR (2005, p. 117) ao tratar sobre a composição do texto escrito em vista

de uma performance, e o circuito da enunciação oral continuam a ser determinantes

para a ilusão oral do relato. De qualquer modo, pode-se afirmar que o narrador, além de

manter viva a tradição oral, imprime nela suas marcas, a marca de um tempo e de uma

cultura, até porque é no campo da oralidade que as vozes evocam a temporalidade

escoada e a experiência do vivido.

Walter BENJAMIN (1996, p. 37), no trabalho intitulado A imagem de Proust,

salienta que “o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o

tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência”, um tapete que

se tece dia após dia, entre o lembrar e o esquecer, no recolhimento dos testemunhos,

nos objetos, nos cheiros e, sobretudo, no sabor da “madeleine” que traz à vida um mar

de recordações. O Procedimento de Proust, continua Walter BENJAMIN (1996, p. 46),

reside na consciência, pois “ele está convencido da verdade de que não temos tempo

de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. É isso que nos faz

envelhecer e nada mais. As rugas e as dobras do rosto são as inscrições deixadas

pelas grandes paixões, pelos vícios, pelas intuições que nos falaram, sem que nada

percebêssemos, porque nós, os proprietários, não estávamos em casa”.

Entende-se, por essa via, a figura do narrador como aquele que compartilha

suas histórias com os ouvintes/leitores, de modo que, abastecidos de experiência, eles

possam vislumbrar uma memória individual e coletiva, quando o sujeito se vê

comprometido com seu tempo, enquanto criador e personagem da própria história que

conta.

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A morte da mãe-narradora, em QH, delimita o tempo, pois, a partir daí, a filha,

até então ouvinte silente, agora detentora do poder da palavra, inicia seu “exercício de

narrar” (Qh, p. 21). De modo que, ao sentir-se preparada para transmitir as experiências

adquiridas, a narradora-protagonista lança-se no mundo, a sugerir que irá tornar público

a lenda da cidade branca, fruto da tradição, até então restrita ao ambiente familiar. Para

cumprir o papel de narradora/contadora, ela volta-se para o passado com o propósito

de, num primeiro momento, compreender sua própria origem, e, depois, buscar novas

experiências, o que lhe possibilita pensar no futuro não como um ponto de partida para

suas realizações, mas como uma continuidade de um processo enraizado em sua

história.

Inicia-se, a partir desse momento, uma contínua luta entre o lembrar e o

esquecer, pois, à medida que o tempo passa, a memória embaça, o que acarreta a

difícil tarefa de trazer às águas do presente as lembranças do pretérito, como é possível

observar neste fragmento, ocasião em que presente e passado apresentam-se quase

diluídos pelo esmaecimento da memória:

Experimentei pensar em minha mãe, mas minha memória ainda não retemperadanão a trazia mais, por maior que fosse o esforço em recobrá-la. Não, ela não viria emrelembrança e além do mais, eu perdera minha imagem junto dela e a relembrançasó a encontrava em vulto e muito velha, a languescer-se. E eu, esquecida de miminfante, a aprender com ela. (Qh, p. 34).

Isso demonstra que a memória segue o pivô central da existência social do

homem, pois ela é a maneira de fazer triunfar a vida sobre a morte, o espírito sobre o

nada, a estabelecer o encadeamento das gerações. Não se pode esquecer, entretanto,

que a memória é tão mais ativa quanto menos precisa de recursos para lembrar-se e,

ainda, é tão mais viva quanto é menos carregada de memórias mortas, como salienta

Jacques LE GOFF (1990, p. 73), “a memória não busca salvar o passado para servir o

presente e ao futuro”, pois ela deve ser uma libertação e não uma escravidão. Todos

têm “sua madeleine”, diz Pedro NAVA (1999, p. 27), mas ninguém conseguiu explicá-la

como Proust, ao desarmar implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante

desse processo mental.

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Dentro dessa perspectiva, em QH, a narradora-protagonista também tem sua

“madeleine” na lenda da cidade branca, no fluxo e refluxo do rio, na procissão dos

mortos-vivos, na frescura do ar e no aroma das plantas e das hortaliças, nos cantos

maviosos, nos vultos de passagem, na claridade das luas, nos gestuais de quiromancia,

nas palavras encantatórias, na exuberância das paisagens, nas rezas, no ranger das

portas, no farfalhar das folhas ao vento das tempestades, no calor do fogo, na

contemplação das obras de arte, no sofrimento e na dor da perda. Enfim, ela transita

entre a recapitulação de si mesma, a vontade de fazer sentido com tudo que lhe

aconteceu e com a projeção de suas expectativas, a gerar novas histórias, cujos fios se

cruzarão, como um prolongamento da história original, fios puxados por outros dedos.

Afinal, quando Sherazade contava, cada episódio gerava em sua alma uma nova

história, uma memória épica que vencia a morte em mil e uma noites, um “trabalho de

Penélope”, no dizer de Walter BENJAMIN (1996, p. 37), que será tratado no próximo

capítulo.

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CAPÍTULO III

O CONTO: ENTRE A PROSA E A POESIA

A reminiscência funda a cadeia da tradição, quetransmite os acontecimentos de geração em geração.Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo.Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entreelas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelonarrador. Ela tece a rede que em última instância todasas histórias constituem entre si. Uma se articula aoutra, como demonstram todos os outros narradores,principalmente os orientais. Em cada um deles viveuma Scherazade, que imagina uma nova história emcada passagem da história que está contando. (WalterBENJAMIN. O Narrador. In: Magia e técnica, arte epolítica – ensaios sobre literatura e história da cultura,1996, p. 211).

3.1. Fragmentação e memória

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Conforme os inúmeros aspectos focalizados nos dois primeiros capítulos

desta dissertação, entendemos que QH é, logicamente, uma narrativa espaço-temporal

na qual coexistem sucessão e simultaneidade, pois o tempo é tanto veículo da narração

quanto da própria vida, visto que tudo se mostra em travessia, como a cumprir o

contínuo de uma longa viagem.

O sentimento do tempo guarda um profundo apelo à memória, por tratar-se

de um passado que se reconstrói e de um presente que se esvai enquanto vivido. De

modo que a memória e a experiência introduzem, via oralidade, a base primordial para

a distinção dos eventos, considerados anteriores (pretérito) e posteriores (futuro)

inseridos num presente que se constrói como se fosse uma espiral de universos

alternativos.

Nessa perspectiva, o tempo oscila, permanentemente, entre o ir e vir, a

denotar o quanto é difícil medir o tempo do discurso. A linguagem, assim, permite o

transitar entre espaços temporais tão diversos quanto sobrepostos, a evidenciar que

QH é uma narrativa introspectiva porque, ao explorar as ações internas, evolui num

tempo psicológico, por meio de técnicas fragmentárias.

Para melhor discorrer sobre esse vaivém desordenado do tempo, faz-se

necessário resvalar na questão discursiva do monólogo interior21, onde o ritmo supera o

enredo, recusa a cronologia linear e deixa fluir o tempo interior da narradora-

protagonista que tudo fragmenta. É, pois, pelo fluxo da consciência, que se consegue

traduzir os sentimentos e a profundidade do Eu, conforme as lembranças que emergem

da memória. Por isso, o importante não é a história em si, mas como ela é contada, o

modo pelo qual a narradora dá a conhecer a história.

21 O monólogo interior, enquanto técnica narrativa, viabiliza a representação do fluxo de consciência dapersonagem, como se o “eu” se dirigisse a si próprio. Cabe assinalar que essa técnica foi usada pelaprimeira vez, no século XIX, por Edouard Dujardin, que o descreveu como “uma expressão dopensamento mais íntimo, mais próximo do inconsciente, anterior a qualquer organização lógica,reproduzido em sua forma nascente, com frases reduzidas ao mínimo de sintaxe, constituindo umdiscurso impronunciado e sem auditor que se desenrola de forma desordenada e até caótica, semqualquer intervenção disciplinadora e esclarecedora do narrador; fluindo livremente, é formado por idéiase imagens de todo tipo que atraem ou repelem na consciência da personagem” (Apud SILVA, 1976, p.128).

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O monólogo interior, em QH, contribui significativamente para a fratura da

linearidade temporal. Narradora autodiegética22, é a protagonista quem estrutura a

perspectiva narrativa, organiza o tempo e manipula os diversos tipos de distância,

conforme às necessidades do desenrolar da história, a instigar o olhar do leitor a

percorrer o texto inúmeras vezes para compreendê-lo. Entende-se, por essa via, que

esse discurso monologal e mudo expressa o reflexo dessa temporalidade difusa e sem

fronteiras, como nestes fragmentos:1. No terceiro dia vestiu-me e penteou-me debaixo de uma árvore onde paramospara descansar o corpo e olhar a linha do horizonte. A tempestade de vésperadeixara o campo vicejante e, ao nosso redor, o mundo germinava. [...]Depois deitamos as duas no chão relvoso e sob árvore secular dormitamos.No quarto dia, precipitou-se em correntes a tempestade e minha mãe valeu-se delapara fazer-me a narrativa das águas e das lágrimas. [...] (Qh, p. 16-17).

2. Aos poucos fui reconhecendo o tronco e a árvore velha porque recobrara oinstante e a dor arrefecia. Encolhi-me, cabeça tocando os joelhos e, enovelada,solucei e gemi por tempo que não cabia nos relógios. (Qh, p. 24).

Observa-se, nessa seqüência de blocos narrativos, que a narradora aparece

num tempo ulterior em relação à história que relata, compreendida como um conjunto

de imagens de fatos concluídos e perfeitamente conhecidos, o que implica uma

considerável distância temporal entre o pretérito da história e o presente do relato. Isso

permite a manipulação dos distanciamentos no movimento espiralado do tempo, que

escoa rapidamente.

Percebe-se, no primeiro fragmento, que o olhar, em gestos de contemplação,

revela os atributos divinos, o maravilhamento diante do mundo, onde todas as coisas se

assentam, a remeter a um espaço de tranqüilidade, paz e repouso, como se tudo,

naquele momento, se condensasse em imagens. Entretanto, quando a narradora, em

ato contínuo, diz que o campo está viçoso e, por isso, o mundo germina, apreende-se o

movimento. O tempo, nesse fluir caudaloso, é como um rio, pois mesmo parado está

22 Segundo Dicionário de Narratologia (1987, p. 251), a “expressão narrador autodiegético”, que foitrazida para os estudos narratológicos por Gerard GENETTE, indica uma “atitude narrativa específica:aquela em que o narrador da história relata suas próprias experiências como personagem central dahistória”.

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sempre em movimento a formar novos tempos em outros espaços. A tempestade23,

portanto, serve de elo entre o ontem e o hoje, a projetar o futuro na vida que nasce.

Ainda, nesse fragmento, é possível observar que a narradora constrói um

cenário, cuja travessia entre os espaços ocorre, geralmente, quase que imperceptível, a

causar no leitor uma sensação de estranheza, pois os Eus, que antes cochilavam “sob

árvore secular”, na seqüência, reaparecem no dia seguinte (“quarto dia”). Um dia que se

abre entre as correntes de uma tempestade, a servir de fio condutor para o início de

uma nova história (“a narrativa das águas e das lágrimas”). Esse cruzamento espaço-

temporal, cabe ressaltar, ocorre tão rápido que se torna difícil, muitas vezes, perceber

claramente quando se está diante de um ou de outro relato.

O fluir do tempo, arrisca-se afirmar, também é marcado pelo cuidadoso

emprego dos vocábulos e seus modificadores. Destaca-se desses dois fragmentos,

para exemplificar, a palavra árvore que se transforma pela junção de dois adjetivos, a

sugerir semânticas diferenciadas.

No primeiro fragmento, relativo aos tempos primevos, o referido substantivo

aparece isolado, sem modificadores, a desenhar a imagem de uma árvore apenas, cuja

função é meramente de abrigo e proteção. Na seqüência, aos olhos da narradora-

criança, esse substantivo transforma-se pela junção do adjetivo “secular” (“árvore

secular”), a sugerir não a passagem do tempo, mas, quiçá, a enorme distância que

existe entre a sua própria pequenez, enquanto ser, e a estranheza do mundo que se

ostenta diante de seus olhos maravilhados, a contemplar a obra da criação divina.

Ao reaparecer no segundo fragmento, esse mesmo substantivo, ao unir-se ao

adjetivo “velha” (“árvore velha”), sofre nova modificação, a sugerir o decurso do tempo.

O tempo passou e, com ele, a árvore, antes frondosa, cumpre a travessia entre os

tempos.

A narrativa Qh, apreendida como imagem do próprio tempo em contínuo

movimento, via relato oral, inicia num cruzamento entre os tempos. Um momento em

que se encontra um coral de vozes, a destacar o passado remoto (avô, pai, amigo), o

passado próximo (mãe), o presente (narradora-protagonista) e, até mesmo, o futuro

23 Cabe assinalar que, segundo CHEVALIER e GHEERBRANT (2005, p. 874-888), a imagem datempestade, enquanto cerne de demonstração divina, equivale à tormenta, a anunciar a ação criadora de

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(“minha mãe, que a confiou a mim por adivinhar [...]” – Qh, p. 11 – Grifos meus), a

tornar quase imperceptível o início do relato.

Nesse vaivém desordenado do tempo, a narrativa é tecida numa seqüência

que segue o desfiar da memória da narradora, a tornar claro que a coerência textual

também é subterrânea, próxima das camadas psíquicas mais profundas.

Em função disso, como a memória não tem tempo, as lembranças saltam

estilhaçadas, aos pedaços, em fragmentos. Assim, para contar sua história, a narradora

reorganiza-os numa perspectiva de montagem24 em vários planos, que se percebe por

meio dos cortes e da simultaneidade espaço-temporal, cujos sobressaltos quebram o

ritmo do procurado sentido, se o leitor/ouvinte não estiver atento para essa estratégia

que subverte a lógica convencional da narrativa, como é possível perceber neste

fragmento:

Muitas vezes deixava exausta minha pobre mãe de tanto que eu queria saber, dequantas pessoas habitavam aquele lugar, quantos iam ao mercado, de que maneiraas mulheres tinham seus filhos.Pressentindo que eu me desviava da história e vendo-me horas seguidas perdidaem contemplação, minha mãe fingiu atarefar-se e anos se passaram.Um dia, não sei se porque pensou na morte e no esquecimento, pegou-me pela mãoe levou-me para fora. E de um lugar mais alto que a casa, fez-me olhardemoradamente a natureza [...]. Depois, fez gestos de semear e gesto de colher, fezgestos de morrer e contou-me a história até o fim. Jurei não esquecer o rosto dela eo pranto que verteu ao terminar.Ao enxugar o pranto, exortou-me à obediência e à temperança a fim de bem cumprira jornada dos sete dias, naquele exato dia iniciada. (Qh, p. 14-15).

Percebe-se, no fragmento citado, a presença de vários cortes na dinâmica do

discurso. A primeira interrupção ocorre quando a narradora revela que a “mãe fingiu

atarefar-se e anos passaram”, a projetar, na seqüência desse transcurso temporal,

outra história que, logo em seguida, é interrompida para que seja retomada a história da

cidade branca (“contou-me a história até o fim”), cujo final, apesar de ser revelado a

Deus, que se personifica na imagem da chuva fertilizante, como sinal de germinação e de regeneração,pois ela é sempre seguida por uma nova vida e uma nova história.24 Cabe assinalar que, segundo Carlos REIS e Ana Cristina LOPES (1987, p. 231), a montagem é um“termo específico da linguagem cinematográfica”. Refere-se, pois, à organização dos inúmeros planos deum filme, conforme as intenções de organização sintática.

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ouvinte-infante, permanece velado aos olhos/ouvidos do leitor/ouvinte, a quem não é

dado o direito de conhecer, como a instigá-lo a ir buscar o final esperado, visto que, na

seqüência, surge nova interrupção, a direcionar o discurso para outras histórias,

oriundas da “jornada dos sete dias”.

Esse jogo, marcado pelas acelerações, retrocessos e retardamentos,

estabelece a marcação temporal em QH, que segue o fio das lembranças da narradora.

É, pois, a partir da sobreposição do tempo psicológico em relação ao tempo real que se

pode perceber os saltos do tempo, a fluir, às vezes, num único bloco narrativo, espaços

de horas, dias, meses ou até mesmo anos, no infinito continuum entre o vaivém das

imagens delineadas na dinâmica espacial do discurso.

Compreende-se que, em QH, a dinâmica do tempo, desde o início da primeira

narrativa (“Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo” – Qh, p. 11), é marcada tanto pela

história relatada quanto pelo discurso, visto que o próprio ato de contar não só tenta

representar essa temporalidade, como se inscreve, ele próprio, no tempo.

Essas alterações, em QH, que ocorrem entre a ordem dos eventos da história

e a ordem lógica em que eles são apresentados no discurso, indicadas, direta ou

indiretamente, na própria narrativa são denominadas, de acordo com a terminologia

genettiana (Apud NUNES, 2003, p. 31), de anacronias25.

Nessa perspectiva, a narradora-protagonista, por meio dessa incidência de

anacronias na armadura temporal da narrativa, submete o fluir do tempo da história a

critérios particulares de organização do discurso, de modo a subverter a cronologia,

seja pela antecipação (prolepse) ou pelo retorno (analepse) no tempo dos

acontecimentos narrados, a gerar uma narrativa marcada pelo acúmulo de digressões,

a exemplo dos seguintes fragmentos:

1. O mercado lá no alto, as portas abertas, as pessoas, o cântico elevando-se pelasalturas provocavam em mim imagens de ovelhas sacrificadas, sangue a manchar o

25 A anacronia é um termo de origem grega que pressupõe uma inversão (ana-) no tempo (chronos). Asanacronias, cabe reforçar, designam todo e qualquer tipo de alteração na ordem dos acontecimentos dahistória, por ocasião da sua apresentação pelo discurso. Por isso, ao serem analisadas, deve-se,segundo Benedito NUNES (2003, p. 32), levar em consideração o período de tempo que elas ocupamdesde o instante em que iniciam (alcance) e a duração dos acontecimentos que introduzem (amplitude),pois “as antecipações e as retrospecções” são diferentes entre si e nem sempre interferem na históriaprincipal.

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chão do mercado. Embora minha mãe não confirmasse as imagens, jamais deixei detê-las. O Sangue das ovelhas que eu inventava corria rubro a desenhar no chãoestranhas formas. Embalde minha mãe tentou desconfirmar. Minha mãe, só hojecompreendo, temia por mim que queria com fragor saber o fim da história.O regresso para as suas casas era feito não mais silenciosamente, ela dizia. [...](Qh, p. 13).

2. Em tempo de colheita abria-se o mercado e era no rumo dele que se moviaaquela silenciosa legião, deixando pelos caminhos aromas de legumes e de frutas.Lembro-me bem que, ao falar do mercado, minha mãe demorava-se em detalhes tãoespeciais que durante longos anos esqueceu de acrescentar que ele se erguia naparte mais elevada da cidade. (Qh, p. 12).

O primeiro fragmento, arrisca-se afirmar, trata-se de uma prolepse, pois a

narradora, que antes descrevia o espaço do mercado, desvia a dinâmica do discurso

para, na seqüência, discorrer sobre as “imagens das ovelhas sacrificadas”, a sugerir o

desfecho da lenda da cidade branca, o que remete a uma projeção dos eventos futuros.

Em seguida, as impressões breves e a desconfiança não confirmada pela mãe fazem a

narradora retornar ao fio do discurso anterior para recomeçar a trajetória, antes iniciada

pelo reconto da lenda.

Cabe assinalar que, ao tecer um comentário sugestivo, a narradora não

antecipa um epílogo propriamente dito, apenas desperta a expectativa do leitor para

uma das inúmeras possibilidades de desfecho, e, desse modo, garantir o suspense até

o final da narrativa. A prolepse, nessa perspectiva, segundo Calos REIS e Ana Cristina

LOPES (1987, p. 334), não se trata de uma premonição, mas de um recurso que

contribui para prender a atenção do leitor ao fio do discurso até o seu final.

O segundo fragmento, ao contrário, refere-se a uma analepse. O verbo

lembrar, por essa via, marca um movimento temporal retrospectivo à medida que a

narradora, via rememoração, interrompe a dinâmica da narrativa para recuperar um

detalhe que a mãe-narradora, durante muito tempo, esqueceu de mencionar quando

recontava a lenda (“o mercado [...] se erguia na parte mais alta da cidade”), talvez

porque, na sua percepção de contadora, aquele detalhe não fosse tão relevante.

Bendito NUNES (2003, p. 32), ao tratar sobre as anacronias, salienta que a

analepse e a prolepse encontram “os seus correspondentes cinematográficos no flash-

back e no flashforward”. Nessa perspectiva, compreende-se que esse recurso, quando

usado nas narrativas literárias, está intrinsecamente relacionado à montagem, pois, na

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maioria das vezes, é por meio dos movimentos analépticos e prolépticos que o leitor

percorre o texto, num continuum ir e vir, de um parágrafo a outro, de uma página a

outra, de um capítulo a outro, a procurar relações que melhor conduzam a coerência e

a seqüência dos acontecimentos narrados, o que provoca uma quebra na linearidade

temporal.

De igual modo, Carlos REIS e Ana Cristina LOPES (1987, p. 232), além de

compreenderem que, na narrativa literária, a montagem corresponde a um “recurso

susceptível26 de aproveitamentos estéticos e ideologicamente variados”, consideram

também que “certas articulações sintáticas”, como a alternância, o encadeamento e o

encaixamento, produzem um efeito de montagem, a relacioná-las com a composição

estrutural da narrativa, que, por conseguinte, envolve a disposição temporal no interior

da história.

Entende-se, por essa via, que o recurso da montagem e a justaposição dos

blocos narrativos constroem, em QH, a imagem de um tempo em espiral, cíclico, que é

determinado por um universo de significação, resultado de uma sucessão de eventos

dispostos numa ordem não linear. A fratura lógica gera uma rede temporal de nexos

nos quais pretérito e presente com projeção de futuro encontram-se em permanente

movimento, o que determina a estrutura fragmentada da narrativa.

Nessa perspectiva, percebe-se que a escritura fragmentada de QH estimula

não aquilo que permanece na memória, mas o vazio, aquilo que se encontra nas

brechas da memória ou, para lembrar Paul ZUMTHOR (1997, p. 21), no “buraco da

memória”, lugar onde reside o segredo da criação poética.

Por essa via, em QH, as antecipações, as retomadas e as repetições, a

gerarem o movimento rotativo da narrativa, contribuem para estimular os

acontecimentos esquecidos na memória. De modo que quando a narradora afirma “De

tudo somente sei que se passou há muito tempo [...]” (Qh, p. 11), significa dizer que ela

não sabe de nada, nada testemunhou. Ela apenas ouviu, em performance27 por meio

da voz materna, o reconto de uma lenda que, entre os brancos da memória, traz à tona

26 Cabe assinalar que se procurou respeitar a grafia impressa no Dicionário de Narratologia.27 A performance, para Paul ZUMTHOR (2005, p. 55), “é a materialização de uma mensagem poética pormeio da voz humana e daquilo que a acompanha, o gesto, ou mesmo a totalidade dos movimentoscorporais”.

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do presente breves lembranças que o tempo não conseguiu apagar. Por isso, na

tentativa de melhor aclarar o que seriam e como se ativariam essas brechas, retoma-se

a lenda da cidade branca, que parece funcionar como um objeto detonador da memória

e, conseqüentemente, da ação narrativa, a estimular a narradora-protagonista, que pelo

reconto fragmentado da lenda, em performance de voz e gestualidades, conta novas

histórias de modo a compor a armadura textual de QH.

Entende-se, portanto, que as breves lembranças, guardadas na memória da

narradora-protagonista, são oriundas do reconto, também transformado pela memória e

impressões pessoais da mãe-narradora, que da lenda parece ter guardado apenas as

passagens mais significativas, e, por isso, ao recontá-la, preenche os vazios com outras

histórias, a criar uma ambientação também fragmentada da ficção.

Nesse sentido, os restos de lembranças, provenientes do conto e do reconto

oral, ficam à espera de um novo relato, onde elas possam ser agrupadas em um todo

coerente. Entretanto, esse todo, no momento da escritura em ilusão de relato oral, está

em branco porque faltam lembranças, outras palavras, quiçá, a palavra exata, um elo

capaz de unir esses fragmentos que flutuam na memória da narradora-protagonista.

Assim, QH, enquanto possibilidade de um novo modo de contar, é tecido por meio de

infinitos fragmentos de relatos vários, dispostos por subordinação em blocos narrativos,

que geralmente passam à organização por coordenação, a gerar uma grande

temporalidade sem início, fim ou intermédio.

Cabe assinalar que esse movimento, próprio do processo de criação, causa

um impacto na leitura da narrativa final, pois o leitor/ouvinte, do mesmo modo que o

narrador/contador, depara-se com inúmeros fragmentos, aparentemente sem ligação, a

causar-lhe também um sentimento de angústia. Entretanto, esse leitor/ouvinte, entre as

idas e vindas, envolvido pelo próprio movimento espiralado da narrativa, é instigado a

procurar relações e a fazer funcionar, ele mesmo, o movimento de escritura, ocasião

em que se transforma, segundo Paul ZUMTHOR (1997, p. 242), em “co-autor”, a

desempenhar uma função ativa diante das histórias narradas.

Em QH, a fragmentação, portanto, tem a função de evidenciar os vazios da

memória, provocar um olhar de ruptura e estimular a necessidade de procurar os elos

que ligam as histórias e os todos coerentes, a construir uma narrativa plural, estranha e

em contínuo movimento, conforme será focalizado no próximo segmento.

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3.2. A invenção na urdidura do narrar

Na tentativa de melhor discorrer sobre o jogo de montagem no tecido de QH,

principalmente em função do processo de encaixamento28, nesta parte do estudo, será

desenvolvida uma breve análise dos todos que compõem a temporalidade da narrativa.

As primeiras precisões em relação ao processo de encaixe (embedding)

encontram-se desde as primeiras linhas de Qh, ocasião em que a narradora-

protagonista, por meio do procedimento in media res29, afirma que “Meu avô, pai de

meu pai, tinha um amigo.” (Qh, p. 11), para, na seqüência, dizer que “Vem daí o papel

que me cabe nessa história [...]”, a acarretar um desvio na seqüência frasal. Esse

desvio, arrisca-se afirmar, indica o engano, a confusão, a armadilha que deve ser

tomada como regra de escritura da narrativa.

O conteúdo, nesse momento, ainda não está determinado, a história não está

sequer esboçada, as personagens também não são conhecidas, mas uma coisa é

certa: o leitor certamente cairá nos vazios entre as histórias que estarão por vir. Esta

será a grande sentença na criação de QH e, quiçá, aquilo que impulsiona a escritura e

está por trás de tudo que irá acontecer no conto e reconto das múltiplas histórias.

28 Esse procedimento relaciona-se com a inclusão de uma história no interior de uma outra história.Segundo Tzvetan TODOROV (2003, P. 123), vive-se, hoje, no “reino dos homens-narrativas”, o que afetaprofundamente a estrutura da narrativa, pois a “aparição de uma nova personagem ocasionainfalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o “eu estouaqui agora” da nova personagem, nos seja contada”.29 Segundo Carlos REIS e Ana Cristina LOPES (1987, p. 191), trata-se de uma expressão latina quesignifica “no meio dos acontecimentos”. In media res, portanto, é um processo deliberado usado pelonarrador, com o propósito de alterar a ordem dos acontecimentos da história ao nível do discurso, paraposteriormente recuperá-los por meio de uma analepse.

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Cabe assinalar que esse vazio, na seqüência, adquire grande profundidade,

pois a narradora-protagonista, ao mencionar o reconto da lenda em performance de voz

e gestualidade materna, desvia a afirmação inicial para, via rememoração em ilusão de

relato oral, salientar que “De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa

cidade toda branca [...]” (Qh, p. 11), e, desse modo, iniciar o reconto da lenda a partir

dos poucos fragmentos que brotam dos desvãos da memória.

O leitor, a partir daí, segue o fio do tecido do narrar, presencia histórias

várias, que se entrelaçam aos fragmentos da lenda, até chegar ao final quando, por

meio da performance nos gestos e na voz em cantochão, retoma o ponto de partida

“Meu avô, pai do meu pai, tinha um amigo...” (Qh, p. 43), a gerar, além do vazio frente à

surpresa, um profundo estranhamento.

Esse estranhamento, em relação àquelas personagens aparentemente

desconexas (avô, pai e amigo), direciona a leitura para a segunda parte de QH,

intitulada Hs, onde se encontram quatorze micro-narrativas que, além de serem

intituladas, apresentam-se em tamanhos variados. Assim, o leitor, em busca de

respostas, percorre o movimento das horas para, na última página, encontrar a imagem

paterna e o início dos todos que formam a narrativa, a compreender que o fim está na

origem, como é possível observar nestes fragmentos:

1. Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo. (Qh, p. 11 – Grifos meus).

2. Meu avô, pai do meu pai, tinha um amigo... Pus-me em retirada devagar ao tempode escutar, em me distanciando, a voz em cantochão, abrindo caminho em meio aoarvoredo, palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar... (Qh, p. 43 –Grifos do texto).

3. O senhor não me conhece. Venho de um reino venho. Meu pai enviou-me aestâncias tão longínquas que herdei desse tempo um fraseado ondulante, palavrasaéreas, fiz-me reticente.[...] Minhas irmãs guerreiras assombravam florestas, faziam rodopiar as árvores porleve sopro. [...].[...] Nossos laços estreitados tornaram-se frouxos laços à medida que eu crescia,que crescíamos.[...] Aprendi nos livros, meu pai ensinou-me a encontrar o húmus, plantar, colher,matar a sede, conhecer a febre, germinar, dilacerar, fazer tarefas. [...] Nem tenho cetro, não trago manto, restou-me um anel somente, cujo símbolominha memória perdida esqueceu. [...].Mas desse tempo recuado só e conhecido o que narro, minhas entranhas secretasnão perpetram nenhum crime, não sugerem nenhum sangue. Eu tenho a minha

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história, versão reticente ou não, encantatória ou não. Só vossa crença, só meusdias. (FH, p. 63-64).

O primeiro fragmento, que abre as páginas de QH, repete-se quase

integralmente no segundo fragmento que encerra a narrativa Qh. Entretanto,

compreende-se, que não ocorre entre eles o procedimento in media res, visto que essa

repetição, em performance da voz em cantochão, aparece para reforçar a idéia de que

a lenda da cidade branca permanecerá viva por meio do reconto de outros narradores.

Prova disso, acredita-se, está no modo como a voz em cantochão inicia o relato, pois

ao pronunciar “meu avô, pai do meu pai [...]” – Grifos meus, ela altera a preposição

essencial “de”, enquanto designativa da relação de parentesco, usada no primeiro

fragmento, para “do” que, apesar de apresentar o mesmo sentido, constitui uma

preposição formada pela contração da preposição “de com o artigo “o”, a indicar uma

marca da oralidade, o que implica a questão da pessoalidade, ou seja, o modo como

este ou aquele faz uso da língua falada.

Essa repetição, portanto, não parece indicar um movimento analéptico,

próprio do procedimento in media res, pois a frase retomada não segue nenhuma

tentativa, por parte da narradora-protagonista, para recuperar qualquer evento em

omissão, que deixou de ser contado no início da história.

Veja-se, segundo Carlos REIS e Ana Cristina LOPES (1987, p. 191-192), o

procedimento in media res sempre implica um movimento temporal retrospectivo que se

destina a relatar acontecimentos anteriores ao presente da ação ou, até mesmo,

anteriores ao início da ação. De modo que, sempre por meio de uma analepse, esse

recurso pode “ilustrar um passado familiar em estreita conexão com os conflitos de

classe que atravessam a narrativa, recuperar alguns fatos que deixaram de ser

relatados, cujo conhecimento torna-se relevante para conferir coerência interna à

história ou, ainda, ilustrar o passado de uma personagem”.

Nessa perspectiva, o procedimento in media res incide sobre o terceiro

fragmento, onde a narradora, ao recuperar a imagem paterna, focaliza os traços de sua

linhagem e o lugar de onde vem, a evidenciar que, a partir das poucas lembranças

guardadas na memória, irá contar sua história.

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A narradora, ao tecer sua auto-apresentação, revela-se como alguém

reservada, observadora, pouco falante e que gosta de ler, traços herdados de um

tempo em que, por vontade do pai, viveu longe de casa, em outro lugar, o que a tornou

completamente diferente das “irmãs guerreiras” que, por nunca terem saído do lugar

onde nasceram, são delineadas como pessoas violentas e agressivas.

Percebe-se que, apesar de ter vivido algum tempo longe de seu habitat de

origem, o pai também exerceu grande influência na construção de sua identidade, pois,

ao regressar para casa, com ele aprendeu a “encontrar o húmus, plantar, colher, matar

a sede, conhecer a febre, germinar, dilacerar”, outros ensinamentos indispensáveis

para formação de sua personalidade. Assim, é possível conhecer suas origens que

remetem à existência de uma família formada pelo pai, pelas irmãs das quais resolveu

afastar-se (“Nossos laços estreitados tornaram-se frouxos laços [...]”), e da mãe, cuja

imagem é constantemente retomada ao longo da narrativa Qh.

Cabe assinalar que, desde o início desse fragmento, a narradora-protagonista

estabelece uma relação estreita com o leitor que, personificado por meio do pronome

de tratamento “senhor”, é convidado a participar da história que ela irá contar. Uma

história, cuja versão é o resultado das poucas lembranças e do seu entendimento

pessoal. Entretanto, é uma história que pode, conforme o julgamento do leitor,

transformar-se num palco de mistérios e encantamentos, a causar o deleite oferecido

pela imagem.

Estabelece-se, a partir desse momento, o jogo da narrativa, pois o leitor, ao

ser instigado pela narradora-protagonista, assume o papel de co-autor, a desempenhar

uma participação ativa em relação à história que será contada. Assim, em conjunto com

a narradora, ele assume a árdua tarefa de unir e desunir os fios do tecido textual,

imaginar tramas e decifrar enigmas para, quando conseguir atravessar todo o percurso,

chegar não ao fim, mas ao início de uma nova história, outra versão, pois, para lembrar

Tzvetan TODOROV (2003, p. 127), contar histórias permanentemente é o mesmo que

alcançar “uma suprema consagração”, o que implica garantir a imortalidade porque

“contar é igual a viver”.

A narradora, ao perceber que o leitor aceita participar do jogo, desvia os fios

do tecido discursivo para, posteriormente, retomá-lo na página 60, onde continua

interagir com o leitor, como mostra o fragmento:

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Não sei se até o final desta viagem o senhor me terá ao seu lado a escutar históriassobre mortos, moribundos e ausentes, alguns vivos, sim, ou melhor dizendo, todosmuito vivos saltando das minhas lembranças.Há possibilidade de adormecermos os dois, nossas cabeças a balançarridiculamente enquanto este comboio avança entre estradas sinuosas [...] Há deconvir o senhor que entre o momento em que nos descobrimos ocupantes destemesmo vagão, lugares contíguos [...] já faz muito tempo.De lá para agora, já vai muito tempo. Sei seu nome e profissão, seria até capaz dereconhecer sua voz [...].Houve um tempo, senhor, tempo de linhos, lençóis, pão fresco [...]. (APN, p. 60).

A narrativa APN, enquanto parte das horas lembradas, corresponde a um

flash-back que se encaixa à narrativa FH, para tornar claro que o jogo proposto pela

narradora-protagonista começa com uma viagem de trem, em um tempo bem anterior

ao presente do narrado, pois do momento em que eles começaram a viagem30 até o

instante presente (“De lá para agora [...]”) já se passou muito tempo, a dissipar o medo

inicial da narradora: não conseguir contar histórias até o final da viagem.

Entretanto, na circularidade do tempo e do espaço, ao trazer à tona das

águas presentes as personagens que guarda na memória, ela tece fios, cria e recria

histórias, a demonstrar que o hábito de contar histórias transformou-se na razão de sua

própria existência.

Nessa perspectiva, compreende-se que a narradora-protagonista faz do ato

de viajar uma potência criadora de novas descobertas, a sugerir que, na difícil tarefa de

criar e recriar, ela vive numa busca permanente.

Arrisca-se afirmar que, em QH, o motivo da viagem expressa todo o

sentimento e toda uma auto-afirmação da narradora que, ao situar-se no tempo e no

espaço, ganha a dimensão de um Eu que, ao lembrar outros Eus, está em contínua

travessia e, por conseguinte, rememora impressões de viagens, recupera fatos e

movimentos no exercício do narrar, a criar um mundo de paisagens inusitadas, novos

mundos que só aos olhos do leitor atento poderá ganhar novas dimensões.

30 Cabe assinalar que, segundo CHEVALIER e GHEEBRANT (2005, p. 952), “em todas as literaturas, aviagem sempre simboliza uma aventura e uma procura, quer se trate de um tesouro ou de um simplesconhecimento, concreto ou espiritual”.

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A narradora-protagonista, no fragmento apresentado, afirma que “Houve um

tempo, [...] tempo de linhos, lençóis, pão fresco [...]” – Grifos meus. Encerrou-se nessas

imagens para mostrar que, na esfera rocambolesca das horas, o “pão fresco” e os

lençóis de linho funcionam como objetos detonadores da memória, a girar a dinâmica

da narrativa, num movimento analéptico, rumo às páginas 51 e 54, conforme os

seguintes fragmentos:1. O gosto do pão fresco trazias na boca, ao esgueirar teu corpo pela porta que seabria ao território verde e conquistado, mal rompia a manhã. [...].Depositavas ao pé do bougainville tua memória da noite, o medo de estar sob o céu.As palavras que seriam proferidas até o fim do dia, tu adubavas ali salvando dodesamparo as sílabas rubras que rolavam nos declives. Lambias as palavras saídasdos troncos nodosos, dos vãos de plantas, para limpar os excessos de argila.Nomeavas a paixão, a dor, o riso e o espanto, arrebanhavas todas as palavras,todas desenterradas, purificadas, desentrelaçadas das bordas furiosas, livrando-asdas flechas da ira. [...].Até que a negra te chamava para dentro, tu que dentro estiveras, pura e visceral aalimentar desejos. (PC¹, p. 51-52 – Grifos meus).

2. O linho destes lençóis devolve aos meus ouvidos ruídos que permitiram a alvuradeles, pedra e sabão, a água límpida, uma negra a limpar [...].Às vezes, tarde da noite, meu coração se agita de prazer. É meu avô que nãoconheci a repartir o pão à porta, a arrear os cavalos indo para o mato. [...] Aqui éentranha, sim. E esta negra, que reza e desconjura e diz ter conhecido osassassinos de meu pai, visitado o covil onde, escondidos, pensaram as armadilhas.Traziam armas que seguravam com estrépito para que mais rápido o medo seespalhasse pelos caminhos.Das bocas medonhas escorria o sangue, a carne que acabavam de rasgar. Os olhosfaiscavam, os chapéus eram negros e escondiam sede e luxúria, ódio pelo perdãonegado. Diz esta negra que reza e desconjura.Neste quarto [...] recomponho as formas, dou ordem às coisas. Este quadro torto naparede tem mil anos e esta figura esquálida no leito de agonia tem um anjo por trásque tem mil anos. [...]. (PC², p. 54 – Grifos meus).

O desalinho formal, em QH, permite que, no espaço das Hs, duas narrativas,

dispostas em páginas diferentes, a exemplo desses fragmentos, recebam o mesmo

título31.

A imagem do “pão fresco”, disposta na narrativa APN, projeta, no primeiro

fragmento, o paladar, a funcionar como objeto detonador da memória, pois é a partir

31 Não se considera inútil uma pequena digressão para esclarecer que quando se optou pelo uso dassiglas, em razão das duas narrativas receberem a mesma denominação (A pedra, a claridade), resolveu-se diferenciá-las por numeração arábica, o que resultou nos títulos PC¹ e PC².

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desse sabor que o discurso seguirá sua trajetória, a evidenciar que o processo de

encaixe entre essas narrativas ocorre em função da memória involuntária.

Nessa perspectiva, o sabor do pão, a projetar o dia que nasce, desencadeia

uma série de novas imagens, dentre as quais destaca-se, a priori, a palavra.

Entende-se que essa imagem da palavra, projetada na narrativa PC¹, está

intimamente ligada à busca empreendida pelo artista no instante da criação, a sugerir

uma pista para o deciframento dos enigmas dispostos no trajeto de QH.

Não se considera inútil abrir um parêntese para destacar que, independente

das crenças e dos dogmas, a palavra, segundo CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p.

680), simboliza a “manifestação da inteligência na linguagem, na natureza dos seres e

na criação contínua do universo”, a evidenciar que, no tocante à linguagem, a palavra

intervém constantemente sobre um fundo de palavra, pois ela nunca é senão uma

dobra no imenso tecido da fala. Logo, para compreendê-la, é necessário que se deixe

envolver por sua vida, por seu movimento de diferenciação e de articulação, por sua

gesticulação eloqüente, o que implica, por conseguinte, numa opacidade em torno da

linguagem. Torna-se, portanto, imprescindível, para aquele que trabalha com a

linguagem, buscar a palavra exata, aquela cuja representação seja verdadeiramente

expressiva.

No fragmento apresentado, a narradora-protagonista salienta que “As

palavras que seriam proferidas [...] tu adubavas ali salvando do desamparo as sílabas

rubras que rolavam nos declives. Lambias as palavras saídas dos troncos nodosos [...],

a remeter à idéia de procura cuidadosa, experimentação, fazer e refazer, o constante

desejo de encontrar uma palavra capaz de atingir algo que vá além da simples

representação de uma realidade objetiva porque o que ela quer, ao lapidar as palavras,

é o inefável que se coloca entre a palavra e a própria existência. Daí as sílabas serem

rubras, afogueadas, de cor vermelho intenso, pois esse tom vermelho é, para citar

novamente CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p. 944), “universalmente o símbolo do

princípio da vida, com sua força, seu poder e seu brilho incandescente”.

A palavra procurada, nessa percepção, seria o fio mágico que, além de tirar o

homem do labirinto, é capaz de transformar a vida. Assim, a palavra nasce, perdida

entre outras palavras, para ser ordenada, decantada ao essencial, enquanto reflexo do

indispensável, a emergir e a cultivar a travessia da própria existência. Trata-se, arrisca-

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se afirmar, de um processo que se define como demiúrgico-poético, como se a palavra

perdida, às vezes num caos de vivências múltiplas, se transformasse em cosmos. Por

isso, ao citar Mallarmé, Maurice MERLEAU-PONTY (2005, p. 73-74) nos diz que “o

escritor, como o tecelão, trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem, e é assim

que de repente se encontra rodeado de sentido”.

A imagem dos lençóis de linho, também proveniente da narrativa APN, por

sua vez, projeta no segundo fragmento, que inicia a narrativa PC², a imagem acústica

referente ao som da água que a negra tira do poço para lavar os lençóis, a devolver-

lhes a alvura da cor, o que, por analogia, remete à cor branca da cidade de que trata a

lenda ouvida nos tempos primevos.

Esse quadro imagético traz à memória da narradora-protagonista, em outro

movimento analéptico, a imagem do avô paterno, que inicia a narrativa Qh, e o contar

de novas histórias, na voz e nos gestos da negra, a evidenciar novo procedimento de

encaixe e, por conseguinte, confirmar a teoria de Tzvetan TODOROV (2005, p. 123)

quando afirma que “toda nova personagem significa uma nova intriga”, razão pela qual

vive-se no “reino dos homens-narrativas”.

Dessa maneira, pela voz da “negra que reza e desconjura”, é possível

conhecer alguns traços do avô paterno, especialmente a predileção que ele nutria por

cavalos, e a morte trágica que teve o pai, assassinado com instinto de pura crueldade.

A negra conta, ao descrever minuciosamente os detalhes do crime, que os olhos dos

assassinos “faiscavam, os chapéus eram negros e escondiam sede e luxúria, ódio pelo

perdão negado”, imagens que remetem imediatamente ao final da lenda, ocasião em

que os ceifeiros assassinaram covardemente suas esposas, quando foram encontradas

em banho de rio, a evidenciar que, nesse movimento espiralado, a narrativa PC²

encaixa-se diretamente à narrativa Qh.

Observa-se, ainda, que essa negra, ao surgir na narrativa para girar a

dinâmica do discurso em outras direções, já aparece no último parágrafo da narrativa

PC¹, conforme mostrado no primeiro fragmento, a indicar que essa narrativa, apesar de

intercalada pela narrativa MV, encaixa-se diretamente à narrativa PC², a tornar evidente

que essas narrativas apresentam-se subordinadas entre si.

Na tentativa de focalizar o procedimento de encaixe numa ordem mais linear,

abre-se outro parêntese para salientar que a narrativa MV, de igual modo, apresenta-se

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diretamente subordinada à narrativa PC¹, por meio da imagem palavra, como é possível

observar neste fragmento:

[...] Não me negues a palavra. Pelas artes de uma palavra abri picada diferente quenão me levava ao bosque. [...] O meu caminho, senhora, tinha reverberaçõesencantatórias, mentiras e verdades no mesmo chão e o veneno das folhas eu sópodia descobrir pelo exercício do meu paladar e do meu corpo. [...]Enquanto meus companheiros avançavam em rodopios e encantamentos, eu venciadistâncias tão pequenas que parecia estar sempre no mesmo lugar.[...] Não me negues a palavra para que a trilha não se altere nem as perspectivassejam removidas. (MV, p. 53)

Percebe-se, nessa narrativa, que a narradora-protagonista, quiçá em razão

da sensibilidade feminina, dirige-se à leitora (“senhora”) para focalizar a palavra

enquanto objeto de criação artística, a ratificar a idéia manifestada na narrativa

encaixante PC¹.

Nessa perspectiva, enquanto artífice da linguagem, a narradora busca, na

solidão enquanto reflexo do próprio ato da criação, a palavra de melhor expressividade,

capaz de encantar pelo seu brilho e sua força. Entretanto, a busca é árdua, penosa,

pois quando ela afirma que “vencia distâncias tão pequenas que me parecia estar

sempre no mesmo lugar”, remete à idéia de um grande sofrimento diante da dificuldade

que encontra para alcançar a palavra desejada. É, ao que parece, a expressão da luta

entre o artista e a página branca, pois, para melhor exprimir seus sentimentos mais

íntimos, ele tateia em torno de uma intenção de significar, que não se deixa guiar em

função de um texto que está em vias de nascer, mas pela angustiante procura de uma

palavra que seja capaz da significação pretendida. É, como nos diz Mikel DUFRENNE

(1969, p. 126), um fazer que sempre implica num “desfazer e refazer, e antes de tudo

julgar, pois, na medida em que compõe, o poeta é seu primeiro leitor e abre caminhos

aos outros”.

Faz-se necessário, nesse momento, fazer uma pequena digressão para

retomar a narrativa PC², conforme o segundo fragmento apresentado, pois ainda é

preciso discorrer sobre outras imagens que incidem diretamente no procedimento de

encaixe que se propôs demonstrar entre as múltiplas narrativas que compõem QH.

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A imagem do anjo, cuja idade milenar marca a imensa distância temporal em

relação ao presente do narrado, permite girar novamente a dinâmica do discurso rumo

à narrativa TOM, como é possível observar neste fragmento:

[...] Teu perfil silencioso anunciando tua natureza fluídica é o lado do rosto que semostra na gravura do meu quarto. Eu não te conheci na gravura do meu quarto. [...].[...] Nenhum metal produz o brilho que reverbera da trombeta que soprasanunciando mensagens nem o som é esse fluir mavioso. É fúria só, destilando pelaface que eu vi por dentro da gravura do meu quarto. Sei das serpentes escondidassob teus pés acolchoados de nuvens [...] tu, anjo, crudelíssimo, [...].[...] De teu ofício de mensagem nada aprendi e da tua mensagem fui excluída. [...](TMO, p. 50).

O encaixe dessa nova narrativa permite o aparecimento de outra

personagem: o anjo, a evidenciar as ressonâncias bíblicas que atravessam o percurso

de QH.

Ao referir-se ao anjo, entretanto, percebe-se que a narradora-protagonista

não se refere ao “Anjo da Prudência” (Qh, p. 25), cujo sopro ardente viria trazer-lhe o

sono, nem ao “Anjo da Noite” (Idem, ibidem) acompanhante de sua aventura e nem aos

“anjos mais humildes” (Qh, p. 20) que a ajudaram seguir jornada na orfandade de seus

dias, mas a um anjo que, aos seus olhos, se mostra cruel, furioso, a colocá-la em

dúvida diante de sua própria crença.

A imagem do quarto, por sua vez, onde ela “recompõe as formas” e dá

“ordem às coisas”, permite que se faça um novo giro na dinâmica do discurso para

encaixar a narrativa HP, conforme o seguinte fragmento:

[...] Obrigo-me daqui deste lugar onde recosto corpo e memória a ver com nitidez umoceano que não preciso nomear [...] espaço que eu inauguro nesta noite para quemeu escaler com marujos arrojados possa fazer a travessia e me levar.Nesse espaço a memória inscreve, pela ausência, história e personagem, apassagem nossa, nossa ida e nossa vinda, trajeto e rota que vai do lugar de sombradeste quarto à esfera azulada e mítica de onde deito olhar de dor para narrar-te.(HP, p. 57).

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Entende-se que a imagem do livro, no início desse fragmento, sugere que a

narradora-protagonista, para realizar a travessia pretendida, irá contar suas histórias a

partir da projeção de imagens que brotarão tanto da imaginação, enquanto fruto da sua

própria vivência e das viagens realizadas por meio das leituras várias, quanto dos vãos

da memória, lembranças de sua vida pessoal numa relação de linha e linhagem. De

modo que, ao serem transportadas para o espaço da escritura, essas imagens, ora

interpenetradas, ora sobrepostas ou equivalentes, reaparecem entrelaçadas uma

dentro da outra, a gerar o movimento espiralado da narrativa. Daí as mortes simbólicas

e as transformações, pois essas imagens, enquanto matéria ficcional, para alcançarem

nova vida, terão que atingir um estágio plenificador, absoluto de poesia.

Nessa perspectiva, a narradora, para tornar possível o ato de contar em

performance de voz e gestualidades, necessita encontrar a palavra mais precisa para

poder nomear, criar e, por conseguinte, afirmar a existência de suas histórias e gerar as

personagens. A palavra, portanto, será sua única e mais poderosa ferramenta nessa

empreitada, visto que, sem ela, a narradora jamais conseguiria criar os sons, quebrar os

silêncios e contar sua história. Por isso, o “olhar de dor” para contar. Uma dor que

nasce da própria escritura do texto, personificada pelos vazios da memória, na dor do

lembrar, no fiar e desfiar o tecido da história, um espaço semovente onde tudo e todos

aparecem em travessia permanente. Afinal, para lembrar Walter BENJAMIN (1996, p.

37), “o importante para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido da

sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência”.

Na seqüência, a narradora-protagonista, a criar um movimento analéptico de

maior alcance, gira a narrativa HP para encaixá-la à narrativa Qh, que abre o livro QH,

onde, aos moldes do mito de Penélope, começa tecer cuidadosamente os fios da lenda

da cidade branca, cujos fragmentos mais significativos ficaram guardados na memória

da coletividade.

Torna-se necessário, diante desse movimento espiralado, fazer uma pequena

digressão para reforçar a idéia de que a lenda da cidade branca é constantemente

retomada ao longo da narrativa. Tal procedimento, ao que parece, ocorre tanto para

reiterar a mesma aventura, quanto para introduzir a narrativa que dela faz uma

personagem, pois não se deve esquecer que, na maioria das vezes, a narrativa é o

elemento mais importante para o desenvolvimento ulterior da intriga. De modo que, em

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QH, não é a história pessoal da narradora-protagonista que faz merecer a atenção do

leitor, mas a lenda que ela conta, a funcionar como fio condutor de toda a intriga. Por

isso, em QH, a ação movimenta-se pelo ato de contar.

Nesse cenário, marcado pela vocalidade espacial, pensar na imagem

materna significa trazer às águas do presente a história:

Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela não chegousozinha. Veio ela, [...] veio o fio da história, explícito luar a tudo envolver, fioretomado e devidamente seguido, os corpos voltando a banhar-se e o desfechoavermelhando as águas.A cada colheita, quando os cânticos prenunciavam a alegria, os senhores vigiavamsuas senhoras e se de algumas não se visse mover os lábios, adivinhava-se quehaviam sido tocadas pelo ímpeto da emoção, que desejavam bem mais além dacolheita, que não pertenciam mais àquela legião exata e que naquela cidade brancaà beira de um rio... (Qh, p. 23 – Grifos do texto).

Percebe-se, nesse fragmento, que o destaque em itálico marca a lembrança

dos tempos primevos ao som da voz materna, que chega aos ouvidos da narradora-

protagonista, a girar o relato para um passado mais distante e, desse modo, reiniciar o

tecido da lenda:

Meu avô, pai de meu pai, tinha um amigo. Vem daí o papel que me cabe nessahistória transmudada até aos ouvidos de minha mãe, que a confiou a mim poradivinhar nos meus olhos sinais seguros de curiosidade por histórias de mistérios eencantamentos.[...] se passou há muito tempo numa cidade toda branca à beira de um rio não tãolargo mas de verdade tão profundo e de águas muito escuras. (Qh, p. 11).

O reconto da lenda, na gestualidade e voz materna, também ocorre de modo

fragmentado, visto que, ao contá-la, a mãe-narradora entremeia outras histórias, a

projetar uma intenção tanto em relação à preparação da filha para a vida futura, quanto

para evidenciar o ritmo giratório da narrativa, como neste fragmento:

Pressentindo que eu me desviava da história [...], minha mãe fingiu atarefar-se eanos se passaram.Um dia, não sei se porque pensou na morte e no esquecimento, pegou-me pela mãoe levou-me para fora. E de um lugar mais alto que a casa, fez-me olhar

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demoradamente a natureza, as árvores e a terra escura onde todas as coisas seassentavam. [...] fez-me fechar os olhos e escavar com as mãos em volta dasplantas pequenas para que, tateando, eu sentisse nos dedos a dureza da raiz e deque maneira estavam presas à terra. Depois, fez gestos de semear e gesto decolher, fez gestos de morrer e contou-me a história até o fim. Ao enxugar o pranto, exortou-me à obediência e à temperança a fim de bem cumprirjornada dos sete dias, naquele exato dia iniciada. Olhava fixo dentro dos meus olhosadvertindo, aconselhando como se, ao longe, houvesse soado o relógio da morte.Minha mãe pressagiava. (Qh, p. 15-16).A interrupção da história, à luz desse fragmento, gira a dinâmica da narrativa

rumo ao início de um novo ciclo, marcado pela “jornada dos sete dias”, a evidenciar a

trajetória de uma nova travessia, que faz do ato de viajar uma potência criadora de

novas descobertas ao adentrar por espaços inusitados.

Percebe-se que, a partir desse momento, as ressonâncias bíblicas, antes

projetadas na narrativa TMO, adquirem maior expressividade, visto que os sete dias,

enquanto marca do tempo necessário para que seja feita a viagem, a princípio, remete

à idéia da Criação do Mundo. Deus, ao criar o mundo em seis dias, destinou o sétimo

dia (Sabbat) para o seu descanso, a representar, segundo CHEVALIER e

CHEERBRANT (2005, p. 828), “uma restauração das forças divinas na contemplação

da obra executada”, a marcar um dia em que aconteceu um “pacto entre Deus e o

homem”. Essa é uma possibilidade que se evidencia logo no primeiro dia da jornada,

quando a mãe-narradora, numa relação estreita com a natureza, nos gestos de semear,

colher e morrer, ensina à filha-aprendiz que o ciclo existencial de tudo que vive no

universo tem tempo marcado, uma realidade da qual não se pode fugir.

Outros indícios, entretanto, evidenciam que, apesar da referência ao ciclo

existencial enquanto criação divina, a jornada está ligada aos ritos de iniciação, que irão

preparar a filha para entrar num outro estágio de sua existência, talvez, a adolescência,

visto que, antes de iniciar a travessia, a mãe-narradora adverte a filha-aprendiz que, na

vida, é preciso ser obediente e comedido, a remeter à idéia dos primeiros ensinamentos

bíblicos. As virtudes, no plano cristão, dividem-se em teologais, que são formadas pela

fé, esperança e caridade, e cardeais, quando se tratam da prudência, temperança,

força e justiça. Reunidas, elas somam as sete virtudes necessárias para ser um bom

cristão, a estabelecer a base da vida moral para o catolicismo. Retoma-se, por

conseguinte, o número sete que, para citar CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p.

826-827), “indica o sentido de uma mudança depois do ciclo concluído e de uma

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renovação positiva”, a simbolizar a totalidade em movimento. Por isso, o número sete

liga-se à imagem da Lua, pois cada período lunar dura sete dias e os quatro períodos

do ciclo lunar fecham o ciclo em sua totalidade, para posterior renovação, a evidenciar

que a imagem da Lua, em QH, contribui significativamente para marcar o movimento

espiralado da narrativa, como nestes fragmentos:Atravessamos o campo ao viés e de costas para a Lua, foi-se minguante, alinhamosnossos pés e lá ficamos expostas ao relento. Minha mãe, sereníssima, esperava.[...] As aves noturnas piavam e a lâmina da Lua estava suspensa às nossas costas.[...] mas ao romper cautelosa a manhã, sem mais Lua, com a romaria transportada aoutras plagas [...].[...] Então, ainda em silêncio, minha mãe aninhou-me e, comigo em seus braços,iniciou a travessia em meio à escuridão e ao vento. [...]Relembrando as luas que haviam passado, dei-me conta ainda uma vez, que eutomara a dianteira [...].Quando a Lua surgir já estará acesa a fogueira e nessa ordem aqui determinada,lançarás nela primeiro a alfazema [...]. Verás então subir pelos ares o verdadeiro olorao assomar no céu a Lua plena. (Qh, p. 15-16-18-21-22 – Grifos do texto).

A imagem da Lua, ao longo da jornada, é uma presença constante. Por

atravessar diferentes fases e, por conseguinte, mudar permanentemente de forma, a

Lua, segundo CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p. 561), simboliza “a dependência

e o princípio feminino”, o que implica na periodicidade e na renovação. Nessa dupla

função, arrisca-se afirmar que, em QH, a imagem da Lua está ligada ao crescimento e à

transformação da narradora-protagonista, visto que, no quinto dia da jornada, ela já se

sente “adulta e ancestral” (Qh, p. 18), a reforçar a idéia dos rituais de iniciação.

Observa-se, à luz desses fragmentos, que a imagem da Lua segue uma

seqüência de ritmo biológico à medida que nasce, cresce, decresce e desaparece, a

significar que sua vida depende da lei universal do vir-a-ser, do nascimento e da morte.

Entretanto, sua morte não é definitiva, a criar um movimento de eterno retorno às suas

formas primevas. Por isso, essa periodicidade ad aeternum faz dela um astro do ritmo

da vida, o que, por analogia, se aplica à lenda da cidade branca que sempre retorna, na

voz de algum contador, para o seio da comunidade.

Entende-se, nessa perspectiva, que a jornada não se trata, como pode

parecer em função do tempo marcado em apenas sete dias, de um mero rito de

passagem de uma faixa etária a outra, pois essa iniciação, ao dividir-se

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progressivamente em graus a partir de inúmeros rituais, permite que a filha-aprendiz

seja instruída nas tradições míticas e nos costumes sociais da comunidade.

Ao tratar sobre o assunto, Mircea ELIADE (2001, p. 152-153) ensina que toda

iniciação implica numa “experiência paradoxal, sobrenatural, de morte e ressurreição,

ou de um segundo nascimento”, a evidenciar que o iniciado, para conseguir alcançar

uma vida mais elevada tanto no plano espiritual quanto cultural, precisa enfrentar

inúmeras provas, até mesmo de resistência física, pois é durante esse treinamento que

ele “aprende os segredos sagrados: os mitos relativos aos deuses e à origem”. Por isso,

a narradora-protagonista, em QH, ao longo da jornada, enfrenta uma série de provas

iniciáticas, que, além de provocarem inúmeros tipos de sentimentos, pintam um cenário,

muitas vezes, sombrio e misterioso, como nestes fragmentos:

1. No segundo dia ao levar-me para fora e empreender a caminhada, ainda faziaescuro. Minha mãe tinha pressa. Meus pés, de muito calcarem a terra, começaram asangrar, provocando a impaciência de minha mãe que precisou desviar trajeto àprocura de um fio d’água para lavar-me as escoriações. [...].Uma procissão de mortos-vivos, um não mais acabar de vultos de passagem.Passavam ao largo em movimentos que me pareceram repetidos como sevagueassem e voltassem unicamente para nós, que havíamos chegado sem atraso,que não faltáramos ao encontro. [...].Minha mãe, braço esquerdo levantado, proferia devagar nomes, nomes, nomes queaté então eu nunca ouvira proferidos mas que sabia pertencer a pessoas, uns muitosnomes de santos e pecadores. [...].Bateu-me leve tremor e iniciei baixinho, repetindo os nomes após a fala da minhamãe, nossas vozes alternantes que o eco espalhava, recolhendo depois mortos enomes, as nossas vozes, a reza deles. (Qh, p. 15-16).

2. No quarto dia, precipitou-se em correntes a tempestade e minha mãe valeu-sedela para fazer-me a narrativa das águas e das lágrimas. Sem dor não provarás dosal nem verás esse campo tremular em tuas resinas. Para fazer-me crer nainutilidade das lágrimas, desfiava histórias de ludíbrios, irremediável fado de todosnós. Pelo sal serão lavadas as feridas abertas pelas inconfidências e perjúrios,ensinava-me. [...].De olhos secos minha mãe provocava em mim meu sangradouro [...], repassandodevagar legendas de mágoa em espaço que sabia semovente, transitório. [...].Nesse contar e recontar, contou-me da esfera que gira, do catavento, da Lua e datranslação e da rotação da terra. (Qh, p. 17).

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O segundo dia da peregrinação, conforme apresentado no primeiro

fragmento, inicia à noite32, visto que ainda se fazia escuro quando mãe e filha iniciaram

a travessia rumo a mais um dia de ensinamentos.

Para os rituais de iniciação, o período noturno representa um espaço de

especial relevância, visto ser o melhor momento para a purificação do espírito, da

memória, dos desejos e dos afetos mais sensíveis. Além disso, arrisca-se afirmar que,

ao recomeçar a jornada antes do amanhecer, a mãe-narradora deixa transparecer o

desejo de ensinar à filha o próprio movimento do tempo, que também se marca pelo

percurso do dia e da noite, em ciclos alternados, pois a morte do dia sempre implica o

nascer da noite, a representar um movimento de eterno retorno.

Na seqüência, a filha-aprendiz é submetida, em razão da longa caminhada, à

primeira prova de resistência física, pois o sangramento dos pés denuncia a flagelação,

a evidenciar outros ensinamentos: a dor da qual não se pode fugir, a cura para os

males, o desvio da trajetória e a própria imperfeição do homem expressa na

impaciência da mãe.

Resolvida a primeira dificuldade, mãe e filha recomeçam a trajetória, que

culmina com a passagem de uma procissão, a tornar o cenário carregado de sombras e

mistérios. A imagem dos peregrinos (vultos de passagem), segundo CHEVALIER e

CHEERBRANT (2005, p. 709), exprime tanto o “caráter transitório frente a qualquer

situação” quanto o “desprendimento interior, em relação ao presente, e a ligação a fins

longínquos e de natureza superior”, a remeter à idéia de purificação.

A princípio, a filha apenas observa os gestos maternos para, posteriormente,

tomada por leve receio, repetir as rezas e os muitos nomes de santos e pecadores,

proferidos pela mãe ao acompanhar as gestualidades dos peregrinos, a evidenciar que

a procissão representa o primeiro rito espiritual imposto à filha, com o propósito de

despertá-la para a fé cristã.

No quarto dia, apresentado no segundo fragmento, a mãe-narradora, por

meio da “narrativa das águas e das lágrimas”, reforça a idéia de que a dor, física ou

32 Segundo CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p. 640), esse é o período mais propício para os ritos deiniciação porque a noite apresenta um “duplo aspecto: o das trevas onde fermenta o vir a ser, e o dapreparação para o dia, de onde brotará a luz”.

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espiritual, é uma condição inevitável para a existência de tudo que vive no universo. Por

isso, as lágrimas são inúteis uma vez que ninguém pode fugir aos percalços impostos

pela vida, questão que ela justifica com base em algumas notações bíblicas que, no

texto, estão grafadas em itálico, certamente para destacar a vocalidade.

A trajetória da travessia, ao longo da jornada, começa fechar no sexto dia à

luz das dores de um parto, que a mãe auxiliou:

Ao entreabrir porta que rangia, deparamos a um canto com mulher jovem epadecente, quase desnuda, a carecer de auxílio, alívio para as dores do parto.[...] agora sob as ordens e controle da voz de minha mãe, encorajando-a empalavras doces, animando-a em nome do Altíssimo. [...].Abria-se naquele momento para mim, o livro da vida. [...].Os restos do parto confiados a mim foram enterrados ao lado da casa. E assim eu fizcom minhas próprias mãos e aprendi.Ao penetrar de novo os limites do lugar na caminhada de volta, minha mãe diminuíaa marcha. Notei-lhe os ombros caídos e a cabeça curvada demais. Obedeceu-mehumilde quando pedi que descansássemos. [...].[...] ela, tomando de minha mão esquerda, quedou-se por longo tempo correndodevagar os dedos por toda a extensão da minha palma, contornando vias, abrindopassagem, descrevendo órbita, procurando senda, a circular o que parecia ser início,fim, entremeagem...Foi nesse passar sem precisão de mais nada, que a ouvi retomar o fio da história eestendê-lo ao alcance dos meus ouvidos. O resto do caminho de volta venceu apoiada em meu braço e em silêncio. Palavrasditas, gestos feitos. Por isso não chorei quando, no dia seguinte, sétimo dia, elamorreu em paz deixando-me história de imaginação, iniciando-me em reinoinexaurível e tantas vezes insondável. De seu regaço retirei papel dobrado, últimatarefa minha e solitária. (Qh, p. 19-20 – Grifos meus).

Percebe-se, à luz desse fragmento, que o nascimento da criança implica o

nascimento da filha-aprendiz para a vida, a significar que, ao cumprir a jornada,

simbolicamente, ela morre para a infância e, por conseguinte, renasce para o início de

um novo ciclo existencial.

Processo inverso ocorre com a mãe-narradora, visto que, ao retornar, volta

apoiada na filha, a demonstrar visível cansaço frente ao ciclo existencial que tende a

terminar. Entretanto, ainda encontra forças para, em gestuais de quiromancia33,

33 Cabe assinalar que os gestuais de quiromancia remetem à idéia de oráculo, a significar que seencontra, em QH, também ressonâncias greco-latinas. Os oráculos representam a mais antiga e

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percorrer as linhas da mão da filha, na tentativa de prever seu futuro. Um futuro que se

estende aos seus ouvidos pela retomada do “fio da história”, a significar que, naquele

momento, a mãe transfere para a filha o fardo de continuar a disseminação da lenda da

cidade branca.

Nessa perspectiva, ao metamorfosear-se em cajado, que apóia a mãe

peregrina, a filha cumpre a última prova de resistência física referente ao percurso da

jornada, visto que ao sustentar o peso da mãe, por conseguinte, carrega também a

história, a significar o fim de uma história e o início de outra.

A mãe regressa para a morte, a fechar o fim de uma história; a filha, em

contrapartida, regressa para o recomeço, a evidenciar o início de uma nova história, de

um novo ciclo. A morte da mãe, portanto, confere-lhe autoridade para dar continuidade

à lenda da cidade branca que, a partir desse momento, será recontada em sua voz e

sob um novo olhar, visto que, ao tomar consciência das verdadeiras dimensões da

existência, recomeça a trajetória de uma nova travessia, como mostra este fragmento:

Dei-me conta de que a morte de minha mãe passava a delimitar o tempo, que aoreferir-me a ela eu já deveria dizer no tempo em que minha mãe vivia ou quando euera pequena e tinha minha mãe por perto.Absorta nesses pensamentos tristes, dei-me conta, uma vez mais, de queprincipiava, a partir daí, meu exercício de narrar e que, ao olhar para frente e seguirem direção ao rio, deixava para trás a casa, meu abecedário, meu tempo deprefação. [...].Nem tive precisão de olhar para trás. Já era o dia seguinte e o Sol que me fizeradespertar anunciava o dia pelo meio. Pus-me a caminho. Deparei-me dona, senhorade mim, possuinte dos meus próprios passos, sem saudades. [...].Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela não chegousozinha. Veio ela e veio rio, veio o fio da história, explícito luar a tudo envolver, fioretomado e devidamente seguido, [...]. (Qh, p. 21-23 – Grifos meus).

Observa-se, nesse fragmento, que a narradora-protagonista inicia seu novo

estágio existencial exatamente no oitavo dia, que, por analogia à Criação do Mundo,

generalizada das formas de superstição, a originar o desejo de descobrir e interpretar a vontade divinacomo norma de vida do homem e de seu destino. Entre os gregos, destaca-se o Oráculo de Delfos ouTemplo de Apolo que, segundo Junito de Souza BRANDÃO (2003, p. 101), durante muitos séculos,serviu como local onde os peregrinos, vindos das mais diversas partes do mundo helênico, consultavamas Pitonisas, sacerdotisas oraculares, para saber sobre o futuro.

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sucede aos seis dias da criação e ao Sabbat, período que também durou a jornada

empreendida em conjunto com a mãe.

A tradição cristã, segundo CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p. 652-653),

“faz do oito um acabamento, uma completude”, o que implica na “ressurreição,

transfiguração e anúncio da era futura eterna”. Por isso, esse número comporta tanto a

ressurreição de Cristo quanto do próprio homem. Nessa perspectiva, arrisca-se afirmar,

que a narradora começa o reconto da lenda no oitavo dia para criar a idéia de uma

dupla ressurreição: a mãe, pelo reconto da lenda; e, dela própria, pelo ato de contar.

Na essência, a vida é movimento e transformação, a evidenciar um sentido

de travessia. Por conseguinte, a história é o reflexo da própria vida. Nesse sentido, a

lenda da cidade branca adquire suas verdadeiras proporções por meio da memória da

narradora-protagonista que, ao recontá-la, mantém viva a tradição na memória da

comunidade, a evidenciar que, enquanto ela mantiver viva na memória a imagem

materna, a lenda permanecerá ad aeternum.

Assim, na mais completa solidão, a evidenciar que só tem a Lua por

companhia, a narradora, ao juntar lembranças e imaginação, na segunda parte de Qh,

começa a contar sua história, entrelaçada a outras histórias, que se desenrolam numa

ambientação carregada de muita dor, angústia, dúvidas, pavor, vigília, mistérios, nos

momentos mais oníricos da narrativa.

Essas histórias, visivelmente encaixadas à primeira parte de Qh, denotam

uma travessia transcendente entre o imaginar e o narrar em ato, a sugerir um percurso

muito difícil, quase intransponível, pois, em analogia à passagem ininterrupta das horas,

tudo é muito transitório e evanescente.

Nessa paisagem, entre textos tão fragmentados, a palavra adquire uma

mobilidade escorregadia e, por conseguinte, desloca-se para a região dos sonhos, para

lugares inusitados onde se encontram muitas mortes, transformações e mutações,

como se a narradora, pelo ato de contar, procurasse alcançar um estágio plenificador,

absoluto – o plenilúnio.

O estudo do sonho não faz parte desta dissertação. Entretanto, em razão

dessa ambientação onírica que predomina em quase toda a narrativa Qh, faz-se

necessário assinalar que o universo onírico possui constantes que dependem

simultaneamente da vida psico-fisiológica, pois o sonho é um fenômeno do sono e da

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estrutura da imaginação. Por isso, o espaço onírico é montado por vários episódios,

aventura carregada de muitas peripécias, cujo movimento fílmico permite ao sonhador

deslocar-se, entre o ir e vir do inconsciente, rapidamente por vários cenários, a causar a

impressão de que, num espaço de um ou dois minutos, o sonhador percorreu várias

horas, ou até anos. Isso levou Fréderic GAUSSEN (Apud CHEVALIER e

CHEERBRANT, 2005, p. 844-845) à conclusão de que o “sonho aparece como a

expressão mais secreta e mais impudica do sonhador”.

Mesmo sem citá-lo em nenhum momento, Gaston BACHELARD (1988, p. 20)

percorre as idéias aristotélicas, ao fazer uma inevitável associação entre a imaginação

e a memória, visto que se torna difícil distingui-las quando se está diante das imagens

amadas, guardadas, desde a infância, na memória. Para ele, “essas lembranças que

vivem pela imagem, na virtude da imagem, tornam-se, em certas horas da vida,

particularmente no tempo da idade apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio

bastante complexo: a memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da

lembrança se torna o germe de uma obra poética, o complexo da memória e

imaginação se adensa, [...]. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra

a memória” (Grifos meus).

São essas imagens, frutos da imaginação e da memória dos tempos

primevos, que irão povoar as histórias contadas pela narradora-protagonista. As

descrições, por conseguinte, não seguem um tratado racional, pois, como um delírio, a

lógica é rompida pelo discurso fantástico que extrapola a rede de significações e

representações dos signos, que se renovam e subvertem a própria realidade à medida

que abandona a consciência para explorar o inconsciente, como neste fragmento:

Às minhas costas, o Sol partia-se escarlate e eu precisei descansar em algumasombra para melhor abstrair a vermelhidão. Recostado o corpo em árvore velha,meu pensamento fugiu e fugiu. À medida que concentrei lembranças e soltei aimaginação, foi como se tivesse tomado assento em dorso de cavalo de fogo a darsaltos e coices, a escavar o chão, a espanejar o ar, a relinchar, a galopar e estancar,a dar meia volta e sacudir enlouquecido a crina para que meu corpo fraquejasse,para que eu não tivesse mãos tão fortes para a sustentação. (Qh. P. 24 – Grifosmeus).

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Como nas histórias infantis34, à luz desse fragmento, a narradora-

protagonista entra no mundo imaginário quando, ao recostar-se na árvore, começa a

dormir, ato marcado pela afirmativa “meu pensamento fugiu e fugiu”, a evidenciar uma

junção entre a memória e a imaginação. Instaura-se na narrativa, a partir desse

momento, uma viagem, aos moldes da jornada dos sete dias, que obriga a caminhante

atravessar por espaços inusitados, sombrios, inebriantes, tenebrosos, misteriosos e

exuberantes, onde o sobrenatural aparece com toda força, a tecer as malhas do

desconhecido.

É assim que, inexplicavelmente, a narradora toma assento no cavalo de fogo,

a criar uma cena mesclada de aturdimento e estranheza. Para lembrar CHEVALIER e

CHEERBRANT (2005, p. 203), o cavalo simboliza o “inconsciente” e, quando ligado ao

fogo, apresenta um “poder destruidor”, a causar medo e pavor, pois representa o lado

tenebroso que está sempre no interior do ser, como a mostrar que não há fronteiras

eternas, pois a vida é uma trajetória de possibilidades. Assim, como se fosse uma cena

fílmica, a narradora, ao unir a imagem do cavalo enfurecido à mulher, no plano do

animalesco, apresenta uma espécie de ato sexual arrebatador, a gerar um efeito

inverso do imaginado, visto que culmina com o desprazer em razão da dor provocada

pelas feridas invisíveis que lhe queimam o corpo.

As cenas, numa seqüência muito veloz, misturam-se: medo, dor,

enlouquecimento, busca de auxílio na imagem materna e o soluçar, a projetar uma

imagem de si totalmente enovelada. De modo que se torna indiscutível a influência da

montagem cinematográfica nesse modo de contar histórias, pois as cenas, nesse

movimento espiralado, são formadas por imagens tão instantâneas que, muitas vezes,

não é possível distinguir se a narrativa tem origem naquilo que a narradora vê ou no

que ela sonha. Essa diluição de fronteiras entre a visão e a imaginação revela apenas

aquilo que se acredita ter sobrevivido no espaço mais recôndito da memória: a lenda da

cidade branca, pois, para lembrar Gaston BACHELARD (1988, p. 99), “a imaginação

matiza desde a origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da

memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores”.

34 Cabe assinalar que, apesar de QH não ser uma narrativa direcionada para crianças, o modo de contarassemelha-se aos recursos usados na literatura infantil. Apenas para exemplificar, a maneira como a

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Na seqüência giratória das imagens, o cavalo, antes enfurecido, reaparece

com ares de docilidade, a restabelecer a paz, para levar a narradora, em trote suave, à

outra paisagem, como mostra o fragmento:

Parecia à minha espera e era um cavalo [...]. Tive medo pela primeira vez. [...].Enquanto eu me aproximava dele, meu coração se acalmava. Passei-lhe a mão nopêlo, [...] alcei-me para o dorso do animal e deixei-me levar em trote ameno para umlugar que embora eu não soubesse, não me arrancava o mais leve sobressalto.Não sei por quanto tempo estrotejamos, mas ao vencer com esforço caminhoelevado, [...] ele estancou irredutível. Desmontei e olhei em volta. Havia pasto pobre,havia ruínas de casa, havia vegetação pelas janelas desmoronadas, pedra edesolação pelos caminhos.[...] Com pouco eu já estava à porta de um casebre quase devastado de onde mesaiu um som roufenho, um riso de debilidade, um vulto de mulher velha. [...][...] fileiras de santos, imagens carcomidas pelo tempo. Santo Onofre, São Jerônimo,São Cristóvão e Santa Filomena, os nomes saindo na voz titubeante daquela mulhervelha.A fala obscurecida e os sons inarticulados principiavam nela para ornar discurso detartamudez, [...]. Eu queria sair, eu queria ficar, a mulher velha não fazia o gesto quemudasse o instante, os ouvidos dela não escutavam o meu respirar, a minha seded’alma em saber, em ter esclarecido aquele encontro. (Qh, p. 25-26).

Cabe assinalar que, nessa parte do universo onírico, as ressonâncias bíblicas

e greco-latinas mesclam-se às imagens que, por analogia, se confundem aos contos de

fadas e infantis, às artes de prever o futuro, a gerar um ambiente carregado de

mistérios.

Percebe-se, nesse fragmento, que a narradora, depois de perder o medo

inicial, deixa-se levar pelo cavalo, a funcionar como seu guia, para rumo incerto e não

sabido, a deixar claro o início de uma nova travessia.

Como num passe de mágica, o cavalo parou irredutível diante de um lugar

devastador, a indicar que não lhe era mais possível prosseguir. Por isso, a narradora

desmontou e, depois de observar o lugar à semelhança dos gestos maternos, seguiu

sozinha a caminhada. Na seqüência, chegou à porta de um casebre, onde encontrou

uma velha roufenha que parecia à sua espera.

narradora-protagonista entra no mundo da fantasia equipara-se, pelo ato de sonhar, ao recurso usadopor Lewis CARROLL para levar Alice às aventuras no País das Maravilhas.

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A imagem da mulher velha, por analogia, equipara-se ao eremita, visto que

vive isolada onde medita e, a julgar pelos santos enfileirados, faz suas orações e, por

conseguinte, está sozinha, bem próxima de Deus. Fruto de muitas peregrinações, o

eremita é um mestre secreto, que comporta larga experiência. Logo, quem o tem por

perto, mesmo por um breve instante, recebe sua energia positiva. Além disso, a velha

roufenha, pelo aparente dom de prever o futuro, resgata a imagem dos oráculos, o que

lhe confere um poder sobrenatural e mágico.

As imagens dos santos, além de marcarem a passagem do tempo em função

da aparência gasta, também representam uma fonte de energia e proteção. Nota-se

que a narradora nomeia as imagens sagradas: Santa Filomena (Virgem Mártir –

atravessada por flechas); Santo Onofre (Eremita – guardião dos tecelões); São

Jerônimo (Intelectual / Eremita – tradutor das Escrituras Sagradas) e São Cristóvão

(Portador de Cristo – Protetor das travessias), a totalizar quatro imagens, número que

se liga à cruz e, por conseguinte, segundo CHEVALIER e CHEERBRANT (2005, p.

759-760), significa a plenitude, a universalidade e a totalidade do criado e do revelado.

O casebre onde mora a velha, também por analogia, assemelha-se à cabana

do eremita, que, pela beleza de sua simplicidade, segundo Gaston BACHELARD (1974,

p. 375), “pertence às lendas. É um centro de lendas. Uma gravura príncipe”, visto que

aprofunda as lembranças vividas, desloca as recordações vividas, para se tornarem

lembranças da imaginação.

Diante de tamanha solidão e engastada num ambiente devastador, a

narradora demonstra grande inquietação diante da mulher velha que não consegue

responder às suas perguntas, a causar-lhe uma espécie de atordoamento e

incontrolável vontade de ir embora, como mostra o fragmento:

Vanitudes, vanidades... [...].Na roldana do poço um ranger de corda veio como sinal a elucidar o instante, aconfirmar a mim que, mesmo assemelhadas, as horas não estavam a repetir-se. [...]sem saber se era dia ou se era noite, fiz-me a caminho em rumo torto, [...] desejo sóde apartar-me dali [...].[...] só um desdobrar de vazio, [...] a ausência de tudo. [...] sem saber se era noite ouse era dia, rolei por terra cuidando que chegara a algum lugar. [...] era somente [...]meu andar em círculo, a voltear o poço, o casebre, eu em desamparo e rodopio, aperder o rumo e tontear, ébria de mim em igual lugar [...].

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Vanitudes, vanidades... O fio da história emaranhado, [...]. Precisei invocar todos ossantos [...], que viessem em meu auxílio e me afastassem dali [...], seguir em frente,procurar e encontrar, procurar. Em vão eu me afastava e avultava o círculo, alargava o giro, meu corpoatado ao centro da imensa roda que também girava com meu corpo. [...] Minha mãee eu gritei em voz tão alta [...] meu corpo ao rodopelo, qual girador veloz, corrupioem ventania e amarfanhado, a poeira subindo, o rosto enterrado no chão, o joelhosangrando, [...] o medo da loucura e do delírio, a voz da noite, o gemido e o rodar.[...] tal força de vendaval a empurrar-me os pés, rolei por precipício que não tinhafim. Enfim rolou meu corpo por depressão profunda, o oco, o vazio, a queda livre e,em desespero, implorei que chegasse em algum lugar. (Qh, p. 27-28 – Grifos dotexto).

Visivelmente tomada pelas incertezas, pela vaguidade e perplexidade frente a

tudo que vê e sente, a narradora conclui que tudo não passa de “vanitudes,

vanidades... (sem causa, sem motivo e transitório), a causar um efeito oracular que, por

analogia etimológica, se equipara ao brocardo latino “vanitas vanitatum, et omnia

vanitas” (“vaidade das vaidades, tudo é vaidade”35), a significar que, na travessia

existencial, tudo é transitório, enganoso, passageiro, vazio, onde todo centro é

indeterminado e toda travessia é aparente.

A vontade de desvencilhar-se daquele lugar e o medo do desconhecido

montam cenas de completo aturdimento, onde é possível observar que o tempo, ao

passar rapidamente, enovela-se à narradora, a causar um movimento muito rápido,

indescritivelmente veloz. Nesse turbilhão de sensações, no girar do tempo e do homem,

a narradora clama pela imagem amada: “Minha mãe”, ela grita, a evidenciar a junção

entre a memória e a imaginação.

Esse momento é a representação exata da espiral, símbolo carregado de

significações, que direciona ao Caos, à confusão e à ininteligibilidade, cujo turbilhão

traduz a evolução no seu movimento helicoidal a partir do centro ou de uma involução

no regresso ao centro.

Nessa perspectiva, a narradora, ao enovelar-se no tempo, metamorfoseia-se

em espiral, a representar um centro bloqueado que jamais chegará, como define

Gaston BACHELARD (1974, p. 495) “o ser do homem é um ser não fixado [...]. O ser

35 Cumpre assinalar que a tradução dessa expressão diz respeito às palavras contidas no Livro deECLESIASTES (Bíblia Sagrada, 2001, p. 639, 1:2), que trata sobre a vaidade de todas as coisasterrestres.

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não se desenha. Ele é cercado pelo nada [...] E se é o ser do homem que se quer

determinar, nunca se tem certeza de estar muito perto de si, recolhendo-se em si

mesmo, indo até o centro da espiral”. Entretanto, cabe assinalar que esses dois

movimentos, mesmo contraditórios, são um só, pois representam, simultaneamente,

queda e ascensão. Por isso, a violência desse movimento é dirigida por forças

superiores (“precisei invocar todos os santos”), a representar uma intervenção

extraordinária no rumo da vida.

Assim, numa queda vertiginosa em abismo profundo, termina o fragmento

apresentado, a demonstrar que o homem, enquanto ser, não pode viver

horizontalmente e, por conseguinte, o seu percurso sempre implica numa ascensão e

numa descensão. Por isso, para lembrar Gaston BACHELARD (2001, p. 11), todo “sono

é quase sempre uma queda”, cujo medo de cair implica numa realidade psíquica de

todas as horas.

Nota-se que, a exemplo da montagem cinematográfica, na seqüência da

cena, a narradora reaparece em lugar incerto, como mostra o fragmento:

[...] meu sentimento de desapoio se fez retrocedendo como se repatriada eu meencontrasse, a paz restituída, [...] minha alma ao fim, endereçada.[...] o mundo transmudara em ondulações de um vasto campo, em asas que batiame alçavam vôo, em tintas de colores variadas.Estariam meus olhos a despedir-me do mundo que eu malmente começara aperceber? (Qh, p. 29).

Abre-se, nesse fragmento, uma paisagem pictórica tão deslumbrante, que a

narradora, ao sentir-se repatriada diante de tanta paz, pensa na possibilidade de ter

morrido, ocasião em que, numa relação estreita com a natureza, profere um rosário de

lamentações, cantigas orais à moda de Provença, a marcar, quiçá, o momento de maior

musicalidade em QH, como neste outro fragmento:

Ai de mim, pássaros da noite! Ai de mim, urtigas deste campo! Ai de mim, que nãomorri ainda e o desenlace teima em se alongar! Ai de mim, que ainda não são meusos atados desse laço porque o fio se põe distante dos pontos de arremate! Ai demim, que as agulhas furam às cegas! Que foi feito do vento a desfazer para semprea estrela de meu braço? E o olho do céu, vigilante, a velar-me nessa travessia?

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Minha voz buscava os quatro ventos, mas o eco a desdobra-se retornava para quesó eu ouvisse, ai de mim![...] Entreguei-me ao desfalecimento e [...] aconcheguei-me em leito de verdura, covarasa, ouvido colado ao peito da terra por onde subia a voz de minha mãe emacalanto. Exaurida, quedei-me e nesse alento adormeci.

Observa-se que, aos moldes das cantigas provençais, esse tom confessional,

a confluir ritmo e metro, promove todo o extravasamento do Eu lírico, cuja vocalidade

marca a retomada da voz em cantochão, a cantar (“ai, ai, ai...”) toda a dor e os

sentimentos mais profundos da narradora, que se mostra dispersa na travessia de

espaço/tempo.

Um lamento, um canto mavioso que, ao ecoar melancolicamente pelos

campos, clama pelos tempos idos, busca saídas, o velho e o novo, a melhor palavra

para o melhor tecido. É, pois, imprescindível contar a história.

Toda essa expressividade lírica provoca, na seqüência da cena, um

cruzamento de vozes: sem forças, a filha chora; a mãe acalanta. De modo que, ao

sentir-se protegida pela voz materna, a narradora dorme, a evidenciar o fechamento de

um espaço para a abertura de outro.

É interessante notar que a narradora dorme e sonha dentro do próprio sonho,

pois não se pode esquecer que ela já estava inserida no espaço onírico. Dizem os

psicanalistas que, quando o sonhador entrega-se totalmente às suas aventuras

oníricas, é comum ocorrer esse tipo de situação, visto que a mudança dos cenários

oníricos depende diretamente dos sentimentos e das emoções que dominam o

sonhador naquele momento, a evidenciar que sonhar no interior de um sonho equivale

a mergulhar no mais profundo da inconsciência. É, pois, pelo sonho no sonho, que a

narradora cria um novo movimento analéptico para encaixar, na história anterior, sua

descida às galerias do mundo subterrâneo. Na seqüência da cena, depois de longa

caminhada, ela é levada por um barco para a terra firme, onde, extasiada pela

paisagem, encontra três vultos:

– Irmão de mim, com que te ocupas [...]? – Ocupo-me dos movimentos do ar, teço a força dos sopros, aragem de ondederivarão os dias e as noites. [...] Teço para ti.

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– Irmão de mim, [...] nada me é possível distinguir [...] há movimento incerto de tuasmãos e emaranhado das linhas também há... – Ocupo-me do encordoado das fibras que descerão ao peito da terra em vigor eseiva. Ocupo-me de vegetação, teço raízes, teço teu chão [...] onde se assentará teudomicílio, [...] casa do teu pai. Teço o fio da lâmina que deixará em pé o que forpreciso para sombrear e alimentar.– Irmão ou irmã de mim [...] teces o que foi ou teces o que será? – Contempla-me porque não tenho tempo para olhar-te. [...] Teço-lhe a alma. Minhaslinhas confirmarão a essencialidade e por isso preparam os âmagos e asintimidades, contexturas, parte inerente. O veio imanente teço e é tudo.

Percebe-se que, apesar do aparente discurso citado, não existe um

intercâmbio discursivo entre as personagens, visto que, ao nomear seus interlocutores

de “irmão ou irmã de mim”, a narradora marca um distanciamento, a impedir que o

diálogo seja concretizado.

Os vultos não se deixam ver e, em movimentos uniformes e espiralados,

tecem o visível e o invisível. O primeiro tece os fios da vida, o segundo tece os fios do

destino e o terceiro tece a alma porque corta os fios da vida, a evidenciar que essas

personagens, por analogia, equiparam-se às fiandeiras mitológicas.

Compreende-se, nessa perspectiva, que esse movimento circular do tecido

ficcional, a indicar a travessia existencial, reafirma os mistérios e a dor que envolve a

árdua tarefa de tecer o texto, criar histórias, contar e recontar histórias de imaginação e

encantamento, visto que a história é o próprio homem. Logo, tecer a história e tecer a

vida, ambas em travessia contínua, é o mesmo que vivenciar a angústia frente à

incerteza da finalização de uma obra digna de ser contemplada.

Na seqüência, a narradora, empurrada pelas vozes misteriosas, é compelida

a sair do vale das sombras para, em outro movimento espiralado (“andar atrás e em

volta” – Qh, p. 34), adentrar, em descida vertiginosa, em mais um abismo. Um “abismo

colossal de inacreditável altura” (Qh, p. 35), ocasião em que ouve muitos gemidos. São

os guerreiros feridos de morte, que pintam um cenário de muita dor e sofrimento, a

gerar a luta da narradora para salvá-los. É, pois, esse sentimento que lhe impulsiona a

subida.

A escalada é íngreme, penosa, a gerar uma mescla de sentimentos:

curandeirismo, na tentativa de salvar os moribundos; medo da morte; dor física e

espiritual; consciência de finitude; impotência diante da morte; vigília; atordoamentos;

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incompletude e tantas outras sensações, a formar um dos cenários mais trágicos e

perturbadores da narrativa. Na seqüência da cena, a narradora, auxiliada pelas três

flechas que cravavam os corpos dos guerreiros, consegue sair do precipício, ocasião

em que um indescritível temporal, como uma gigantesca espiral em fúria, a pintar uma

paisagem fantástica e maravilhosa como nos contos de fadas, fecha a entrada do

abismo, a marcar o retorno da narradora ao estado de consciência e, por conseguinte,

o fim da travessia feita no mundo onírico que a levou viver inúmeras peripécias.

O esmaecimento da memória impulsiona-lhe a seguir jornada, como viajante

de si mesma. Entretanto, ela não está mais sozinha porque ouve vozes que chegam de

bosque. Uma clareira aberta. Uma voz em cantochão. A mesma história: a lenda da

cidade branca. Volta-lhe a memória.

Na seqüência, encontra um menino que, pelos gestos de leveza e

movimentos circulares, denunciou ser deficiente visual, a ignorar as aparências

enganadoras das coisas do mundo e, por conseguinte, o mais sábio de todos porque vê

com os olhos da alma. Talvez, por isso, seja a última personagem a contar histórias,

dentre as quais, destacou “Inês e o poço” (Qh, p. 43).

É esse menino que instiga a narradora para entrar na espiral do tempo pelo

reconto da lenda, na voz em cantochão:

Meu avô, pai do meu pai, tinha um amigo... Pus-me em retirada devagar ao tempode escutar, em me distanciando, a voz em cantochão, abrindo caminho em meio aoarvoredo, palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar...Esperar o final é querer a história, é merecê-la pelo direito de espera, é possuirinfinitamente, ad aeternum... (Qh, p. 43 – Grifos do texto).

Esse final, conforme foi focalizado no início desse capítulo, não se trata de

um recurso in media res. Compreende-se que essa repetição ipsis literis da lenda, pelo

reconto da voz em cantochão, trata-se do procedimento denominado de auto-encaixe,

que Tzvetan TODOROV (2003, p. 125-126) diz ocorrer quando uma “história encaixante

se encontra, num quinto ou sexto grau, encaixada por ela mesma”, a representar o

ponto mais alto do processo de encaixamento. Em QH, esse procedimento ocorre para

mostrar que a lenda da cidade branca sobreviveu na performance dos gestos e da voz

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dos muitos contadores, a evidenciar que ela continuará, daí por diante, infinita e

circular.

Nessa perspectiva, a lenda da cidade branca reflete os todos coerentes da

narrativa, que envolve todas as histórias contadas, enquanto processo de criação, a

narradora-protagonista (espelho da escritora) e o leitor, a significar o co-partícipe na

travessia de todo esse processo de conto e reconto ad aeternum. Assim, todas as

histórias estão encaixotadas uma dentro da outra e, em todas elas, o objeto refletido é a

leitura do leitor atento que, no jogo do saber olhar, deve procurar nos vazios os elos

significativos que montam a narrativa, a gerar a grande temporalidade das horas

lembradas, como é possível observar no seguinte diagrama:

TEMPO-ESPAÇO DE QUINZE MINUTOS

NARRADORA-PROTAGONISTAINTÉRPRETE

PRESENTE (Lembrança e Imaginação)

Os Anjos (2)

A região dos mortos (3)

Poder da palavra (5) Nascimento / A Lenda da Cidade Branca Destino

(Texto Oral) (4) Isolamento / Solidão (1) (6)

Insatisfação interior (7)

A passagem do tempo

(8)

Hs As rezas / Tragédias / FantasmasHistória e pré-história (9)

(10) Os fantasmas interiores Histórias que surgem (11) da memória

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(12) A origem: Histórias de assombração / onde tudo começou Memória dos velhos

A criação artística: (15) (13) pintura e literatura

(14)

LEITOR (Ouvinte Silente)

PRESENTE (Narrador / Intérprete da lenda)

Nessa rede de relações entre os eventos narrativos, compreende-se que a

cidade branca é o grande ícone que realiza a leitura. Ela é o diagrama da própria

memória e, por conseguinte, equivale ao tempo mínimo de quinze minutos dessa

memória-imagem para que sejam feitas ligações novas e divididas. Nesse sentido, a

cidade tem que ser branca para poder receber todas as cores, todas as matrizes de

idéias, todas as interpretações da lenda, focalizadas por meio das imagens que ela

oferece ao leitor. Por isso, cada fragmento da lenda que adentra para compor a

narrativa são só imagens que pintam cenários mesclados de sensações várias como

quem pinta uma tela que, em alta velocidade, vai se unir à outra, a gerar o todo de um

cenário que se mostra mesclado, e cromático, de todas as cores.

Assim, a cidade branca, ao representar o espaço branco da memória, é, aos

poucos, construída conforme a imaginação do leitor, em conjunto com os próprios

fragmentos da lenda que permaneceram na memória da narradora-protagonista. De

modo que o leitor passa a ser o continuador da lenda e, por conseguinte, o grande

responsável pela preservação e continuidade da tradição.

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FINAL DE UM QUARTO DE HORA

As minhas histórias nascem de imagens, de gestos, deolhares, de figuras e quando digo isso... Acho que oque eu quero dizer é que elas nascem num espaço queé o espaço da memória e transitam para um outroespaço que é o espaço da escritura. Esse percurso éque é o mistério.A memória [...] é um armazenamento de coisas. Entãoessas imagens estão lá e no momento em que elasfazem um percurso para o espaço da escritura elastambém atravessam o tempo e se tornam atemporais.(Maria Lúcia MEDEIROS, Vídeo-documentárioEscritura Veloz, 1995).

Este trabalho investigativo teve o propósito de verificar a escritura de Maria

Lúcia Medeiros, enquanto produto da ação da memória e da voz, a exibir as formas de

um conto oral em sua estrutura narrativa híbrida.

Para responder a essa inquietação, partimos de dois pressupostos: a

natureza ambivalente da narrativa em primeira pessoa, ao nível do discurso, gera a

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fusão de duas enunciações; e, os contos estudados presentificam uma narrativa

memorialista experimental à espera de um gênero em forma, questões que, pela própria

dificuldade de compreensão do texto, foram trabalhadas em conjunto ao longo de toda

a trajetória.

Observamos, sempre com o olhar voltado para essas duas questões, que a

escritora foi ardilosa ao construir QH, visto tratar-se de uma obra estilisticamente

complexa e, por conseguinte, de difícil penetração, a persuadir o leitor que, se não

estiver atento às malhas do tecido textual, certamente não conseguirá compreendê-lo

ou interpretá-lo.

Certa vez, ao posicionar-se sobre essa obra, Maria Lúcia Medeiros,

demonstrou comungar dessa percepção, ao confessar sua crença:Ainda voltando àquela idéia dos dois espaços: o espaço da memória e o espaço daescritura, esses dois lugares. Eu acredito que Quarto de Hora é o percurso, essaviagem, a viagem mais difícil, o percurso mais difícil. Daí existir nesse percurso, queé o Quarto de Hora, muitas mortes, mortes simbólicas, claro, e transformações emutações e modificações.36

A primeira leitura de QH revelou-nos um texto, intitulado Qh, cujo ponto final

enceta o seu próprio início, uma história que vem desde os tempos mais remotos, na

voz de muitos contadores que se cruzam entre os tempos, a remeter uma idéia de

circularidade.

Uma voz que veio do amigo, do avô paterno, do pai, da mãe, da filha

(narradora-protagonista), que repassou ao leitor, e este em conjunto com a narradora-

protagonista, ouviu de uma voz em cantochão, que contava em roda aberta a mesma

história, a indicar um movimento espiralado sem início, sem fim e sem intermédio. Por

conseguinte, enquanto existir na memória de alguém alguma referência sobre ela, a

história permanecerá infinitamente, o que nos fez concluir que o edifício ficcional de

Maria Lúcia Medeiros, por meio do conto e reconto da lenda, funda-se na ilusão do

relato oral, presentificado na voz em cantochão que representa toda a performance da

oralidade da narrativa.

36 Vídeo documentário Escritura Veloz (1995), que focaliza a vida e a obra da escritora, editado porMariano Klautau com produção de Cláudio de La Roque.

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QH, nesse panorama, não se resume simplesmente no contar e recontar da

lenda, que vem “do” e volta “para” o coletivo, pois, a partir do momento que a história é

repassada para a narradora-protagonista, ela desdobra-se, nos vãos da memória, em

outras histórias que atravessam o texto para construir a segunda parte do livro,

intitulada Hs. Histórias essas que, pelos fragmentos da lenda resgatados dos vãos das

lembranças, se encaixam no QH como se fossem fios soltos da própria memória, a

revelar os vazios deixados na primeira parte do livro, a construir uma narrativa, cujo

tecido é de difícil acesso, visto que toda atenção faz-se quase insuficiente para se

compreender a mensagem.

Indiscutivelmente, existe em QH enquanto um todo, uma representação da

leitura como um jogo solitário que se joga a dois, com o leitor em um extremo e a

escritora em outro. Um jogo repleto de armadilhas, pois se leva em consideração que o

texto é montado a partir de uma infinidade de digressões. É como se fosse um

gigantesco quebra-cabeça, onde o leitor deve reconhecer as ciladas dispostas na

narrativa para, cuidadosamente, ele próprio, com base nas pistas encontradas, unir os

fios e recriar o discurso arquitetado pela linguagem.

Essa idéia de transferência ou equivalência de papéis com o valor da leitura-

escritura, de certo modo, é a explicação última para a noção de silêncio compartilhado

tanto pelo leitor quanto pela escritora. De modo que a leitura atenta, em QH, é a única

forma de solucionar os enigmas da linguagem, cuja busca sempre direciona para

caminhos bifurcados, nos quais a escritora aponta para a transferência, a angústia,

personificada na profunda dor que sente, como objeto da própria criação literária. Por

isso, é imprescindível não perder de vista a lenda da cidade branca, fio principal de toda

a trama narrativa inconclusa.

A lenda da cidade branca é, na verdade, uma voz poética, visto que está em

toda parte, é conhecida por cada um, está integrada na voz de todos os contadores, a

representar sempre uma referência segura e permanente. Ela é, nas palavras de Paul

ZUMTHOR (1993, p. 139), “o fio mágico da qual a imagem não se apaga”, mesmo que

todos tenham passado, pois a tradição é “uma série aberta, infinitamente estendida, no

tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um arquétipo”. É, pois, entre os

espaços onde ficam os vazios do tempo, que se constrói a poética de Maria Lúcia

Medeiros.

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Assim, a lenda, por todas as recorrências e/ou interpretações pelas quais

passou, pelas imagens que faz emergir, pela pintura que é recuperada por meio do

trabalho imagético, é a própria poesia. Por isso, a cidade branca, enquanto uma lenda

poética, ao deslocar-se entre os espaços e os tempos, em permanente travessia, deixa

apenas os traços daquilo que era contado, a evidenciar que permanece diluída nas

malhas do discurso que narra como prosa e mostra como poesia.

A contemporaneidade da produção literária de Maria Lúcia Medeiros reside

no modo como ela constrói QH. Um método memorialista oral que está no lendário e na

narrativa da infância, visto que ao trazer as memórias, desde os mais remotos dos

antanhos, revela coisas imaginadas que, pelo ato do contar, busca materializar. De

modo que a palavra de Maria Lúcia Medeiros reside no ícone da travessia à medida

que procura encontrar caminhos inventivos capazes de levá-la à concretização das

coisas imaginadas que, metaforicamente, por meio da dor da saudade dos tempos

primevos, personifica a dor de encontrar a essência do ser poético. Daí a própria

escritora reconhecer QH como uma viagem difícil, “o percurso mais difícil”, a evidenciar

que toda essa metamorfose é construída para responder à poesia e à dor do

esquecimento a dissipar-se como palavra.

Essa viagem, para lembrar o crítico literário João Alexandre BARBOSA

(1986, p. 32), quando se trata de textos contemporâneos, não significa apenas a

conquista cumulativa de espaços inusitados, mas a “criação de um espaço em que seja

possível reduzir a multiplicidade individual da linguagem da poesia aos parâmetros

homogêneos da linguagem do poema”, de modo a significar que a travessia é a própria

linguagem, efetivamente.

A poesia, em QH, faz-se pela própria expressão, na imagem da lenda, a partir

da qual Maria Lúcia Medeiros, ao construir a imagem da espiral em equivalência à

imagem da própria memória coletiva, traveste a prosa em poesia, a criar um tempo

espacializado, pois o que ela deseja é encontrar a palavra na sua essência, na pré-

verbalidade, o que nos levou a compreender, em definitivo, que QH é um lírico

redimensionado pelo simbólico em divisão, sendo que nas volutas marcadas pelo

movimento espiralado, quando retorna ao centro da memória vocal, pelo reconto da

lenda, faz-se poesia. Presentifica-se. Uma poesia que se performatiza na voz em

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cantochão, memória coletiva que está na origem, no âmago do ser da linguagem, da

voz.

ANEXOS

1. Quarto de Hora37

2. Horas38

37 É uma narrativa longa que forma a primeira parte do livro Quarto de Hora e, conforme comentário deorelha, pode ser classificada como uma novela.38 Representa uma seqüência de fragmentos que formam a segunda parte do livro em referência e, alémde ampliarem a narrativa inicial, fogem a qualquer tentativa de rotulação.

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QUARTO DE HORA

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eu avô, pai de meu pai, tinha um amigo. Vem daí o papel que mecabe nessa história transmudada até os ouvidos de minha mãe, que a confiou a mimpor adivinhar nos meus olhos sinais seguros de curiosidade por histórias de mistérios eencantamentos.

De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa cidade todabranca à beira de um rio não tão largo mas de verdade tão profundo e de águas muitoescuras.

Nesse tempo, os moradores da cidade mantinham hábitos de tal reserva erecolhimento que se algum forasteiro buscasse informações sobre alguém, partiria semconseguir nenhuma fala, e se sorte tivesse, talvez pudesse ver o procurado de relanceao amanhecer que era quando as portas da igreja se abriam para que todos, antes desair para o trabalho, passassem ali horas de adoração a rezar contritos, sem erguer ascabeças.

Organizavam tão rapidamente suas famílias que os jovens não eram vistosnas praças, nem nas esquinas, nem nas mesas de bilhar. Ao insistir com minha mãesobre mesas de bilhar, ela tergiversava, falava em jogos e terminava por retificar osjogos, suprimir praças e confessar que as esquinas ela inventara, inutilizando o colofão.Desse modo também acostumei-me a não pensar nos jovens, imaginando que jovensnão existem ali.

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Os senhores zelavam por suas senhoras e as senhoras retribuíam zelo eproteção, encerrando-se no interior das casas a educar os filhos, ensinando-lhes, alémde hábitos saudáveis, línguas mortas.

Atribuía-se a essa vida monacal, a esses hábitos e costumes, a existência deum mosteiro naquele lugar, embora não se soubesse ao certo se a existência do antigomosteiro era real.

As mulheres casadas viviam decerto como monjas e se alguém desejava,desejava sem ímpetos, deseja que as chuvas não tardassem tanto para que a colheitafosse feita em tempo exato e nada se antecipasse ou sofresse adiamento. Desejavamtodos que os dias fossem calmos, que as noites fossem frescas, que as vidas fossemordenadas.

Melhoras para saúde também se desejava se houvesse alguém a definhar. Aclaridade da manhã só tinha sentido porque iluminava os interiores e nunca se ouviudizer que a lua crescente provocasse suspiros em alguém. Equilíbrio e exatidãoexistiam no traçado das ruas, na firmeza do solo, no tronco envelhecido das árvores.

Em tempo de colheita abria-se o mercado e era no rumo dele que se moviaaquela silenciosa legião, deixando pelos caminhos aromas de legumes e de frutas.Lembro-me bem que, ao falar do mercado, minha mãe demorava-se em detalhes tãoespeciais que durante longos anos esqueceu de acrescentar que ele se erguia na partemais elevada da cidade.

Demorava-se com prazer desmedido na amplidão dos espaços, no tetoaltíssimo e nas paredes espessas para contar depois que os ruídos e as vozes, denatural tão baixas, alteavam-se em cânticos tão maviosos e era esse canto quepermeava as vendas e as trocas.

Moviam-se cantando que era a forma de comunicar uns aos outros que odesejo havia sido atendido, que havia pão e hortaliças e que continuavam todosnaturalmente felizes.

Para controlar-me a ânsia, minha mãe estendia-se exageradamente ao falardas cores das frutas e da frescura das folhas para, ao fim de tão comprido narrar, sabersaciada a minha curiosidade, confessando-me que era da terra fértil que todos senutriam.

O mercado lá no alto, as portas abertas, as pessoas, os cânticos elevando-sepelas alturas provocavam em mim imagens de ovelhas sacrificadas, sangue a mancharo chão do mercado. Embora minha mãe não confirmasse as imagens, jamais deixei detê-las. O sangue das ovelhas que eu inventava corria rubro a desenhar no chãoestranhas formas. Embalde minha mãe tentou desconfirmar. Minha mãe, só hojecompreendo, temia por mim que queria com fragor saber o fim da história.

O regresso para as casas era feito não mais silenciosamente, ela dizia. Oscânticos elevavam-se à medida que o caminho encurtava. Tochas acesas, a cidadeenchia-se de sombras e iam todos lavar os corpos no rio, água tépida àquela hora danoite.

Essa parte da história eu sorvia com tal prazer que minha mãe adivinhava-mee aninhando-me em seu regaço adocicava de tal modo a voz e repetia sem cansaço, orumor das águas, os corpos emergindo e submergindo, os cabelos eu imaginava crinas,secando ao vento da noite.

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Omitir não devo nem egoísmo suficiente eu tenho para não compartilhar esseinstante precioso em que eu, exausta de tanto sonhar, adormecia embalada pelosruídos dos corpos nus batendo nas águas do rio.

Assim, por muitos e muitos anos, acreditei ser esse o final da história. Apaciência bíblica de minha mãe fê-la esperar até que eu aprendesse a não sucumbir àpassagem da beleza ou, em outras palavras dela, saber juntar lavra e colheita.

Esperar o final é querer a história, é merecê-la pelo direito da espera, épossuir infinitamente, ad aeternum. Para esse final fui preparada com tanto zelo que oinesperado transmudou-se, passando a linhas ondulantes da própria natureza queminha mãe escavava com a voz, cambiando impulsos, aliviando densidades, atando-me por fim, ao pé da vertigem narratória.

A cada colheita, a cada banho de rio narrado por ela, eu ia aos poucosrestituindo sinais outros, murmúrios, gemidos e alguns soluços que, embora abafadospela alegria dos cânticos, eu acreditava ouvir. As vozes levavam os cânticos para o altoe os soluços baixavam penetrando a água, desfazendo-se em limo.

Vigilante, minha mãe percebeu que alguma coisa começava a abreviar-se,que eu iniciava por descobrir naquela história as fibras do infortúnio. Assim, na hora emque ela narrava a batida dos corpos na água, eu insistia com ela para me fazerconfidências, para dizer-me de onde vinham os soluços, para onde iam os gemidos.

Ao deixarem as águas do rio, narrava ela, só se ouviam os cânticos quesilenciavam completamente às portas das casas.

A despeito da convicção contida nas palavras dela, imaginava eu que nemtodos retornassem para suas casas e começava a ver espectros, alguns que ficavamsuspensos na flor das águas.

Muitas vezes deixava exausta minha pobre mãe de tanto que eu queriasaber, de quantas pessoas habitavam aquele lugar, quantos iam ao mercado, de quemaneira as mulheres tinham seus filhos.

Pressentindo que eu me desviava da história e vendo-me horas seguidasperdida em contemplação, minha mãe fingiu atarefar-se e anos se passaram.

Um dia, não sei se porque pensou na morte e no esquecimento, pegou-mepela mão e levou-me para fora. E de um lugar mais alto que a casa, fez-me olhardemoradamente a natureza, as árvores e a terra escura onde todas as coisas seassentavam. Ajoelhadas as duas, fez-me fechar os olhos e escavar com as mãos emvolta das plantas pequenas para que, tateando, eu sentisse nos dedos a dureza da raize de que maneira estavam presas à terra. Depois, fez gestos de semear e gesto decolher, fez gestos de morrer e contou-me a história até o fim. Jurei não esquecer o rostodela e o pranto que verteu ao terminar.

Ao enxugar o pranto, exortou-me à obediência e à temperança a fim de bemcumprir jornada dos sete dias, naquele exato dia iniciada. Olhava fixo dentro dos meusolhos advertindo, aconselhando como se, ao longe, houvesse soado o relógio da morte.Minha mãe pressagiava.

No segundo dia ao levar-me para fora e empreender a caminhada, aindafazia escuro. Minha mãe tinha pressa. Meus pés, de muito calcarem a terra, começarama sangrar, provocando a impaciência de minha mãe que precisou desviar trajeto àprocura de um fio d’água para lavar-me as escoriações. Minha mãe, sempre mepareceu, naquela noite tinha hora marcada.

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Até que, pequena elevação, e nos surgiu pela frente enorme descampadoque ela perscrutou cuidadosa, olhando para um e outro lado como se alguém houvessefaltado ao encontro. Atravessamos o campo ao viés e de costas para a Lua, foi-seminguante, alinhamos nossos pés e lá ficamos expostas ao relento. Minha mãe,sereníssima, esperava.

Então, movendo-se vagarosamente e a uma distância considerável, ofereceu-se aos nossos olhos o desenrolar de um espetáculo, eu diria uma procissão, um cortejode almas deste mundo e de outros. Todos encapuzados, uns apoiados nos outros,rezavam ou murmuravam rezas que aos nossos ouvidos chegavam qual barulhar devento.

Uma procissão de mortos-vivos, um não mais acabar de vultos de passagem.Passavam ao largo em movimentos que me pareceram repetidos como se vagueasseme voltassem unicamente para nós, que havíamos chegado sem atraso, que nãofaltáramos ao encontro.

Por mais que eu esforço despendesse, não via nenhum rosto mas era comose eu os visse com o coração e pelo sopro da memória, tal a ausência deestranhamento.

Se havia medo não era de cá. As aves noturnas piavam e a lâmina da Luaestava suspensa às nossas costas. Se empunhavam tochas ou se era o fogo-de-santelmo, nunca soube ao certo qual o clarear que me fazia piscar os olhos sem perdermovimento algum daquele passar de peregrinos.

Minha mãe, braço esquerdo levantado, proferia devagar nomes, nomes,nomes que até então eu nunca ouvira proferidos mas que sabia pertencer a pessoas,uns muitos nomes de santos e pecadores. Minha mãe, dura mulher erecta a preparar-me, instigava-me, braço esquerdo erguido.

Bateu-me leve tremor e iniciei baixinho, repetindo os nomes após a fala daminha mãe, nossas vozes alternantes que o eco espalhava, recolhendo depois mortose nomes, as nossas vozes, a reza deles.

Não lembro ao certo por quanto tempo foi feita a travessia, mas ao rompercautelosa a manhã, sem mais Lua, com romaria transportada a outras plagas, minhamãe apressou nossa marcha, nós que retornávamos da região dos mortos, daquelecampo desnudo com seiva e húmus a escorrer pelos cabelos. Levava para dentro dacasa, minha mãe agasalhou-me e dormi profundamente por um longo tempo.

No terceiro dia vestiu-me e penteou-me debaixo de uma árvore ondeparamos para descansar o corpo e olhar a linha do horizonte. A tempestade da vésperadeixara o campo vicejante e, ao nosso redor, o mundo germinava. Minha mãe traziadesanuviado o semblante e muitas vezes surpreendia-lhe o riso escorrendo pelo cantodo lábio, enquanto ela esfregava nas mãos sementes e frutos, como se brincasse deser mãe silvestre, tão adubada eu a sentia pelos odores desprendidos, pela frescura doar, pelas groselhas e amoras colhidas em suas mãos.

Com gestos de leveza e no mais completo silêncio reverenciou os ramostocando o caule, examinando as folhas, deslizando os dedos pelos nódulos, resinas eliquens. Depois, tomou-me as mãos e fez-me repetir palavras tão belas que até hoje aopensá-las, penso inevitavelmente na luz que possuíam. Todas tinham luz, hoje sei,cedida por minha mãe para que mais e mais eu me enfeitiçasse por elas. Ao escaparemde seus lábios, todas ganhavam a vastidão, visíveis e encantatórias, fugaz clarão que

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eu acompanhava até desaparecer entre as nuvens. Depois deitamos as duas no chãorelvoso e sob árvore secular dormitamos.

No quarto dia, precipitou-se em correntes a tempestade e minha mãe valeu-se dela para fazer-me a narrativa das águas e das lágrimas. Sem dor não provarás dosal nem verás esse campo tremular em tuas resinas. Para fazer-me crer na inutilidadedas lágrimas, desfiava histórias de ludíbrios, irremediável fado de todos nós. Pelo salserão lavadas as feridas abertas pelas inconfidências e perjúrios, ensinava-me.

Ao expor-me à contemplação de tudo o que pudesse causar ressentimentos,fatigava-me de um mundo de queixumes, capítulos de um desalento que nascia emtodas as direções.

De olhos secos minha mãe provocava em mim meu sangradouro, apontandopara o campo encharcado, repassando devagar legendas de mágoa em espaço quesabia semovente, transitório. Lições de permutação que eu aprendia sem mostrarenfado.

Fez-se de novo de braço erguido descrevendo bandeiras, acenos, gestos departida, sinais primevos, rudimentos da dor para quando as lágrimas assomassem.

Nesse contar e recontar, contou-me da esfera que gira, do catavento, da Luae da translação e da rotação da terra. Enquanto isso a nossos pés a tempestade gemia,inundando o campo. E assim, porque continuasse a manter os olhos secos, deitei-lheolhar de tanto orgulho que a reverenciei, ajoelhada, beijando-lhe a barra do vestido.

O quinto dia foi passado ao longo do rio em banhos intermináveis, ora o meucorpo, ora o corpo de minha mãe emergindo e submergindo. Havia momentos em queeu fingia esquecer-me que estávamos sós ali, que ela era eu, que eu era ela para quemnos olhasse de longe, nossos vultos.

Ao anoitecer bateu-me o frio e a fome e eu principiei um choro ignorado porela, perdida que estava na mornidão das águas do rio. Ao voltarmos para casa, não seise pelo desconforto da fome e do frio, o caminho tornou-se tão longo que por ummomento jurei que havíamos perdido o rumo e só não desesperei porque a mão quesegurava a minha era feita de força e calor.

Ao alcançarmos o que parecia ser um patamar, agarrei-me ao corpo deminha mãe chorando. É que vislumbramos estendido à nossa frente a mais infinitaponte que eu jamais vira. Então, ainda em silêncio, minha mãe aninhou-me e, comigoem seus braços, iniciou a travessia em meio à escuridão e ao vento.

Cessado o medo, fui tomada por uma intensa sensação de quietude aoperceber que não havia sinal de tropeço nem de vacilo em sua caminhada. Fechei osolhos porque acreditei que minha mãe possuía asas e que, se perigo houvesse, ela eeu nos distanciávamos dele cada vez mais.

Ao afinal chegarmos a casa para reacender o lume e aquecer as águas,estava eu tomada de tanta gravidade que acreditei que eu era duas, eu e minha mãe,minha mãe dentro de mim, a altura dela era minha altura, a força dela era a minhaforça.

Cuidei nessa noite de todas as tarefas adultas porque assim movia-me,adulta e ancestral, como se já fosse minha a história dela, a minha história agorarepassada.

No sexto dia, embora minha mãe já deixasse a descoberto um semblantefatigado, levou-me uma vez mais para bem longe. Marchamos para o que parecia seras cercanias da cidade, os confins de um lugar cujos limites ultrapassaríamos antes do

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pôr-do-sol, em caminhada perseverante. Após transpormos cerca que nos batia àcintura, adentramos trilha de areia fina a fazer cócegas na planta dos pés. De quandoem vez minha mãe parava e olhava para trás para que eu me adiantasse, eu que meperdia distraída com a luz da tarde.

De repente minha mãe estancou e apurou o ouvido na direção de umpalmeiral de onde nos chegava um gemido longo, um grito abafado de dor. Avistamoscasebre cuja soleira transpusemos cautelosos. Ao entreabrir porta que rangia,deparamos a um canto com mulher jovem e padecente, quase desnuda, a carecer deauxílio, alívio para as dores do parto.

Minha mãe ajoelhou-se ali mesmo e eu fui postar-me à cabeceira paraenxugar o suor que porejava da testa da infeliz a cada puxo, a cada contorção, agorasob as ordens e controle da voz de minha mãe, encorajando-a em palavras doces,animando-a em nome do Altíssimo.

Abria-se naquele momento para mim, o livro da vida. Os primeiros vagidostranqüilizaram as duas mães e eu corri para junto da que era minha, empenhando-meem providências que transfiguravam rapidamente aquele lugar tornando-o nascedourode luz e de vontade.

O sofrimento que findava, o tinir da tesoura na bacia esmaltada, a alfazemaespraiando-se pelos panos e pelos cantos, estendiam-se diante dos meus olhosmaravilhados, tal linha ou cordão a prender e desprender a linha da vida, inebriando atodos nós, assistentes do mundo, a cuidar da mãe e do filho, todos agora em bem-estarcompartilhado.

Os restos do parto confiados a mim foram enterrados ao lado da casa. Eassim eu fiz com minhas próprias mãos e aprendi.

Ao penetrar de novo os limites do lugar na caminhada de volta, minha mãediminuía a marcha. Notei-lhe os ombros caídos e a cabeça curvada demais. Obedeceu-me humilde quando pedi que descansássemos. De verdade eu queria também poderdescansar da peregrinação e falar-lhe da força nascendo do meu peito, do ar queentrava e saía dos meus pulmões.

Olhei-a várias vezes dentro dos olhos mas não tive certeza se ela se davaconta do que eu buscava. Sensação de força adquirida, mas era como se a fragilidademe deixasse saudosa. Eu temia e queria. Eu partia e chegava. Eu nascia e de verdademorria e experimentava isso a um só tempo e mil vezes, som que se mostrava ali pertona pedra e lá longe em brilho prematuro de uma estrela, na fronte de minha mãe.

Eu buscava os olhos dela, mas ela, tomando de minha mão esquerda,quedou-se por longo tempo correndo devagar os dedos por toda a extensão da minhapalma, contornando vias, abrindo passagem, descrevendo órbita, procurando senda, acircular o que parecia ser início, fim, entremeagem...

Foi nesse passar sem precisão de mais nada, que a ouvi retomar o fio dahistória e estendê-lo ao alcance dos meus ouvidos.

O resto do caminho de volta venceu apoiada em meu braço e em silêncio.Palavras ditas, gestos feitos. Por isso não chorei quando, no dia seguinte, sétimo dia,ela morreu em paz deixando-me história de imaginação, iniciando-me em reinoinexaurível e tantas vezes insondável. De seu regaço retirei papel dobrado, últimatarefa minha e solitária.

Aconteceu que no calor da tarde a brisa fez-se noite aos poucos. Sobraçandoo baú que havia pertencido a minha mãe e que durante a minha breve vida estivera

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sempre ao pé do leito dela, caminhei em direção ao rio imprimindo cada passogravidade e determinação.

Embora a terra fresca guardasse há tão pouco tempo o corpo amado, osanjos mais humildes do céu ajudavam-me no que seria daí por diante, viver sem ela,sem o ressonar dela nas madrugadas de medo que estavam ficando para trás.

Dei-me conta de que a morte de minha mãe passava a delimitar o tempo, queao referir-me a ela eu já deveria dizer no tempo em que minha mãe vivia ou quando euera pequena e tinha minha mãe por perto.

Absorta nesses pensamentos tristes, dei-me conta, uma vez mais, de queprincipiava, a partir daí, meu exercício de narrar e que, ao olhar para frente e seguir emdireção ao rio, deixava para trás a casa, meu abecedário, meu tempo de prefação.

Relembrando as luas que haviam passado, dei-me conta ainda uma vez, queeu tomara a dianteira, que o novelo escapara e que a linha que minha mãe atara aomeu tornozelo, em sendo frouxa ou estando retesada, revelaria a firmeza do avançar oumeu itinerário indeciso a quando de caminhos bifurcados.

Levou-me a relembrança a interromper a passada, a sentar-me numa pedra echorar por minha mãe. Eu pensava nela como um vulto que saía da sombra para meuconsolo. Fundo (seco) mergulho do qual emergi renovada para recomeçar a trajetória.O rio esperava por mim sereno e frio e não levei tempo para juntar gravetos e atiçar ofogo.

Quando a Lua surgir já estará acesa a fogueira e nessa ordem aquiterminada, lançarás nela primeiro a alfazema, a canela, as flores do tamarindo e assim,animada estará a correnteza e a vegetação. Deita devagar depois as cartas que estãocingidas por fitilho, as orações – as já fixadas pela tua memória – poderás queimar.Defumarás os escapulários e os bentinhos, as rezas de achamento. Os responsosguardarás contigo. Pelo sopro do ar, a fumaça carregará para todos os meridianos aspalavras vigorosas e de maior poder. O vestido que eu costumava usar nas festas dacolheita e cuja beleza de teus olhos mudos cobiçavam, agora já te pertence. Desdobra-o com cuidado para entender na relva a brancura dele sem que te esqueças doscolares e da flor que eu prendia na linha da cintura. Então despirás tua veste pagã paraque possas untar por igual cada parte do teu corpo e o farás com óleo almiscarado.Sete vezes passarás entre o fogo e a fumaça. Depois, buscarás no galho o fruto, asfolhas mais tenras e algumas sementes que estarão nos favos. Ajuntarás a eles o potede mel desenterrado por tuas próprias mãos e em lugar marcado. Na folha do antúrioque cresce úmido à beira d’água deitarás o mel, o fruto, as folhas novas e as sementes.A correnteza do rio os levará assim enlaçados, para que percorram as ondulações dosítio. Ao cabo disso precisarás reavivar o fogo e o farás com o conteúdo de umacaixinha redonda, minha poção misteriosa, meu cadinho, meu sal da vida. Tontearás delouca embriaguez e a mata recenderá. Verás então subir pelos ares o verdadeiro olorao assomar no céu a Lua plena. Deixa a descoberto teu ventre e faz ver a ela que, talfruto deiscente, o fluxo descerá com o plenilúnio.

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em tive precisão de olhar para trás. Já era o dia seguinte e o Sol queme fizera despertar anunciava o dia pelo meio. Pus-me a caminho. Deparei-me dona,senhora de mim, possuinte dos meus próprios passos, sem saudades.

Apressei marcha e logo ultrapassei légua-limite, lancei-me. Eu pareciadeslizar do topo do mundo o passo destravado para cumprir estirão que se perdia àfrente dos meus olhos.

Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela nãochegou sozinha. Veio ela e veio rio, veio o fio da história, explícito luar a tudo envolver,fio retomado e devidamente seguido, os corpos voltando a banhar-se e o desfechoavermelhando as águas.

A cada colheita, quando os cânticos prenunciavam a alegria, os senhoresvigiavam suas senhoras e se de algumas não se visse mover os lábios, adivinhava-seque haviam sido tocadas pelo ímpeto da emoção, que desejavam bem mais além dacolheita, que não pertenciam mais àquela legião exata e que naquela cidade branca àbeira de um rio...

Daí os gemidos e os soluços abafados pelos cânticos, ruídos que eu escutarasem clarins anunciadores que melhor conduzissem a história narrada por minha mãe.Só os gemidos e soluços, os sons amargos.

Às minhas costas, o Sol partia-se escarlate e eu precisei descansar emalguma sombra para melhor abstrair a vermelhidão. Recostado o corpo em árvorevelha, meu pensamento fugiu e fugiu. À medida que concentrei lembranças e soltei aimaginação, foi como se tivesse tomado assento em dorso de cavalo de fogo a darsaltos e coices, a escavar o chão, a espanejar o ar, a relinchar, a galopar e estancar, adar meia volta e sacudir enlouquecido a crina para que meu corpo fraquejasse, paraque eu não tivesse mãos tão fortes para a sustentação.

Meu corpo todo queimava nas labaredas que irrompiam pelas ventasresfolegantes, pelos olhos enormes, pelas patas que batiam no meu peito. Pelo dorsodo animal as lavas escorriam e queimavam-me as coxas.

Acudiu-me o vento da noite que me soprou as feridas e depositou na sombrameu corpo em retorno incendiado. Cuidei que sonhara, mas eu não sonhara e aoprimeiro esforço para erguer-me, soltei grito de dor mesmo sem ver as feridas.

Cuidei então que enlouquecia, que tonteava e não havia mais a mão maternaao alcance da minha mão. Gritei por seu nome mil vezes, mesmo sabendo que ela nãopodia socorrer-me. Chamei por ela mesmo assim, para ter a sensação de que elaexistira, para que meu grito a confirmasse por brevíssimo instante.

Aos poucos fui reconhecendo o tronco e a árvore velha porque recobrara oinstante e a dor arrefecia. Encolhi-me, cabeça tocando os joelhos e, enovelada, soluceie gemi por tempo que não cabia nos relógios.

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Foi nesse momento inimaginável que mergulhei meus soluços. Nenhumpássaro voava, nenhum animal rastejava. Entre aquele céu e a terra que me acolhia, sóo meu corpo abatido, só o meu ser padecente.

Fora do meu alcance estava a Lua e o Sol que já morrera, alguma fontecristalina e o caminho do qual eu me apartara. Para soerguer-me precisei das plantasrasteiras, do tronco nodoso e pus-me a caminho, cambaleante e sem prudênciaalguma.

Aos tropeços, reencontrei a trilha, ao mesmo tempo em que me enredava nofio da história, retomado. O silêncio engolia meu respirar, o ruído dos meus passos evoltava aos meus ouvidos rumor de água e de lamento. Caminhava dentro do negrumee solitária, a sentir em meus ouvidos a voz de minha mãe em confidência.

A cada lavagem dos corpos, a cada submersão, alguém de verdade sefinava, alguém de verdade jazia sepultado entre o limo e a pedra.

Para menor se tornar o meu desassossego principiei por aquecer as mãos,esfregando uma contra a outra para afugentar o frio que vinha chegando com amadrugada. Demorei-me a olhar o céu querendo a todo custo encontrar nele, ínfimaclaridade que me anunciasse o dia.

Se tivesse eu com minha mãe ao meu lado e fosse noite, viria em soprocálido o Anjo da Prudência a adormecer a filha e descansar a mãe, mesmo ao relento.Mas eu estava só e deveria por assim estar, suportar o cansaço e o medo por maiorque fossem.

Assim, ainda pedinte de um clarão que me alumiasse os passos, imagineique viesse em meu socorro um Anjo da Noite, um anjo parceiro da minha aventura.

Por isso abri exageradamente os olhos para um vulto que vi assomar diantede mim, pousado na pastagem. Parecia à minha espera e era um cavalo, a cauda abalançar. Tive medo pela primeira vez. Seria o cavalo enlouquecido das horaspassadas, a querer incendiar-me novamente o corpo?

Enquanto eu me aproximava dele, meu coração se acalmava. Passei-lhe amão no pêlo, alisei-lhe a crina e com as dificuldades das dores do meu corpo, alcei-mepara o dorso do animal e deixei-me levar em trote ameno para um lugar que embora eunão soubesse, não me arrancava o mais leve sobressalto.

Não sei por quanto tempo estrotejamos, mas ao vencer com esforço caminhoelevado, com retardos e entravos, ele estancou irredutível. Desmontei e olhei em volta.Havia pasto pobre, havia ruínas de casa, havia vegetação pelas janelas desmoronadas,pedra e desolação pelos caminhos.

Ouvi um latido, ouvi um cantar de galo, animei-me. Com pouco eu já estava àporta de um casebre quase devastado de onde me saiu um som roufenho, um riso dedebilidade, um vulto de mulher velha. Abraçou-me como se houvesse estado à minhaespera e levou-me para dentro.

Ao apontar para um canto desvelou-me, entre as tábuas que formavamparede, fileiras de santos, imagens carcomidas pelo tempo. Santo Onofre, SãoJerônimo, São Cristóvão e Santa Filomena, os nomes saindo na voz titubeante daquelamulher velha.

A fala obscurecida e os sons inarticulados principiavam nela para ornardiscurso de tartamudez, e eu a experimentar maravilhas da alma através daquela falainsoletrável. Demorei meu olhar em São Jerônimo, ele a buscar nos livros já tãodistante dos verdes anos e aquela mulher ali, companhia dela, lá fora o desconsolo, a

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devastação. Eu queria sair, eu queria ficar, a mulher velha não fazia o gesto quemudasse o instante, os ouvidos dela não escutavam o meu respirar, a minha seded’alma em saber, em ter esclarecido aquele encontro.

Pelos cinco sentidos agasalhava sentimento de estar só no mundo, no lugarmais alto do mundo. Esperei em vão que ela me falasse do quanto eu ainda teria quepercorrer, de quando enfim a morte me chamaria dali, em quais circunstâncias eupartiria e quais os santos que eu deveria invocar para me sustentarem à beira dosabismos.

Vanitudes, vanidades... À porta do casebre nenhum sinal que me fizessemover os pés em direção indicada, nenhum ruído a ser vertido como indício, qualquerum, de partida ou de chegada, de cuidado com emboscadas ou aleives.

A frouxidão do riso da mulher velha e o olhar de fixidez dos santos demadeira, faziam crescer dentro de mim espaço de desolação e de vazio. Dei de andar eao virar as costas, o riso de debilidade emaranhara-se no cantar do galo e no ladrar docão, ouvidos pela segunda vez.

Na roldana do poço um ranger de corda veio como sinal a elucidar o instante,a confirmar a mim que, mesmo assemelhadas, as horas não estavam a repetir-se. Eassim, sem saber se era dia ou se era noite, fiz-me a caminho em rumo torto, trilhadesmembrada, marcha obscurecida, desejo só de apartar-me dali, extraviar-me de veze nunca mais ouvir a voz roufenha, o riso, o cão.

Persignei-me ao adentrar possível caminho a ser palmilhado sem a senhaque eu buscara, baldado esforço, desconcertante condição. Má hora aquela, o riso dedebilidade ecoando às minhas costas e pelos ermos, enquanto eu vencia a distância docasebre e dos santos.

Ninguém, ninguém sobre a terra. Uma única voz que me altercasse, um Solque me cegasse, alguma branda mão que me guiasse por prestança, um veludo, umaesfera armilar, o pão do espírito, alguém que acolhesse em desamparo minhaorfandade exposta em solo árido, as pedras que rasgavam espinhos no meu ventre.

Desolada paisagem a quem buscava umidade, sombra, um remo mergulhadoem correnteza. Mas à minha dianteira e sem clemência só um desdobrar de vazio, osilêncio das veias, a ausência de tudo. Desirmanada e cambaleante vislumbrei, emverdadeiro esforço, a Grande Ursa e assim, sem saber se era noite ou se era dia, roleipor terra cuidando que chegara a algum lugar. Mas não chegara e não era a UrsaMaior, era somente o cão a farejar meu andar em círculo, a voltear o poço, o casebre,eu em desamparo e rodopio, a perder o rumo e tontear, ébria de mim em igual lugar, omesmo que eu buscara e não me respondera.

Vanitudes, vanidades... O fio da história emaranhado, o passo enredado evacilante. Precisei invocar todos os santos e pedir comprazimento, que viessem emmeu auxílio e me afastassem dali por precisão de adiantar-me, seguir em frente,procurar e encontrar, procurar.

Em vão eu me afastava e avultava o círculo, alargava o giro, meu corpo atadoao centro da imensa roda que também girava com meu corpo. O riso vindo, o cão queme acuara, o alvo do poço que eu temia, os joelhos que dobravam. Minha mãe e eugritei em voz tão alta, minha mãe que eu queria ali de braço erguido a apontar a saída,sem encontra-me prostrada uma outra vez, de novo enrodilhada, meu corpo aorodopelo, qual girador veloz, corrupio em ventania e amarfanhado, a poeira subindo, orosto enterrado no chão, o joelho sangrando, a rogar indulgência à mulher velha que se

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achegava enorme, braços estendidos para mim, o medo da loucura e do delírio, a vozda noite, o gemido e o rodar.

Em contrações pedi, em grito mudo implorei e, tal força de vendaval aempurrar-me os pés, rolei por precipício que não tinha fim. Enfim rolou meu corpo pordepressão profunda, o oco, o vazio, a queda livre e, em desespero, implorei quechegasse em algum lugar.

Chorei. E se meu pranto em água se tornasse, eu seria naquele dia a fonte-mãe-do-rio a fluir e encharcar aridez e tanta pedra de tanto que eu chorava. Levou umtempo, levou um longo tempo até que os soluços fossem se acalmando e eu pudesseerguer meu rosto em primo gesto, depois o torso e por fim deparasse, suspendo àminha frente, vulto de guerreiro em finda guerra, o corpo envolto em manto que seabria, o braço sobre o peito, os pés esconsos em nuvem de poeira.

Evanescente e transitória, a visão do guerreiro foi obra de um breve instante,pois se desfez, fugaz e esplendorosa diante de mim em desfalecimento, verdade emmentira transformada, as pálpebras pesando como chumbo.

Por fim, feito sombra e claridade que alternassem, a Lua e o Sol assimconciliados, meu sentimento de desapoio se fez retrocedendo como se repatriada eume encontrasse, a paz restituída, o sítio em reconhecimento, minha alma ao fim,endereçada.

Ao derredor o mundo transmudara em ondulações de um vasto campo, emasas que batiam e alçavam vôo, em tintas de colores variadas.

Estariam meus olhos a despedir-me do mundo que eu malmente começara aperceber? Cuidei que sim e tomei por despedida a natureza em festa, o mundo emconcordância, minha hora chegada e os augúrios de uma boa morte.

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i de mim, pássaros da noite! Ai de mim, urtigas deste campo! Ai demim, que não morri ainda e o desenlace teima em se alongar! Ai de mim, que ainda nãosão meus os atados desse laço porque o fio se põe distante dos pontos de arremate! Aide mim, que as agulhas furam às cegas! Que foi feito do vento a desfazer para semprea estrela de meu braço? E o olho do céu, vigilante, a velar-me nessa travessia? Minhavoz buscava os quatro ventos, mas o eco a desdobra-se retornava para que só euouvisse, ai de mim!

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Braços estendidos para o Sol morrente bateu-me ânsia de prender, emboraem quadro trêmulo, esse universo que se mostrava por obra de algum espíritomagnânimo. Entreguei-me ao desfalecimento e, ao descobrir meu corpo, aconcheguei-me em leito de verdura, cova rasa, ouvido colado ao peito da terra por onde subia a vozde minha mãe em acalanto. Exaurida, quedei-me e nesse alento adormeci.

Descera aos infernos lá de onde me arrancaram mãos que sabiam de minhaincompletude. Reconheci então que ao estender meu lamento por tão longo tempo eume atrasara. Animou-me vontade férrea e desejo de apressar-me. Por precisão ajunteipedras que haveriam de, atritadas, acender minha fogueira para passar a noite. Nemsono, nem cansaço, nem desejo de esperar o dia seguinte a chorar pelo frio e pelafome. Perseguindo atalhos, pus-me distante do dia e minha oferenda para a noite negrafoi a chama da fogueira que eu aticei com meu furor.

Eu precisava daquela luz arrancada do atrito das minhas mãos contra aspedras para que meu ser se acalmasse e me fosse possível possuir trilha e sossego. Afogueira crepitou a noite inteira e longa e os demônios afastavam-se para perscrutar osdias profundos.

Em pouco tempo e desembarcada calcava o pé em solo firme e iniciavasubida cautelosa, e inteira-me de tudo, a destrinçar caminho íngreme que avançavacomigo em igual desconhecimento, para cima, sempre para cima ao encalço do queainda não fora devassado, querendo aclarar-me e aclarar meu passo mui zeloso, asondar até o fim o que fosse possível deslindar, eu que me sentia apurando ciênciasainda não desvendadas.

A esmiuçar, enfim, cheguei e estanquei naquele alto, a vislumbrar planuraimensa e aventurar-me. Eu ensaiara escalada nas trevas, mas o que eu dalidescortinava era gleba desmesurada exposta ao tempo e diante de meus olhos, vastaregião de amenas sombras, nem Sol, nem Lua, um tempo de intermédio deleitoso.

Palmeiras velhas, suspensas no barranco e enfileiradas, separavam o rio láembaixo por onde o barco me trouxera de uma vasta terra que se estendia à minhafrente e onde a tarde se assentava.

Embevecida, detinha-me a espiar movendo a cabeça para a direita e para aesquerda, tomando assunto, apertando o olhar em tantas direções oferecidas,cheirando no ar um cheiro que era meu, como se fosse o regaço materno a exalar aessência do meu próprio começo.

Fechei os olhos porque se fez preciso beber do êxtase verdadeiro, ali ondeos medos não me visitaram e onde talvez tudo estivesse apenas nos princípios.Respirei fundo e ao abrir os olhos outra vez, vultos apareceram dispostos na paisageme eram três.

Não lhes podia ver o rosto pois curvados, laboravam, moviamharmoniosamente as mãos a tecer o que me não era dado deslindar. Gestos de tecerque me fizeram, atraída, achegar-me ao primeiro vulto posto à esquerda. Era só o vultode uma pessoa velha, e não me olhava. Sussurrei às suas costas.

– Irmão de mim, com que te ocupas além de carregar teu fardo de velhice? – Ocupo-me dos movimentos do ar, teço a força dos sopros, aragem de

onde derivarão os dias e as noites. Para que sejam frescas e mornas ao tempo certo epara que tua pele não queime em demasia, ocupo-me do zéfiro que é o vento doocidente pleno de amenidades. Teço para ti.

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Ao voltar-me para a direita, repeti gestos de aproximar-me, agora em direçãoao segundo vulto a laborar também o invisível. Sussurrei pela segunda vez.

– Irmão de mim, estou de passagem e neste agora nada me é possíveldistinguir pois que há movimento incerto de tuas mãos e emaranhado das linhastambém há...

– Ocupo-me do encordoado das fibras que descerão ao peito da terra emvigor e seiva. Ocupo-me de vegetação, teço raízes, teço teu chão e o preparo parareceber o húmus onde se assentará teu domicílio, arraial a ser cuidado para que setorne teu torrão, a casa do teu pai. Teço o fio da lâmina que deixará em pé o que forpreciso para sombrear e alimentar.

Voltei-me. Em espaço situado entre os dois vultos e pousado ao fundo,estava um terceiro, bem menos visível e encurvadinho a impor-me aterrador silêncio.Deixei que escoasse um longo tempo e de novo acheguei-me soçobrando às suascostas.

– Irmão ou irmã de mim que estás ao fundo e te colocas no vértice dessetriângulo limitador das águas e dessa instância, teces o que foi ou teces o que será?

– Contempla-me porque não tenho tempo para olhar-te. Teço e já é bastanteque disso te apercebas. Trato do ocupante deste sítio, daquele que por essas plagastransitar, o ser vivente, o pó humano, o anônimo. Teço-lhe a alma. Minhas linhasconfirmarão a essencialidade e por isso preparam os âmagos e as intimidades,contexturas, parte inerente. O veio imanente teço e é tudo.

Aquele campo de sombras e os vultos que laboravam sem que eu pudessever-lhes o rosto, sem tocá-los, só as palavras a esclarecer coisas fundas, respostas queeu implorava em vão sussurro. Palavras que ressoavam como setas envenenadas aabrir as veias da incompreensão. Que palavras são estas que já não respondem ao queeu pergunto?

E esses sons e esses vultos que, espalhados, fazem de mim pássaro a quemcortaram as asas? De quem falam esses vultos e qual é o tempo que se anuncia e queos faz preparar ares e terras? E para quem, para quem se não sou eu?

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as as vozes empurravam meus pés para longe daquela região deamenas sombras. Parecia-me que a quietude não mais me pertencia, que para longe

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eu devesse seguir deixando aqueles vultos na incumbência de afazeres a que estavamconsagrados, eu a quem nenhum semblante fora dado a conhecer.

Banida era como a minha alma se sentia das amenas sombras, para a frentesempre, para a frente. E assim via-me de novo a marchar sem olhar para trás ou paraos lados.

Um desvanecimento no corpo, um esvair-se, um desfazer-se, comopensamento de fim, de outras horas, de tantas horas de passar, um alongar-se de dor,um desfiar-se infinito, um sentir-se estrangeiro, a andar atrás e em volta.

Experimentei pensar em minha mãe, mas minha memória ainda nãoretemperada não a trazia mais, por maior que fosse o esforço em recobrá-la. Não, elanão viria em relembrança e além do mais, eu perdera minha imagem junto dela e arelembrança só a encontrava em vulto e muito velha, a languescer-se. E eu, esquecidade mim infante, a aprender com ela.

Percebera minha mãe que assim seria para acontecer? Eu desirmanada delaa cada terreno vencido, a cada estância alcançada, a cada chão palmilhado?Experimentei gritar seu nome, mas por maior que fosse a força dos meus remos, o quese saiu da garganta foi mero balbucio e assim tão frágil que nada me aconteceu nocorpo, que nada me aconteceu no peito. Um pássaro negro riscou o céu com um piadoassustador.

Comecei por sentir úmidas as plantas dos meus pés. Eu caminhava emdescida, gleba de pedregulhos e assim dava-me conta do muito que me afastara, pornão mais arder o Sol e nem a Lua restar mediando meus passos.

Senti avançar meu corpo para baixo. Reconheci pela velocidade que obrigavaa deslocar-me, que a descida era vertiginosa. Marchava eu em declividade para grandeabertura em âmago de terreno confluente, como se estivesse a resvalar e enfimdescesse em avalanche, eu que não me dera conta de nenhum abismo, de por os péssequer n’algum sítio convergente.

Na verdade, ao me fazer em descida, eu vislumbrava lá no alto escarpasmedonhas, o ventre de um abismo colossal de inacreditável altura, que medesgovernava ladeira abaixo e me apequenava em direção à caverna circular eescarpada, meus pés já tão feridos, a fronte rorejante de suor e eu em porfia.

Tentei parar, segura-me n’alguma pedra, algum arbusto para estancar umpouco a precipitosa queda sem mais controle do meu corpo a despenhar-se para ofundo, lá onde corriam em celeridade as águas de um rio a desaparecer por baixo daspedras.

Segurei-me porque o chão começava a fazer-se escorregadio e ocorreu-me aidéia de aproximar-me d’água para poder lavar o sangue dos meus pés. O rio, cujaprofundidade eu desconhecia, acolheu-me enfim.

Cheguei com grande esforço à sua borda. Sentia-me desterrada e ouvigemidos. Ao erguer a cabeça para saber de onde vinham os lamentos deparei-me, pelaprimeira vez, com a visão do lugar onde eu me encontrava: uma altura imensa, o fundode um abismo em cujas paredes escarpadas jaziam corpos seminus, uma gentemoribunda de quem vinham os gemidos assustadores.

Atordoei-me e quase rolei águas abaixo. Eu, na descida vertiginosa por eleshavia passado e não os vira. Quantos eram, afinal? Quem os deixara ali de morteferidos, todos eles? Meu primeiro impulso pôs-me de pé a envidar movimentos emdireção ao que mais próximo quedava-se do nível onde eu me encontrava.

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Para tanto precisei valer-me das pedras para que meu corpo não rolasse paradentro das águas que corriam em aceleração, sem eu saber para onde. Iniciei a subidaem grande sacrifício e, em agachamento, principiei escalada íngreme, a pele a sedilacerar pelas bordas afiadas.

Avultavam os gemidos como se o moribundo houvesse percebido que eu oacudiria ao empenhar-me em escamosa subida para os reposteiros onde seprostravam, mais mortos do que vivos, corpos padecentes.

Alçava-me com dificuldade porque meu corpo deslizava para baixo. Soerguia-me e tentava, em perigoso aclive, colar meu corpo às pedras e experimentar subida.Entre equilíbrio, medo, sustentação e perigo acheguei-me rastejante.Era o corpo de umjovem guerreiro e trazia encravada no peito uma flecha. Para arrancá-la eu deveriafazê-lo sem deixar-me desequilibrar, sem cair, sem ultrapassar a pequena distância daescarpa que mal dava para sustentar o corpo dele.

Qual animal a cair sobre a presa, montei-lhe o corpo a rogar-lhe que mesustentasse prendendo-me também, enquanto eu, valendo-me das duas mãos, tentavaa não mais poder, arrancar-lhe a flecha cravada.

O rosto dele cobria-se de suor e a respiração era dificultosa e entrecortada.Pelo arquejar do peito, imaginei-o prestes ao desvanecimento e então roguei-lhe umavez mais que não se extraviasse e acreditasse na capacidade das minhas posses pararecobrar-lhe as forças.

O sangue vivo brotou-lhe do peito e os gemidos de dor misturaram-se aos dereconforto. Untei a ferida com o limo das escarpas, com o líquen e a umidade que era olenitivo único para reanimá-lo. Ao alisar-lhe os cabelos molhados pelo suor da morte,ouvi de sua boca uma só palavra, em respiro derradeiro. Gritei-lhe que não e, por umátimo desesperador, senti que o corpo preso entre minhas pernas extraviava-se rumoao sumidouro.

Solucei um instante de infinita dor. Em fracasso, restava-me tão-somentedeslocar meu corpo para uma nova altura, de onde partiam os outros gemidos. Osorvedouro lá em baixo tonteava e os gemidos vindo de um outro lado configuravam umoutro moribundo.

Recomecei a escalada cuidando em não fazer meu corpo destribar-se, namão a flecha que até pouco tempo estivera enraizada noutro peito. Servia-me dela paratornar menos penoso o achegar-me. Em movimentos que ascendiam e me faziamdominante pela altura, cavalguei o corpo de outro moribundo, rogando-lhe também queme prendesse entre seus braços.

Era um velho guerreiro e trazia encravada no peito uma flecha. Houverapujança decerto naquele corpo, mas a luz já fugira-lhe dos olhos

Pensei por um momento na mão que desferira o golpe naquele corpo lassoque lutava ainda para obedecer ao comando desesperado de minhas palavras e erguiaos braços para cingir-me, já quase liberto das prisões da carne. Ferido de morte, minhatarefa ali era extrair com minhas próprias mãos e em desvantagem, a flecha enterradano peito e nada mais.

Devolver-lhe a vida, arrastá-lo daquele lugar era sombra tão distante, era avoz do impossível segredando aos meus ouvidos. Em esforço demorado e em soluços,empreendia movimentos para o arranque. Jamais esquecerei o jorro de sanguesaltando da ferida e a mesma palavra balbuciada pelo jovem guerreiro que antes sefora.

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Depois, assistir ao derradeiro estertor e ver, em contorção, o corpo tambémextraviar-se, a querer levar-me com ele, eu a valer-me agora das duas flechas paraimpedir-me de adejar junto ao corpo dele que, desgovernado, mergulhava emsumidouro.

Implorei aos céus que me ajudassem porque o sangue do velho guerreiromisturara-se ao meu corpo e ao meu sangue; mais ainda eu resvalava para baixo e sefaziam infrutíferos os esforços de manter-me na estreitura. Coberta de sangue, eracomo se eu em meio à batalha me encontrasse e, obstinada, teimasse em não morrer.

Ao escutar fraco gemido, empenhei-me em direção ao terceiro moribundo ajazer em agonia de morte. A ferida aberta e a flecha ao lado esquerdo de seu corpodavam-me conta que havia sido arrancada por suas próprias mãos e que ela estava aacabar-se.

Como se já não restasse em mim indício sequer de nenhuma esperança e aimpotência estivesse a amolecer-me os braços e as pernas, acerquei-me do frouxocorpo da guerreira que morria e, oferecendo-lhe o ouvido para que a palavra fosseproferida, entreouvi quase em assopro. Depois, sem lágrimas nenhuma e sem nenhumtremor, resguardei-a com meu corpo e em despedida.

Estendi meu olhar em todas as direções. Vislumbrava o rio correndo lá embaixo, o céu que se fazia negro ao avançar a noite e, em retrospecção, avaliava oquanto meu desespero esvanecera. Revia em corrente e num segundo, o passado quese desenrolara há tão pouco tempo, o inesperado da marcha que eu fizera em descida,gemidos de uma gente se findando.

Revia a escalada, a lida com o perigo extremo e a certeza logo dissipada de,por minhas pobres mãos, oferecer em retorno aquelas vidas. Vanitudes, vanidades...Num segundo afastava-se de mim uma visão que eu tivera de mim mesma, gigantescae poderosa imagem capaz de impedir feridas, morte ou sofrimento, a querer vencer poresforço o que por si, era imbatível. Ó, desalento! Ó sonhos de dourada fantasia!

Por baixo do meu corpo o ainda morno corpo da guerreira e minha ilusão adesfazer-se em grande calma. Não a abandonaria ali, ela que de mim nem precisarapara libertar-se, ela que nem das minhas lágrimas carecera. Não a abandonaria ali paraque seu corpo em pasto de rapinas se tornasse. Haveria, eu mesma, de arremessá-laao sorvedouro, lançá-la lá em baixo e sem remorso ver-me desobrigada e emprocedimento resoluto. Ah, missão tão desgraçada! Ah, poder acalmar para sempre ocoração!

Tomando das três flechas e servindo-me delas como apoio, iniciei subida queagora se fazia em menor sacrifício. Ao vencer a escalada e alcançar a beira do abismo,extenuada, deitei por terra o corpo fatigado em tremor de músculos e suspirosofegantes, tantas eram as dores. Rolei meu corpo em esforço de distanciar-me doprecipício e também porque o chão afagava, a terra apaziguava, o solo acalentava,boleamento a propiciar concordância, a restabelecer proximidades.

Fitei o céu negro lá em cima, ao tempo de ver rolando na amplidão nuvens defogo, relâmpagos e trovões em grande estrondo, como se em batalha se afrontassemcéu e céu. Um vento aterrador ergueu diante dos meus olhos fogo e fogueira emexplosão colossal, a reboar para dentro da terra e diante dos meus olhos, o abismo ase fechar em terrível estrondejamento.

Nenhuma folha tremulava, nenhum rumor sobre a terra se ouvia. Meu corporeconfortado libertara-se das dores e os movimentos que eu precisei fazer para limpar

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limosidades nunca os fizera tão leves, porque de plumas se cobria a atmosfera em queeu mergulhava.

Assuntei lugar olhando para todas as direções e vislumbrei-me dentro dosilêncio a flutuar, porque assim flutuava a natureza orgulhosa dos frutos, cambiante deluz, esplendorosa terra que se estendia para trás e para frente, para os lados, domicílioda cor, regaço materno e generoso de onde eu deveria ir-me embora. Dei-me contaentão das três flechas que eu portava e, para que não acontecesse a traição damemória, deixei-as ali para que marcassem as horas lá passadas.

Depositei-as no solo, manchadas que ainda estavam pelo sangue dosguerreiros que eu encontrara. Havia motivos para crer ter sido a visão do sangue o queme fez pensar no fim da história. Dei-me conta nessa hora que, ao tentar lembrar-medela, minha história se enredava em outra história e eu, em vão empenho, a perdia emesquecimento.

Envidei grandes esforços, busquei em tentativas e assim fiz tantas vezes erapossível fazê-lo para, ao cabo de tanto imaginar, perder de uma vez por todas o fio daminha própria história.

Ao dar-me conta de tão grande esquecimento, não me abateu sequer odesconsolo. Fiz-me a caminho e meus pés pisavam leve porque leve se fazia o ar danoite e eu com minha história sepultada. Sem começo, fim e intermédio, via-me nascernaquele instante sem nascituro querer ser. Era como render-se a um encanto,apaziguar-se, depor as armas, entregar-se por querer.

Pus-me a caminho, eu viajante de mim mesma não mais tão solitária porqueouvira vozes trançadas no tempo.

Murmúrio de vozes que foram chegando ao apurar o ouvido e adentrar lugarvarado pela claridade. Umbroso bosque que meus olhos percorriam extasiados,arvoredo a espalhar-se e alargar resplêndido por vastidão sem fronteiras. Lugar de luzexata, interminável bosque e prazerosa caminhada, visões que me chegavamassombreadas.

Ali um bando de meninos nus a rodear-me e puxar-me pelas mãos. Maisadiante um páramo tranqüilo em meio ao bosque e, em grande roda aberta, grupo dehomens, mulheres com crianças a apoiar o queixo às mãos e ouvir histórias saídas deuma voz em cantochão, narrativa a escorrer sobre a terra. Apurei os sentidos todos,juntei as mãos em concha e escutei.

...E vieram os ceifeiros que foi o nome pelo qual minha mãe os nomeou,fazendo o sinal da cruz diante de mim. E minha mãe gesticulava e gatimonhava paramelhor reiterar expressão deles de ódio, contrapartida à exclusão que sofreram de suasmulheres soltas em banho de rio, soltas em banho de solidão compartilhada.

E não falaram eles, não disseram palavra porque, surpreendidas, encenaramcenas de mentira, gestos de crianças quando pilhadas em malfeitos. E o ódio delesaflorava pelas barbas negras, pelos pomos-de-adão a subir e descer, eles engolindoem seco, a quase furar a garganta, pelos fios dos bigodes a acompanhar a boca emtorcedura.

E contou minha mãe que foi só um momento, o pesado momento em que ospunhais foram expostos e apontados e que, estando elas em banho e soltos oscabelos, eles os cortaram mas, não satisfeitos, os tosaram indo além, feixes e feixes demadeixas crescendo nas abas do rio, em horto transformado.

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E assegurou minha mãe que o ajoelhar foi imposto e nem partiu delas oimplorar, que antes resistiram ao dobrar dos joelhos e do corpo mas que foi imposto oajoelhar, o corpo retorcido em gesto de perdão que não foi pedido.

E que assim nuas e transidas pelo frio e sem cabelos pareciam meninosassustados. E aí foi o final quando enterraram os punhais em tenro peito, os ais e osdesaires.

E era esse o momento em que minha animava a narrativa porque erguia-se epercorria distância de uns dez metros, mãos para trás do corpo, olhar preso no chão ounos meus olhos, para um e outro lado, para esquerda e para a direita, doloroso escutar,angustiante deambulação, a história se tingindo de sangue na hora dos punhais. Haviaalguns que avançavam as mãos para as nucas e estrangulavam, inovação do martírio.Havia outros a uivar como cães, movidos por êxtase demoníaco a cobrir de requintes oderradeiro golpe.

Insídia, armadilha, traição eram palavras de sangue vomitadas por minhamãe e eu aprendi.

Feridas, as mulheres atiravam-se para os braços do rio e iam ao encalçodelas os matadores, fatídico mergulhar em cima dos corpos inânimes para perpetuar aimolação. E assim os ceifeiros enlutavam o rio, avermelhando-o. As mulheres oescolhiam como leito de vida e de morte e por isso os homens choravam a suaexclusão.

Minha mãe estancava, mirava com seus antigos olhos para depoisprosseguir...

Reconheci de pronto a história que minha mãe contava para mim em noitesprimevas. O mais absoluto silêncio atava-me àquele instante, mas um ruflar de penasfez-me divisar, afastado também da pequena multidão que ocupava o centro daclareira, alguém a me fazer companhia.

Mirei e vi claramente visto, alguém que em princípio julguei em espreitança.Era um menino a fazer movimentos circulares e tornar as águas coloridas. Gestos deextrema lentidão, alquimia desenhada no ar, respirar paciente ao mergulhar ospássaros um a um e soltá-los depois em transmudação.

Quedei-me cautelosa, meu olhar preso em estampa jamais vista, um meninoa brincar em arca d’água. Não me bateu nenhum desejo de falar-lhe. O que se passavadiante dos meus olhos não carecia legendar e quanto mais demorados os movimentosse faziam mais matizes inomináveis, mais pássaros e muito mais formosura.

Acheguei-me por fim e, ao indagar-lhe sobre as gentes assentadas em voltada clareira, contou-me que em dia singular vinha de muito longe a multidão para ouvirde um ser vivente naquele bosque, as mais antigas histórias, algumas que de tãocompridas atravessavam três dias e três noites.

Por não desviar a cabeça um só instante e em nenhum momento voltar-separa mim, desvelei cego dos olhos o menino ocupado em ofício tão raro. E sem que euemitisse qualquer palavra, pôs-se a lembrar algumas histórias, uma que se chamava“Inês e o Poço”, a mais comprida de todas.

Não sei por quanto tempo permaneci em contemplação, mas aorecrudescerem as vozes, ouvi do menino em advertência que eu me pusesse à escuta.Sentia dificuldade em afastar-me dele, mas o chamamento alcançou-me lá do bosque,em sedução de voz e ouvido. Acheguei-me e ajoelhei-me. Ao meu lado, mulheres com

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filhos ao peito, homens cheirando a fumo de folhas, o bosque exalava. E então,entrando pausado pelos ouvidos, chegou-me a voz em narrativa.

Meu avô, pai do meu pai, tinha um amigo... Pus-me em retirada devagar aotempo de escutar, em me distanciando, a voz em cantochão, abrindo caminho em meioao arvoredo, palavras d’antanho a desembaraçar meu rumo e me lançar...

Esperar o final é querer a história, é merecê-la pelo direito de espera, épossuir infinitamente, ad aeternum...

Horas

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A Fronte Pálida

Nasceste em noite de loucura, nascituro sim, e os primeiros sinais foramprecedidos por arrepios fugazes de um gozo inocente, prazer restituído, aproximaçãomaravilhosa, encontro aquecido a cada segundo em que tua imagem mergulhava emnitidez.

Ver teu ombro primeiro, depois a nuca e ver ainda inflamar-se o desejo detrazer-te inteiro, arrancar-te do limbo das nebulosas, acariciar com o meu tremor afronte pálida.

Tomar-te nos braços e iniciar o rito banindo a malícia, os arrependimentos, amentira.

Escolher as palavras, as sagradas sim, iniciar o gestual do encantamento, oeterno rir, proteger teu corpo buscando a perfeição. Não ter descuido, antes cuidar paraque a insensatez não se enredasse nesse enredo.

Sensível, desprezar o perverso, fugir dos malefícios. Umedecer teu chão,plantar-te, nomear-te, fazer-te verbo. Vigília iniciada, vigília empreendida, localizar casae casal, demarcar território e edificar o tempo da memória.

Houve que um dia nem pela terceira vez o cantar do galo foi ouvido. Ummalsinado gesto interrompeu origem e saga e, para punir o sono da vigília, a dor foiimposta sem misericórdia.

Tanto Abril a Passar

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Andarás ao meu lado feito aquela sombra de abril que avançava pela parede,subia pelas portas e despencava ladeira abaixo quando eu corria ao teu encontro pra tecontar das noites sem sono, te falar do rio e do som que eu ouvia e que tu dizias nãoser da mãe d’água nem da mãe dos peixes. Era só o ruído do meu medo, do que euouvia dos outros, dos mais velhos, das rezas deles, dos estranhamentos deles que meassustavam.

Eu te contava da moça e do violino, do noivo dela, de como a língua dele eraestrangeira e de tanto que eu ria, do novo e do desconhecido, do que era luz pra mimdo que era treva, do meu gesto, imitação, caricatura milenar de alegria e fogo e tudizias não e sim, a cabeça pendendo pro lado a esconder teu olho e eu te seguindo ovulto, o corpo contorcido para que tu me olhasses enquanto eu contava e contava.

Fechar com força a mão para que adivinhasses segredo, um gravetoqueimado, casca de fruto, a tampa de um perfume sem perfume ou só o nada da tardede abril na mão que abrias para que desvendasses a mágica, o pó. Da fala no futuro,do mundo no futuro, um amanhã rabiscado na barra do vestido, teu braço de meninoapontando pro céu, a dizer do avião que ia pro céu, zombando de minha fé, da crençaque eu trazia de que tudo ia pro céu, de que a vida era um labirinto acima de nossascabeças e que os telegramas andavam pelos fios.

Tigres são tigres, eles vêm de Bengala e eu pensava em tigres e bengalas, acabeça a dar voltas para seguir tuas histórias, tua sabedoria debulhada diante de mim,estonteada. Teus soldados de chumbo guardados enquanto te afastavas devagar,dentro do meu olho a tua sombra, o teu retrato.

Tanto abril a passar, lições de espera, eu e aquela sombra avultando,permanecente ao meu lado, desirmanada.

Teus Braços se Cruzam

Cruza teus braços e te recosta nesse tronco envelhecido que teima emdestruir minha janela e permite que eu te observe à distância, as folhas sendo molduratua nessa noite suicida. Os cães uivam lá longe e a Lua nesta noite está minguante.Lutarei contra a escuridão, removerei raízes, lançarei gritos de dor, mesmo sabendoque teus braços se cruzam nesse instante.

Dentro das casas e à beira desta noite, as rezas buscarão encruzilhadas e oscorpos serão sacudidos por tremores, virá a febre. Há entre os galhos abertos destetronco a nódoa da palavra dividida. À distância, não te será permitido tocar a veia, osangue estará rubro e, estuante, desaguará no despenhadeiro em que se transmudoumeu corpo.

Cruza teus braços. Há sentenças opressivas e calendários que deixarãovisíveis os fevereiros a exigir mudanças, a corrida para chegar antes da chuva, transporfronteiras da imobilidade.

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Da região dos mortos, do lugar onde mostras o corpo recostado, de ondecruzas os braços, é de lá que arranco os ornatos para sentir a febre. Acordaremos umdia, de olhos cerrados.

Teu Ofício de Mensagem

Teu nome aprendido nos altares sagrados tem claridade de desertos e,assim, é possível que cegue bem mais que ilumine. Teu perfil silencioso anunciando tuanatureza fluídica é o lado do rosto que se mostra na gravura do meu quarto. Eu não teconheci na gravura do meu quarto. Estive ao pé de ti e então vi o outro lado, perfil deáguia, ríctus voraz no canto do lábio, sombra de lodo em meio à sombra do cílio, abaixoo olho que enfeiava teu perfil de ouro.

Toquei teu manto e não é cetíneo manto. Cerdoso manto, tumulares as tuasasas, silêncio de cemitérios, a terra se fazendo do pó dos ossos calcinados. Nenhummetal produz o brilho que reverbera da trombeta que sopras anunciando mensagensnem o som é esse fluir mavioso. É fúria só, estilando pela face que eu vi por dentro dagravura do meu quarto. Sei das serpentes escondidas sob teus pés alcochoados denuvens porque com elas atemorizas as noites negras, tu, anjo crudelíssimo, que temostraste a mim, em noites que lá se vão inefáveis.

Cabelos d’oiro, anelados, anelos que desfizeste em mim e a crença vã de tuaforça inelutável. De teu ofício de mensagem nada aprendi e da tua mensagem fuiexcluída. O anjo és tu e sou eu, dessemelhanças.

A Pedra, a Claridade

O gosto do pão fresco trazias na boca, ao esgueirar teu corpo pela porta quese abria ao território verde e conquistado, mal rompia a manhã.

As mãos na hera do muro e o som do rio, um aboio ao longe, os cavalossubindo as ruas, teu corpo cheirando à água serenada e os pombos arrulhando pelostelhados.

Depositavas ao pé do bougainville tua memória da noite, o medo de estar sobo céu. As palavras que seriam proferidas até o fim do dia, tu adubavas ali salvando dodesamparo as sílabas rubras que rolavam nos declives. Lambias as palavras saídas

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dos troncos nodosos, dos vasos de plantas, para limpar os excessos de argila.Nomeavas a paixão, a dor, o riso e o espanto, arrebanhavas todas as palavras, todasdesenterradas, purificadas, desentrelaçadas das barbas furiosas, livrando-as dasflechas da ira.

Esmagavas entre os dedos a pétala da tua flor preferida, a tua seivaconfundida ali, ao esgarçar a luz, raio voltado para as tuas costas. Tuas narinas poronde entrava a embriaguez, o chão que era teu peito, o jardim, o respirar da casasurgindo no espaço da floresta, o teu jardim das delícias, David e Bethsabáentrelaçados nos arbustos e o arcanjo Miguel soprando em tua nuca.

De cócoras, ganias para o céu, instinto e inocência a mergulhar no fascíniodos abismos. Ajoelhada na sombra, tua carne doía nas pedras e os teus pêlos estavamnas folhas também.

As formigas circundando os vasos, despencando pelas bordas, atravessandominúsculos rios profundos, transportavam teu corpo extenuado, braços abertos para oSol descambando. Reparavas na sombra que vinha chegando, lenta caminhada sobreo rio, o teu jardim sumindo, teu vaso cingido pela fita de zinco enferrujada, o Sol quedeixava passar as nuvens, urubus-falcões dos mares do esquecimento.

Até que a negra te chamava para dentro, tu que dentro estiveras, pura evisceral a alimentar desejos. Fechavas com gestos aéreos as portas da tua caverna e teesgueiravas de volta, ao fim, ressuscitar no meio da varanda teus olhos vermelhos pelocalor da fogueira.

Mentiras e Verdades no Mesmo Chão

Não me negues a palavra. Pelas artes de uma palavra segui sozinho ouvindoo grito de outros companheiros a percorrer outro caminho. Naquele tempo, senhora, ospântanos me atraíam e os arrepios do meu corpo aumentavam à visão dosesverdeados, meu corpo fremia. Não me negues a palavra. Pelas artes de uma palavraabri picada diferente que não me levava ao bosque. Ouvia meus companheiros rirem echorarem fascinados com as veredas, os frutos quase ao alcance das mãos. O meucaminho, senhora, tinha reverberações encantatórias, mentiras e verdades no mesmochão e o veneno das folhas eu só podia descobrir pelo exercício do meu paladar e domeu corpo. Poderá algum coração, senhora, saber das tantas vezes que estive à beirada morte pelas ânsias de saciar o meu desejo?

Enquanto os meus companheiros avançavam em rodopios e encantamentos,eu vencia distâncias tão pequenas que me parecia estar sempre no mesmo lugar.

Não me negues a palavra de cujas artes se nutriu tanto exílio pois se assim ofizeres estarás negando a permissão e as promessas. Não é esse silêncio de quepreciso para atravessar a floresta. Imposto o sossego me faltarão os sons articulados,

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os ruídos para que não percamos a memória. Não me negues a palavra para que atrilha não se altere nem as perspectivas sejam removidas.

A Pedra, a Claridade

O linho destes lençóis devolve aos meus ouvidos ruídos que permitiram aalvura deles, pedra e sabão, a água límpida, a roldana, uma negra a limpar, fazer luzir,ofício repetido todas as noites o de aquecer as almofadas, abrir o cortinado, alisarrendas e bordados.

Às vezes, tarde da noite, meu coração se agita de prazer. É meu avô que nãoconheci a repartir o pão à porta, a arrear os cavalos indo para o mato. Mergulho juntocom o meu coração o fundo do meu peito e lamento a perda da visão da Lua quepasseia além das telhas. Este aposento é sombra eu lhe asseguro. Este aposento éágua, elemento primeiro cuja tepidez não me deixa sair à rua. Aqui é entranha, sim. Eesta negra, que reza e desconjura e diz ter conhecido os assassinos de meu pai,visitado o covil onde, escondidos, pensaram as armadilhas. Traziam armas queseguravam com estrépito para que mais rápido o medo se espalhasse pelos caminhos.

Das bocas medonhas escorria o sangue, a carne que acabavam de rasgar.Os olhos faiscavam, os chapéus eram negros e escondiam sede e luxúria, ódio peloperdão negado. Diz esta negra que reza e desconjura.

Neste quarto, senhora, recompondo as formas, dou ordem às coisas. Estequadro torto na parede tem mil anos e esta figura esquálida no leito de agonia tem umanjo por trás que tem mil anos. O tempo envelheceu as tábuas deste chão pelo pesodos corpos, pelas marcas dos pés que têm mil anos. O sol nas ranhuras presenciei nosdias de claridade intensa. Nos dias de tempestades o abrigo era tanto e tão antigo quemeus braços feito cruz tocavam as extremidades, eram paredes de pedra e era afago oque eu sentia, o calor deste quarto em meio à tempestade.

Meu avô, cuja voz não ouvi no passado, ouço neste tempo presente e nestasnoites, atravessando as salas, as soleiras, fechando e abrindo as janelas, nos vãos enos desvios, acima da minha cabeça, abaixo dos meus pés, ao meu lado, esquerdo, atosse dele do outro lado rua, o seu fantasma, ubíquo.

Passaporte e Nave

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Um quarto de hora queimando no meu pulso. Meu pulso cego guardador deum quarto de hora. Esses ponteiros esguios e negros, esses ponteiros presos naredoma de cristal também me prendem e vêm de muito tempo.

Não há acordes. O espaldar no qual recosto raiva e renúncia é meu cosmos,meu universo de cedro e para ele devolvo a cabeça incendiada. Nesse incêndio queirrompe a esta hora da noite, vejo, entre chamas, teu chapéu, o nó da gravata, tua bocade menino a zombar deste quarto de hora que atravesso aos empurrões.

A mesa está posta e tu não vens. Arde no meu pulso este quarto de hora,que cai como um raio e despedaça o muro, deixando a descoberto um corredorenlameado com enforcados atrás das portas.

A mentira vacila entre teus dentes e é meu o sangue que borbulha pelo golpede tuas mãos.

Ó céu de junho! Ó estrelas de papel!O limo que recobre esta soleira é testemunho. Não é invisível o teu vulto.

Agora mesmo pousaste na xícara de louça, depois da borda do poço e, então, aquidentro do meu peito. Te quero como ontem a palavra amável – passaporte e nave –para atravessar a noite.

Não é mais possível dividir em dois a água acumulada das paixões,imprudente estágio, rudeza e dissimulação no preparo das bodas.

Um quarto de hora aviltante a esmagar os lençóis e estraçalhar cortinas.Punhalada desferida à luz da Lua, vômito de sangue na espuma da praia. Um quarto dehora. E o cautério avança esbraseado em minha direção, misérrimo quarto de hora,misérrima hora. Teu perfil maligno, tua fronte infestada de ódio.

História e Personagem

Outra noite e uma esfera azulada cintila à minha frente. Impossível é verdaqui onde me encontro o contorno dos bálticos países, nem mares, nem as pequenasilhas Falkland.

Meus óculos descansam num livro aberto ao meu lado. Talvez elestornassem mais nítido algum promotório e eu pudesse distinguir a faixa de terraapontando para um farol incrustado em pedras semipreciosas. Obrigo-me daqui destelugar onde recosto corpo e memória a ver com nitidez um oceano que não precisonomear a fustigar de espuma as minhas costas, a dividir-me, a separar-nos, espaço queeu inauguro nesta noite para que meu escaler com marujos arrojados possa fazer atravessia e me levar.

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Neste espaço a memória inscreve, pela ausência, história e personagem, apassagem nossa, nossa ida e nossa vinda, trajeto e rota que vai do lugar de sombradeste quarto à esfera azulada e mítica de onde deito olhar de dor para narrar-te.

A Partir dali Crescia a Escada

É preciso concentrar meu pensamento, proteger minha memória de todos osardis, fitar de perto aquelas pedras da rua estreita, a porta de madeira velha, os nódulosdo tempo, as passagens do tempo, soleira alta e desgastada para ser galgada comesforço, enquanto se procurava a chave para recomeçar as voltas, quantas voltas e sócom o corpo rente, o ombro empurrando. Ela cedia e nos imobilizava numa faixaescura, ainda porque a partir dali crescia a escada a subir e desaparecer n’algumcômodo, lá onde respiravas, enfim, já antegozando a embriaguez e os riscos, teusobressalto era prazer que teus olhos repassavam a cada ruído estrangulado pelasgargantas finas, vindo da rua ou dos despenhadeiros da tua mente, do teu inferno aarder trancafiado dentro de ti.

Lambia tua íris amarela, quando em vez, esguia chama ou era só tua íris semchama alguma, fogo perene e só queimando as cinzas?

Engolido o sobressalto, iniciavas ritual interdito, tuas mazelas de vício, avoracidade fustigando tua dor, manufaturando, tua alquimia de espinhos a gerar otecido das imensas asas a garantir logo, logo o impulso para o vôo, o existir da viagemfeita por ti, empreendimento perigoso, o dolo.

Eu não passava ao largo do teu inferno. Fascinado por ele eu te seguia e nogelo do meu paraíso eu me fingia te abrigar. Mas o sofrimento era meu, o teu infernoera meu pela terceira vez. Sombras das minhas cavernas onde os esqueletos jaziamamontoados à espera das luas e peixes, águas envenenadas pela terceira vezprovocando minha sede. Empreendimento perigoso, o dolo. A mesma escada dandonuma porta que não abríamos para a rua porque eu não queria ver a rua, medo de sera mesma, a de antes, a de sempre, a que se bifurcava e me tangia sempre para o ladoque ninguém escolhia.

Os filhos desgarrados na tempestade e a tempestade inundando as raízesmais uma vez. Ao frio da madrugada exibíamos nossos corpos exauridos, os olhosinsones e deitávamos ao amanhecer.

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A Poeira da Noite

Não sei se até o final desta viagem o senhor me terá ao seu lado a escutarminhas histórias sobre mortos, moribundos e ausentes, alguns vivos, sim, ou melhordizendo, todos muito vivos saltando das minhas lembranças.

Há possibilidades de adormecermos os dois, nossas cabeças a balançarridiculamente enquanto este comboio avança estradas tão sinuosas, deixando para trásfumaça e fogo. Há de convir o senhor que entre o momento em que nos descobrimosocupantes deste mesmo vagão, lugares contíguos, quando ainda era madrugada e eunem sequer sabia da brancura de suas mãos, já faz muito tempo.

De lá agora, já vai muito tempo. Sei seu nome e profissão, seria até capaz dereconhecer a sua voz se, de repente, anteviesse um desastre, tragédia, acidente gravee eu precisasse – qual heroína ressurgida – de salvá-lo na escuridão, guiada apenaspelo som de sua voz. Mas de heroína, meu senhor, só me resta o desejo.

Houve um tempo, senhor, tempo de linhos, lençóis, pão fresco, caminhozinhoestreito que levava à fonte de pedra. Houve um tempo, senhor, em que eu teciaestranha rede, mas dormia sempre ao relento, o frio fustigando, a poeira da noite e asluzes lá longe onde jamais pude chegar.

Na Vigília que Engendro Nessas Folhas

Faz tanto tempo, faz um século, faz sol, faz um verão. Na vigília que engenhonessas folhas há galerias subterrâneas e encontro a cada passo um sonhador queacredita na saída desse túnel. Fantasmas do meu quarto, sombras que todas as noitesassistem ao acender das estrelas desse túnel. Cárcere dourado onde prendi meusdentes, a língua estranha e até mesmo um transatlântico de papel. Lições decontinentes, luz desvelada entre musgos de um minúsculo jardim, folhas feito céu porsobre a minha cabeça.

E este furor que me impele para as Índias sem soltar a âncora que me prendeos pés à casa. Fantástico navegar por entre mangueiras neste verão que só eu vejoanunciado por luas tão perfeitas. Mas não tenho cântaro e o caminho da fonte estáperdido. Sobram as asas que não se abrem nessa queda.

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A Mão que Semeia Tintas

Para Dina Oliveira

Aqui a luz engana. Onde se vê luz, entenda-se sombra. Onde parece sombra,deve-se entendê-la como luz. Aqui a luz vem de uma escuridão maior, das verdadeirasnoites negras e se dela emana um tom acobreado, que se ouça o som da queda livre,vôo cego, as asas quebrando contra o Nada.

Aqui as vísceras estão expostas para que seja possível ver o leito da Dor, agrande dor da lucidez e do espanto. Diante dessas telas há de se pensar no parto e nogozo e ouvir os gemidos que preparam o êxtase. Aqui nádega e púbis são formas denascer e de morrer.

Nessas telas cuja a luz engana, meu olho cauteloso lê as manchas trágicas,vê histórias de cores, examina entranhas, recompõe pedaços de corpos lacerados.Essa mancha azulada à esquerda, protege do meu olhar vazio, legião de famintos einjustiçados. Aquele tom lilás esconde de mim uma ferida aberta num seio murcho.Atrás daquele amarelo há um poço que se fez das lágrimas das mães que perderamseus filhos.

Esse ponto brilhante dilata a minha pupila, mas inunda meu coração.De costas para a porta entreaberta alguém experimenta as máscaras para o

grande mergulho, armaduras para o embate noturno. Procuro entre volumes eperspectivas o assassino, o amante que parte, a palavra que acende, a lâmina queseduz e o grito – espasmos da dor laborados pela mão que semeia tintas.

A febre, o Húmus

O senhor não me conhece. Venho de um reino, venho. Meu pai enviou-me aestâncias tão longínquas que herdei desse tempo um fraseado ondulante, palavrasaéreas, fiz-me reticente.

O senhor não me conhece porque venho de um reino, venho. Minhas irmãsguerreiras assombravam florestas, faziam rodopiar as árvores por leve sopro. Aoestrépito de seus cavalos irados, do chão brotavam fagulhas, a terra incendiava.

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Repudiavam a paz. Encolhida num canto, esperei, quantas vezes, que passassem,suas lanças rasgando os ventos.

Ajoelhada ao pé de um fundo poço de onde eu retirava pedras limosas, ouviestampidos e tropéis e mergulhei deixando as centenas de pedras. Deixei-as todas,jamais reencontrei.

Medo, meu senhor, um grande medo eu senti até que passassem minhasirmãs e eu pudesse voltar à superfície. Nossos laços estreitos tornaram-se frouxoslaços à medida que eu crescia, que crescíamos.

Empreendi caminhada tão terrível que essas mãos que agora passeiam porvosso corpo sangraram por noites a fio. A terra, este chão que recebe nossos corpos,eu palmilhei sem ódio, um só gemido, um só vazio. Pacíficos são os dias agora, semmais mistérios. Aprendi nos livros, meu pai ensinou-me a encontrar o húmus, plantar,colher, matar a sede, conhecer a febre, germinar, dilacerar, fazer tarefas.

O senhor não me conhece porque venho de um reino, venho.Na noite em que minhas irmãs incendiaram a floresta, a luz era tanta, o calor

insuportável que abri, com essas mãos, cova rasa e esperei que cessasse o fogo,aconcheguei-me à umidade das pedras, dormi anos de espera. Por isso insisto, osenhor não me conhece.

Meu reino é inacessível, meu rei é poderoso. Nem tenho cetro, não tragomanto, restou-me um anel somente, cujo símbolo minha memória perdida esqueceu.Arrancou-me do dedo minha irmã mais moça, na luta que travamos à beira desteabismo em busca de nossa identidade.

A ânsia de esquecer-me era tanta que eu quase morri, não fosse a vossapresença e a hercúlea força de vossos braços, que me alcançaram em meio à queda eensinaram a mim lição de gestos florescentes, estranha língua assimilada, serventiaminha e vossa doravante.

Mas desse tempo recuado só é conhecido o que narro, minhas secretasentranhas não perpetram nenhum crime, não sugerem nenhum sangue. Eu tenho aminha história, versão reticente ou não, encantatória ou não. Só vossa crença, só meusdias.

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Referências Bibliográficas

1. Obras da autora:

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2. Fortuna crítica:

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