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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA MARIA FERNANDA GODOY CARDOSO DE MELO RELAÇÕES PÚBLICO-PRIVADAS NO SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO Campinas 2017

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UNIVERSIDADEESTADUALDECAMPINASINSTITUTODEECONOMIA

MARIAFERNANDAGODOYCARDOSODEMELO

RELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADASNOSISTEMADESAÚDEBRASILEIRO

Campinas2017

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UNIVERSIDADEESTADUALDECAMPINASINSTITUTODEECONOMIA

MARIAFERNANDAGODOYCARDOSODEMELO

RELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADASNOSISTEMADESAÚDEBRASILEIRO

Prof.Dr.DENISMARACCIGIMENEZ–orientador

TesedeDoutoradoapresentadaaoProgramadePós-GraduaçãoemDesenvolvimentoEconômicodo Instituto de Economia da UniversidadeEstadualdeCampinasparaobtençãodotítulodeDoutora em Desenvolvimento Econômico, áreadeconcentração:EconomiaSocialedoTrabalho.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESEDEFENDIDA PELA ALUNA MARIA FERNANDA GODOYCARDOSO DE MELO E ORIENTADA PELO PROF. DR. DENISMARACCIGIMENEZ

Campinas2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4780-7381

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de EconomiaMirian Clavico Alves - CRB 8/8708

Melo, Maria Fernanda Godoy Cardoso de, 1972- M491r MelRelações público-privadas no sistema de saúde brasileiro / Maria Fernanda

Godoy Cardoso de Melo. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

MelOrientador: Denis Maracci Gimenez. MelTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Economia.

Mel1. Desenvolvimento Social. 2. Financiamento da assistência à saúde. 3.

Mercantilização. 4. Acesso universal a serviços de saúde. 5. Capital(Economia). I. Gimenez, Denis Maracci,1974-. II. Universidade Estadual deCampinas. Instituto de Economia. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Public-private relationship in Brazilian healthcare systemPalavras-chave em inglês:Social developmentFinancial resources in healthCommodificationUniversal access healthcare servicesCapital (Economy)Área de concentração: Economia Social e do TrabalhoTitulação: Doutora em Desenvolvimento EconômicoBanca examinadora:Denis Maracci Gimenez [Orientador]Luiz Gonzaga de Mello BeluzzoSulamis DainAna Luiza D'ávila VianaSônia Miriam DraibeData de defesa: 10-08-2017Programa de Pós-Graduação: Desenvolvimento Econômico

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UNIVERSIDADEESTADUALDECAMPINASINSTITUTODEECONOMIA

MARIAFERNANDAGODOYCARDOSODEMELO

RELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADASNOSISTEMADESAÚDEBRASILEIRO

Defendidaem10/08/2017

COMISSÃOEXAMINADORA

AAtadeDefesa,assinadapelosmembrosdaComissãoExaminadora,constanoprocessodevidaacadêmicadaaluna.

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AGRADECIMENTOS

ÀprofessoraSulamisDain,aquemdevomaisdoqueacoorientaçãopacienteesempre

muitogenerosa.Acolheu-menoRiodeJaneiro,deondevolteiconfiantedequetinhauma

tese.Suaimportânciatransbordouparaalémdaorientaçãoelhesoumuitogrataportudo.

Considero-aumexemplodemulhereintelectual.

AoDenisMaracciGimenez,porteraceitadoaorientaçãodestatesenomeureingresso

aoIE/UNICAMP,pelaleituracuidadosadomeutextodaqualificaçãoedaversãofinal,porter

dadocontribuiçõesimportantesparaotrabalhoeportodaajudasemprequeprecisei.

Ao professor João Manuel Cardoso de Mello, à professora Liana Aureliano e ao

professorLuizGonzagadeMelloBelluzzo,fundadoresdasFaculdadesdeCampinas,FACAMP,

onde tenho o privilégio de trabalhar, pelo apoio generoso, pela inestimável convivência

intelectual e pelo exemplo de dignidade e excelência moral. Ao professor João Manuel

CardosodeMello façoumagradecimentoespecialpelagenerosidadedeseuacolhimento,

pelasuamaestria,humanidadeepelascontribuiçõesvaliosasaminhatrajetóriaintelectuale

aotrabalhodatese.

Às professoras Sônia Miriam Draibe, Ana Luiza D’Ávila Viana e Sulamis Dain e ao

professorLuizGonzagadeMelloBelluzzo,porteremmedadoahonradeparticipardabanca

dedefesa,contribuindoparaoenriquecimentodatese,paraseusdesdobramentosereflexão

intelectual.Reunirnabancadedefesaalgumasdeminhasmaisimportantesmestrasemestre

foimuitoespecial.

ÀsminhasprofessoraseprofessoresdoIE/UNICAMP,aoscolegasdepós-graduaçãoe

pesquisa,especialmentedoNEPP/UNICAMP,quemarcaramminhaformaçãointelectual.

AoHugoMiguelOliveiraRodriguesDias,pelaleituracuidadosadotextodequalificação

esugestões.

AoRodrigoSabbatini,peloempenhoparaqueeuobtivesseumsemestrededicado

exclusivamenteàelaboraçãodestatese,quefoiessencialparaomergulhonecessáriopara

darinícioaestetrabalho.

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À Juliana Cajueiro, amiga e parceira de longa data, por todo o apoio e ajuda que

generosamentemedeu,especialmentedurantetodaaetapadeelaboraçãodestatese.Éum

privilégiopoderdividircomela,alémdaamizadeedotrabalho,ointeresseporestetematão

especialeinstigantedaeconomiapolíticadesaúde.

Às “meninasdaFacamp”pela sororidadequevimosconstruindo, tãonecessária.À

todasasmulherescomquemconvivoemeensinamdiariamenteaforçae importânciado

feminismo.

ÀDanielaGorayeb,parceirade tese,das lutase ruaseamigaquerida,por termos

andadojuntasesintonizadasnestepercurso,porvezestãoangustiante.Eleficoubemmelhor

porisso.

Aoscolegas,professoraseprofessoresdaFacamp,comquemconvivoeaprendonos

semináriosdequarta-feiraenatãonecessáriapizzaquevememseguida.

Asminhas/meuscolegasdeequipedemonografia,JulianaCajueiro,TatianaMaranhão

e Vinícius Gaspar Garcia, pela sorte de poder trabalhar com eles. Estendo também o

agradecimentoaosquejáfizerampartedaequipe.

À Adilzane Silva e à Fabiana Andrade agradeço a gentileza e estendo os

agradecimentosatodososfuncionáriosdaFACAMP.

ÀMarinaWendel deMagalhães, pela amizade fraterna, pelamadrinha presente e

amorosa,pelaafilhadalindaqueganhei,aqueridaCelina,epelarevisãocuidadosadestatese.

Estendo o agradecimento ao Rilk, por todo carinho e ajuda com o leva e traz da dupla

dinâmica.

Ao Davi José LessaMattos, à Lígia Todescan LessaMattos e à Rita Sigaud Soares

Palmeira, pela traduçãodos trechosem francês.AoGláucio Sansevero, pela traduçãodos

trechoseminglês.

ÀAdrianaCamposdeCerqueiraLeite,pelo“divã”epormeajudarcomaoutrahistória

destatese.

Às amizades fundamentais da vida, as de toda a vida e as novas, agradeço pelo

privilégiodecompartilharaamizadedevocês.Emespecial,MarinaMagalhães,RitaPalmeira,

AslaMedeiroseSá,MarcioVarella,FernandaRaquel,RafaelOliva,InaêCoutinho,Paulado

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AmaralNogueira,LetíciaSevilhano,MiguelPalmeira,FernandaGuimarães,TeresaPalmeira,

João Guilherme Cardoso de Mello, Juliana Cajueiro, Daniela Gorayeb, Claudia Hamasaki,

HenriqueJoséeFabianaGrecco.

Aosamigosqueganheipelaamizadequemeus filhosconstruíramequeconsidero

amigosequeridos:CleliaeGian,LucianaeGuilherme.Agradeçoportodaajudaecuidadoque

têmcommeusfilhos.

ÀqueridafamíliaMagalhães,queconsideroumpoucominha.

Aos meus sogros, Hilda e San, aos meus cunhados, Perla e Giovanni, e aos meus

queridossobrinhosLucas,Pedro,ArthureGabriel.

ÀLuciaraGoesHolsbachpelaajuda,amparoeocuidadocarinhosoeamorosoque

foram fundamentais para que pudesse me ocupar com este trabalho. Estendo o

agradecimentoaoAgrimal,Mairaeatodaessafamíliatãoespecial.

ACéliaeLuizAlberto,meuspais,peloapoioeenormegenerosidade,porteremme

passadovaloresfundamentais,peloacolhimentoamorosodesempreeportodooamor.

AomeuirmãoqueridoLuizGuilherme,peloamorfraterno.ÀDébora,minhacunhada,

eaomeusobrinhoVito,quechegaráemnovembro,trazendonovavidaeamorparanossa

família.

Aomeuoutroirmãoquerido,Lipe,que,ondequerqueesteja,estarásemprecomigo.

Aos meus filhos, Maria Luiza e Miguel, por todo amor que nos une, agradeço a

paciênciaecompreensãoquetiveramcomigo,nesseperíododeelaboraçãodatese,quando

muitasvezesconviveramcomumamãepreocupada,nervosae,porvezes,ausente.Seguimos

juntos, commuito amor, ajudandoa construir ummundo commais confiança, igualdade,

amorejustiça.Estateseédedicadaavocês,MalueMiguel.

AoGlaucio Sansevero,meu companheironessa caminhada,meuporto seguro, por

sempremeamparar,ajudar,estaraomeulado.Peloamorcomquesedesdobrouparaque

eupudesseterminarestatese.Nãoépossívelexpressarcompalavrasmeuagradecimentoe

amor.

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RESUMO

Otemageraldestateserefere-seàinserçãodossistemasdesaúdenadiscussãodo

welfarestate,porumlado,e,poroutro,nadiscussãodaacumulaçãodecapitalapartirda

qualédesenvolvidaaquestãodasrelaçõespúblico-privadas,quepodemserentendidascomo

umaexpressãodessaacumulação.Oobjetivodateseédiscutirocasoespecíficodasrelações

público e privadas no financiamento do sistema de saúde brasileiro, contudo, inserindo-o

dentro de um espectro mais geral dado pelos movimentos recentes que ocorreram nos

sistemasdesaúdeuniversaisdospaísesdaEuropaocidental,apartirdadécadade1970,no

contextodoneoliberalismo.Ahipóteseéque,naatualconfiguraçãodoswelfarestates,os

sistemas de saúde apresentam maior diversidade nas formas de concepção, valores,

institucionalidadeefinanciamentodoqueossistemasdeprevidênciaeassistênciasocial.Os

sistemasdesaúdeconstituemcampofértilparaoaprofundamentodeestudossobrearelação

público e privado, no Brasil, em função da crescente presença do setor privado na

configuração dos sistemas de saúde e da lógica de mercado e intenso processo de

mercantilização. Nessa discussão, há um aspecto marcante, que é a presença de dois

processossimultâneos:um,demercantilizaçãodosserviçosdesaúdeacargodosetorpúblico

e,outro,dedesmercantilizaçãodofinanciamentodosetorprivado.Adesmercantilizaçãodo

setorprivadoantecedeamercantilizaçãodosetorpúblico,que,noBrasil,éumfenômenoda

últimadécada.NocasodoBrasil,esseprocessosedádeformacontraditóriaàpropostade

universalizaçãodoacessoaos serviçosde saúde,parteessencialdoprojetode seguridade

social presentenaConstituiçãode 1988. Para desdobrar os temas tratados por esta tese,

referentes ao entendimento da questão acima anunciada, a tese está organizada em três

capítulos,alémdestaintroduçãoedaconclusão.Oprimeirocapítulotratadaconfiguração

dossistemasuniversaisdesaúdeearelaçãoentreopúblicoeoprivado.Osegundocapítulo

discorre sobre a formação do sistema de saúde brasileiro do ponto de vista das relações

público-privadas, enfatizando suasmarcas originárias, a constituição do SistemaÚnico de

Saúdeeseussignificados.Oterceiroeúltimocapítuloaprofundaotemadofinanciamentodo

SUSeseusconflitosdistributivossobaóticadasrelaçõespúblico-privadasnofinanciamento

dasaúdenoBrasil.

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Palavras-chave: relaçãopúblico-privadana saúde;espaçode valorizaçãoeacumulaçãode

capital; espaço não mercantil; universalização do acesso aos serviços de saúde;

mercantilização; desmercantilização; Sistema Único de Saúde; renúncia de arrecadação;

concorrência setor público e privado na saúde; desigualdades sociais; seguridade social;

welfarestate.

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ABSTRACT

Thegeneralsubjectofthisthesisis,fromoneperspective,theinsertionofthepublichealth

systems in thewelfare state discussion, and from another, the discussion of the capital

accumulationfromwheretheprivatepublicrelationshipissue,understoodasanexpression

oftheaccumulationitself,isdeveloped.Thegoalofthisthesisistodiscusstheparticularcase

of the public private relationships in the financing of the Brazilian healthcare system,

nonethelessinsertingitunderabroaderspectrum,createdbyrecentmovements,startedin

the 70’s, in the universal healthcare systems of Western European countries, within the

contextofneoliberalism.Thehypothesisisthat,inthepresentconfigurationofthewelfare

states, the healthcare systems present a wider diversity in its conception, values,

institutionality, and financing forms than the social security and assistance systems. The

healthcaresystemsconstituteafertilegroundtogodeeperinthestudiesoftheprivatepublic

relationsinBrazil,consideringthegrowingpresenceoftheprivatesectorintheconfiguration

ofhealthcaresystems,themarket logicandan intenseprocessofcommodification. Inthis

discussion, there is one key aspect in the presence of two simultaneous processes: the

commodification of healthcare services formerly performed by the public sector, and the

decommodification of the private sector financing. The decommodification of the private

sectorprecedesthecommodificationofthepublicsector,thathappenedinBrazilonlyinthe

lastdecade.IntheBraziliancase,thisprocessgoesagainsttheproposalforuniversalizationof

theaccesstohealthcareservices,anessentialpieceofthesocialsecurityprojectintroduced

by the federal constitution of 1988. In order to unfold the subjects proposed by thesis,

concerningthematterintroducedabove,theworkisdividedinthreechapters,aswellasan

introduction and a conclusion. The first chapter is about the configuration of universal

healthcare systems and the private public relationship. The second chapter discuss the

formationoftheBrazilianhealthcaresystemfromtheprivatepublicrelationshipperspective,

withemphasisonitsoriginalcharacteristics,theconstitutionoftheSistemaÚnicodeSaúde

and its meanings. The third and last chapter, develops the subject of SUS financing, its

distributiveconflicts,underthelensoftheprivatepublicrelationshipsthatprovidefinancing

totheBrazilianhealthcaresystem.

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Keywords: public-private relationship in healthcare; space for capital appreciation and

accumulation; healthcare services universal access; commodification; decommodification;

Sistema Único de Saúde; tax waiving; healthcare private and public competition; social

inequality;socialsecurity;welfarestate.

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LISTADEGRÁFICOS

GRÁFICO1-MINISTÉRIODASAÚDE(MS):EXECUÇÃODOGASTOTOTALPORFONTEDERECURSOS,CPMFEDEMAISFONTES(1995-2011)(EMR$BILHÕESDE2011).....................................................................................................................112

GRÁFICO2-PARTICIPAÇÃODASTRÊSESFERASDEGOVERNONOTOTALDOGASTOPÚBLICOCOMASPS–2002A2015..............116GRÁFICO3-SIMULAÇÃODAAPLICAÇÃOMÍNIMAPARAOGASTOCOMSAÚDECOMAREGRADE2016ECOMAREGRAESTABELECIDA

PELAPEC55(2017–2036)...........................................................................................................................123GRÁFICO4-BRASIL:SIMULAÇÃODASDESPESASPÚBLICASEM%DOPIBCOMAECN.95,2015-2036..................................124GRÁFICO5–PROJEÇÃODOIMPACTODAPEC241SOBREOGASTOFEDERALCOMSAÚDEEMCOMPARAÇÃOCOMAMANUTENÇÃODA

REGRADAEC86–EMR$DE2016PERCAPITA...................................................................................................128GRÁFICO6-GASTOTOTALCOMSAÚDECOMOPERCENTAGEMDOPIB(2011)DIVERSOSPAÍSES.............................................132GRÁFICO7-PARTICIPAÇÃODOGASTOPÚBLICOEDOGASTOPRIVADONOGASTOTOTALCOMSAÚDEEMPAÍSESSELECIONADOS(2011).

...................................................................................................................................................................133GRÁFICO8-PARTICIPAÇÃODOSSEGMENTOSNARECEITADOSETORDESEGUROS,BRASIL,2009-2014.................................151GRÁFICO9-NÚMERODEBENEFICIÁRIOSNOSETORDESAÚDESUPLEMENTARPORMODALIDADE,BRASIL,2009-2015..............153GRÁFICO10-GASTOTRIBUTÁRIOEMSAÚDEVERSUSGASTOSCOMASPS,BRASIL,2008–2014..........................................158GRÁFICO11-PARTICIPAÇÃODAFUNÇÃOSAÚDENOTOTALDOGASTOTRIBUTÁRIOFEDERAL,BRASIL,2006–2014................159GRÁFICO12-PAGAMENTOSEDOAÇÕESEMSAÚDENADIRPFEM%DOTOTAL,BRASIL,2008–2014.................................161GRÁFICO13-GASTOTRIBUTÁRIOEMSAÚDE,VERSUSGASTOTRIBUTÁRIOCOMPLANOSDESAÚDE,BRASIL,2008–2014.(R$

BILHÕESDE2014[IPCA])...............................................................................................................................162GRÁFICO14-TRIBUTAÇÃODOSPLANOSDESAÚDEPORSEGMENTO,BRASIL,2014.............................................................165GRÁFICO15-COMPOSIÇÃODATRIBUTAÇÃODOSPLANOSDESAÚDEPORSEGMENTO,BRASIL,2014......................................166GRÁFICO16-BENEFICIÁRIOSDEPLANOSDEASSISTÊNCIAMÉDICAPORTIPODECONTRATAÇÃONOBRASIL-DEZ/2000AJAN/2017-

EMMILHÕES..................................................................................................................................................168GRÁFICO17–MULTIPLICADORESDECORRENTESDEUMAUMENTODE1%DOPIBSEGUNDOTIPODEGASTOSOBREOPIB..........169GRÁFICO18–COMPORTAMENTODOÍNDICEDEGINIEDASRENDASTOTAIS(ORIGINAL,INICIAL,DISPONÍVEL,PÓS-TRIBUTAÇÃOE

FINAL)–BRASIL–2003E2009.......................................................................................................................171

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LISTADEQUADROS

QUADRO1-FUNÇÕESPERMITIDASPELOSEGUROPRIVADODESAÚDEEMALGUNSPAÍSESDAOCDE..........................................51QUADRO2-MODALIDADESDECLASSIFICAÇÃODASEMPRESASOPERADORASDESERVIÇOSDEATENÇÃOÀSAÚDE........................149QUADRO3-OPROCESSOHISTÓRICODAORGANIZAÇÃODOSETORDESAÚDEEOANTECEDENTEPARAOSISTEMABRASILEIRODE

CUIDADODASAÚDE.........................................................................................................................................199

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LISTADETABELAS

TABELA1-DISTRIBUIÇÃOPERCENTUALDAEXECUÇÃODOMSPORFONTEDEFINANCIAMENTO(1995A2011).........................113TABELA2-SIMULAÇÃODEGASTOSCOMASPSNAECN.29SEMAINCLUSÃODACONTRIBUIÇÃOSOCIALPARAASAÚDE,EMR$

MILHÕESCORRENTES–1999-2013..................................................................................................................117TABELA3-SIMULAÇÃODEGASTOSCOMASPSNAPECDOORÇAMENTOIMPOSITIVO(N.358)SEMAINCLUSÃODACONTRIBUIÇÃO

SOCIALPARAASAÚDE,EMR$MILHÕESCORRENTES–1999-2013........................................................................118TABELA4–ESTIMATIVADEIMPACTODAPEC241PARAOFINANCIAMENTOFEDERALDOSUS–CENÁRIOSPARAOPERÍODODE2017

A2036........................................................................................................................................................126TABELA5–DESPESASREALIZADASEMEDUCAÇÃOESAÚDENOPERÍODO2002A2015COMPARADOASIMULAÇÃODASDESPESASEM

EDUCAÇÃOESAÚDEPELAREGRADAPEC241–BRASIL2002–2015.(VALORESREAISDEDEZEMBRODE2015(IPCA).ANO-BASE2002)...........................................................................................................................................127

TABELA6-BRASILEPAÍSESSELECIONADOS–GASTOTOTALCOMSAÚDE,GASTOPÚBLICOCOMSAÚDE,GASTOPRIVADOCOMSAÚDE,GASTOPRIVADOOUT-OF-POCKETCOMSAÚDECOMO%DOPIB.GASTOTOTALPERCAPITAEGASTOPÚBLICOPERCAPITA(PPPINTUS$).–2011..........................................................................................................................................136

TABELA7-RECEITADECONTRIBUIÇÕESSOCIAISSELECIONADASEOSEFEITOSDADESVINCULAÇÃOPROMOVIDOSPELADRU,EXERCÍCIOSSELECIONADOSDE2005,2008,2010E2012A2014[VALORESCORRENTES,R$MILHÕES].......................141

TABELA8-EVOLUÇÃODASDESPESASDOMSCOMAÇÕESESERVIÇOSDESAÚDEPÚBLICAEMRELAÇÃOADIVERSOSINDICADORES,2005,2008,2010,2012A2014..................................................................................................................142

TABELA9-BRASIL–VALORESDASNOVASRENÚNCIASFISCAISADOTADASAPARTIRDE2010,QUEPRODUZIRAMEFEITOSDE2012A2014[EMR$MILHÕES]..................................................................................................................................143

TABELA10-RECEITADOSETORDESEGUROSPORSEGMENTO,BRASIL,2009–2014[R$BILHÕESDE2014(IPCA)]...............150TABELA11-RECEITADECONTRAPRESTAÇÃONOSETORDESAÚDESUPLEMENTARPORMODALIDADE,BRASIL,2009–2014R$

BILHÕESDE2014(IPCA)]...............................................................................................................................152TABELA12-ARRECADAÇÃOTRIBUTÁRIAFEDERALNOSETORDESAÚDESUPLEMENTAR,BRASIL,2008-2014.........................154TABELA13-GASTOSTRIBUTÁRIOSEMSAÚDEPORMODALIDADEDOGASTO,BRASIL,2006–2014[R$MILHÕESDE2014(IPCA)]

...................................................................................................................................................................157TABELA14-PAGAMENTOSEDOAÇÕESEMSAÚDENADIRPFPORTIPO,BRASIL,2008–2014.............................................160TABELA15-RECEITASEDESPESASCOMTRIBUTOSCOMPLANOSDESAÚDE,PORSEGMENTO,BRASIL,2014(R$MILHARES

CORRENTES)..................................................................................................................................................164TABELA16–DISTRIBUIÇÃODOGASTOPÚBLICOFEDERALEMSAÚDE,SEGUNDORUBRICASDEGASTOEPORDÉCIMOSDERENDA–

2008...........................................................................................................................................................172TABELA17-VALORESPERCAPITAMENSAISDAESTIMATIVADOGASTOPÚBLICO,DOGASTOPRIVADOEDAESTIMATIVADARENÚNCIA

FISCAL–R$JAN./2009...................................................................................................................................174

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................16

CAPÍTULO1–ACONFIGURAÇÃODOSSISTEMASUNIVERSAISDESAÚDEEARELAÇÃOENTREOSSISTEMASPÚBLICOEPRIVADO........................................................................231.1–AIMPORTÂNCIADOWELFARESTATEEDOSESTUDOSCOMPARADOS............................................241.2–TENDÊNCIASRECENTESDOSWELFARESTATESDOSPAÍSESDESENVOLVIDOS...................................331.3–SISTEMASDESAÚDE,PADRÕESEESTRATÉGIASDEFINANCIAMENTOFRENTEAO“CAPITALISMOSANITÁRIO”.............................................................................................................................421.4–TRANSFORMAÇÕESRECENTESDOSSISTEMASDESAÚDEUNIVERSAISNOCONTEXTODASRELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADAS...................................................................................................................70

CAPÍTULO2–AFORMAÇÃODOSISTEMADESAÚDEBRASILEIRODOPONTODEVISTADASRELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADAS:SUASMARCASORIGINÁRIAS,ACONSTITUIÇÃODOSISTEMAÚNICODESAÚDEESEUSSIGNIFICADOS.............................................................822.1–OSANTECEDENTESDOSISTEMAÚNICODESAÚDE..................................................................852.2–ABERTURADEMOCRÁTICA,MOVIMENTOSANITARISTAEASSEMBLEIANACIONALCONSTITUINTE.......912.3–ACONSTITUIÇÃOFEDERALDE1988:ORÇAMENTODASEGURIDADESOCIALEOSISTEMAÚNICODESAÚDE...................................................................................................................................99

CAPÍTULO3-OFINANCIAMENTODOSUSEOSCONFLITOSDISTRIBUTIVOSNASAÚDE:ASRELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADASNOFINANCIAMENTODASAÚDENOBRASIL...................1043.1–AVULNERABILIDADEDOFINANCIAMENTODOSUSEASLUTASPELAGARANTIADERECURSOSNOCONTEXTODASRELAÇÕESPÚBLICO-PRIVADAS...............................................................................1063.2–RENÚNCIASFISCAISCOMOMECANISMODETRANSFERÊNCIADOSFUNDOSPÚBLICOSPARAOSETORPRIVADONASAÚDE.................................................................................................................145

CONCLUSÃO...................................................................................................................179

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................184

ANEXOS..........................................................................................................................198

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16

Introdução

Otemageraldestateserefere-seàinserçãodossistemasdesaúdenadiscussãodo

welfarestate,porumlado,e,poroutro,nadiscussãodaacumulaçãodecapitalapartirda

qualédesenvolvidaaquestãodasrelaçõespúblico-privadasquepodemserentendidascomo

umaexpressãodessaacumulação.

Nessesentido,orecortequeescolhemosparaabordarotemaéodofinanciamento

dosistemadesaúdeesuasrelaçõespúblicoeprivadanoBrasil,observandoseoBrasilse

conformaaessepadrão,noqueeledivergeeporqueelediverge.

O objetivo da tese é discutir o caso específico das relações público e privada no

financiamentodo sistemade saúdebrasileiro, contudo, inserindo-o emumespectromais

geraldadopelosmovimentosrecentesqueocorreramnossistemasdesaúdeuniversaisdos

paísescentraiseuropeusapartirdadécadade1970,nocontextodoneoliberalismo.

Estetrabalhopartedahipótesedeque,naatualconfiguraçãodoswelfarestates,os

sistemas de saúde apresentam maior diversidade nas formas de concepção, valores,

institucionalidadeefinanciamentodoqueossistemasdeprevidênciaeassistênciasocial.Os

sistemasdesaúdeconstituemcampofértilparaoaprofundamentodeestudossobrearelação

público e privado, no Brasil, em função da crescente presença do setor privado na

configuração dos sistemas de saúde e da lógica de mercado e intenso processo de

mercantilização.

Nesta discussão, há um aspecto marcante, que é a presença de dois processos

simultâneos:porumlado,demercantilizaçãodosserviçosdesaúdeacargodosetorpúblico,

eporoutro,dedesmercantilizaçãodofinanciamentodosetorprivado.Adesmercantilização

dosetorprivadoantecedeamercantilizaçãodosetorpúblico,que,noBrasil,éumfenômeno

daúltimadécada.

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No caso do Brasil, esse processo se dá de forma contraditória à proposta de

universalizaçãodoacessoaos serviçosde saúde,parteessencialdoprojetodeseguridade

socialpresentenaConstituiçãode1988.

Amercantilizaçãoemcursoreforçaasegmentaçãodomercado,aconcorrênciaentre

osetorprivadoepúblico,especialmentenaprestaçãodeserviçosdemédiacomplexidade,

nosquaisoavançodocapitalprivadonasaúdesedáemdetrimentodoSUSuniversal,via

transferênciadefundospúblicosaosetorprivado,evemagravandoasdesigualdadessociais

deacessoaosserviçosdesaúde.Consequentemente,somenteoestabelecimentodelimites

e a ampliação da capacidade regulatória do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Agência

NacionaldeSaúde(ANS),bemcomosuacoordenação,poderãoconterosefeitosnegativos

relacionados ao avanço do capital privado na área da saúde, atenuando os impactos da

segmentaçãoedaconcorrênciadesenfreadanocampodasaúde.

Mesmo na bibliografia convencional sobre o tema, é reconhecido que o

desenvolvimento do setor privado de saúde, ao seguir a lógica de mercado, tem efeitos

positivos e negativos. Os positivos seriam, por exemplo, as inovações tecnológicas; os

negativos,aseleçãoadversa,asegmentaçãodaclientela,ogasto“catastrófico”.

Portanto,apartirdessasconsiderações,podemosafirmarqueasaúdenãoéumaárea

que possa ser totalmente mercantilizada, pois tem especificidades que a afastam da

precificaçãoedaunitarizaçãodoscustos.Paraalémdas“externalidades”,reconhecidaspela

visãoclássicadotema,existeoutralógicaquesecontrapõeaesta:abuscaporumasociedade

maisjusta,menosdesigual,maisdigna,maissolidária,naqualasaúde,comodireitosocial,

integreoprocessopolíticoematerialdeaquisiçãodacidadania.

Paratanto,nãosetrataapenasderesponderàsimperfeiçõesdomercado,mas,sim,

delimitarosefeitosnegativosdoavançodalógicamercantiledosetorprivadonasaúde.Seria

precisoconfigurarumarranjosolidárioentreosetorpúblicoeoprivado.

Todasassociaisdemocraciaseuropeiasassimofizeram,emboratenhamdivergidoem

termos de concepção e escopo dos sistemas universais. Entre os países desenvolvidos,

somenteosEUAapresentamumsistemadesaúdesegmentado,comcoberturapúblicadas

ações e serviços direcionados exclusivamente aos indivíduos em condição de fragilidade

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econômicaesocial,quedeixadescobertoumexpressivonúmerodeindivíduos–estimado,

em2014,em47milhões– semcapacidade financeirapara contribuir individualmente,de

formaregular,demodoacobriroscustoscrescentesdosplanosdesaúdeaolongodesua

vida.Essesistemaapresentaaltocustorelativamenteaospaísesdecoberturauniversaleé

ineficazdopontodevistadosindicadoresdesaúde.

Aatualizaçãodossistemasuniversaisàsnovascondiçõesdomercadodetrabalhoe

dasaspiraçõessocietais,alémdasnovastecnologiaseformasdeorganizaçãodosserviços,

sãomaneiras contemporânease reaispara limitaros efeitosnegativosdoavançoprivado

(mercantilefinanceiro)nasaúde.

A desmercantilização se apresenta como central para conter esse avanço. Para

aprofundar a discussão que recebeu a denominação geral de mercantilização, faz-se

necessário estudar as duas faces da mesma moeda: o processo de mercantilização e o

processodedesmercantilização.

AreflexãomaisgeralconduzaumdesdobramentoparaoBrasileaumexamedesuas

semelhanças,contrastesedissonâncias.

Para desenvolver os temas tratados por esta tese, referentes ao entendimento da

questãoacimaanunciada,organizamosotextoemtrêscapítulos,alémdestaintroduçãoeda

conclusão.

No capítulo 1, veremos quais foram as transformações nos sistemas de saúde,

particularmente no que se refere ao financiamento e à universalidade do acesso, que se

configuraramdiantedoavançodamercantilizaçãosobreesseespaçonãomercantil,resultado

deummovimentoanteriordedesmercantilização,sofridopelassociedadeseuropeiasdopós-

guerra,queestruturaramumarranjosolidáriodesociedade.Aforçadessearranjo,pormais

quetenhasofridoabalosconsideráveiscomoavançodalógicamercantil,mostraresistência

nadimensãodauniversalidadedoacessoaosserviçosdesaúde.

Paratanto,abordaremosaImportânciadowelfarestatemostrando,brevemente,que,

apartirdofinaldosanos1940,houveaconformaçãodeumarranjoentreEstado,mercadoe

sociedadequeestabeleceuasolidariedadecomovalorsocialeaceitouapresençaativado

Estado para combater as desigualdades criadas pelo capitalismo por meio, entre outras

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dimensões,deumaestruturadefinanciamentojustoecoletivoquedeuorigemaosestados

debem-estarsocial.

No campo teórico do estudo sobre desenvolvimento comparado, a consagrada

tipologiapropostaporEsping-Andersen(1990)apresentatrêsregimesdebem-estarsocial.

Suas características possibilitam, por um lado, compreender as diferençasmais gerais do

arranjodeacordocomosvalorespredominantesnassociedades.Essetipodeabordagem,

poroutrolado,apresentalimitaçõesqueescondemaspectosdinâmicosdahistóriaconcreta

dospaísesedasmudançasqueos arranjos sofreramdeacordo comopróprio avançoda

sociedade, que é, por sua vez, reflexo dos problemas e soluções enfrentados nas suas

realidadesconcretasdavidadiária.

Emquepesemessaslimitaçõesmetodológicas,Esping-Andersen(1990)seutilizade

um conceito importante e interessante de Polanyi, que é particularmente inspirador para

refletirmos através destas lentes e analisarmos o caso particular que as modificações

estruturais trazem para os sistemas de saúde e seus desdobramentos para a questão do

acessouniversalaosserviçosdesaúdeentendidacomoumadasdimensõesdadesigualdade

edireitossociaisfundamentais.Esteéoconceitodedesmercantilização.

Prosseguimos tratando das tendências recentes dos welfare states, mostrando

brevementequaissãoasnovasfeiçõesdoswelfarestateresultantesdastransformaçõesque

ocapitalismoglobalizadoefinanceiroimpôsaosarranjosconformadosnopós-guerra.Entre

essastendências,estáoavançodapresençaprivadanasestruturaspúblicasecoletivasdo

Estado,nosespaçosnãomercantis,entreelesasaúde,queserá,apartirdoitem1.3,ofoco

denossaanálise.

Adiante, na discussão sobre os sistemas de saúde, seus padrões e estratégias de

financiamentofrenteao“capitalismosanitário”,portantojánocampoespecíficodorecorte

destatese,odossistemasdesaúde,veremosospadrõesdefinanciamentoexistentesnos

sistemasdesaúdeeosarranjospossíveisentreossistemasdesaúdepúblicoseosprivados.

Veremos,também,quaisforamosnovosproblemaseassoluçõesdadaspelossistemasde

saúde configurados no pós-guerra frente ao avanço do setor privado. Entre esses

desdobramentos,estãoauniversalidadeeofinanciamento,queforamexaminadosapartir

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dasconfiguraçõesatuaisdosmodeloshegemônicosnomundo.Oavançodosetorprivadofoi

umatendênciageraldomovimentoatualdocapitalismo.Portanto,precisamossaberquais

foram as consequências desse avanço para a universalidade dos sistemas de saúde, uma

dimensãodaquestãodadesigualdadesocial.Aindadiscutiremosoaumentodofinanciamento

da saúde por parte dos pacientes, mostrando uma importante consequência da

mercantilizaçãosofridapelossistemasdesaúde.

Por fim, na discussão sobre as transformações recentes dos sistemas de saúde

universais no contexto das relações público-privadas, olharemos mais especificamente a

mercantilizaçãodossistemasdesaúde,mostrandosuasváriasdimensões,alcanceselimites

postosaoseuavançoequetêmrelaçãocomamanutençãoeatéampliaçãodauniversalidade

dossistemasdesaúde.

Entretanto,nãoéissoquevaiacontecernocasodosistemadesaúdenoBrasil.Para

entendermosoporquêdessafracaresistêncianocasobrasileiro,ocapítulo2tratadagênese

dosistemadesaúdebrasileiro.Comovamosaprofundaroestudosobreasrelaçõespúblicoe

privadasnocasobrasileiro,énecessárioapresentarumaperspectivahistórico-institucional

dosistemadesaúde.Éapartirdagênese,dascondiçõesespecíficasbrasileiras–desigualdade,

heterogeneidade –, da etapa do capitalismo, da recomendação da privatização, que

conseguiremoscompreenderqueaorigemdosistemapúblicodesaúdeécontemporâneaàs

críticasaosseusprincípiosnocenáriointernacional.Nagênesedosistemadesaúdepúblico

brasileiro,hádoismovimentossimultâneos:odedesmonteeodeconstruçãodaSeguridade

SocialedoSUS.

OmovimentodeconstruçãodaSeguridadeSocialedoSUSnoBrasilnãosedeuno

período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 1970, idade de ouro do capitalismo

mundial no campo do crescimento econômico, do pleno emprego e dos avanços sociais.

Começouemumterritórioesfacelado,submetidoaojugodoConsensodeWashington,em

ummomento de reforma do sistema de saúde nos países europeus e de privatização na

AméricaLatina.

O capítulo 2 tratará da relação público e privado do sistema de saúde no Brasil.

VeremosaorigemdoSistemaÚnicodeSaúdedentrodosistemadeproteçãosocialbrasileiro

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decaracterísticameritocrática,cujamarcaorigináriajáapontavaasegmentaçãocomumviés

privatista e outro universalista e que a falta de diálogo entre esses dois vetores de

transformação do sistema, em um determinado momento, imprimiu características

marcantesededifícilsuperaçãoparaasrelaçõespúblico-privadanasaúde.Relembraremos,

àluzdaatualcrisepolítico-econômica,osembatesdaspropostasdeconstruçãodoSistema

ÚnicodeSaúdetravadosnaAssembleiaNacionalConstituinte.Porfim,veremosodesenlace

desseprocesso,queculminoucomaconstituiçãodoSUSnaConstituiçãoFederalde1988,

queotrouxeconsigoemumanovacondição,degarantiadeacessouniversalatodos,com

financiamentopúblico,mascomosmeiosdeproduçãodeserviçosprivadooupúblico.Esse

movimento imprimiu ao SUS uma configuração particular cujas consequências na relação

público-privadarefletemenormesdificuldadesnofinanciamentodosistemapúblico,jáqueo

volume de recursos e de oportunidades de mercado alimentam, também, o complexo

industrialdasaúde,cuja“sede”pelavalorizaçãodeseucapital,dadoocontextomundialde

globalização e financeirização, tornou-o forte para avançar naprivatizaçãodeum sistema

recém-universalizado.

Dentreosdesdobramentosdamercantilizaçãodosserviçosdesaúdeacargodosetor

público, há umoutro processo importante que será apresentadono capítulo 3: a face da

desmercantilização do financiamento do setor privado, sem aumento da capacidade

regulatóriadoEstado,noBrasil.Veremos,pelaóticaprivada,quaisasimplicaçõesdasrelações

público-privadadofinanciamentodasaúde.Veremosque,mesmoosetorprivadosendoem

partefinanciadopublicamente,elemostranãoternenhumcompromissocomoideárioda

ConstituiçãoFederalde1988.

Oobjetivodocapítulo3,portanto,émostrarcomoofinanciamentodoSUSrevelaa

complexidadedosconflitosdistributivosdopaís,analisandoasrelaçõespúblico-privada,tanto

dopontodevistamacroeconômico–pormeiodaquestãodapolíticade incentivos fiscais

parareanimarosetorprivadoemummomentodecriseedapressãopeloacirramentoda

disputa dos recursos das contribuições sociais, entre elas as da saúde, para uso livre do

governo federal–,comodopontodevistamaisespecíficodaáreadasaúde,pormeioda

renúnciadearrecadação.

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Aoaprofundarosestudossobreoconflitodistributivonaáreadasaúde,revelam-sea

particular desigualdade social brasileira e sua reprodução e perpetuação anacrônicas. O

processodemercantilizaçãodosserviçosdesaúde,assimcomoodedesmercantilizaçãodo

financiamento,nocasobrasileiro,vêmassociados.

RelembraremosohistóricodavulnerabilidadedofinanciamentodoSUS,aslutaspela

garantiaderecursosnocontextodasrelaçõespúblico-privadaeadiscussãodofinanciamento

dopontodevistamacroeconômicoesuasrelaçõescomosetorprivado.Exatamenteemum

momentoemqueagarantiaderecursospúblicoséessencialparacombaterocontextode

desemprego,deadoecimentoemperíodosdecrise,dedesalentoedenovasepidemias,de

dengueoudezika,porexemplo,háumapressãodogastopúblicodesaúdedeumlado.E,do

outrolado,oesforçodogovernofederalparareanimarosetorprivadopormeiodeincentivos

fiscais,desde2014,semexigiracontrapartida,temumefeitopreocupanteeperigososobre

aseguridadesocial.

Tambémdiscutiremos a questão da renúncia de arrecadação e comoela pode ser

especificadaparaasaúde.Veremosqueasempresasrecebemmuitomaisdoqueretribuem,

eessarelação,injusta,mostraopoderderegulaçãoqueosetorpúblicotem(ANS),masnão

outilizaouutilizasuaomissãopara favorecerasegmentaçãodosistemadesaúde,dando

prioridadeaosetorprivado.Porfim,faremosalgumasbrevesconsideraçõessobreosefeitos

econômicospositivosdogastopúblicocomsaúdeeocaráterregressivodogastotributário

comsaúdeassociadoaosplanosdesaúde.Essasconsideraçõesnosaproximamdadimensão

dadesigualdade,queapolíticadesaúdeseriabastanteeficazemcombater.

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Capítulo 1 – A configuração dos sistemas universais de saúde e arelaçãoentreossistemaspúblicoeprivado

Ocapítulo1pretendesituaratemáticamaisgeraldaqualestateseéparte.Porum

lado,analisaráainserçãodossistemasdesaúdenadiscussãodowelfarestatee,poroutro,

nodebatedaacumulaçãodecapitalapartirdaqualédesenvolvidaaquestãodasrelações

público-privadas,entendidascomoexpressãodessaacumulação.Ocapítulo1estádividido

emquatrosubitensquepretendemenfatizaralgunsaspectosfundamentaisdessadiscussão

equeservirãodenorteparapensarmossobreoobjetivodestatese,queédiscutirocaso

específicodasrelaçõespúblicoeprivadanofinanciamentodosistemadesaúdebrasileiro.

Oitem1.1pretenderetomaraquestãodastipologiasdowelfarestateparamarcara

importânciadosvaloresconstitutivosdessesarranjos–especialmenteauniversalidadeea

solidariedade–etambémparadiscutirumconceitoimportanteparaestatese,queservirá

comoumadimensãodeanáliseparaainterpretaçãodocasobrasileiro:adesmercantilização.

Oitem1.2pretendesublinharaimportânciadoarranjodowelfarestateesuaespecificidade,

avançandonadiscussãosobreasprincipaistendênciasdoswelfarestatesdiantedasrespostas

dadas à crise econômica e reformas. Uma das tendências que ressaltaremos é a

mercantilização. Outro ponto importante que será destacado é o avanço da lógica de

valorizaçãodocapitalqueatingeosespaçosnãomercantis,sobretudoapartirdofinaldos

anos1970,frutodoprocessomaisgeraldanovaetapadocapitalismo,oneoliberalismo.Esse

movimento,discutidonositens1.1e1.2,servirádeponteparachegarmosaolocusescolhido

comofocodestatese:osistemadesaúde.

Assim, no item 1.3, discutiremos como esses movimentos identificados nos itens

anteriores também têm sua expressão nos sistemas de saúde. Vamos analisar, à luz das

relaçõesentreosistemadesaúdepúblicoeosistemadesaúdeprivado,comoseconstituem

ospadrõeseestratégiasdefinanciamento.Outrasquestõesdiscutidassãocomo,frenteao

avançodosmovimentosdocapitalismo,amercantilizaçãoatingiuemodificouossistemasde

saúde,alémdeverificarosentidoeanaturezadessasmudanças.Esseprocessodeavançoda

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mercantilizaçãoéchamadoporBatifoulier(2015)decapitalismosanitário.Veremos,noitem

1.4, quais são as principais transformações concretas desse movimento nos países com

sistemasuniversais da Europaocidental e se podemosobservar algum tipode resistência

frenteaocapitalismosanitário.

1.1–Aimportânciadowelfarestateedosestudoscomparados

Verifica-se,nospaísesdesenvolvidos,desdeosanos1950atéadécadade1980, a

crescente presença do Estado no campo das políticas públicas, traduzida em sua maior

participaçãonarendaenocrescimentodacargatributáriaedogastopúblico.Essapresença

marcanteviabilizouaintegraçãodasdemandasdocapitalismoedademocracia(MYLES,1984)

e garantiu as rendas do trabalho em situações de risco social grave, entre os quais o

desemprego,bemcomoarendaagregada.

As necessidades de financiamento das políticas universais

destinadasaprovergastosnãoindividualizados(comoosserviçosdesaúde

e educação) requereram, de forma estrutural, o aporte de recursos

tributários ao financiamento do seguro, feito por contribuições sociais

diretas dos trabalhadores. A receita tributária também financiou a

redistribuiçãoassociadaàgarantiadepatamaresmínimosdebem-estar,por

meiodacomplementaçãoderendaaosmaispobres(OIT,1983).Atéosanos

1970,talredistribuiçãofoiapenasumelementoconjunturaldeeconomias

estabilizadas por mais de duas décadas, em condições de crescimento

econômicoedeplenoemprego.(DAINeJANOWITZER,2006,p.17).

A conformação dos arranjos entre Estado, mercado e sociedade, após a Segunda

GuerraMundial,caracterizouoEstadodebem-estarsocial(EBES).

Nocampoteóricodos trabalhossobreodesenvolvimentocomparado,aanálisedo

EBES produziu inúmeros e importantes estudos comparativos e estabeleceu diversas

tipologias. Essas diferenças entre os welfare states e seu agrupamento tipológico,

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esquematizadas pioneiramente por Titmuss (1974) e, em seguida, por Esping-Andersen

(1990)1,revelamadificuldadeeaslimitaçõesdecotejamentoentreexperiênciascomparadas.

Paratanto,éfeita,aqui,asistematizaçãodefatoresdiferenciais,quepermitemaapropriação

eoentendimentodovastoespectrodesistemasencontradosnarealidade.

Contudo,éimportantesublinharque,apesardareconhecidaimportânciadeautores

docampodeestudoscomparados,comoEsping-Andersen,noesforçodedimensionaruma

tipologiaàsdiferentesexperiências,étambémfundamentalqueolhemosparaarealidade

dospaíses–doBrasil,especificamente,nonossocaso–,considerandooslimitesconcretosda

construçãodastipologias.

Astipologiasmostramasdiferençasentremodelos,apartirdegrandesimplificação,

maséprecisoiralémparainvestigarossistemasdeproteçãosocial,inclusiveosdesaúde,em

suaheterogeneidadeconcreta.

Defato,associedades,emsuasrealidadesconcretas,sãoheterogêneas,eossistemas

deproteçãosocial,pormaisqueprojetemsimilaridadesousejamfatordehomogeneização,

espelhamaprópriasociedade.Então,sabemosque,alémdoslimitesteóricosdastipologias

paratratardessaquestãodeformageral,noperíodomaisrecente,oproblemadoslimitesda

tipologiatemsetornadomaisagudoporqueassociedadesestãocadavezmaisheterogêneas,

assimcomoasdemandas,osriscos,aquestãodotrabalho.Odesenvolvimentodocapitalismo

maisrecentetemproduzidocadavezmaisassimetrias,diferençasedesigualdades.

Estruturalmente, o capitalismo, no seu movimento próprio, produz desigualdade,

assimcomotambémproduzriqueza(MELLO,1992;2009;MELLOeNOVAIS,1998),e istoé

inerente à sua natureza. Contudo, no capitalismo contemporâneo, temos visto uma

radicalização dessas desigualdades, assimetrias e diferenças nos países centrais, que se

tornamaindamaisgravesempaísesperiféricos,comoéocasodoBrasil.

1Titmussjáclassificavaosestadosdebem-estaremmodelodedesempenhoindustrialeperformance,modeloinstitucionalredistributivoemodelo residual debem-estar, referindo-seoprimeiro aomodelobaseadonaestruturadaocupação, osegundoaomodelouniversalistabaseadonoconceitodecidadania,etratandooterceirodeaçõesdecomplementaçãoderenda.“Essatipologiadasmatrizespolítico-ideológicasdaproteçãosocialnomundodesenvolvidoreproduziu-senomarcoconceitual,hojeconsagradoporEsping-Andersen(1990)”(DAINeJANOWITZER,2006,p.17).

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De todo modo, as tipologias são importantes para mostrar a relação entre as

concepçõesteóricasadotadas,osgrupossociaiscommaiorforçaeaestruturaqueadvém

dessainteração.

Adesmercantilizaçãodotrabalhoedosbenseserviços

Umconceitoimportanteparaestateseéodadesmercantilização.Esping-Andersen

(1991) desenvolve esse conceito de commodification inspirado na análise da origem da

desmercantilizaçãodo trabalhoedoacessoabenseserviços feitaporPolanyi (2012),em

relaçãoaospobres.

OconceitodedesmercantilizaçãoapresentadoporEsping-Andersen(1991)mostrao

grau em que os indivíduos ou as famílias podem manter um padrão de vida aceitável

socialmente,independentementedaparticipaçãodomercado.Segundooautor,apartirdo

momentoemque“osmercadossetornamuniversaisehegemônicos,équeobem-estardos

indivíduos passou a depender inteiramente de relações monetárias” (ESPING-ANDERSEN,

1991,p.102).Ora,essaéasociedadecapitalistaemquehárelaçãocapital-trabalhoedivisão

dotrabalho.

Essa dependência – de os indivíduos serem submetidos a relações monetárias –

representaumaviolência.Ela implicaretirardosindivíduosoacessoa instituições,comoa

família,porexemplo,quegarantiamsua“reproduçãosocial”,ejogá-losnadependênciado

mercado,dosalárioedarenda.Isso,segundoEsping-Andersen,significouamercantilização

daspessoas.

Poroutrolado,ainstituiçãodosdireitossociaisteriasignificadoumabrandamento,

umafrouxamentodo“statusdepuramercadoria”(Ibid.,p.102).Ouseja,ofatodeaprestação

de um serviço ser um direito significa que o indivíduo não depende domercado para se

manter.Portanto,agarantiadosdireitos sociaismodernos (saúde,educaçãoetc.)poderia

libertá-lo,aindaqueparcialmente,dadependênciadavendadesuaforçadetrabalhopara

sobreviver.

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Esping-Andersen (1991) discute em que medida a existência de programa sociais

garantiriaumadesmercantilizaçãodoindivíduo. Istoé,nãoétodotipodeprogramasocial

queemancipaoindivíduodesuadependênciadomercado.Porexemplo,umprogramade

previdênciaoudeassistênciasocialpodenãogerardesmercantilizaçãoseosistemadeajuda,

emvezdeatrairaparticipaçãodosindivíduos,forçá-losacontinuarnomercado,dadoopouco

benefícioe,principalmente,oestigmasocialquepodeestaraelesassociado.Essefoiocaso

da Lei dos Pobres, do século XIX. Por outro lado, também, há programas de previdência

planejadoscomointuitode“maximizaraatuaçãonomercadodetrabalho”.

Do ponto de vista das relações sociais entre trabalhadores e capitalistas, uma

sociedadealtamentemercantilizadaprejudicaostrabalhadores,dificultandosuamobilização

paraaçõessolidárias.Mesmoentreosprópriostrabalhadores,háaindadivisões.

Adesmercantilizaçãoaparecenaampliaçãodotempolivre,emsuasváriasdimensões,

por exemplo, na retirada dos indivíduos do mercado de trabalho, seja pela inserção de

crianças e jovens nas estruturas de educação formal, seja na inserção nos sistemas

previdenciários.Educaçãoeprevidênciapermitempostergareantecipar,respectivamente,a

entrada e a saída dos indivíduos na vida laboral ativa, permitindo longos períodos de

inatividade. Redução da jornada de trabalho, férias, finais de semana remunerados são

dimensõesdessemovimento.

Poroutrolado,esse“excedentedetrabalho”tomaformaemumconjuntodebense

serviçosintegradosaodesenvolvimentodeesferasnãomercantisintegradasàsestruturasde

bem-estar social. Isso poderia se tornar apenas sobretrabalho. Na lógica mercantil, esse

tempolivrepoderiasetornardesempregoaberto,enquantoque,noarranjodowelfarestate,

transforma-seemcriançanaescola,emidososnosistemaprevidenciárioeemumconjunto

debenseserviçosnãomercantisquearticulamoprocessodedesmercantilizaçãodotrabalho

comapolíticasocial.

Esping-Andersen (1991) discorre também sobre o desenvolvimento dos direitos

desmercantilizadoseestabelecealgumas relações importantesentreomodelodewelfare

state e o “grau” de desmercantilização atingido, ou como um programa social gera

desmercantilização.

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Ostrêsregimesdewelfarestateeseusconteúdosideológicos

Owelfarestateéumsistemadeestratificação,umaforçaativanoordenamentodas

relações sociais, além de ser ummecanismo que intervém na estrutura de desigualdade.

Esping-Andersen(1991)mostraalgunssistemasalternativosincrustadosnoswelfarestates,

historicamente.Vejamosalgunsdeles.

Oprimeiroéosistemadetradiçãoassistencialista,deajudaaospobres,ouassistência

socialapessoascomprovadamentenecessitadas.Essatradiçãofoiplanejadacompropósito

deestratificação,poispuneeestigmatizaseusbeneficiários,criandodualismosocial.

Osegundoéosistemadetradiçãodaseguridadesocialbismarckiana.Tambémseria

uma formade política de classe comdois resultados de estratificação: um, que consolida

divisões entre os assalariados, pois aplica programas distintos para grupos diferentes em

termos de classe e status (conjunto particular de benefícios e privilégios, que acentua a

posiçãodecadaindivíduonavida);outro,quevinculaaslealdadesdoindivíduodiretamente

àmonarquia ou à autoridade central do Estado. Como exemplo, temos a suplementação

estatal direta às pensões e aposentadorias. Nessa tradição, encontram-se os benefícios

previdenciáriosparaofuncionalismopúblico.

Oterceiroéodetradiçãodossistemasuniversalistas/modelobeveridgiano,segundo

oqualtodososcidadãossãodotadosdedireitossemelhantes,independentementedeclasse

socialouposiçãonomercado/ocupação.Elepretendecultivarasolidariedadeentreasclasses

(solidariedade da nação). Segundo Esping-Andersen (1991), esse modelo pressupõe uma

estruturadeclassehistoricamentepeculiar,“ondeavastamaioriadapopulaçãoéconstituída

de ‘pessoas humildes’ para quem um benefício modesto, embora igualitário, pode ser

considerado adequado” (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 106). Segundo o autor, quando isso

deixadeocorrer,

(...)comoacontecequandoaumentaaprosperidadedaclassetrabalhadorae surgem novas classes médias, o universalismo do benefício uniformepromoveodualismo inadvertidamente, pois osqueestãomelhorde vidavoltam-separaoseguroparticulareparaanegociaçãodebenefíciosextrasparasuplementaramodestaigualdadequejulgamserospadrõeshabituaisdebem-estar.(Ibid.,p.106).

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Então, segundooautor,nos locaisondeesseprocessoocorreu,noCanadáouGrã

Bretanha, o resultado é que o “espíritomaravilhosamente igualitário do universalismo se

transformaemumdualismosemelhanteaodoestadodeassistênciasocial:ospobrescontam

comoEstado,eosoutros,comomercado.”(ESPING-ANDERSEN,1991,p.106).

Aquestãodoefeitoinadvertidodouniversalismodobenefíciomodesto,que,emum

contexto de aumento da prosperidade, acaba por criar uma dualidade social – isto é, o

enfrentamentododilemadasmudançasnaestruturadeclasse–tambémfoipostaemtodos

osmodeloshistóricosdowelfarestate.

A resposta à prosperidade e ao crescimento da classemédia variou, assim, como

variouoresultadoemtermosdeestratificaçãosocial2.

Natradiçãocorporativistadaseguridadesocialbismarckiana,a“universalização”do

benefíciofoifeitacombaseemumaalteraçãodaclassificaçãodosbenefícios.Porexemplo,

emvezdeosbenefíciosseremclassificadossegundoascontribuições,elespassaramaser

classificados segundo os ganhos. Isso não alterou a estrutura da distinção de status. Essa

tradição,porjáteradiferenciaçãoembutidacomovalor,foimaisadaptávelàexpansãodo

bem-estar.

Já na tradição assistencialista ou no sistema universalista do tipo beveredgiano, a

opção frente ao dilema foi entre o mercado e o Estado, “no sentido de proporcionar

adequaçãoesatisfazerasaspiraçõesdaclassemédia”.(Ibid.,p.107).

Os modelos surgidos dessas opções de respostas foram o modelo típico da Grã-

Bretanha e damaior parte domundo anglo-saxão, isto é, o que preserva no Estado um

universalismo essencialmentemodesto e deixa que omercado reine sobre as crescentes

camadassociaisquedemandambenefíciosprevidenciáriosmaiores.

2Essaquestãoéfundamentalparasepensar,porexemplo,osistemadesaúdenoBrasilepensarcomosedeuacoalizãodasclasses–respostaàprosperidade–equaloefeitosobreosmodelosdesaúdedospaísesqueestavam,ainda,emumestágiodeimplementaçãodosseussistemasdesaúde,comoeraocasodoBrasil.Nessesentido,oBrasilvivia,em2013,porexemplo,ummomentodeterminanteparaadefiniçãodofuturodeseusistemadesaúde, jáquehouveumalargamentodaclassemédia,emtermosderenda,eelaestádiantedeumdilema:SUSouplanosprivados.Dependendodoencaminhamentodaquestão, podemos ter uma adesão dessa classe C ao projeto SUS ou não, isto é, ao desenvolvimento da alternativa domercadodeplanosdesaúde.Aesserespeito,verointeressanteartigodeSalmeBahia,2013.

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AindasegundoEsping-Andersen(1991),devidoaopoderpolíticodessesgrupos(classe

média),odualismoquesurgenãoéapenasentreEstadoemercado,mastambémentreas

formasdetransferênciasdowelfarestate:3

(...)nestespaíses,umdoscomponentesdogastopúblicocommaioríndicede crescimento é o subsídio para os chamados planos previdenciários“privados”.Eoefeitopolíticotípicoéaerosãodoapoiodaclassemédiaparaoqueécadavezmenosumsistemadetransferênciauniversalistaprovidopelosetorpúblico.(Ibid.,p.107).

E, no modelo dos países nórdicos, já houve uma síntese entre universalismo e

adequaçãoaomercado.Lá,“pormandatooulegislação,oEstadoincorporouasnovasclasses

médiasemumsegundoeluxuosoesquemadeprevidênciarelacionadacomosganhos–que

podeestender-seatodos–alémdaprevidênciamínimaigualitária.”(Ibid.,p.107).

OsexemplosdessemodelosãoaSuéciaeaNoruega.

Ao garantir benefícios correspondentes às expectativas, essa soluçãoreintroduzdesigualdadesnosbenefícios,masbloqueiaomercadodemodoefetivo.Consegue,assim,preservarouniversalismoe,alémdisso,mantémo grau de consenso político necessário para conservar o apoio amplo esolidáriodos impostoselevadosqueessemodelodewelfarestate requer.(Ibid.,p.108).

Esping-Andersen(1991)examinaasvariaçõesinternacionaisdosdireitossociaisede

estratificação dowelfare state e chega a combinações qualitativamente diferentes entre

Estado,mercadoefamília.Asvariaçõesforamagrupadasemtrêstiposderegimes.Vejamos

quaissãoeles.

O primeiro é o regime liberal, que se caracteriza por um baixo grau de

desmercantilização, pois o acesso ao bem-estar se dá fortemente pelo mercado. As

aposentadorias e os planos de saúde são fornecidos por meio do emprego (welfare

ocupacional) e há deduções tributárias apoiando planos privados de pensão e/ou saúde

(welfare fiscal)quecomplementamaseguridadesocialmínimaeprovêmassistênciasocial

limitadaetemporáriaaoscomprovadamentenecessitados(testedemeios).

3EsteseriaocasodosistemadesaúdenoBrasil.

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Esseregimegeraumaestratificaçãodualnobem-estarpúblicoentreosincluídoseo

restante da população que supre suas necessidades, principalmente no setor privado de

provisão.Os“incluídos”têmumníveldebem-estarresiduale,alémdisso,sãoestigmatizados.

SegundoEsping-Andersen(1991),“oEstado,porsuavez,encorajaomercado,tanto

passiva–aogarantirapenasomínimo–quantoativamente–aosubsidiaresquemasprivados

deprevidência.”(Ibid.,p.108).

Comojádito,oEstadodeveapoiaromercadocomopilardobem-estareterumpapel

residual.Entretanto,maisdoqueisso,eleincentiva,ajudaomercadopormeio,porexemplo,

daconcessãodeisençõestributáriasaempregadoresouaconsumidoresdeplanoseserviços

privados ou pelo apoio ao prover residualmente o bem-estar apenas àqueles que não se

inseremnessesistema,istoé,somenteagruposvulneráveisescolhidoscomofoco(políticas

focalizadas)4.

Osegundoéo regimeconservador-corporativo,quesecaracterizapor:a)umgrau

intermediário de desmercantilização; b) uma estratificação que segmenta ao longo dos

estratosocupacionaisedostatusnoemprego(senioridade,empregopúblicoxprivado);c)

pouca importância do segmento privado de provisão de bem-estar, da assistência social

focalizadaedosserviçossociaispúblicos;ed)umbaixograudedesfamiliarização.

Nesseregime,aseguridadesocialéoprincipalmecanismodeprovisãodebem-estar.

Oacessoaosbenefícios sociais éprincipalmentemonetárioeébaseadono trabalhoena

duraçãodacontribuição,eosbenefíciossãoproporcionaisaosganhospassados(cadaqualao

quecontribui).

Aseguridadeéfinanciadaporcontribuiçõessociaisdetrabalhadoreseempregadores

eégovernadaporfundosdeseguridadesocialcoletivoscompulsóriosenãopelogoverno,

nempelosetorprivado.

Essemodelodeseguridadesocial–osistemadetransferências–ébaseadoemformas

coletivas de solidariedade ocupacional para cobrir riscos sociais, como velhice, doença,

4OsexemplosarquetípicosdesseregimeliberalsãoEstadosUnidos,Canadá,Austrália,ReinoUnidoeNovaZelândia.Éa“famíliaanglo-saxã”.

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acidente,incapacidade,desempregotemporário.Odesempregoduradouro,noentanto,não

estácoberto.Essemodelodeseguridadesocialassenta-senochefedefamíliamasculino,eos

benefícios se estendem à família e dependentes, desde que haja o contrato formal de

trabalho. Foiessaa formadeuniversalizaçãodessemodelo. SegundoKerstenestzky (2012

apud PALIER, 2010, p. 114), “o universalismo beveredgiano é alcançado por meios

bismarckianos” (com pleno emprego). Apesar de universal, no entanto, a cobertura é

fragmentadaeheterogênea,poisrefleteassegmentaçõesnaforçadetrabalho5.

O terceiro regime é o social-democrata. Nesse regime, há: a) um alto grau de

desmercantilização com direitos sociais abrangentes e generosos que se estenderam às

“novas classesmédias” (ESPING-ANDERSEN,1991, p. 109); b) provisãopúblicade serviços

sociais;c)estratificaçãosocialcomelevadograudeuniversalização,comserviçosiguaispara

todos,transferênciasuniversaisparafamíliaeaposentadoriasepensõesbásicasiguais,com

diferenciação,dentrodosistemapúblico,emfunçãodosganhosdomercado;d)elevadograu

dedesfamiliarização,comapresençamaciçadedomicílioscomdoistrabalhadoreseelevado

empregofemininoedeidosos.

Não há um dualismo entre classe trabalhadora e classemédia, pois trabalhadores

braçaisdesfrutamdedireitosidênticosaosdosempregadoswhite-collarassalariadosoudos

funcionáriospúblicos.

Esse modelo exclui o mercado e, por consequência, constrói uma solidariedade

universalemfavordowelfarestate.Todossebeneficiam,todospagam.

Alémdisso,essemodelotendeacapacitaraindependênciaindividualenãomaximizar

adependênciadafamília6.

Osregimesnãosãopuros,umavezqueospaísestêmcaracterísticasmistas, istoé,

mesclam as diferentes matrizes liberal, conservador-corporativistas e universal em seus

modelosdeseguridadesocialnotangenteaassistênciasocial,previdênciaesaúde.

5OspaísesarquetípicosdessemodelosãoAlemanha,França,Áustria,Itália,BélgicaeHolanda.6OspaísesarquetípicosdessemodelosãoDinamarca,Finlândia,NoruegaeSuécia.

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1.2–Tendênciasrecentesdoswelfarestatesdospaísesdesenvolvidos

Em condições políticas, econômicas e sociais peculiares, podemos afirmar que a

consolidaçãodowelfarestateseiniciou,emgrandemedida,comoRelatórioBeveridge,de

1942,acriaçãodaseguridadesociale,umpoucomaisadiante,comaDeclaraçãoUniversal

dosDireitosHumanos(ONU,1948),marcandoafasedeourodowelfarestateesuaexpansão

em ritmo e espectro, em um contexto de forte crescimento econômico, pleno emprego,

solidariedadesocial,proteçãosocialpúblicaedemocracia.

Asreferênciaseconômicasdesseperíodoforam,semdúvida,okeynesianismoeaideia

detendênciacíclicadocapitalismo,quealiarameconformaramumarranjopositivoentrea

políticasocialparasustentarepromoverademanda,garantindoarendadostrabalhadores.

A literatura aponta, também, a fase universalista dos Estados de bem-estar social,

nesse mesmo período, que vai de 1945 a 1970, aproximadamente, marcado por grande

expansão,conhecidoporsernãosóperíododosanosdouradosdoestadodebem-estar,mas,

também,porserummomentosingularnahistóriaedemaiorexpansãodogastosocial.

Oestadodobem-estarajudouareconstruçãodospaísesno imediatopós-guerrae

tambémsebeneficioudele.Operíodofoicaracterizadoportaxasdecrescimentoelevadas

(entre7a10%aoano),quaseplenoempregoebaixainflação,frutosdaspolíticaskeynesianas

queviabilizaramfinanceiramenteforteexpansãodosbenefícioseserviçossociaispúblicos,

especialmente educação, saúde e aposentadorias, que representaram cerca de 80% dos

recursossociaispúblicosdispendidosnoperíodoentre1960-1975(KERSTENETZKY,2012,p.

18-19).

Afaseuniversalistacaracterizou-seporumfortecrescimentodoorçamentosociale

generalizou,pormeiodoarranjomontado,oestadodebem-estarparaalémdospobresedas

clientelasdosegurosocial,queforamconseguidasnoperíodoanterioraosAnosDourados.A

classemédiafoicontempladaetornou-seconsumidoradosserviçosuniversaise,aomesmo

tempo,tambémfoibeneficiadapelasoportunidadesdeempregoprofissionalnosetorpúblico

abertasporessedesenvolvimento.Oestadodebem-estartornou-seomaiorempregadorem

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váriospaíses.ONationalHealthSysteminglês,porexemplo,tornou-seomaiorempregador

daEuropaocidental.Em2015,ocupavacercade1,7milhãodefuncionários,sendoo5omaior

doempregadordomundo,segundorankingdoFórumEconômicoMundial7.

Os trinta anos gloriosos foram responsáveis por uma queda das desigualdades

econômicas e sociais e das taxas de pobreza em todos os países centrais, segundo

Kerstenetzky(2012apudKUZNETS,1955).

Operíodoqueseiniciaapartirde1970marcaumamudançaprofundanoarranjodos

estadosdebem-estarsocial.Muitosautoresafirmamqueháumacrisedoestadodebem-

estarsocial,aopassoqueoutrosapontamparamudançasprofundas,masnãocreememcrise,

comoéocasodeKerstenetzky(2012).Segundoaautora,

(...)seofantasmadacriseestádecertomodoafastado–nosentidodeteremas instituições do welfare state sido absorvidas como um aspectopermanentedoambientesocioeconômicodassociedadescontemporâneas–, é ainda necessário conhecer o impacto das transformações sobre acapacidade de este seguir promovendo redistribuição, e suas instituiçõesseguirempertencendoao“domíniopúblico”.(Ibid.,p.62).

As transformaçõesadvindasdosdois choquesdopetróleodadécadade1970,das

mudançasnasrelaçõesdetrocainternacionaisedofimdosistemadeBrettonWoodsdetaxas

decâmbiofixascontribuíramparaareduçãodaatividadeeconômica,arecessão,oaumento

grandenosníveisdedesemprego.Essequadrogeroudesequilíbriosnasfinançaspúblicasea

proteçãosocialteriaajudadoaaumentarosdéficitsedívidaspúblicas,causandoumacrisede

financiamento (KERSTENETZKY, 2012). Houve também a globalização e mudanças

demográficas,eseusefeitossobreowelfarestateforamcomplexos.

O período que teve início com a década de 1970marcou ummomento de virada

histórica e conformação, consolidação, de um novo arranjo de sociedade que rompeu a

acomodação anterior da contradição entre capital e trabalho, entre capitalismo ewelfare

7Segundoo ranking apresentadonoWordEconomicForum, em2015,osdezmaioresempregadoresdomundo seriam:DepartamentodeDefesadosEUA(3,2milhões),ExércitodeLibertaçãoPopulardaChina(2,3milhões),Walmart(2,1milhões),McDonald’s(1,9milhão),NHS(1,7milhão),ChinaNationalPetroleumCorporation(1,6milhão),StateGridCorporationofChina(energia)(1,5milhão),IndianRailways(1,4milhão),Forçasarmadasindianas(1,3milhão)eaHonHaiPrecisionFactory(Foxconn)(1,2milhão). Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/niallmccarthy/2015/06/23/the-worlds-biggest-employers-infographic/#abd546e686b5>.Acessoem:19jun.2017.

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state,entreindividualismoesolidariedadesocial.Apartirdeentão,vemosaemergênciada

predominânciadocapital financeirobuscandoespaçoparasuavalorizaçãoe,nessabusca,

violenta, destruindo o que for possível para sua expansão, até agora sem limites visíveis,

embora com pequenas resistências. Nessa nova etapa do capitalismo, da financeirização,

houveumadissociaçãoentreodesenvolvimentoeconômicoesocial (VIANA;SILVA;ELIAS,

2007).

Essefatortevemuitosdesdobramentoseconsequências,pois,aospoucos,dissolveu

oeloqueligava,quesoldavaoarranjosocialconstruídonaEradeOurodocapitalismo,que

era a solidariedade social, a preocupação com o bem comum, com a coletividade. Essa

dissolução fez emergir, cada vez commais força, a priorização do interesse individual, da

buscapelodinheiroedavalorizaçãodocapital.Apartirdessascaracterísticaseinteresses,um

novo arranjo de sociedade se configurou e deixou pouco espaço para a lógica da

solidariedade.

A literaturasobreowelfarestate,contudo,afirmaqueessanovaconfiguraçãonão

significouofimdowelfarestate.Kerstenetzky(2012)mostra,porexemplo,queogastosocial

seguiu uma trajetória ascendente, a despeito da crise econômica. O gasto social foi

sustentado, emparte, à custa de uma redução emoutras áreas do gasto público, que se

retraíramnosanos1980e1990.

Aautoraargumentaquenãosepodefalaremcrisedoestadodobem-estar,poishá

expansãoemtodaparte.Oquehouvefoimudançaemdecorrênciadasváriasreformasdos

anos 1980 e 1990. Segundo ela, houve mudança qualitativa, percebida pela diminuição

relativa da função de seguridade social e do aumento relativo dos serviços sociais,

especialmenteosrelacionadosàconciliaçãodavidafamiliarcomotrabalho,porumlado,e,

poroutro,peloavançodepolíticassociaisprivadas,quetensionouademarcaçãoinicialdo

queseriaum“estadodebem-estar”.

Kerstenetzky(2012)mostraqueogastosocialdospaísesdaOCDEcresceuaolongodo

períodoentre1980e2007eaumritmomaiordoqueodocrescimentomédiodoproduto.

ElatambémmostraqueCastles(2004),emumestudocom22países,conseguiurealizaruma

decomposiçãodogastosocialeconstatouumaexpansãocontínuadogastosocialearedução

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nadispersãoentreospaísesemtodososindicadoresquantitativosconsiderados,oquerevela

uma“convergênciaparacima”.

Há,dessamaneira,umanota“otimista”emrelaçãoaofimdoestadodebem-estar

social.SegundoCastles(2004,p.21,apudKERSTENETZKY,2012,p.72),entre1980a1998,“a

feiçãogeraldosestadosdobem-estarocidentaismudoupouco,comareduçãoemalgumas

áreas sendo compensada pela expansão em outras”. O autor ainda aponta que “a única

alteraçãonotável foi (...) um ligeiro deslocamento geral emdireção à provisãopública de

serviços.”DeacordocomKerstenetzky(2012,p.72),

Aanálisecaptaaindaumainflexãonoritmodecrescimentonoperíodo1980-1998,aspectoobservadotambémporoutrosautores(PIERSON,1998),quecorresponderia ao alcance de certa maturidade e estabilidade. As taxasmédiasescondem,porém,ocatchingupe,finalmente,liderançadospaísesescandinavos, que se estabelece justamente a partir dos anos 1980 e seencontra consolidada ao final dos anos 1990 (CASTLES, 2004). A análisemostra também uma estagnação do gasto público naOCDE (crescimentomédiopositivode0,7%)entre1980e1998–naverdade,umareduçãodesuaparticipaçãoemumprodutoqueemalgunsanosdecresceu,revelandoacrescenteprioridadeconcedidaaobem-estar.

Diantedaevidência,portanto,dequenãohouvecrisenoestadodebem-estarsocial,

há,entretanto,queseconsiderar importantesmudançasdecorridasdoprocessoexplicado

anteriormente. Essas mudanças indicam que o welfare state tradicional, centrado na

seguridade,estariaseadaptandopararesponderaosnovosriscossociais.

Kerstenetzky (2012,p. 79) afirmaque,nesseprocesso, ocorreuum tradeoff entre

“aprofundamento vertical e expansão horizontal das titularidades para atender a uma

clientela crescente e individualizada (uma ‘remercantilização’ relativa), e um aumento na

penetraçãodosetorprivadopublicamenteincentivado(privatização)(...)”.

Algumasdasanálisesmostramqueoswelfarestatesfizeramumaadaptaçãofuncional

amudançasnoambienteeconômico,socialepolítico(desindustrialização,globalização,novas

estruturasdeclasseecomposiçãodasfamílias,mudançasdemográficasenovasrelaçõesde

gênero,alémdemudançasde regimepolítico,democratização, reformasconstitucionaise

novos níveis de mobilização política), trazendo consigo novos riscos sociais e,

consequentemente,novasoportunidadesdedesenvolvimentodowelfarestate.Oswelfare

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statesseadaptariamaosnovosriscos,trazidoscomprofundasmudanças,semdestruirsua

institucionalidadeeestrutura,masmodificandoasjáexistentesecriandonovas.

Outra vertente de interpretação discorre sobre alterações que teriam ocorrido na

estruturainternadosprogramasdaseguridadesocialemrespostaaoaumentodademanda

com restruturação com significativa perda de titularidade e menos como adaptações

funcionais. Nesse sentido, estaria acontecendo uma remercantilização, privatização e,

também,umaperdadeefetividadequeestaria levandoaumaumentonadesigualdadee

pobreza(KERSTENETZKY,2012).

Aliteraturaaponta“novasrespostas”dadaspeloswelfarestatesaessenovoarranjo

dasociedadequeforamintensificaraspectosdeindividualizaçãodoriscosociale,também,

deavançodopapeldoEstadoemáreasdeatuaçãotradicionalmentefeitapelasfamílias.A

remercantilizaçãodobem-estaréumadessasnovasrespostas(KERSTENETZKY,2012).

Kerstenetzky (2013) chama essas novas respostas de princípio de “ativação”8 e

identificadiferentestiposdeativação.Teríamosuma“ativação”liberal,baseadanoprincípio

doworkfare, no qual a experiência norte-americana dos anos 1990 se insere. A ativação

“bismarckiana tardia” é marcada pelas tentativas de redução da oferta de trabalho para

combaterodesemprego,oudoaumentodascontribuiçõesdaprevidênciapararesolvero

problemafinanceirodaprevidência,oudeprogramasdereinserçãonomercadodetrabalho

paratrabalhadoresqueestãoforadasáreasdeproteçãosocialtradicionais.Porúltimo,háa

“ativação”deinspiraçãoescandinava,marcadaporpolíticasativasdemercadodetrabalho

inseridasemumaestratégiadeinvestimentosocialcompreocupaçãonoempregopúblico,

políticasdeconciliaçãodafamíliacomotrabalhoeeducação9.

8SegundoKerstenetzky(2013,p.4),princípiodeativaçãoé“(...)aênfaseemintervençõesparaintensificaraparticipaçãodapopulaçãoemidadeativanomercadodetrabalho”.9Háumadiferençagrandeentrea“ativação”bismarckiana(empaísescomoAlemanha,Áustria,HolandaeItália)eadospaísesescandinavosemrelaçãoapolíticasvoltadasparaasfamílias,sendoarespostaescandinavamuitomaispreocupadacomaconciliaçãodavida familiareo trabalho,oqueproporcionouocrescimentodoemprego femininoedas taxasdefecundidade.

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Essas novas respostas e experiências têm apontado para um novo paradigma de

welfarestate,queseriaodoinvestimentosocial,marcandoumanovafasede“evolução”do

welfarestate(VAN,STRALEN,2017;KERSTENETZKY,2012).

AestratégiadoInvestimentoSocial,formuladaporEsping-Andersen(1999)eAnthony

Giddens (1998), propõe a abordagem do investimento social como uma política ativa de

preparação e promoção dos riscos sociais, levando em consideração o “curso de vida do

indivíduo”eseusdiferentesriscosaolongodessepercurso.

A perspectiva do investimento socialmantém a seguridade social como centro da

políticasocialebuscaampliaraparticipaçãodosindivíduos,homensemulheres,pormeiode

políticasativasvoltadasespecialmenteparaeducação(desdeainfância,aolongodetodaa

vidaativado indivíduo),paraaconciliaçãodavida familiarcomotrabalho (osserviçosde

creches,cuidadosexternos, transferênciasmonetáriasdiversas,como licençasparentais)e

paraotrabalho(políticasdequalificação,benefíciosmonetáriosparatrabalhadores,emprego

protegidoparagruposespeciais,segurodesempregocomvaloresaltosedecurtaduração)10.

Segundo a perspectiva do investimento social, a igualdade é vista como condição

fundamentale como resultadoesperado.Tem-seaexpectativa, comaspolíticasativasna

educação,nafamíliaenotrabalho,queasoportunidadesderealizaçãoeaschancesdevida

seequalizemmaise,dessamaneira,hajaefeitospositivoscomodesdobramentoseresultados

desseinvestimentosocialintegradoemonitoradoqueseriaminovação,maiorprodutividade,

maiorcrescimentoeconômicoereceitaspúblicasemenoresdesigualdades.

Em um balanço da avaliação que a literatura faz dessas experiências recentes de

transformações e respostas dadas pelos países europeus, Kerstenestky (2012) chega a

algumasconclusõesinteressantes:

- a participação relativa estatal se retraiu no aspecto da provisão e se dilatou na

dimensãoderegulaçãoe financiamento,especialmentetributário,noquediz respeitoaos

gastostradicionaisdaseguridadesocialesaúde(KERSTENETZKY,2012,p.84);

10Paraumaanálisedetalhadadasdiversaspolíticaseexperiências,verKerstenestky(2012),Hemerjick(2017),HermejickeVyrda(2017).

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-novasfontesdebem-estar foram“desprivatizadas”ou“desfamilizarizadas”coma

oferta pública de serviços de cuidados e programas de ativação. Houve modificação na

governançaeintroduçãodeprincípiosdemercadonagestãopúblicaedeprincípiosdegestão

públicanaprovisãodeserviçosprivados,eessesmixpúblico-privadosforamindividualmente

compatíveiscomdiminuiçãonadesigualdadedadistribuiçãoderenda.(KERSTENETZKY,2012,

p.85).

Emrelaçãoaopotencialderedistribuiçãodoestadodebem-estarsocial,aautoracita

um estudo deGoudswaard e Caminada (2010, apud KERSTENETZKY, 2012) com dados da

OCDEsobre25paísessobreopotencialredistributivodepolíticasociaispúblicaseprivadas,

constatandoque

(...) políticas sociais privadas têm relação negativa (pequena, porémsignificativa),easpolíticassociaispúblicas,umacorrelaçãopositiva,forteesignificativacomaredistribuição.(...)aescolhadopesorelativodaprovisãopúblicaeprivadadeproteçãosocialafetaoimpactoredistributivodoestadodebem-estarsocial(p.1-2).Acausaprováveléqueprogramasprivadosnãocontêm as medidas de solidariedade em matéria de benefícios que sãotípicasdeprogramaspúblicos(p.3).(GOUDWAARD&CAMINADA,2010,p.1-3apudKERSTENETZKY,2012,p.85).

Emrelaçãoaogasto,oestudotambémapontaconclusõesbastante importantes.O

gastoprivadovemaumentandodesde1985e,emalgunspaíses,elecresceumaisdoqueo

gastopúblico.Emmeadosde2000,osgastosprivadosrepresentavamcercade15%dosgastos

totais.Sãogastosvoluntáriosesevalemdededuçõesfiscais.Asdeduçõesfiscais,emgeral,

têmimpactoregressivo,apesardepoderemser,também,redistributivos.Apesardoaumento

do gasto privado e de ele não passar dos 15%dos gastos totais emmeados de 2000, há

variaçãoentreospaíses.Paraomesmoperíodo,ogastoprivadonaSuéciaeDinamarcaera

de9%,nosEstadosUnidosde40%enoCanadá,Coreia,PaísesBaixos,SuíçaeReinoUnido,

acimade25%(Ibid.,p.86).

Dessamaneira,háevidênciasdeque“adivisãopúblico-privadanaprovisãoimporta

dopontodevistadopotencialredistributivodowelfarestate”(Ibid.,p.86).

Ainda que a propagação e difusão do estado de bem-estar para países

economicamenteemergentesnãosejamobjetodestetrabalho,éimportantemencionarque,

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nesse período das transformações recentes dos welfare states tradicionais, de crise

econômica e reformas, houve essa propagação e difusão para países economicamente

emergentesemenosdesenvolvidos:ospaísesdolestedaÁsia,dosuldaEuropaedaAmérica

Latina11.

***

Algumasconsideraçõesintermediárias

Diantedadiscussãoapresentada,éfundamentaldestacaralgumasconsiderações.As

tendências recentes mostram que há um aumento da participação privada em todos os

arranjosdewelfarestate.Contudo,oimportanteaconsideraréqueaparticipaçãoprivada

nosarranjosdowelfarestate,porsisó,nãoénecessariamenteumproblema.Oproblemaé

anaturezadasrelaçõesentreopúblicoeprivadoemmudança,decorrentedocontextodo

movimentorecentedocapitalismo.

Eessemovimentotemgeradoumatensãoentreomovimentodedesmercantilização

dotrabalhoedebenseserviços,cujowelfarestaterepresentariaumcontramovimento,até

nosentidopolítico,deretiradadomercado.Viana(2016)tambémreforçaessapercepção“O

espaço da mercadorização dos bens essenciais tem que ser compensado pela

desmercantilizaçãodoacessoeesteéoúnicocaminhoparadiminuirdesigualdades”.

Essemesmomovimentoaconteceemdireçãoaofundopúblico,queétomadopelo

interessedocapitalfinanceiro,enfraquecendooEstadoeaproteçãosocialemsuadimensão

derealizaradesmercantilização.

Noesteiodesseenfraquecimento,ocorreumefeitoamplificadosobreadesigualdade,

pois a natureza das relações público e privada derivadas desse contexto do capitalismo

pretendetirardowelfarestateseuefeitodeamortecedordasdesigualdadese,maisdoque

isso, tomar dele os recursos que possibilitariam aumentar ainda mais o movimento da

desmercantilizaçãoemdireçãoàbuscademaiorigualdade.

11Paraumaanálisedessemovimento,verDraibe(2007).

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Ofundopúblico12que,naverdade,éo locusdosrecursosquefinanciamaspolítica

sociais(quepodemserdesmercantilizadoras),serviuparasocorrerasinstituiçõesfinanceiras

falidasdurantesascrisesfinanceirasdosúltimosanose,também,paracriarnovosespaçosde

acumulação para o setor financeiro ao tentar expulsar os bens e serviços coletivos,

cristalizadossobosdireitossociais,daesferadesmercantilizadaparaomercado,tornandoos

recursosdaseguridadesocialpotencializadoresdosrendimentosdosrentistas,porumlado,

e,poroutro,refénsdascrises.Omesmoraciocíniovaleparaosfinsparaosquaissãoutilizados

osincentivosfiscaiseisençõesdetributos.

Ofundopúblicoquepoderiaserusadocomoobjetivoderedistribuirrendaeriqueza

edegarantiroacessouniversalaosserviçossociais,porexemplo,acabasendodirecionado

aosinteressesdaacumulaçãoprivada,quecriariqueza,mastambémaconcentra.Aestrutura

tributáriatambémpoderiaseruminstrumentoderedistribuiçãoderendaeriqueza.Porém,

como mostra Piketty (2015), há uma recomposição das desigualdades no mundo

desenvolvido,comumcrescimentolentodarendadamaioriadapopulaçãoeumcrescimento

acentuadodarendadogrupodotopodapirâmide,eissonãosedeveàmeritocracia,masà

questãopatrimonialistaetributária.

A natureza das relações entre o público e privado também se expressa, então, na

disputaentreespaçosnãomercantiscomespaçosdeacumulaçãodecapital.Eossistemasde

saúdeseconfiguraramemumespaçoparaessaacumulaçãodecapital.

12Paraumadiscussãosobreosfundospúblicos,verOliveira(1998)eSalvador(2010).

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1.3 – Sistemas de saúde, padrões e estratégias de financiamento frente ao“capitalismosanitário”

Omovimentomostradonositensanterioreschegatambémaoespaçonãomercantil

que é a saúde, entendida como um direito social, tornando-a espaço de acumulação de

capital.Oavançodessalógicadevalorizaçãodocapitalmodificaanaturezadasrelaçõesdos

sistemaspúblicoeprivadodesaúde.Aquestãodocuidadocomsaúdepassaaserexaminada

a partir de critérios puramente econômicos, nos quais os homens teriam uma relação

propriamente capitalista com a sua saúde, como se não houvesse a dimensão política,

ideológicaehumanadasrelaçõesentreoshomens,adasrelaçõessociais.Essemovimento

Batifoulier(2015)chamadecapitalismosanitário.Veremos,aseguir,comoseconstituemos

padrões e estratégias de financiamento dos sistemas de saúde e como o avanço da

mercantilizaçãoalterouasrelaçõespúblicaeprivadasnossistemasdesaúde.

Padrõesdefinanciamentonossistemasdesaúde

Apartirdaconcepçãopolíticaeideológicadossistemasdesaúdeesuaperspectiva

individualista e meritocrática, ou coletiva e cidadã, derivam-se diversos sistemas de

financiamento,baseadosemcontribuiçõesdiretasoualternativamentenareceitageraldo

Estado.Poressescritérios,podemosclassificarospaísesemdoisgrupos,baseadosnotipode

financiamento predominante nosmodelos bismarckiano e beveridgiano. Há, também, um

terceirogrupo,formadopelospaísesqueadotammodelosmistos.

No modelo bismarckiano, o principal tipo de financiamento é baseado em

contribuiçõesparasegurosociais.EsteéocasodaAlemanha,Áustria,França,Luxemburgo,

Holanda,Suíça,BélgicaeLiechtenstein.

Nomodelobeveredgiano,oprincipaltipodefinanciamentoderivadeimpostos,como

no caso da Inglaterra, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Irlanda e Suécia. Com as reformas

recentes,tambémestãoincluídosnessepadrãodefinanciamentoaGrécia,aEspanha,aItália

ePortugal.

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Note-seque,emváriospaíses,ofinanciamentoviaimpostostemsidocomplementado

porcontribuiçõesdiretas,quedeterminamdiferençasentreoscidadãos,baseadasemsua

capacidadecontributiva.Deoutrolado,sistemasinicialmentecontributivosdiretospassaram

a utilizar-se da receita geral do Estado, para garantia de mínimos solidários no acesso a

serviços, com base nos avanços de sua dimensão de cidadania. Nesses casos, fala-se em

modelosdetransição,mas,defato,suacaracterizaçãoseassociaaopadrãodefinanciamento

misto.

Para essa combinação, convergem,na atualidade, osmodelos ideais, baseados em

valoreseideologias.Emtodosospaíses,aprincipalformadefinanciamentonãoéexclusiva

e,porisso,aliteraturaafirmaquenãoexistemsistemaspuros.Assim,mesmoempaísesque

dependemsobretudodeimpostosparafinanciarseussistemasdesaúde,épossívelencontrar

elementosdefinanciamentoviacontribuiçõesparasegurossociais.E,porsuavez,empaíses

tipicamentebaseadosemsegurossociais,encontramoselementosdefinanciamentofiscal.

Ossistemassediferenciamtambémemfunçãodosvaloresnosquaisseapoiam.Há

sistemascuja coberturapassoua ser totalpor seruniversalebaseadana residência, com

sistemas mantidos por taxação, e há os sistemas com cobertura compulsória, baseados

principalmentenasatividadesprofissionaisdossegurados,cujosistemaseapoiaemmodelo

desegurosocial.

Nos dois casos, vemos subjacenteo valor da solidariedade. ComoapontamDain e

Janowitzer(2006),

(...) a solidariedade constitui um valor subjacente a todos os sistemas desaúde pública europeus, não importando se são norteados pelauniversalidadedesuaconstrução,combasenoprincípiodaredistribuiçãoentrericosepobres,sadiosedoentes,empregadosedesempregados,jovensevelhos(modelofundadoemtaxação),oupela“mutualidade”entregrupossociaisecategoriasdeempregados(própriodosmodelosdesegurosocial).(Ibid.,p.20).

Ocorteentremodelosderegulaçãodossistemasdesaúdebaseadosemimpostosou

contribuiçõesécadavezmenostangívelnaEuropa,dadaaatualcombinaçãoentreinteresses

eopçõesantesopostas.Asolidariedade,entretanto,estápresenteemtodoseles.

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Agrandeexceção,naseconomiasdesenvolvidas,éocasonorte-americano,queainda

seapresentacomomodeloresidualeassistencialistadaproteçãosocialedasaúdeenoqual

a atuaçãoestatal é limitada à assistência aospobres e aos idosos.De acordo comDain e

Janowitzer (2006, p. 20), “Florescem, nessas circunstâncias, as soluções individuais ou

vinculadas ao emprego, aumentando a segmentação do espaço da política social,

notadamentenocampodasaúde”.

Nocasoespecíficodasaúde,suamaiorvulnerabilidadenocontextodossistemasde

welfare state decorre do caráter extremo. Assim, dificilmente podem ser deixados

integralmente às soluções individuais e demercado. De fato, “owelfare state criou uma

maneiradesuperarosefeitosdoriscoindividualedaseleçãobaseadanaescolhadosmenores

riscos:tornou-oscoletivos,permitindosuadiluiçãonoconjunto(Ibid.,p.21).

Tornar coletivos os riscos significa assumir seu caráter solidário, garantindo aos

indivíduosoacessoaos serviçosde saúdedeacordocomsuanecessidadeenãocomsua

capacidadedepagamento.Alémdisso,ossistemasdesaúdecoletivoseuniversais,baseados

novalordasolidariedade,têmcomoimportantecaracterísticaseremredistributivos.

A solidariedade, no caso da prestaçãode serviços, não se expressa só noprincípio da redistribuição, mas também no acesso universal a serviçosintegrados e abrangentes. Ademais, há forte correlação entre pobreza edoença,tornandoaseleçãoadversadomercadosegundoalógicadoriscoindividualextremamentequestionáveldopontodevistaéticoesocial.(Ibid.,p.20).

Aamplagamadeaçõeseserviçoseopotencialdecombinaçõespúblico-privadade

variadanaturezatornamosistemadesaúdeeosgastospúblicosaeleassociadosobjetode

cobiçadeiniciativasprivadas,nãoreguladasedificilmentereguláveis,regidascrescentemente

pelalógicadafinanceirizaçãodaeconomia.

Coerentemente,aspolíticasdesaúdesãoafetadasporcampanhasquepreconizamo

estadomínimoeocorteindiscriminadodegastopúblico.Especialmentenospaísesmenos

desenvolvidos, onde os direitos sociais são menos respeitados e as populações mais

vulneráveis,essecorteseconcentranocampo“difuso”daspolíticasuniversais,entreasquais

asaúde.

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Oselementosantesassinaladospermitemestabelecerummododeaproximaçãoà

análise das relações público-privada, que associa os sistemas de saúde suplementar aos

sistemasdesaúdepúblicos.

Emumplanogeral,aliteraturadestacaquatrofontesprincipaisdefinanciamentodos

sistemasdesaúde:impostos,contribuiçõesparaosegurosocial,subscriçõesvoluntáriasde

seguroprivadoedesembolsodireto(out-of-pocket).Essasfontespodemserclassificadas,por

suavez,emsistemascompulsórios/obrigatórios,comoéocasodosimpostosecontribuições

paraosegurosocial,ouemsistemasvoluntários,comoéocasodassubscriçõesvoluntárias

paraoseguroprivadodesaúdeouosdesembolsosdiretos.

Os sistemas de saúde na região europeia dependem de uma combinação dessas

quatrofontesdefinanciamento.

Paramostrarcomoécomplexoofinanciamento,nãopodemosdesconsiderarque,até

agora, tratamos do financiamento via fontes obrigatórias/compulsórias. No entanto, um

sistemadesaúdecontém,ainda,tiposdefinanciamentovoluntários,ouseja,tambémtêm

arranjos de financiamento com seguros de saúde privados ou desembolso direto (out-of

pocket).

Muitosestudossobreossistemasdesaúderelacionamasfontesdereceitascoma

gestãoeaprovisãodofinanciamentodasaúde,mostrandoacomplexidadedepossibilidades

dessasinterações13.Optamosporaprofundaremetapassucessivasasdistintasdimensõesde

análise aqui sugeridas, utilizando como recurso expositivo a relação entre omercado e a

saúde,quemostraráacapacidadederegulaçãodiretadoEstadosobreosistemadesaúde,

consideradodeformaabrangente.

Sobopontodevistadasrelaçõespúblico-privadanofinanciamentodossistemasde

saúde,vejamosquaissãoasconfiguraçõespossíveisparaainserçãodosistemaprivadono

sistemadesaúdeemgeral.

13Aesserespeito,verDaineJanowitzer,2006.

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Arranjospossíveisentreoprivadoeopúbliconossistemasdesaúdeemgeral

Ummecanismodefinanciamentocujoobjetivoédistribuiroriscofinanceiroassociado

comavariaçãodosgastoscomcuidadosdesaúdedosindivíduosaolongodotempopormeio

depré-pagamento–quotizaçõesnotempo–eentregruposdefinidosdepessoas(pooling)é

adefiniçãodesegurodesaúdeutilizadapelaOCDEparaumestudosobreossegurosprivados

desaúde(OCDE,2004,p.2).

Porsuavez,hádiferentesnaturezasdoqueaOCDEestáchamandodesegurodesaúde

e,deacordocomametodologiaadotadapelainstituição,quatroforamoscritériosescolhidos

paraclassificá-las:seafontedefinanciamentodoseguroépúblicaouprivada;seoseguro

saúdeéobrigatórioouvoluntário;seossegurosseguemesquemasindividuaisoudegrupo

(coletivos)equaléométododecálculodosprêmiosdosegurodesaúde.

Em que pesem alguns poréns que a sistematização da OCDE traz, como ignorar a

história da construção dos sistemas de saúde dos países, por exemplo, a proposta de

classificaçãoajudaaentenderumapartedascomplexasrelaçõespúblico-privadanossistemas

desaúde:afunçãoqueossegurosprivadosdesaúdedesempenhamemrelaçãoàofertade

serviçospúblicosdesaúde.

Outras dimensões da relação público-privada, que são importantes e não foram

enfrentadaspelaOCDE,sãoasseguintes:anaturezapúblicaouprivadadogestordoseguro

saúde,asformasdegestãopresentesnosistema(arelaçãocontratualdosgestorescomos

prestadoresdeserviços),ascaracterísticasdacompetiçãoecompetitividadedosistemade

saúde(aexistênciadecompetiçãocomercialounãoentreosgestores),aextensãoenatureza

dosubsídiopúblicoedosbenefíciosfiscaisligadosaossegurosdesaúdee,porfim,omarco

regulatóriodosistemadesaúde.

OqueaOCDEchamadesegurodesaúde(healthinsurance)incluiopúblicoeoprivado

e, para distingui-los, temos que ver qual é a principal fonte de financiamento. Assim, os

arranjospúblicossãoaquelesfinanciadosprincipalmenteporrecursosfiscais,comoimpostos

oucontribuiçõessociais(sistemasbeveredgianosebismarckianos).Nessesarranjosestariam,

então, o SistemaNacional de Saúde e o Seguro Social. Todos os demais arranjos que são

predominantemente financiadosporprêmiosprivados sãoconsideradosprivados,ou seja,

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fazempartedoSistemaPrivadodeSaúde.Porsuavez,oSistemaPrivadodesegurodesaúde

podeaindasermandatórioouvoluntário.

Assim,temosasseguintescategoriasdesegurodesaúde:SistemasNacionaisdeSaúde

ouSeguroSocial,queincluemfinanciamentobaseadosemimpostosecontribuiçõessociais;

eSeguroPrivadodeSaúde,quesãofinanciadosporprêmiosprivadosepodemserdequatro

tipos:i)seguroprivadomandatório,quandooseguroprivadoéobrigatórioporlei;ii)seguro

privadovoluntário(employmentgroup),quandoévinculadoaumacondição,emgeral,dada

peloemprego; iii)seguroprivadocommunity-rated, tambémvoluntário; iv)seguroprivado

risk-rated.

Ossegurosprivadosdesaúdesãoanalisadosnasuarelaçãocomosistemapúblico

dominantenospaíses,istoé,segundoafunçãodoseguroprivadodesaúdenocontextodo

sistemadesaúdeemgeral,bemcomosuarelaçãocomosistemapúblico,queé,quasesem

exceção,oprincipalemtodosospaísesdaOCDE.

Deacordo,então,comafunçãoqueassumemnainteraçãocomosistemadesaúde,

sãoclassificadossegundoduasvariáveis:aelegibilidadeparaosistemapúblicoeacobertura

dos serviçosde saúde.Ou seja, apopulaçãoougruposdessapopulaçãopodemnãoestar

elegíveisparaacoberturadosistemapúblicodesaúdeou,ainda,teremaopçãodeescolher

umseguroprivadodesaúde.Nolimite,seriapossívelquenãoexistisseumsistemapúblicode

saúde e a cobertura para os serviços de saúde se daria totalmente via seguro privadode

saúde. Pelo lado dos serviços cobertos, os seguros privados de saúde podem oferecer

coberturaparaserviçosqueestãoounãocobertospelosistemapúblicodesaúde.

Existem ainda algumas possibilidades de combinações dessas situações: primary

(principalesubstitutivo),duplicado,complementaresuplementar.

Vejamosasdefiniçõesdossegurosprivadosdesaúdesegundosuacobertura(OCDE,

2004,p.2):

Segurodesaúdeprivadobásico/elementar(primary):éosegurodesaúdeprivadoque

representaaúnicaformadeacessoaosserviçosbásicosdesaúde,poisosindivíduosnãotêm

seguropúblicodesaúde. Issopodeacontecerporquenãoexiste segurodesaúdepúblico,

porqueosindivíduosnãosãoelegíveisparaacoberturadoseguropúblicoouporquepode

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atéhavercoberturadoseguropúblico,masoptarampornãocontrataressacobertura.Nessa

situação,então,poderíamosafirmarque,casooseguroprivadobásicodesaúdesejaaúnica

formadeacesso,eleseráchamadodeprincipal(primary).Seelevierasubstituiracobertura

deumarranjopúblicotalcomoosistemanacionaldesaúdeouumsegurosocial,eleserá

chamadodesubstituto.SegundoaOCDE,issoédiferentedoduplicado,pois,aosubstituir,o

indivíduoestariaisentodecontribuircomosistemapúblico.Entretanto,nofinanciamentoà

labeveridge,nãoépossíveldeixardecontribuir.Todoscontribuem.Issoéclaronocasodo

SUSnoBrasil, por exemplo. Essa situaçãonão vai diferir do esquemaduplicado, que será

explicadoaseguir.Naprática,portanto,nenhumpaíseuropeutemesseesquemadeseguro

primary,jáquetodostêmalgumtipodecoberturapública.

Coberturaduplicada:éoseguroprivadoqueoferececoberturaparaserviçosdesaúde

jágarantidospelosistemapúblicodesaúde.Eleécomercializadoparaoferecerumaopçãoao

setorpúblicoporque,emboraofereçaosmesmosserviços,eledisponibilizaesses serviços

com outros provedores ou até outros níveis de serviços. No entanto, ele não isenta os

indivíduosdecontribuirparaosistemapúblico,ouseja,elenãoéigualaosubstituto,emque

épossívelescolhernãocontribuir.

Coberturacomplementar:éoseguroprivadodesaúdequepagaatotalidadeouuma

proporçãodoscustosdedeterminadosserviçosdesaúdequepodemounãoestarcobertos

pelo sistema público. Seriam os casos de arranjos em que o seguro privado de saúde

reembolsaopagamentodeumdeterminadoserviçoquenãofazpartedopacotebásicodo

planode saúdeouemqueo seguroprivadode saúde complementaopagamentodeum

serviço que é oferecido pelo sistema público ou até do plano de saúde, pormeio do co-

pagamento.

Cobertura suplementar: é o seguro privado de saúde que oferece cobertura para

serviçosdesaúdeadicionaisnãocobertospelosistemapúblicooucobreelementosadicionais

aosserviços.Dependendodopaís,podemestarincluídosserviçosquenãosãocobertospelo

sistema público, tais como atendimentos de luxo, atendimentos eletivos, tratamentos de

longaduração,serviçosdedentistas,medicamentos,reabilitação,medicinaalternativaetc.

ou,ainda,hotelariaeserviçoshospitalaresmaisluxuosos,mesmoquandoasinternações,por

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exemplo, são cobertas pelo sistema público. Isto é, oferece elementos adicionais e, não

propriamente,osserviços.

Dessamaneira,temosváriaspossibilidadesdearranjosdesegurosprivadosdesaúde.

Podemosverificarqualéoarranjopredominanteemumdeterminadopaísequalotamanho

eleocupa,qualseudesenvolvimento.Entretanto,issodependerádaextensãodacobertura

do sistema público de saúde e da regulação do mercado privado de saúde. Ou seja,

poderíamos,deumaoutramaneira,questionarqualéafunçãoqueosegurodesaúdeprivado

desempenhanosistemadesaúdedeumdeterminadopaís.

De acordo como estudodaOCDE, o segurode saúdeprivadopode ter diferentes

papéis no financiamento de sistemas mistos de saúde, dependendo do que determina a

regulaçãodaatuaçãodessemercado,noqualossegurosprivadostêmpermissãoparaatuar

ou sãoproibidos.Adependerdisso,os segurosprivadosde saúdepoderiamterumpapel

principalouapenasresidualnossistemasdesaúdedeumpaís.

No casodospaísesdaOCDE,poucospermitemao setorprivadoexercerumpapel

principal,eagrandemaioria temumpapel residual.Nospoucospaísesemqueosistema

privadotemumpapelimportante,eleexerceafunçãoprimary,principalousubstituto.Nos

paísescomsistemapúblicodesaúdedecoberturauniversal,ossegurosdesaúdeprivadotêm

função duplicada ou suplementar. E, nos países com seguro de saúde social (também

universal), os seguros privados têm a função complementar. Obviamente, no entanto, na

maioriadospaíses,ossegurosprivadosexercemmaisdeumadessasfunções.

Sãoessesarranjosdecombinaçãoentreopapeldosistemapúblicodesaúdecomo

sistemaprivadoque,emúltimainstância,garantemacoberturauniversaldesaúdeeasua

qualidade.

Deacordocomessainteração,oestudodaOCDE(2004)classificouospaíseslevando

em consideração três estratégias de interação para garantir a cobertura universal para a

população.

Umprimeirogrupodepaísesconseguiucoberturauniversalouquaseuniversalpor

meiodeumSistemaNacionaldesaúdepública.Esteéocasodosseguintespaíses:Finlândia,

Noruega,Dinamarca,SuéciaeIslândia(paísesnórdicos);daFrança,Itália,Espanha,Portugale

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Grécia (paísesdoMediterrâneo)e, tambémdoCanadá,Austrália,NovaZelândia,Coreiae

JapãoeReinoUnido.

Um segundo grupo de países têm uma cobertura pública básica para grupos

específicosdapopulação,enquantooutrosgruposdapopulaçãotêmaopçãodecomprarum

segurodesaúdeprivadooumesmodenãoternenhumsegurodesaúde:HolandaeEstados

Unidos.

Um terceiro grupo tem garantia de uma cobertura universal que obriga toda a

populaçãoacomprarsegurodesaúdeprivadobásico.ÉocasodaSuíça.

EapenastrêspaísesdaOCDEnãotêmcoberturauniversaldesaúde:EstadosUnidos,

MéxicoeTurquia.

Vejamosnoquadro1,aseguir,quaissãoascoberturasdesegurosprivadosdesaúde

permitidasemalgunspaísesdaOCDE.

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Quadro1-FunçõespermitidaspeloseguroprivadodesaúdeemalgunspaísesdaOCDE

Países Duplicado Complementar Subistituto/Principal Suplementar

Austrália

Proibido:coberturaparaserviçosnãohospitalaresparaosquaisosbenefíciosdoMedicaresãopagosObrigatório:coberturaparareabilitação;25%decustosdosserviçosprivadoshospitalaresPermitido:taxashospitalares

Proibido:GP/PrincipaletratamentodelongaduraçãoPermitido:todososoutrosserviços

Nãoéaplicável Proibido:cobrirserviçosparaosquaisobenefíciodoMedicareépagoObrigatório:coberturaparareabilitaçãoPermitido:todososoutrosserviçosnãoincluídosnoprogramadebenefíciodoMedicare(dentista,oftalmologista,fisioterapia)

Canadá

Proibido:todososserviçosfinanciadospublicamente(hospitalares,GP/Primary,especialistaedentista)

Proibido:GP/PrimaryeespecialistasPermitido:todososserviçosnãofinanciadospublicamente

Nãoaplicável Permitido:todososserviçosnãofinanciadospublicamente

Alemanha

Permitido,masnãohámercado

Permitido:in/outpatientcare,dentista,medicamentos,reabilitaçãoehomecare

Obrigatório:tratamentolongaduraçãoparapessoascomcoberturaprivadaPermitido:todososserviçoscobertospeloFundodeDoençasparaindivíduoselegíveisqueoptarampelacoberturaprivada

Permitido:todososserviçosquenãosãofinanciadospelosplanosdesaúde(Sickness-fundcoverage)

Irlanda

Obrigatório:todosossegurosprivadosdesaúdedevemcobrirmínimosbenefíciosparahospitaiseespecialistasnasinternações.

Obrigatório:Coberturaobrigatóriadeco-pagamentoparaserviçoshospitalares,incluindoespecialistasenon-medicalcardholders

Proibido:paradentistas,medicamentos,tratamentosdelongaduração,reabilitaçãoehomecarePermitido:seguroprivadopodecobrirGP/Primaryserviceparanon-medicalcardholders

Permitido:serviçosodontológicos,medicinaalternativa,homecareeluxuryservices

Holanda

Proibido:tratamentodelongaduraçãoehomecarePermitido:todososoutrosserviços,masnãohámercado

Proibido:tratamentodelongaduraçãoehomecarePermitido:todososoutrosserviços

Proibido:tratamentodelongaduraçãoehomecareObrigatório:hospitaiseespecialistasPermitido:todososoutrosserviços

Permitido:serviçosodontológicos,medicinaalternativa

PolôniaPermitido:todososserviços

Permitido:medicamentos,tratamentodelongaduraçãoereabilitação

Nãoaplicável Permitido:Todososserviçosquenãosãocobertospelosistemapúblico

PortugalPermitido:todososserviços - Nãoaplicável Permitido:Todosos

serviçosquenãosãocobertospelosistemapúblico

Fonte:OCDE,2004,p.35.Nota:háalgumasvariaçõesnasdiferentesprovínciasdoCanadá.

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Quadro1-FunçõespermitidaspeloseguroprivadodesaúdeemalgunspaísesdaOCDE(continuação)

Países Duplicado Complementar Substituto/Principal Suplementar

Espanha

Permitido:todososserviços

Permitido:medicamentosProibido:todososoutrosserviços

Permitido:todososserviçosparafuncionáriospúblicosqueoptaramporestarforadosistemapúblico

Permitido:Todososserviçosquenãosãocobertospelosistemapúblico

SuíçaNãoaplicável Proibido:todosos

serviçossobcoberturaobrigatóriadoseguro

Obrigatório:todososserviçosdefinidosnopacotebásicodesegurodesaúde

Permitido:Todososserviçosquenãosãocobertospelacoberturabásica

EUA

Nãoaplicável Permitido:mercadodeMedicareSupplement

Obrigatório:benefíciomínimoemalgunsEstadosPermitido:todososserviços

Permitido:todososserviços

Fonte:OCDE,2004,p.35.Nota:háalgumasvariaçõesnasdiferentesprovínciasdoCanadá.

Os países com sistemas duplicados são Reino Unido, Irlanda, Finlândia, Portugal,

Espanha, Itália e Grécia. Já os com sistemas primary/substitutos são Alemanha, Holanda,

BélgicaeChile.

De maneira geral, podemos perceber como os arranjos são diversos, envolvem a

participaçãopúblicaeprivadae,mesmoassim,garantemacessouniversaleumagamaampla

de serviços de saúde. O quadro 1 evidencia que os sistemas de saúde, em seus arranjos

público-privado, são bem regulados, e essa é uma característica fundamental para a

manutençãodoacessouniversalaosserviçosdesaúde,mesmonospaísesquesofreramas

reformasdosanos1980,1990e2000enacriseatual,comoveremosmaisàfrente.

A questão de fundo é saber até que ponto é possível garantir a universalidadedo

sistemadesaúdefrenteaosnovosmovimentosdocapitalismo.Atéquepontoasrupturas

causadaspelomovimentodocapitalismoatualmodificamasolidariedadedasociedade,vista

pelauniversalidadedosistemadesaúdeepeloaumentodadesigualdade.

Soluçõesdadasàquestãodamercantilizaçãoedamanutençãodauniversalidade

Vejamosasprincipaissoluçõesadotadasporalgunspaísescentraisemseussistemas

desaúdeeemquemedidaconseguiramasseguraroacessoequitativoedequalidadeaos

serviçosdesaúde.

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Asaúdeéumaáreadeimportânciavitalparaavidahumana,eagarantiadoacesso

aosserviçosdesaúdequandonecessáriopodemesmosignificarumatênuelinhaentreavida,

amorteouapermanentedeficiência(disabillity)emsaúde.

Osetordasaúdetambémtemumaenormeimportânciatantonaatividadeeconômica

quantonageraçãoemanutençãodoemprego.Emmuitospaíses,osistemapúblicodesaúde

éumdosquemaisempregame, também, temumaparticipação importantenaatividade

econômica.Nãoéàtoa,portanto,queestasejaumaáreaigualmentemuitoimportantepara

aacademiaeapolíticapública.

Asaúdetambémocupaumlugarimportantenabatalhapolítica,poisossistemasde

saúdeeaspolíticasdesaúdesãoresultadodalutapolíticapelopoderdegrupodeinteresses

fortes, como o Estado, o mercado – representado por empresas de planos de saúde e

seguradoras, empresários do setor de equipamentosmédicos emedicamentos, donos de

hospitais,clínicaselaboratórios–,osprofissionaisdesaúde–médicoseoutrosprofissionais

dasaúde,enfermeiros,auxiliaresdeenfermagem–eoscidadãos.

Essasbatalhas,comobemapontamosestudosdeGiaimo(1999;2002;2014;2016),

refletemeafetamabuscapelagarantiadoacessoaosserviçosdesaúdecomqualidadeaum

custorazoável,ecadapaísprocuraumarranjopossívelparaconseguirumpoucodeequilíbrio

entre o acesso, a qualidade e o custo razoável. Essa batalha é permanente, parte de um

processodereformaconstantee,obviamente,alutapolíticaeosdesafiosedificuldadesdas

democraciasindustriaisatuaissãocapazesdeinterferirnopêndulodesseequilíbrio14.

Giaimo (2016)mostraque a batalha entreos gruposde interesses (governo, setor

privado e cidadãos) vem se intensificado cada vezmais nas contínuas reformas que vêm

acontecendonossistemasdesaúdenospaísesdesenvolvidoseafronteiraentreopúblicoe

privado–comonãopoderiadeixardesernostemposatuais–tornou-semaisembaçadae

entrelaçada.

Eachcountry’sparticularbalanceofhealthpolicygoalsandpolicychoicesreflect the distinctive politics and relative power of governmentpolicymakers and stakeholders in that country. The health care system ineach of these nations has institutionalized rules and practices and a

14Paraaprofundamentoteórico,verPolanyi(2012).

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particular settlement among the state, health care providers, payers, andpatients, about their respective roles, powers, and jurisdictions in healthcare. These settlements center onmore concrete questions of financing,provision, and regulationofhealth care. The settlementsalso reflect corevaluesthatunderpinthebroadersocialandpoliticallifeofeachcountryanddeal with fundamental questions of the boundary between public andprivate,thebalancebetweenindividualfreedomandresponsibilityandthecollectivegood,andtheextentofthemarketinsocialprovision.Butthesesettlements are now in a state of flux. Policy solutions to the substantialhealthcareproblemstodayaredisruptingtheselong-standingagreementsand threaten (or promise) to redefine the power, roles, and institutionalarrangementswithineachhealthcaresystem.(GIAIMO,2016,p.3).

Seriadesesupor,comasreformasrecentesdossistemasdesaúde,quehaveriaum

maior avançodo setor privadonos sistemasde saúde e que isso poderia comprometer o

acessouniversal.Contudo,esteesgarçamentoda fronteiranão significou, comoerade se

esperar,umatotalmercantilizaçãodossistemasdesaúdedetodosostiposemodelos.

Contudo,aoinvésda“destruição”dossistemasuniversais,dasolidariedade,doacesso

e qualidade dos sistemas de saúde,Giaimo (2014, 2016) constatou que amercantilização

ocorreu,sim,emtodosospaíses,masdeformanãocontraditóriacomagarantiadoacesso

universale,emalgunscasos,houvemesmoumaumentodauniversalidade.Onovoarranjo

quepermitiuissoéhíbrido,cheiodecontradições,masque,porcaminhostortos,garantiu,

emmeioaoconflito,oacessouniversalaosserviçosdesaúde15.

Giaimo(2014)afirmaque,emtodasassociedadesindustrializadasedemocráticas–

comexceçãodosEUA–,hácoberturauniversalcomfinanciamentobaseadoemcontribuições,

impostosou,ainda,subsídiosaplanosesegurosdesaúdeparacobriraquelesquenãotêm

rendasuficiente.Paraqueissoaconteça,associedadesdevemconfigurarumarranjoemque

osmaisjovens,saudáveisemaisricoscontribuamcomumamaiorparcelaparaqueosmais

velhos, doentes emais pobres possam ter a garantia de tambémestarem cobertos pelos

serviçosdesaúde.

Essearranjosolidáriotemdiferentesgrausdeaceitaçãoemcadapaís.Giaimo(2014)

mostraqueospaíses europeuseoCanadáaceitamumarranjomais solidário.Alémde a

15Emalgunscasos,atéampliaramoacessouniversal,comonaFrança,AlemanhaeReinoUnido,comoveremosnoitem1.4.

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solidariedadecomovalorestarpresentenessassociedades,essespaísestambémentendem

que a doença pode atingir qualquer um a qualquer tempo e, nesse caso, é grande a

probabilidadedequehajamaiornecessidadedeusodosserviçosdesaúdenessesmomentos

doqueemumoutroqualquer.

Assim,queremgarantiadequeterãoacessoecoberturanomomentoemquemais

precisaremdisso.Outromotivoéque,alémdacoberturauniversalserjustaeequitativa,ela

tambémcontribuiparaaefetividadedocusto,pois,aocobrirtodaapopulação,evitariaque

osproblemasdesaúdede indivíduosqueporventuranãotivessemacessoaosserviçosde

saúde chegassem a evoluir a tal ponto que o tratamento se tornaria muito caro, o que

prejudicaria,nolimite,ocustototaldosistema.

Garantiroacessoaoscuidadosdesaúde,alémdesignificareliminaroudiminuiras

barreiras financeiras aos cuidados de saúde, também significa eliminar ou minimizar as

barreirasgeográficas,porexemplo. Istoé,asseguraroacessofísicotambém.Ésabidoque

áreas distantes, rurais, bairros pobres ou violentos, por exemplo, enfrentam escassez de

médicos, enfermeiros, hospitais e, portanto, os indivíduos podem não ser capazes de

encontrarumprestadordeserviçosdesaúdenomomentoetemponecessários,mesmoque

tenhamrecursosfinanceirosparapagá-los,porexemplo.

Odebatesobreoacessoaosserviçosdesaúdetemcomocentralidadeoconceitode

equidade.Giaimo(2016)afirmaqueaquelesqueentendemoscuidadoscomsaúdecomoum

direitohumanodefinemaequidadecomocoberturauniversal,demodoquetodostenham

direitoeacessoaosserviçosdesaúdenomomentoemqueprecisaremenãosomentese

conseguirempagarporisso.Estessão,nofundo,oprincípioeovalordasolidariedade,eesse

princípio se realizaquandoexisteum financiamentoquedistribui epartilhaos riscos (risk

pooling)16.Senãoforassim,seráinviávelquetodososcidadãosconsigampagarpelosserviços

desaúdedurantetodososmomentosdesuasvidasnasdiferentessituaçõeseestadosdesua

saúde. Laval (2015) também aponta, nessamesma direção, que o coração do sistema de

16Riskpoolingéofatodeosmaissaudáveisericossubsidiaremoscuidadosdesaúdeparaaquelesmaispobresevulneráveis,seja pagando prêmios mais elevados para planos e seguros de saúde, seja pagando contribuições e imposto de rendaprogressivo.

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solidariedadeéaobrigaçãosocialdepagarasuaquotanosgastosparaalcançaraconstrução

conjuntadeumbemcomumsocial.

Noentanto,háoutravisãoedefiniçãodeequidade.Osplanose segurosdesaúde

privados, com fins lucrativos, definem equidade em termos de equidade atuarial (actual

fairness),istoé,aideiadequeascontribuiçõeseprêmiosparaocontratocomosplanose

segurosdesaúdedevemrefletiroqueéconsumidoouoqueseesperaconsumir.E,nesse

caso,aquelesquesãojovensesaudáveispagamumprêmiomenordoqueosgruposdemais

idadeecomsaúdefrágil(experienceratedpremiuns)(GIAIMO,2016).

Essasterminologiasecálculosquevêmdosetorprivado(instrumentosdegestãodo

setorprivado),quesepreocupacomolucroecustos,vêmcadavezmaisinfluenciandonão

sóossistemasdesaúde,oqueéumreflexodoprocessodemercantilização,mastambéma

literaturaacadêmica,comoconsequênciadesseprocessoqueocorreuevemocorrendo.Há,

também,conceitosecálculosseguindoessamesmalógicaderivadadosetorprivadoeque

revisitam a definição de qualidade na saúde. Pesquisadores e estudiosos têm criado

indicadoresparamediraqualidadedesaúdeemvezdaexpectativadevida(poisvocêpode

viver muito, mas sem qualidade de vida) e outros para avaliar a eficácia comparativa

(comparativeeffectiveness)dostratamentosdesaúde, istoé,verificarsedoistratamentos

diferentes,porexemplo,fornecemresultadosiguaisousimilares,masacustosvariados,e,a

partirdaí,contribuirparadecidiroqueseriamelhoremaiseficienteoferecernosistemade

saúde.

Outradiscussãoésobreofatodeumsistemadesaúdetercoberturauniversalnão

significar,necessariamente,quehajaumsistemaestataldesaúde,quefinancieeoferteos

serviçosdesaúde.Podehaveroutrosarranjosqueincluaminstrumentosdeconcorrênciapara

estimulareficiênciaeinovação,masquegarantamequidadenoacesso.

Nessesentido,háosexemplosdaAlemanhaeHolanda.Lá,oscidadãospodemestar

cobertos por planos e seguros privados de saúde, e aqueles que têm o plano de saúde

vinculados ao emprego podem escolher qual seguradora preferem dentre um rol de

seguradoras sem fins lucrativos. No entanto, em contrapartida, as seguradoras têm que

respeitarregrasrígidasqueasimpedemdediscriminaraclientelacomperfilmaisvulnerável

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e só escolher os candidatos com perfilmais saudável e que apresentammenos riscos de

saúde,práticaaliás,muitocomumnoBrasil(GIAIMO,2014).

Alémdisso,asseguradorasdevemoferecerumacoberturaadequadadeserviçosde

saúde. Outra prática exigida pelos governos é que os planos de saúde e seguradoras

distribuamentresuaclientelamaissaudávelocustodosmembrosmaisdoentescomoforma

decompensarorisco.Aofazeremessaexigência,estãoincentivandoosplanosdesaúdee

seguradorasacompetiremporclientessegundoummelhorserviço,deofertasdebenefícios

adicionaiseprêmiosmaisbaixosedeadministraçãoeficienteemvezdepermitiremouse

omitirememrelaçãoàseleçãodaclientela.

Giaimo(2014)mostracomoospaísescomsistemasuniversaisutilizarammecanismos

decompetiçãogerida17demodoacontrolaroscustosdosserviçossemsacrificaraqualidade.

NosEUA,porexemplo,opagamentodereembolsoaomédicoincentivaqueesteutilizeou

prescrevaserviçosdealtatecnologiaemuitocaros.Porém,naEuropa,osmédicosrecebem

saláriosmensais,quepodemvariardeacordocomsuaeficiêncianaresolutividadeequalidade

doserviçoprestado, segundoumcronogramaqueénegociadocomosplanosde saúdee

seguradoras e, também, com o governo. A Inglaterra e Alemanha, por exemplo, criaram

instituições depesquisa emeficácia clínica para teremestudos científicos quemostremo

melhortratamentoemtermosdecusto-eficiência.

JáaAlemanharesolveu,emgrandemedida,aquestãodoacessouniversalaosseguros

eaoscuidadosdesaúdepormeiodoSeguroSocialdeSaúde(SocialHealthInsurance–SHI),

umsegurosocialobrigatóriovinculadoaoemprego,comaparticipaçãodeseguradorassem

fins lucrativos.O sistemade saúdealemão figurano topodaclassificaçãodosorganismos

internacionais de saúde, e o gasto total com saúde não chega nem à metade do gasto

americano,porexemplo.Osistemadesaúdealemão,noentanto,vemenfrentandodesafios

importantesdecorrentesdorápidoenvelhecimentodesuapopulaçãoedoslimitesadvindos

doseufinanciamentodiantedeumaconjunturaadversa.

Demaneira geral, seriam três as atuais e importantes questões que precisam ser

contornadas pelos governos, apontadas por Giaimo (2016). Primeiro, como enfrentar a

17Competiçãogeridaéumtermocunhadonadécadade1970,porAlainEnthoven,umeconomistadasaúdeestadunidense.

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crescentecargadedoençascrônicasadvindasdoenvelhecimentodapopulação,quetambém

écrescente?Segundo,comoatenuarapreocupaçãodosempregadoresdiantedoaumento

dos custos dos seguros de saúde e do trabalho que prejudica a competitividade de seus

produtos na economia global? Terceiro, com aumento do número de desempregados e

aposentados (que já vem acontecendo e com tendência a aumentar devido à crise), as

contribuições baseadas nos salários seriam suficientes para financiar as necessidades de

saúdedapopulaçãono futuroounovas formase fontesde financiamento teriamque ser

pensadas?(GIAIMO,2016).

Desdeoiníciodadécadade1990,todososgovernosalemães,dediferentespartidos

políticos, aprovaram medidas de reformas nos sistemas de saúde vindas de variadas

orientações. As reformas mantiveram a estrutura corporativista da relação entre

fornecedores e fundos dos seguros de saúde, mas alguns pontos foram atualizados para

atendernovasnecessidades.Porexemplo,foidadomaiorpoderdedecisãosobrequestões

relacionadasàcoberturaao“ComitêMistoFederal”(FederalJointCommittee),compostopor

representantes dos principais atores do sistema de saúde: associações de prestadores,

seguradoras,representantesdeusuáriosenonívelfederal.Easassociaçõesdosprestadores

eseguradorascontinuamaadministrarosistemanonívelestadual.

Giaimo (2016) explica que as reformas do sistema de saúde na Alemanha têm

mostradonovoselementosparasistemasde tipocorporativistas,comoa introdução,pelo

governo, da concorrência administrada para as seguradoras com objetivo de promover a

escolhaeeficiência.Aomesmotempo,tambémintroduziraminstrumentosdesalvaguarda

dasolidariedadepormeiodeumesquemaderiscodecompensaçãoentreasseguradoras.

Para garantir uma base financeira sólida para o SHI, no futuro, o governo ampliou os

rendimentossujeitosacontribuiçõesdafolhadepagamento.SegundoGiaimo(2016),então,

houveumaforteecontroladaintervençãoestatalqueacompanhouoprocessodasreformas.

(…)Thedominantvaluesofthesocialmarketeconomystresssolidarityandequitable burden sharing, and are wary of unfettered free-market forcesoperating in the realmof socialwell-being.At the same time, subsidiarity(i.e., delegating decisions to the lowest level possible and privileging themaingroupingsinsociety)valuesandlegitimizestheroleoforganizationstorepresentcivilsocietyinpolitics,theeconomy,andsociallife,andproscribesexcessivegovernment interference.Suchvaluesarebroadlysharedbythe

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public,themainstreampoliticalparties,andthemajorstakeholdersinhealthpolicy(notjustprovidersandinsurersbutalsolaborunionsandevenmanyemployers). Those who advocate a radical break from long-standing SHIarrangements thus far have been marginal and have been overruled bycountervailingparties,interestgroups,andpublicopinion.(GIAIMO,2016,p.187).

DeseuaprofundadoestudodaSaúdeemtermoscomparados,aautorachegavárias

conclusõesrelevantes.Emprimeirolugar,ospontoscentraisparaquesejapossívelfinanciar

umsistemadesaúdecomacessouniversalequitativoseriam(ouseriamumacombinaçãode):

riskpooling(mutualizaçãodosriscos),contribuiçõesobrigatórias(compulsorycontributions)

eassistênciagovernamentalaosmaispobres.

O risk pooling é essencial para o funcionamento de qualquer tipo de seguro, e os

mercadosdesegurosdesaúdesãomaiseficientesquandopartilhamosriscosassociadoscom

aidade,estadodesaúdeerenda,oquegaranteumacoberturaacessívelparatodos.Apartilha

dosriscosprecisaseramplaediversificadaosuficienteparaqueosmaisjovens,saudáveise

maisricossubvenciemosmaisvelhos,comestadodesaúdemaisfrágil,eosmaispobres.Se

essascondiçõesnãoacontecerem,nãohaverágarantiadequeosquemaisnecessitamdos

serviçosdesaúdeserãocapazdepagá-los.

OestudodeGiaimo(2016)mostraque,nomercadoprivadodeplanosesegurosde

saúde,asempresas,sejamcomousemfinslucrativos,nãoforamcapazesdeadotaropool

riskporvontadeprópria.

Os governos tiveram que intervir e regular essesmercados para assegurar que as

empresas adotassemessa prática.O governo tambémprecisou regular os indivíduos e as

empresas para garantir um adequado risk pooling e para garantir que todas as partes

contribuíssem(osindivíduos,osempregadores,osempregados).Noentanto,senãohouver

aobrigatoriedadedacobertura,porumlado,edacontribuição,poroutro,éprovávelque,em

algummomento,osindivíduosoptempornãopagarenãoteroseguroenemplanodesaúde

e, dessamaneira, prejudicando o sistema como um todo. Porém,mesmo no caso de um

adequadocompartilhamentodoriskpoolingedaobrigatoriedadedacontribuiçãodetodos,

existemmuitoscasosnosquaisosindivíduosnãopodempagarpelosplanos.Nessescasos,os

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governosdevemsubsidiaracontribuiçãoparagarantiroacesso,especialmenteaosdemenor

renda.

Giaimo (2016) mostra que as reformas da Alemanha e dos EUA apontaram a

necessidadedemutualizaçãodosriscos(riskpooling)edeequidadenacontribuição,exigindo

que todos estejam cobertos por um seguro de saúde, proibindo a seleção de clientela e

oferecendoesquemasdesubsídiosfiscaisparaaquelesquenãopodempagarpeloseguro.

Na Alemanha, por exemplo, foram introduzidos instrumentos para que o governo

possacomplementaroupagarpartedopagamentodosegurodesaúdedoempregadorou

mesmopagarosegurointegralmente,noscasosdedesempregoepobreza.SegundoGiaimo,

“InGermany,thenewindividualmandateroundsoutthelong-standingemployermandate

and local governments subsidize or pay the full insurance contributions for the poor and

unemployed.(Ibid.,p.196).

NaAlemanha, tambémfoi introduzidoumesquemaderisk-adjustment juntamente

cominstrumentosdecompetição.

InGermany,thereisonerisk-adjustmentprogramforallhealthfundsunderSHI,andaseparateprogramforprivateinsurerswhooffercoveragetohigh-riskpersonswhocannotaffordthebasicpremium.Thekeyissueiswhetherthe risk adjustmentmechanisms are sophisticated enough to capture thecostsassociatedwith the careof sickerpatients.GermanyhashadnearlytwentyyearsofexperiencewhiletheUnitedStatesisarelativelatecomer.Still, with all the resources that insurers have devoted to medicalunderwritingandexperiencerating,itseemsplausiblethattheUnitedStateshasamplebrainpowerandactuarialtoolstoputsuchknowledgetouseindesigningsophisticatedrisk-adjustmentsystems.(Ibid.,p.197).

Mesmocomareforma,aindapersistemalgumasdiferençasdeacessoentreaqueles

com seguros privados e aqueles com o seguro social (SHI), embora todos tenham acesso

garantido por um ou outro tipo de seguro. Estudosmostraram que aqueles com seguros

privadostendemaconseguirmaisrapidamenteconsultacomespecialistas,eelassãomais

longasdoqueasdaquelescomsegurosocial (SHI).Alémdisso,os reembolsosmaioresdo

seguroprivadoincentivamosmédicosaofereceressamaiorrapidezetemponasconsultase,

portanto,obterapreferênciadospacientes.

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Contudo,a tendênciada reforma foiexpandiracoberturadosseguradosemontar

esquemasdereembolsoqueofereçamajudaparaasseguradoras,mesmoquandonecessário

tratar,inclusive,depacientescomdoençascrônicas.

Emsegundolugar,segundoGiaimo(2016),ospapéisdogoverno,mercado,indivíduo

edacomunidadevariamentreasnações.Porém,mesmonospaísescomsistemasuniversais

que, com a reforma, introduzirammecanismos demercado (incentivo à concorrência e à

competição)emseussistemasdesaúde,opapeldogovernofoifundamentalpararegulare

delimitaroslimitesdomercadoe,assim,preservarasolidariedade,rejeitando,portanto,a

visãodequeolivrefuncionamentodomercadodasaúdeconseguiria,porsisó,resolvero

problemadoacessoàsaúde.

The respective roles of the government, the market, the individual, andcommunity vary across nations. But even universal systems that haveembracedcompetitionandchoicerequiregovernment toset limits to themarkettopreservesolidarity.Thisisbecausetheyviewhealthcareasmorethanjustacommodity.Ifhealthcareisacommodityjustlikeanyothergood,thenmarket forces of supply and demand should determine access to it.Countries with universal coverage have decidedly rejected this view.(GIAIMO,2016,p.198).

Emterceirolugar,aautoraconsideracomoinexorávelatendênciaacaminharmosem

direçãoàmedicinabaseadaemevidência(MBEouevidence-basedmedicine)eapesquisade

efetividadedetratamentoecusto(effectivenessresearch).

Umavezqueasociedadeaceitequetodosdevemteracessoacuidadosbásicosde

saúde,hánovasquestõesasediscutir.Dentreelas,definiroquesãocuidadosbásicos,quem

devedecidiraamplitudedessescuidadosecomoproceder.

Os sistemas de saúde dos países decidem sobre os limites inferior e superior da

cobertura.Geralmente,opisomínimoconsistenoacessoaosserviçosdesaúdepreventivos,

curativos,dereabilitaçãoeacessoaosmedicamentospreventivosnecessários.Jáotetovaria,

masemgeralestãoexcluídosostratamentosestéticoseexperimentais.Evidentemente,em

paísesmaisricos,acoberturapodesermaisgenerosa.

Osgovernosestãocadavezmaisestimulandoouobrigandoosprestadoresdeserviços

eseguradorasaadotarinstrumentosdegestãoepesquisaquetragammaiseconomia,rapidez

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e eficácia para suas burocracias e sistemas. Alguns deles são os registros eletrônicos dos

pacientesedostratamentosparaquesejapossívelmelhoracompanhamentodosdadosdo

pacienteetornemaisviávelacoordenaçãodoscuidadosdesaúde.Tais registrostambém

podemajudarareduziroserrosmédicoseaevitaraduplicaçãodeserviços.Osgovernosestão

estimulandoeatémesmoobrigandoosprestadoresdecuidadosdesaúdeeasseguradorasa

adotaremessasmelhorias.

Também há instrumentos, como sistemas de pagamentos, que relacionam

tratamentoscomresultadosdesaúdeeferramentasparaempreenderpesquisacomparativa

deeficácia,taiscomoaqualidadedosanosdevidaajustados(QALY).

Emquartolugar,Giaimo(2016)reconheceaexistênciadeumesforçoparamelhorara

qualidadedoatendimentonapontadosistemaenacoordenaçãoentreaatençãobásicaeas

especialidades.

AAlemanhaadotanovasformasdereembolsoquerecompensambonsresultadosdos

médicos, por exemplo, e também exige que as seguradoras ofereçam planos de atenção

básica(gatekeeperprimarycareplans),mesmoqueaparticipaçãodospacientessejaoptativa.

Elaestámuitobemposicionadanorankingdasbestpracticesclínicasedecusto-efetividade.

The scope of the corporatist framework extends to all subsectors of thehealth care systemand thedirectives thatemanate from theFJCand thefederalministryofhealtharebindingonallSHIactors.Corporatismoperatesatalllevelsofthehealthcaresystem:intheFJCatnationallevel,inthefeenegotiationsbetweeninsurersandproviderassociationsatstatelevel,andattheleveloftheindividualdoctorwhosefeesandtreatmentdecisionscanbe reviewedby the statemedical association. These institutional linkagescouldthereforefacilitatethediffusionofbestpractices.Butthediffusionofbestpracticesandnewformsofcarewillnotbecomerealityunlessprovidersandinsurersactuallyimplementthemontheground.(Ibid.,p.203).

Finalmente,Giaimoverificaqueagarantiaderecursosfinanceirosparaacobertura

universalexigenovasfontesdefinanciamento,eessadiscussão,porsuavez,tocaempontos

delicadosrelacionadosàredistribuiçãoderenda.

Talaspectoécentralnoqueserefereàstendênciasrecentesdowelfarestateeganha

maior relevância em países periféricos com limitada atenção à questão social, onde a

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necessidadederecursosfiscaiséaindamaiordoquenospaísescentraisporqueasdemandas

sãocomplexasegrandes.

AOMSsugereque,alémdastradicionaisfontesdefinanciamento,sejamconsideradas

novasfontesderecursos,comoumimpostobaseadonastransaçõesfinanceirasglobaisde

alto risco (tax on high-risk global financial transactions), chamada por alguns de imposto

RobinWood.

Esse imposto serviria para redistribuir recursos dos países ricos (ocidentais) e

instituições financeiras parapaísesmais pobresdaÁfrica,AméricaCentral e Latina eÁsia

(“Global South”), cujos sistemas de saúde estivessem em construção. Poderia também

financiarprogramassociaisedesaúdedospaísesricosqueforamsubmetidosaprogramasde

austeridadedevidoàcrisede2008.

Ajustificativaseapoiaemumaformadecompensaroscidadãosecontribuintesdo

gigantescovolumederecursosquetevequeserutilizadoparasalvarosbancosdacriseque

causou desemprego em massa, recessão, aumento da dívida e corte de gastos sociais,

especialmente,emsaúde.

Comopodemosperceber,adiscussãosobreoaumentodosrecursosfiscaisnospaíses

europeusparasustentaraproteçãosocialestánapautaatual.Evidentemente,anecessidade

derecursosfiscaisparafinanciaraproteçãosocial,comovimos,sempreestevepresenteno

capitalismomaisorganizado.Nascondiçõescontemporâneasdodesenvolvimentocapitalista,

emqueasmudançaseconômicas,demográficas,nasprofundasalteraçõesnomercadode

trabalho,nodesenvolvimentoda inovaçãoe tecnologia impõemàs sociedades,mesmoàs

maishomogêneas,novasnecessidadesrelativasaofinanciamento.Essasnovasnecessidades

(KERSTENETZKY, 2012) exigem crescente presença de recursos fiscais no orçamento do

sistema.Eesseaumentoderecursosfiscaisdirecionadosàsnovasnecessidadesnãoincorre,

necessariamente,emdéficits.

Se,porumlado,hánecessidadederecursosfiscaisparasustentaraproteçãosociale

paraasnovasnecessidadesquesecolocamdiantedasmudançaseconômicas,demográficas,

do mercado de trabalho, inovação, isso significa que, por outro lado, dependendo da

estruturaçãodosistema,esses recursos fiscaispodemserespaçodeapropriaçãodosetor

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privado, já que o orçamento público, como espaço crescente de recursos, será objeto de

disputa de toda ordem, especialmente em uma conjuntura de crise, com aumento do

desemprego, com redução da atividade do setor privado, diminuição de lucro privado de

algunssetores,porexemplo.

Apesardisso,oquehouvecomocontrapartidaemmuitospaíses,istoé,comosolução

paraoaumentodeaportederecursos,foiumaumentodofinanciamentodasaúdeporparte

dos“pacientes”,oqueéaindamaisdramáticoempaísesperiféricos.

Aumentodofinanciamentodasaúdeporpartedospacientes

Batifoulier(2015)ponderaque,desdeosanos1980,háumaumentodacontribuição

financeira,na formadeco-pagamentoeoutrosmecanismos (ticketmodérateur, forfaitou

franchise),porpartedospacientes(queelecontrapõeaosclientes),comoummododedividir

oscustoscrescentesdesaúde.Éoqueoautorchamademecanismosde“partilhadecustos”.

Batifoulier (2015)mostraque,emtodosospaísesdaEuropa,essemodelodepartilharos

custos de forma a carregarmais o paciente foi crescente, ainda que haja graduações.Na

França,porexemplo,eleémaisbrando.

Alémdisso,outrofenômenoqueBatifoulier(2015)apontaéacrescenteimportância

queoseguroprivadodesaúdevemconquistandonoespaçodossistemasdesaúde.Assim,

aindaqueossistemasdesaúdepúblicostenhamaindamuitaimportância,éinegável,afirma

ele,queossegurosprivadosestãoparticipandocadavezmaisdofinanciamentodocuidado

comsaúde.Embora,éclaro,opapeldoseguroprivadodesaúdetenhadiferentesfunçõesno

sistemadesaúde,deacordocomaconfiguraçãonacionaldosistemanacionaldesaúde,e,

também, do modelo de proteção social e da força de sua regulação, como já vimos

anteriormente.

Batifoulier (2015) mostra que tanto o aumento da participação dos pacientes no

financiamentodosistemadesaúdecomoaexpansãodossegurosprivadosdesaúdedentro

dossistemasdesaúdesãoduasevidênciasdaprivatizaçãodofinanciamentodoscuidados

comsaúde.

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Essa privatização do financiamento dos cuidados com saúde não se resume

unicamente a uma transferência da cargade recursos públicos para o privado. Batifoulier

(2015)defendequeelatambémrecaisobreserviçosespecíficosealgunstiposdepacientese

que,porisso,ogastopúblicopermanececonstanteduranteoprocessodeprivatização.

[a privatização do financiamento] tem por alvo determinados cuidadosmédicosoudeterminadospacientes:o tratamentode“pequeno” riscodepreferênciaaotratamentohospitalar;apessoasaudáveldepreferênciaaodoentecrônico;odoenteabonadodepreferênciaaomaisdesamparado.Éporissoqueadespesapúblicapodesemanterconstanteduranteoperíododeprivatização.(Ibid.,p.2,traduçãonossa).18

Paraoautor,arelaçãopúblico-privadanagestãofinanceiradoscuidadoscomsaúde

fazpartedadiscussãodoaumentodoscustosparaasfinançaspúblicaseparaosistemade

proteçãosocial,eessaproblemáticarespondeànecessidadedabuscadenovosmercadosdo

capitalismoneoliberal,quetambémchegaàáreadasaúde,querendoexplorá-laparaolucro.

NaFrança,porexemplo,osetordesegurosprivadosestariadeolhoemumpromissor

mercadopotencialde30bilhõesdeeurosporano,comumaperspectiva,queécrescente,de

reduçãooueliminaçãodoreembolsodemedicamentooutratamentomédicoporpartedo

sistema de saúde. Segundo Tabuteau (2013, p. 153 apud BATIFOULIER, 2015, p. 3), esse

déremboursementsignificariaummercadode1,5%doPIB.Jáparaopaciente,aprivatização

dofinanciamentodoscuidadoscomsaúdesignifica,concretamente,dificuldadesdeacesso

aos cuidados, renúncias e filas emum contexto emque as desigualdades são crescentes.

Nessesentido,oautorresumebemaquestão:“Adoençanãoémaisapenasumaprovafísica

emental.Elasetornouumabatalhafinanceira.”(Ibid.,p.3,traduçãonossa)19.

O autor argumenta que a defesa da privatização pelos interesses econômicos

dominantessecontrapõeaosinteressesdospacienteseháumdiscursodateoriaeconômica

ortodoxaquevaiaoencontrodosinteressesdosgruposeconômicosdominantes,compostos

pelasempresasprivadasdeseguro,asindústriasdeequipamentosdesaúdeeamedicinade

18Nooriginal:“[Cetteprivatisationdufinancementdusoindesanté]Elleciblecertainssoinsoucertainspatients:le“petit”risqueplutôtquelesoinhospitalier,lebienportantplutôtquelemaladechronique,lemaladeaiséplutôtqueledémuni.C’estpourquoiladépensepubliquepeutrestersoutenueenpériodedeprivatisation.”19Nooriginal:“Lamaladien’estplusseulementuneépreuvephysiqueetmentale.Elleestdevenueuneépreuvefinancière.”

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cunholiberal.“Opacientesepercebedespossuídodeseubemmaisprecioso,suasaúde,que

setornouumaenormefontedelucroparaasclínicasprivadas,paraascompanhiasdeseguro

de saúde e para a indústria farmacêutica20." (BATIFOULIER, 2014 apud LECTURES, 2014,

traduçãonossa).

Ateoriaeconômicaortodoxajustificaoseguroprivadodesaúdeapartirdoconceito

deriscomoral(moralhazard)econstituiabasepolíticaquejustificariaaarticulaçãoentreo

financiamentopúblicoeoprivado.

Éoqueoautorchamadecapitalismosanitário(capitalismesanitaire).Ocapitalismo

sanitárioexaminaaquestãodocuidadoàsaúdedentrodoslimitesrestritosdeumateoria

econômica,apartirdecritériosderiscoeseletividadedeclientela,comosenãohouvesseum

conteúdopolíticoideológicoedissociadodasquestõesdemercado.Ocapitalismosanitárioé

abuscadeumalógicaeconômicaefinanceiradesegurosegundoaqualohomemeconômico

temumarelaçãopropriamentecapitalistacomasuasaúde.Portanto,ocapitalismosanitário

buscamercantilizartotalmenteaquestãodasaúde,reduzindo-aaumseguroetratando-apor

umaanálisederiscoeconômico.

Contudo,oresultadodoavançodocapitalismosanitárioé,naverdade,acrescente

desigualdade,quetornacadavezmaisdifíciljustificarumaorganizaçãodofinanciamentodos

cuidados com saúde que afete o bem-estar da população. Além disso, Batifoulier (2015)

argumenta que a eficácia da privatização é questionável quando ela induz o aumento da

despesa pública. O autor defende, também, que a privatização leva à segmentação dos

pacientes.Dessemodo, “o financiamentoprivadodos gastos com saúde torna-se sinal de

respeitabilidade,enquantoofinanciamentopúblicoédefinidocomodeficiente”(Ibid.,p.3,

traduçãonossa)21.

Aprivatização,segundooautor,causaumaumentodosdispêndioscomserviçosde

saúdeporpartedospacientes,devidoàpartilhadecustose,também,aoaumentodecustos

demuitosserviçosdesaúde.Essefatorchegamesmoalimitaroacessoemcertoscasos,por

20Nooriginal:“Lepatientsetrouvedépossédédesonbienleplusprécieux,sesanté,quedevientuneformidablesourcedeprofitpourlecliniqueprivées,lescompagnied´assurancesetl´industriepharmaceutique.”21Nooriginal:“Lefinancementprivédesfraisdesantédevientsignederespectabilitéalorsquelapriseenchargepubliqueestdéfiniepardéfaut”.

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exemplo,quandoocustoémuitoaltoparaeles.Oautorafirmaqueosmaisafetadossão,em

geral,aquelesmaisvulneráveisecommenorcobertura,jáqueseriamosprimeirosasofrer

osefeitosdasbarreiras financeirasnoacessoaoscuidados.Sãotambémosmaispobrese

maisdoentes.E,muitasvezes,precisamdesembolsarmaisdoseuorçamentoparacuidarde

suasaúdeesacrificaroutrositens,comooconsumodeprodutos,que,porsinal,sãobenéficos

parasuasaúde,porexemplo,alimentos,higiene,moradiaetc.(BATIFOULIER,2015).

Dessamaneira,aprivatização,sejacommecanismosqueincentivemamaiorpresença

desegurosprivados,sejacomaquelesqueincentivemumamaiorcontribuiçãofinanceirado

paciente (co-pagamento), produz efeitos deletérios, como o de adiar o tratamento ou de

incentivarotratamentonohospitaloudetransferirotratamentoparaoseguropúblico.

Qualquerquesejaomecanismo(co-pagamento,franquiaetc.),háumefeitonegativo,

poishaveriaumainduçãoaoaumentodepreçosdosserviçosdesaúdequerecairianosmais

pobresedoentes,levando-seemconsideraçãoqueasdesigualdadesdesaúdetêmumforte

componentedasdesigualdadessociais.Porexemplo,oco-pagamentoéummecanismoque

funcionariacomoumimpostoregressivo,penalizandoosmaisdoentes,nocaso,poisébaixo

paraosserviçosdebaixocustoemuitoaltoparaosserviçosmaiscaros.Dessamaneira,a

estratégiadaprivatização,argumentaBatifoulier(2015),levarianecessariamenteaosacrifício

dajustiçasocial.

Porém,aintroduçãodasbarreirasfinanceirasnoacessoaoscuidadoscomsaúde,que,

comovimos,éfontededesigualdadeparaopaciente,igualmenteseestendeatodotecido

social,poisadesigualdadetambémafetaasaúdedosindivíduos.Eamágestãonocuidado

com os doentes também afeta negativamente as finanças públicas, pois o financiamento

privadodoscuidadoscomsaúdeinduzanovosgastospormeiodemecanismosqueadiamo

cuidadocomsaúdeeativamooportunismodosagentes(BATIFOULIER,2015).

A valorização da privatização encontra um ponto de apoio na segmentação dos

pacientesorganizadapela teoriaeconômica.Estasemprereivindicou,embenefíciodasua

cientificidade,estardesconectadadequestõesmoraisenãocolocarproblemas,anãoserem

termostécnicos.

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Comoocapitalismodoseguroprivado(capitalismeassurantiel),ateoriaeconômica

buscadividirapopulaçãoemduascategoriasehierarquizá-las:osaltos riscos,quesãoos

riscos maus, mais custosos, e os riscos baixos, que são os riscos bons, menos custosos.

Contudo,ovocabuláriodaeficiênciaoudaotimizaçãomascaraofatodequecertosgrupos

são preferíveis a outros. O seguro privado quer uma clientela de baixo risco, enquanto o

sistema de saúde público se dirige a todos, inclusive e especialmente àqueles que mais

necessitam.Comovimos,Giaimo(2016)tambémreforçaessapercepção.

Essavisãoteóricaparticipadeumaretóricareacionáriaquedenunciaowelfarestate,

alegando que este, ao promover a felicidade de um grupo mais numeroso, produz a

infelicidadedosindivíduos.Eaprivatização,naverdade,acabaresponsabilizandooindivíduo

por sua saúde. Dessa maneira, o público, o coletivo, é dissolvido como valor, e a

responsabilidadeviraindividual.Odiscursoretóricodifundeessemododepensareacabapor

tornaroindivíduopassivo(BAUTIFOULIER,2015).

E,nessascondições,oseguroprivadoouogastodiretodasfamíliascomserviçosde

saúde (out-of-pocket; auto seguro) seriam os meios para esse tipo de cidadania, que

responsabilizaoindivíduoe,comojáfoiapontado,otornapassivo(BAUTIFOULIER,2015).

Essetipodeconcepçãoafetaomodocomoosindivíduosjulgamoseucomportamento

e o dos outros, e o vocabulário normativo adotadopela retórica e pela teoria econômica

ortodoxaéutilizadoparaexplicitaras“fraudes”dosclientes.Essacríticaésemprereativada

emtemposderestriçãoorçamentária.Nessesentido,alutacontraodescontroledasdespesas

de saúde se transforma em uma luta contra a irresponsabilidade do paciente, segundo

Batifoulier(2015).Váriossãoosexemplos:oenganoprestadopeloasseguradoparaobteras

prestações;onomadismomédicoouanecessidadedeopacienteconsultarváriosmédicos

para omesmo episódio de cuidado; a fraude no sentido de paralisação do trabalho ou a

doençainstrumentalizadaparasatisfazerapreferênciapelolazer;o“vício”nomedicamento,

quedesenvolveumconsumoexageradoetc.

Essalógicadocapitalprivadonasaúdelevaaumdiscursoquedesqualificaalógicada

solidariedade.Dessamaneira,portanto,trata-sedelegitimaraprivatizaçãodofinanciamento

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da saúde por uma fragmentação dos direitos sociais, segundo o tipo de paciente e seu

cuidado.

Importante lembrar que, pela ótica do sistema universal e público, a ideia de

solidariedade é aquela que une, solidifica um arranjo da sociedade no qual os indivíduos

dividemosriscosentreosmaisforteseosmaisfracos,entreosdesiguais.Éestaaideiado

coletivo,sejadosistemapúblicooudeumsegurocoletivoassociativo,porexemplo.Todos

pagam,unspagammais,outrospagammenos.

Diantedoquefoiexposto,ficaclaroqueháumacolonizaçãodopúblicopeloprivado.

O capital privado ocupa os espaços públicos para sua valorização e vai transformando

drasticamenteoespaçoocupado,opúblico,mudandoseusentido,seusvalores,destruindoa

solidariedade,queéa“cola”quedáaligadosistemapúblicoecoletivoconstruído.Ocapital

privadoesualógicamodificamcadapedaçodesseespaçoeatémesmoosprópriosindivíduos,

seus valores, seus propósitos e suas relações; as relações sociais, portanto, são

profundamenteafetadas.

Batifoulier(2015),porexemplo,mostracomoalógicadocapitalprivadotransforma

osindivíduosemempresáriosdesimesmo.E,assim,sãoresponsabilizadospelasuaprópria

saúdeepelousocalculadoquefazemdosserviçosdesaúde.

Assim,elemostra,também,queessalógicadocapitalprivadocoloniza,digamosassim,

o sistema público, coletivo e universal de saúde e, com isso, inicia um processo de

transformaçãoradicaldeste,culminandocomadestruiçãodasolidariedade,queuneedá

coesãoaosistemapúblicoeojustifica.

A questão é, portanto, como resistir. Até que ponto é possível resistir e quais

mecanismosderesistênciapodemosutilizarecriarpararesistir?

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1.4–Transformaçõesrecentesdossistemasdesaúdeuniversaisnocontextodasrelaçõespúblico-privadas

A partir dos 1980, foram implementadas reformas nos sistemas de saúde como

respostasàcriseeconômica,àsmudançasnomercadodetrabalho,àsinovaçõestecnológicas

queincorporaramcustosadicionaisaossistemasdesaúdeeàmudançanoperfildemográfico.

Jansen-Ferreira (2016) mostra que foram criados mecanismos que viabilizaram a

preservação do acesso aos sistemas, porém, ao mesmo tempo, geraram uma paulatina

ampliaçãodalógicaedapresençadeatoresprivados.

Essasmudançastiveramsuasespecificidadesemcadaumdospaíses.Jansen-Ferreira

(2016)analisouoscasosdaFrança,ReinoUnidoeAlemanha.

NoReinoUnido,em1980,nãohaviaumproblemaemrelaçãoàdespesacomsaúde,

queera,aliás,relativamentebaixa,secomparadaaosoutrospaíseseuropeus.Entretanto,do

ladodareceita,omenorcrescimentoeconômicoafetouacapacidadedearrecadaçãogeral

do governo e, também, dos impostos, gerando consequências para o financiamento do

sistemadesaúde,queerafortementebaseadoemrecursosfiscais.

Já os sistemasde saúdedaAlemanhae da França, baseadosno financiamento via

contribuiçõessociais,foramafetadospeloaumentododesempregoepelaflexibilizaçãodas

relaçõestrabalhistas,oqueabalousuaarrecadação.

Alémdisso,haviatambémpressãoparaadiminuiçãodascontribuiçõessociaiscomo

objetivodemelhorarcompetitividadeparaasempresas.

Dessa maneira, frente à baixa arrecadação das contribuições sociais e aumentos

crescentescomaseguridadesocial,osdéficitsnessesetorcomeçaramaservistoscomoum

problematécnico.

Nessesentido,naFrança,porexemplo,houvedéficitnaseguridadesocial,enquanto

que,naAlemanha,asCaixasdeSaúdeeramresponsáveisporgarantirofinanciamentodas

despesasque,casofossenecessário,seriamcobertascomaumentodascontribuiçõessociais.

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Portanto,diantedemenoresrecursos,asCaixasdeSaúdeaumentaramaparticipaçãodos

parceirossociaisparagarantirofinanciamentodosistemadesaúde.Jansen-Ferreira(2016,p.

115)mostraque,entreoiníciode1970e2012,ataxadecontribuiçãosocialsobreossalários

paraofinanciamentodasaúdequasedobrou,passandode8,2%(emmédia)para15,5%.

NaFrança,osistemadeseguridadesocialapresentoudéficitsemdiversosanos,desde

suacriação,em1945.Contudo,atéadécadade1980,asoluçãofoiaumentaraalíquotade

contribuições sociais e, assim, ampliar a receita. Foi a partir da década de 1990, com a

aprovaçãodaLeideFinanciamentodaSeguridadeSocial(LFSS),queaprioridadepassouaser

ocontrolededespesas.E,mesmocomessemaiorcontrole,emquasetodososanosdesdea

criaçãodaLFSS,houvedéficitnaseguridadesocialemdecorrênciadodéficitnosetordesaúde

(Ibid.,p.115).

Dessemodo,apressãoparaareformadosistemaaumentouconsideravelmente.

A partir dos anos 1990, também por influência das organizações europeias e

internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), Banco Mundial (BM),

OrganizaçãoMundialdoComércio(OMC)eOrganizaçãoparaCooperaçãoeDesenvolvimento

Econômico–(OCDE),houveumapressãomaiorporreformasgeraisetambémnasaúdeque

introduzissemmecanismosdeconcorrênciaeeficiênciadosmercadosedecortedegastos.A

UniãoEuropeiapassouasofreressapressãoparaapoiarreformasnaspolíticasdeempregoe

nas políticas econômicas e sociais com o objetivo de estabilidade fiscal, subordinando a

políticasocialaosobjetivosdapolíticaeconômica.

Aliteraturafazumaperiodizaçãoemrelaçãoàsreformaseaosimpactosnossistemas

desaúdedospaíseseuropeus.

Adécadade1980foimarcadaporadaptaçõesnossistemasdesaúdefrenteàcrise,

contudo, em um contexto de inércia institucional. Sendo assim, Jansen-Ferreira (2016)

caracterizatrêstiposdemedidas:aspolíticasdecontençãodecustos(tetosorçamentáriose

definição de listas de medicamentos cobertos pelos sistemas), a ampliação nas taxas de

contribuição sociais e a implementação de novos mecanismos de co-pagamento. Essas

mudanças,contudo,nãoafetaramascaracterísticasestruturaisdossistemasdesaúde.No

casodoco-pagamento,porexemplo,elejáexistiaempaísescomoFrança,AlemanhaeReino

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Unido e, alémdisso, o impacto foi absorvido pela criação de isenções (JANSEN-FERREIRA,

2016,p.120).

Nadécadade1990,houvereestruturaçãodossistemasdesaúde,efoidadaprioridade

ao aumento da eficiência dos sistemas; contudo, houve, também, aumento da

regulamentaçãoedocontroleorçamentárioestatal,incluindoaampliaçãonousoderecursos

fiscaisparaofinanciamentodossistemas.Nessesentido,houvemudançasnaestruturade

financiamento,houvemercantilização(comadoçãodemecanismosdemercadoeampliação

daparticipaçãoprivadanossistemas),houvedescentralização,principalmentenaFrançaeno

Reino Unido, que são centralizados desde sua constituição. Então, além do aumento da

participação privada no financiamento e provisão dos serviços, houve, principalmente, a

lógica de gestão privada (new public management) incorporada no setor público,

principalmentenohospitalar(Ibid.,p.120).

Jansen-Ferreira (2016) identifica reformas, na década de 2000, com um duplo

movimento que aprofunda as mudanças estruturais com ampliação da mercantilização e

maiorregulamentaçãodossistemas,mas,também,corrigeaspectosnegativosdealterações

dadécadaanterior,alémdemudançasnocombateaoaltodesempregoeaocrescimento

econômicobaixo.AFrança,porexemplo,ampliouauniversalizaçãodoacessoparagarantiro

acessoaosistemanessecontextodemercantilização.OReinoUnidoexpandiuosrecursos

públicosparagarantiroacessoereduzirasfilasdeespera.Emrespostaàcriseeseusefeitos,

como o desemprego, as reformas dos anos 2000 aprofundaram a mercantilização, mas,

também,garantiramoacesso.

Nos anos 2000, houve ampliação da participação privada e da incorporação de

mecanismosdemercado;houveaumentodaregulamentação,comocontrapartidadamaior

participaçãoprivadanossistemas;ampliaçãodatransformaçãodopacienteemconsumidor

deserviçosdesaúdeeampliaçãodoacessoaossistemas22.

22Paramaioresdetalhessobreasreformasdosanos1980,1990e2000naFrança,ReinoUnidoeAlemanha,vertesedeJansen-Ferreira(2016).

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Demaneirageral,otrabalhodeJansen-Ferreira(2016)identificaseistendênciasem

relaçãoàsreformasdosanos1980,1990e2000,queestãoresumidasabaixo,comalguns

exemplos.

Aprimeiradelasrefere-seaumaumentodocontroledecustosnosgastoshospitalares

eambulatoriais,especialmentecommedicamentos.

Emrelaçãoaosmedicamentos,noReinoUnido,adotou-seuma“listapositiva”,que

definia quaismedicamentos seriam pagos pelo sistema nacional de saúde. Na França, foi

criadoum“guiadereferências”demedicamentosaseremprescritos.NaAlemanha,houvea

imposiçãodetetoaospreçosdosmedicamentos.E,nostrêspaíses,houveaelevaçãodeco-

pagamentossobreosmedicamentos.

Em relação aos gastos hospitalares, no Reino Unido, houve redução no ritmo de

ampliaçãoderecursosparaosetor:osgastosdesaúdeaumentaram1,5%aoanodadécada

de 1980, mas o gasto no setor hospitalar aumentou somente 0,5% ao ano. Na França e

Alemanha,houve implementaçãodetetosorçamentáriosnosetorhospitalarcombaseno

gastodoanoanterioràimplementação.

Asegundatendênciarefere-seàampliaçãonabasedefinanciamento.

Houve ampliação das taxas de contribuições sociais na Alemanha e na França, na

décadade1980,emdecorrênciadaquedanoritmodearrecadaçãoprovocadapelacrisedos

anos1970.Nadécadade1990,houveaumentodousoderecursosfiscaisparafinanciaros

sistemasdesaúde.Ataxadecontribuiçãosocialdestinadaàsaúde,emrelaçãoaossalários,

aumentou,entre1970e1997,nasseguintesproporções:naAlemanha,de8,2%para13,5%;

naFrança,de15,75%para19,6%(JANSEN-FERREIRA,2016,p.127).

Ogastonosetorsaúde,noentanto,aumentoumaisdoqueoaumentodaarrecadação

das contribuições sociais, e houve, também, redirecionamento de recursos fiscais para o

financiamentodossistemasdesaúde.NaAlemanha,houvedirecionamentodeumaparcela

doimpostosobrecigarrosàsaúdequegerou,entre2004e2008,umamédiade2,34bilhões

deeurosaoano.NaFrança,em1990,ogovernocriouaContribuitionSocialeGénéralisée

(CSG),quesubstituiuparcialmenteascontribuiçõessociais.ACSGincidiasobretrêstiposde

rendas:osrendimentosdotrabalhoeasrendascompensatórias,comosegurodesemprego,

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seguroinvalidezeprevidência;osrendimentospatrimoniaisedecapital;eosrendimentos

provenientesdeaplicações financeiras.Posteriormente,passoua incidir, também,sobrea

receita de loterias e sobre a venda e gastos com propaganda da indústria farmacêutica.

Quandofoicriada,aCSGerade1,1%;aolongodadécadade1990,ataxaaumentou.Em1993,

foide2,4%;em1995,foide3,4%e,em1996,foipara7,5%,quandosofreumodificaçõese

passouasechamarLeideFinanciamentodaSeguridadeSocial(LFSS),chegandoarepresentar,

em2012,36%detodososrecursosdosetor.

AcriaçãodaCSGnãoaumentouovolumederecursosdestinadosaofinanciamentodo

sistemadesaúde,masalterousuacomposição,commenorparticipaçãodostrabalhadores,

igualparticipaçãodosempregadorese inclusãodos rendimentospatrimoniaisedecapital

provenientesdeaplicaçõesfinanceiras.ACSGgeroumaiorestabilidadederecursosfrenteao

aumentododesempregoemodificouafortecaracterísticabismarckianadofinanciamento

francês ao desvincular a quebra do vínculo da contribuição como trabalho direto, isto é,

desvinculandoofinanciamentoaotrabalhoereforçandoacidadaniacomocritériodeacesso

àsaúde.

NoReinoUnido,cujosistemaéfinanciadopormeioderecursosfiscais,houverestrição

de recursos,oquegerou filasdeespera,principalmenteemrelaçãoacirurgiaseletivas,e

limitou o acesso ao sistema. Com a vitória do Partido Trabalhista, em 1997, houve uma

ampliaçãonoaportederecursosparaasaúde,comaumentode6,6%aoanoparaoNHSa

partirde2000.Oaumentofoiaindamaiordoqueoprevistoe,entre2000e2010,ogasto

públicocomsaúdeaumentoude5%para7,2%doPIB,maiorcrescimentodetodosospaíses

daOCDEnoperíodo(JANSEN-FERREIRA,2016,p.129).

Com a crise de 2007/2008, houve expansão de aporte de recursos também na

AlemanhaeFrança.

NaFrança,houveaumentodasalíquotasdeimpostossobreprodutos,comocigarro

(2011),refrigerante(2012)ecerveja(2013),e,também,aumentodenovasfiscalidadessobre

lucrosegrandessalários.Em2009,foicriadaumanovacontribuiçãosocial(forfaitsocialsur

l’épargnesalariale),que,inicialmente,tinhaincidênciade2%sobreaparticipaçãonoslucros

e, em 2012, chegou a atingir 20%, sendo responsável por 25% do total da receita obtida

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destinadaàsaúde.E,porfim,em2013,foicriadoumimpostoadicionalsobresaláriosanuais

acima de 150mil euros, com recursos destinados à seguridade social (JANSEN-FERREIRA,

2016,p.130).

NaAlemanha,ogovernotambémampliouatransferênciaderecursosfiscaisparao

sistemadesaúde.Entre2009e2013,foram63,5bilhõesdeeuros,oquerepresenta5%do

totaldofinanciamentodosegurosocialdesaúdealemão.NaAlemanha,ofinanciamentofoi

pautado nas contribuições sociais e assim continuou; contudo, houve algumasmudanças

importantes:acriaçãodoFundoúnicodeFinanciamento,quecentralizavaosrecursosdas

CaixasdeSaúde;oestabelecimentodeumacontribuiçãosocialnacionalde15,5%,massem

aparidadehistórica,quebradaem2004,entreosparceiros sociais. Istoé,osempregados

pagavam8,2%,eosempregadores,7,3%;havendoaeliminaçãopelogovernodolimitepara

acobrançadeumvaloradicionalparaostrabalhadoresfiliados,emcasodedéficitnaCaixa

deSaúde.

Aterceiratendênciaéadescentralizaçãoparcialdagestãoealocaçãoderecursos.No

entanto,noqueserefereaofinanciamento,houve,naverdade,umamaiorcentralização.

Aquartatendênciarefere-seaumaumentonaregulamentação.

Houveumaumentodocontroleestatalsobreosgastosdosetorsaúdeeumaumento

naadoçãodalógicaprivadadeoperaçãonosistemadesaúde.NaFrança,porexemplo,com

aLeidoFinanciamentodaSeguridadeSocial,enaAlemanha,commaiorintervençãoestatal

nas Caixas de Saúde, também houve a criação de agências regulatórias. Segundo Jansen-

Ferreira(2016),essacriaçãosignificouainternalizaçãodalógicadeeficiênciadagestão.

Aquintatendênciaéaexpansãodacobertura.

OacessouniversaldosistemadesaúdedoReinoUnido(NHS)estágarantidoatodos

oscidadãoseéfinanciadomajoritariamenteporrecursosfiscais,numsistemabeveridgiano.

NaAlemanha e França, cujos sistemas de proteção social são predominantemente

bismarckianos e pautados, portanto, na proteção como condição de trabalhador, houve

modificaçõesimportantesnaquestãodoacessoaossistemasdesaúde.

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Nopós-SegundaGuerraMundial,períododefortecrescimentoeconômicoedequase

plenoemprego,oacessoaos serviçosde saúdeera,naprática,universal, talqualnoNHS

britânico. Aqueles que não tinham acesso via trabalho eram incluídos no sistema via

mecanismos assistenciais. Na Alemanha, havia o seguro-desemprego ou o auxílio-

desempregoe,ainda,emperíodoslongosdedesemprego,haviaaassistênciasocial.Édese

notarque,naAlemanha,em1998,90%dosdesempregadoseram incluídosnosistemade

segurosocialviasegurodesemprego,eorestanteviaassistênciasocial(GIOVANELLA,1998).

NaFrança,oacessodosdesempregadosnosistemadesaúdeaconteciaviacartesanté.Em

1990,cercade300milfrancesesencontravam-senessascondições(JANSEN-FERREIRA,2016).

Coma criseeconômica, apartirdadécadade1970,eoaumentododesemprego,

cresceubastanteocontingentedescobertodeacessoaosistemadesaúdenaAlemanhae

França.Diantedisso,houvemodificaçõesimportantesrelativasàcoberturadosserviçosde

saúde.

NaFrança,foramcriadasaCouvertureMaladieUniverselle(CMU),apartirde2000,e

aCouvertureMaladieUniverselle–Complementaire(CMU-C),em2003.Odebate,noentanto,

começou bem antes, em 1995, com o Plano Juppé, que trouxe a proposta da criação da

AssuranceMaladieUniverselle,istoé,propunhaaintroduçãodemecanismosquegarantissem

a coberturade todosos indivíduos residentes, independentementeda contribuiçãodireta

para o financiamento do sistema. Contudo, a implementação da CMU e CMU-C não

contemplou os estrangeiros residentes na França em situação irregular. No caso deles, o

acesso ocorria fora da seguridade social, via um dispositivo de ajuda médica do Estado

chamadoAideMèdicale de l’État (AME), que, em2013, acolhia 251mil pessoas (JANSEN-

FERREIRA,2016).OfinanciamentodaCMU-C,porsuavez,erafeitoporumataxaincidente

sobreofaturamentodasseguradorasprivadascomplementaresquefoisendomodificadaao

longodosanos2000:em2004,erade1,75%;em2007,de2,5%;em2011estavaem6,27%

(BATIFOULIER,2014).

ComaCMUeaCMU-C,houveampliaçãodoacessoaosistema,oquepermitiuacesso

gratuitoatodapopulaçãoabaixodedeterminadonívelderenda,semreembolso–queéo

modo tradicional de pagamento por parte do paciente –, sendo pago diretamente pela

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seguridadesocial–conhecidocomotierspayant23.OCMU-Cpermitiuacessosemnecessidade

dearcarcomoco-pagamentooucomopagamentodosegurocomplementar.

Em2005,acoberturafoiaindamaisampliadaparaumaparceladapopulaçãocom

rendamais elevada do que o teto do CMU-C,mas que, contudo, ainda não dispunha de

recursossuficientesparaarcarcomopagamentodeumsegurocomplementar.Foicriadaa

Aideà laComplémentaireSanté (ACS),quefuncionavacomoum“vale”,cujovalormínimo

variavaemfunçãodaidadedapessoa,umavezqueosegurocomplementareramaiscaro

parapessoasmaisvelhas.Em2013,ovalordovaleerade100eurospormêsparamenores

de16anos,200eurosparapessoasentre16e49anos,350eurosparaafaixade50-59anos

e550eurosparaafaixademaisde60anos(BATIFOULIER,2014;JANSEN-FERREIRA,2016).

NaAlemanha,tambémhouvemodificações.Odiagnóstico,em2006,eraque,apesar

dosegurosocialedosmecanismosassistenciais,haviacercade80a300milalemãessem

cobertura de saúde.Dessamaneira, em2007, a adesão a alguma formade seguro, fosse

público ou privado, tornou-se obrigatória para toda a população, o que transformou o

sistema,portanto,emuniversal(JANSEN-FERREIRA,2016,p.137).

Emquepeseaampliaçãodoacessoaossistemasdesaúde,éimportantedestacarque

a cobertura se deunos cuidados essenciais e foi prejudicada em setores nosquais houve

aumentodemecanismosdeco-pagamentoe/oureduçãodaobrigatoriedadedeacessopor

meio do sistema público. Dessamaneira, Jansen-Ferreira (2016, p. 137 apud POULLIER e

SANDIER,2000,p.901)mostraque

(...) a universalidade veio acompanhada de redução na integralidade doacessoaossistemas.Destacam-sequatrosetorescomessadinâmica:acessoamedicamentos(foradoshospitais);tratamentosdentários;oftalmológicos(óculos); e de enfermagem de longa duração (principalmente quedemandamcuidadosemdomicílio).Nessescasos,a reduçãodacoberturapública manteve (ou até mesmo ampliou) o financiamento e a provisãodessesserviçospelosetorprivado:“oespaçodeixadoparaomercadovariainversamente com a importância da cobertura [pública]. (POULLIER eSANDIER,2000,p.901).

23SegundoJansen-Ferreira (2016),háumdebateparlamentardesde2015,naFrança,emquesediscuteaaprovaçãodauniversalizaçãodomecanismodetierspayant,istoé,definanciamentodiretodaseguridadesocialatodososprestadoresdeserviçodesaúdedemodoaextinguirosistemadereembolso.

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A sexta tendência refere-se à ampliação da presença do setor privado e de

mecanismosdemercado,istoé,aampliaçãodamercantilização.

Nosanos1970e1980,diantedapreocupaçãocomacapacidadedefinanciamento,

tendocomofocoapreservaçãoderecursosparaofinanciamento,houveaampliaçãodetaxas

decontribuiçõessociais(naAlemanhaeFrança)e,também,aexpansãodemecanismosde

co-pagamento,inclusivenocasodeinternaçãohospitalareemoutroscuidadosnãoessenciais

(oftalmológicos e dentários) na França, Alemanha e Reino Unido. Lá também houve a

terceirizaçãodeserviçosnãoclínicosdadécadade1980.

A partir de 1990, houve incentivo da concorrência como mecanismo de alocação

eficientedos recursos, supondo-seque issopreservariaoumesmoampliariao acessoaos

sistemasdesaúde.NaAlemanha,houveaimplementaçãodeconcorrênciaentreasCaixasde

Saúde e, no Reino Unido, houve, além da concorrência, a implementação das parcerias

público-privadas(PPPs)paraofinanciamentodeestruturashospitalares.Conformejávisto

anteriormente,tambémhouveaelevaçãodasparcelasdeco-pagamento,oqueaumentoua

responsabilidade dos pacientes na condição de consumidores de serviços de saúde

(BATIFOULIER;2015).

Jánosanos2000,houveumaprofundamentoaindamaiordaadoçãodemecanismos

demercados.Houveexpansãodaparticipaçãodehospitaisprivadosnaofertadosserviçosvia

privatizaçãodeinstituiçõespúblicasmunicipaisnaAlemanhaenoReinoUnido,econtratação

deinstituiçõesprivadasparaprestaçãodeserviçosjuntoaoNHSnaInglaterra.

Nocasoinglês,houveampliaçãodaconcorrênciaentreosprovedoresdeserviçose,

nofrancês,ampliaçãodaliberdadetarifáriaporpartedosmédicos24.Houvetambém,tanto

naFrançacomonaAlemanhaenoReinoUnido,aadoçãodagestãodemercado(newpublic

management)edopagamentoresultadosnoshospitais(DiagnosisRelatedGroup-DRG).

24 Na França, a Seguridade Social convenciona as tarifas que os profissionais recebempor atendimento de acordo comcontratosentreosmédicoseasCaixasdeSaúde.Em1980,ogovernoamplioualiberdadetarifáriadosmédicosepermitiuque os profissionais que cobravam valores mais elevados também fizessem parte da convenção da Seguridade Social,definindodoistiposdesetores(Setor1e2),comdiferenciaçãodetarifasmaiselevadasparaoSetor2.Comisso,asCaixasdeSaúdepagariamomesmoreembolso(70%dovalordaconsulta)mas,paraospacientesqueescolhessemosmédicosdoSetor2,quecobravamumvalormaior,elesarcariamcomadiferença,oupormeiodopagamentodiretooupeloreembolsoviaseguroscomplementares,quepagamumvalormaior.(JANSEN-FERREIRA,2016).

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Aintroduçãodessesmecanismosgeroumudançasimportantesnaorganizaçãoena

ofertadosserviçosdesaúdenossistemasdesaúdedaFrança,daAlemanhaedoReinoUnido.

Jansen-Ferreira (2016) mostra que a mercantilização gerou transformações na estrutura

institucionaldossistemasdesaúdenoquedizrespeitoaofinanciamento.

Jansen-Ferreira(2016)criouumaclassificaçãodosmecanismosdemercantilizaçãoa

partirdoestudodasreformasdossistemasdesaúdenessespaíses,agrupando-osemquatro

tipos:i)mercantilizaçãoexplícitadofinanciamento;ii)mercantilizaçãoexplícitadaofertade

serviços de saúde; ii) mercantilização implícita do financiamento; e iv) mercantilização

implícitadaofertadeserviçosdesaúde.

Na mercantilização explícita do financiamento, há maior participação direta de

mecanismosdemercadoedaparticipaçãoprivadanofinanciamentodossistemasdesaúde.

Os exemplos são os aumentos dos desembolsos diretos pelos pacientes, o aumento do

pagamentodemecanismosdeco-pagamentoeacontrataçãodesegurosdesaúdeprivados.

Namercantilização explícita da oferta de serviços, hámaior participação direta de

mecanismos demercado e da participação privada na prestação de serviços, que assume

parte das funções públicas. Os exemplos são a terceirização dos serviços auxiliares nos

hospitais,aprivatizaçãodosserviçosauxiliaresnoshospitais(strictosensu),atransferênciada

gestão de hospitais públicos para instituições privadas, a ampliação da contratação de

instituiçõesprivadasparaassumirpartedaofertadeserviçosefusõeseaquisições.

Namercantilizaçãoimplícitadofinanciamento,hámaiorparticipaçãodemecanismos

de mercado e participação privada no financiamento “interno” dos sistemas, isto é, na

distribuiçãodosrecursos.Osexemplossãoalógicadefinanciamentodaestruturapúblicacom

asparceriaspúblico-privada(PPs)eacriaçãodeconcorrênciaentreasCaixasdeSaúde.

Namercantilizaçãoimplícitadaofertadeserviços,háampliaçãodalógicadeprincípios

privadosnaprestaçãodeserviços.Osexemplos sãoosmecanismosdegestãoprivadaem

instituiçõespúblicas(newpublicmanagement),oaumentodaconcorrênciaentreprestadores

de serviços e a introdução de pagamento por resultado para os prestadores de serviços

(hospitaisemédicos).

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Dentre os países estudados por Jansen-Ferreira (2016), França, Alemanha e Reino

Unido, houve diferenças de graus de intensidade relativas às quatros formas de

mercantilizaçãoehouveainclusãodasquatroformasdemercantilização.

AAlemanhaéopaísqueapresentouamercantilizaçãoexplícitadeintensidademais

forte, principalmente a relativa à oferta de serviços com prestação de serviços feitas por

instituiçõesprivadase forteprivatizaçãoda redehospitalar.Emrelaçãoao financiamento,

houveampliaçãodaparticipaçãoprivadanogastocomsaúdeemrelaçãoaoPIBeemtermos

percapita.Contudo,aparticipaçãopúblicacontinuoubastantealtaeteve76%departicipação

nogasto.

NoReinoUnido,houvemaiorintensidadedamercantilizaçãoimplícita,principalmente

na oferta de serviços, além de forte incorporação de mecanismos privados, como a

concorrência, o que alterou o sistema ambulatorial e hospitalar. De toda forma, o

financiamento fiscal do NHS não foi modificado, e a oferta de serviços continuou a ser

majoritariamentefeitapelaredehospitalarpública.

AFrançaparecetermaioresespecificidades.Lá,houveincorporaçãodemecanismos

demercado em todo seu sistema de saúde,mas demodomenos intenso que nos casos

alemão e britânico. Houve, por exemplo, a adoção da remuneração hospitalar por

procedimentos(DRG).Masopaísapresentouforteresistênciaàsreformasmercantis.

Cadaumtevesuaespecificidadeeseusgrausdeintensidadediferentesemrelaçãoà

mercantilização,quefoiinequívoca,mas,deformageral,apresentaramumacontradiçãoao

tambémconseguiremaumentarauniversalidadedeseussistemasdesaúde.Jansen-Ferreira

(2016)mostraqueopróprioregimedeacumulaçãofinanceirizadoforçouainclusãodosetor

de saúde como espaço direto de valorização do capital, mas, ao mesmo tempo, os

desdobramentosdacrisesobreeconomia,trazendodesempregoepiorageraldascondições

socioeconômicas,exigiramumaexpansãodauniversalidade,eosagentessociaisexerceram

pressãoparapreservareatémesmoampliaroacessoaossistemasdesaúde.

Os sistemas de saúde dos três países foram afetados pela financeirização de suas

economiascomreformasquemercantilizaramseussistemasdesaúde,masaforçapolíticae

social dos sistemas de saúde, em seus arranjos sólidos, e a forte regulamentação estatal

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possibilitaram a manutenção da estrutura de financiamento solidária ainda que com

restrições,ehouve,comoseriadesesupor,umacessoaosserviçosdesaúdeamploenão

restrito.

***

Síntesedocapítulo1

Ocapítulo1procuroumostrarqueanaturezadasrelaçõesentreopúblicoeprivado

seexpressanadisputaentreespaçosnãomercantiseespaçosdeacumulaçãodecapital.Os

welfarestatestêmumadimensãodeabrirumespaçonãomercantil.Nessesentido,houve

umanecessidadedequeseavançassemaisnosentidodadesmercantilização.

Ossistemasdesaúdeseconfiguraramcomoumespaçoparaaacumulaçãodecapital,

ao mesmo tempo em que foi necessário que continuassem avançando no sentido da

coberturauniversaledadiminuiçãodasdesigualdades.

Paraisso,houvenecessidadedebuscadefinanciamentomaissocializadoapartirda

estrutura tributária. Contudo, as tendências recentes não apontam nessa direção. Ao

contrário,sãotendênciasdemercantilização,particularmentedocapitalismosanitário.

Emquepeseoavançodamercantilizaçãonossistemasdesaúdedospaíseseuropeus

centrais,éprecisocompreenderotipodearranjoestabelecidoentrealógicapúblicaeprivada

nossistemasdesaúdeeanaturezadarelaçãoqueseestabelece.

A experiência dos países europeus centrais mostra um paradoxo entre a

mercantilizaçãoeauniversalidade.Aampliaçãodauniversalidadesedeudevidoàresistência

dos sistemas frente ao avanço da mercantilização. Ao mesmo tempo, o avanço da

mercantilizaçãofoi,aospoucos,dissolvendoovalordasolidariedade,mashouveresistência

quederivoudaforteregulaçãoqueacaboupreservandooespaçonãomercantilestabelecido.

Veremos,aseguir,comoesseprocessoaconteceunoBrasil.

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Capítulo2–Aformaçãodosistemadesaúdebrasileirodopontodevista das relações público-privadas: suas marcas originárias, aconstituiçãodoSistemaÚnicodeSaúdeeseussignificados

Nocapítulo2,veremosaorigemdoSistemaÚnicodeSaúde(SUS)dentrodosistema

de proteção social brasileiro de característica meritocrática-particularista, com matizes

corporativistaeclientelista(AURELIANOeDRAIBE,1989).Veremosque,naorigemdosistema

de saúde brasileiro, havia um sistema segmentado, com um perfil privatista e outro

universalista,equeaausênciadecomunicaçãoentreessesdoisvetoresdetransformaçãodo

sistema, em um determinado momento, imprimiu características marcantes e de difícil

superação para as relações público-privadas na saúde. Ele teve início com as caixas de

aposentadoria e pensão e institutos, depois com o INSS, a constituição doMinistério da

Previdência,medicinaprevidenciáriaevemosumageneralizaçãoatéaConstituiçãoFederal

de1988,semperder,contudo,aóticaindividualedameritocracia.

No entanto, paradoxalmente, para cumprir a formação de um sistema público de

saúde,noBrasil,dadasessascaracterísticas,nãofoipossívelprescindirdosetorprivado,já

queeraestequemtinhaarededeprestaçãodeserviçosdesaúde.Assim,houveumanova

condição,comoSUS,definanciamentopúblico,mascomaprestaçãodeserviçospúblicaou

privada,oqueconfigurou,assim,agarantiadeacessouniversalatodos,comfinanciamento

público,massendoosmeiosdeproduçãodeserviçosprivadosoupúblicos.

EssapeculiaridadedarelaçãopúblicoeprivadadosistemadesaúdenoBrasilobrigou

oSUSafazercertostiposdealiançascomosetorprivadoqueultrapassaramoobjetivode

criarumarede,ampliaregarantirparaoSUSumarededeprestação.Acabaram, istosim,

alimentandoocomplexoindustrialdasaúde,cujoanseiopelavalorizaçãodeseucapital,dado

o contexto mundial de globalização e financierização, tornou-o forte para avançar na

privatizaçãodeumsistema recém-universalizado.Obviamente,esseavanço contoucoma

força política dos governos do período pró-mercado, mas, também, com a hercúlea

resistênciadomovimentosanitárioeasforçaspolíticasqueestesconseguirammobilizar.

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Assim,esseembateéparteestruturantedoprópriosistemaenãohá–enemháa

perspectivadehaver–umasoluçãotalqualnospaísescomsistemasuniversaisdaEuropa

pró-universalização (como vimos no capítulo 1). Aqui, em um país com marcantes

características de fortes desigualdades sociais e heterogeneidades regionais, há, sim, uma

soluçãodeviéssegmentadoedeforteconcorrênciaentreopúblicoeprivadoemdetrimento

dopúblico.

Nãohouve,portanto,capacidadederegulaçãodessesistemae,aomesmotempo,isso

ocorreuemumperíododeglobalizaçãoefinanceirizaçãoquetornouofinanciamentopúblico,

istoé,acapacidadedeextraçãoderecursosdosetorpúblico,maisvulnerávelaataques.

Veremos,então,nestecapítulo2,umabreveretrospectivadecomonasceuosistema

desaúdenoBrasil,reforçandoaideiadequeelejánasceucomofertaprivada,segmentado,

dentroda lógicadosegurosocial,apartirde1930,doprimeiroautoritarismo.Duranteas

décadasde1940e1950,osistemaprivadoseexpandiumuito.Algunsautoresafirmamque

issofoiconsequênciadoprocessodeacumulaçãocapitalistabrasileiro,comamercantilização

dasaúdeedaadoçãodaestratégiadecontratação/compradeserviçosprivadosparaofertar

atendimentomédicoaossegurados(CORDEIRO,1984).Contudo,nogovernomilitar,pós-64,

alógicaprivatizantefoiadotadacomoestratégia,efoicriadoomercadodesaúdenoBrasil,

emumsistemaquejáera,desdeonascimento,segmentado.

Alémdessestraçosestruturantes,marcasorigináriasdosistemadesaúdebrasileiro,

estápresente,também,ocaráterregressivodessesistema,queprivilegiouasclassesmédiae

altaemdetrimentodosmaispobres.Essasmarcasconstituíramumsistemabemdiferente

daquele dos países europeus, por exemplo, que tiveram como traços marcantes a

universalizaçãodoacessoaosserviçosdesaúdeenãoasegmentação,asolidariedadesocial

enãoaregressividadeeexclusão.

VamosaindaanalisarosignificadodoSUSparaosistemadesaúdebrasileiro,verificar

dequemaneiraelerompeuessasmarcasorigináriasdonossosistemaeseeleasmodificou

ounãoasmodificou.

ÉinequívocoqueaConstituiçãoFederalde1988representaummarconahistóriado

sistemadesaúdebrasileiro.Nela,ficouconsagradoodireitoàsaúdeeoacessouniversale

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gratuitoaosserviçosdesaúdeatodososcidadãos,alémdeterconfiguradoonossosistema

de seguridade social, cujo financiamento garante as bases sobre as quais seria possível a

implementaçãodosistemadesaúdebrasileiro,chamadoSistemaÚnicodeSaúde.

É importante relembrar, também, o processo da Assembleia Nacional Constituinte

(ANC),duranteoqualfoidiscutidoeelaboradooquedepoisficouconsagradonaConstituição

Federal (CF) de 1988 como o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse processo merece ser

lembradoe,maisdoque isso,mereceser investigadonovamenteà luzdenossostempos,

principalmenteemummomentoemqueosdireitossociaisconsagradosnaCFde1988estão

sofrendoforteregressãoedesmanche,assimcomoaDemocracia.

As questões instigantes sobre esse processo são várias. Como foi possível, na

sociedadebrasileira,termosumSistemaÚnicodeSaúdenaConstituiçãoFederalde1988?

Como foi possível, da mesma forma, que conseguíssemos construir a seguridade social

brasileirae,principalmente,oorçamentodaseguridadesocial?Issoparanosrestringirmosa

essesdoispontospois,naverdade,asquestõessãomuitas.

Este capítulo, portanto, também tem o intuito de discutir e rever o processo da

AssembleiaNacionalConstituinteeaformaçãodoSUSedoseufinanciamento.

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2.1–OsantecedentesdoSistemaÚnicodeSaúde

A partir da Proclamação da República e da organização federativa do Brasil,

começaramaserorganizadososserviçosdesaúdepúblicaemescalanacional,centradosnas

campanhas sanitárias. Segundo Noronha e Levcovitz (1994, p. 105), “estas tratavam

essencialmente do combate de epidemias nas áreas urbanas, ao passo que os primeiros

passosdaassistênciamédicanoBrasilestiveramcentradosnapráticaliberalenosurgimento

deinstituiçõesdecunhofilantrópico”.

EssaorientaçãopersistiunoséculoXX,quandoasaçõesdesaneamentoecombatea

epidemiastambémseestenderamdoscentrosurbanosparaasáreasrurais.Seualcancenão

abrangia a assistência médica, posto que os hospitais públicos se restringiam a doenças

mentaiseadoençasterminais.

A criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), nos anos 1920 e,

posteriormente,dosInstitutosdeAposentadoriasePensões(IAPS),nosanos1930,abrigou

osprimeirossistemasdeproteçãosocialnoBrasil,apoiadosnasolidariedadecorporativae

que,emsuaconcepçãodosriscossociais,consideravamaçõesdeassistênciamédica.

Essa visão de solidariedade restrita, desenvolvida em torno das corporações

profissionais, seguiu vigente durante o período no qual as ações e serviços estavam

organizados,obedecendoumadivisãoentresaúdepública,decaráterpreventivo,emedicina

previdenciária,decarátercurativo,individualeespecializado.Essadicotomiadosistemafoi

determinanteparaodesenhodapolíticadesaúde.

Explica-se assim, pela força da medicina previdenciária, o caráter individual,

corporativo e meritocrático da política de atenção à saúde. “Posteriormente essa

estratificaçãoseagravarádiantedediferentespadrõesdecobertura,emqueseprivilegiavam

segmentosdetrabalhadoresnossetoresprodutivosmaisdinâmicos”(GOUVEIA,2016,p.106),

atendendotantoaosinteressesdaelitedostrabalhadorescomodosprovedoresprivadosde

serviços.

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Essaspráticasconfiguraramomodeloassistencialprivatista,quepersisteaindahoje,

emfrancadesarmoniacomospreceitosepráticasdoSUS.Naquelemomento,osserviços

públicos atendiam os trabalhadores informais e a populaçãomarginalizada em geral, em

situaçõesessencialmenteemergenciais.

A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em plena ditadura,

centralizando os recursos e as ações dos antigos Institutos, consagrou a medicina

previdenciária e as práticas curativas especializadas em detrimento da prevenção e da

promoção da saúde, restritas e desvalorizadas, no interior do Ministério da Saúde, com

projeçãoparaasSecretariasEstaduais.

Nasegundametadedosanos1970,foicriadooMinistériodaPrevidênciaeAssistência

Social,noqualoINPSgeriaadimensãoprevidenciária,oInstitutodeAdministraçãoFinanceira

daPrevidênciaeAssistênciaSocial(IAPAs)administravaosrecursoseoInstitutoNacionalde

AssistênciaMédica e Previdenciária (INAMPS) generalizava amedicina previdenciária para

todosostrabalhadoresassalariadosformais.

Comavitória,àforça,viagolpe,dosmilitares,opaísentrouemumlongoperíodode

violentaditadura,autoritarismocomsupressãodosdireitoscivisepolíticos,principalmentea

partirde1968,comoAtoInstitucionaln.5(AI-5).

OqueaconteceunoBrasil,então,foiaimplementaçãodeumprojetopolíticocujas

característicasemrelaçãoàspolíticassociais, longedosobjetivosdauniversalização,eram

excludenteseforamdirecionadasàscamadasmédiaealtadapopulação.

MelloeNovais(1998)caracterizammuitobemomodeloeasconsequênciasdesua

implementação no pós-64. Posteriormente, Fagnani (2005), na mesma linha anterior,

sintetizou as características estruturais do modelo da “modernização conservadora” nas

políticas sociais, no pós-64: i) o caráter regressivo do financiamento do gasto social; ii) a

centralizaçãodopoderdecisórionoExecutivofederal;iii)aprivatizaçãodoespaçopúblico;e

iv) a fragmentação institucional. Essas características apontadas configurarama estratégia

adotadadeexpansãodebenseserviçose,também,sualimitadacapacidadederedistribuição

derenda.(FAGNANI,2005,p.41).

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AreformadamedicinaprevidenciáriafoimarcadapelacriaçãodoInstitutoNacional

da Previdência Social (INPS), em 1967. Foram extintos os IAPs, que formavam a base da

política previdenciária entre 1930-1964, e a representação da classe trabalhadora na

administraçãodosIAPsfoisuprimida,portanto,nãotendomaisespaçonanovaconfiguração

centralizada,jáqueogerenciamentodasaçõeserafeitopelatecnocraciafederal.

Apartirdeentão,aaçãodasinstituiçõesestatais(INSP,CEMEeFAS)quecoordenavam

osetorsaúdeassegurouaamplapredominânciadaempresaprivada(CORDEIRO,1984),que

levouàáreadaprestaçãodeserviçoatecnificaçãodoatomédicoeoassalariamentoemlarga

escaladosprofissionaisdamedicina(DONNAGELO,1975).

Além do problema do gasto e segmentação da saúde pública e da medicina

previdenciária, como vimos anteriormente, outros fatores importantes foram o

financiamentodapolíticadesaúdeeseucaráterregressivoeexcludente,alémdaquestãodo

desenvolvimento do capital no setor saúde e da sua relação com a expansão e

desenvolvimentodosistemadesaúde.

Emprimeirolugar,aquestãodofinanciamentoeseucaráterregressivo,jámarcamos,

mas nunca é demais lembrar, foi moldada segundo as opções feitas pelo projeto da

modernizaçãoconservadoramilitarenãofoiexclusivodapolíticadesaúde,masdetodasas

políticassociais.

EssaquestãoficoumaisclaracomaReformaTributáriade1966ecomacriação,em

1977,doSistemaNacionaldePrevidênciaeAssistênciaSocial(SINPAS)25.

AsfontesdefinanciamentoeramformadaspeloFundodaPrevidênciaeAssistência

Social (FPAS),por contribuiçõesdaUniãoeporoutras receitas.Do totalde recursos,90%

derivaramdaí.

25Valelembrar,também,quehouveumacentralizaçãodoprocessodecisório,comasupressãodosdireitoscivisepolíticos,com prevalência do poder executivo sobre os outros; repressão à participação da sociedade civil e entidades derepresentaçãosocial.Houve, inclusive,acriaçãodeagênciasburocráticas federaisquepassarama implementareagerirpolíticassetoriaisnacionaiseacontrolarfundosfinanceiros.Nocasodasaúde,alémdacriaçãodoSINPAS,houveacriação,em1974,doMinistériodaPrevidênciaeAssistênciaSocial(MPAS).NoâmbitodoSIMPAS,tivemosacriaçãodoINAMPS.Atéentão, erao INPSqueprestavaaassistênciamédicaprevidenciária.Depois, ela ficou restrita à gestãodosbenefíciosdaprevidênciasocial(FAGNANI,2005,p.20).

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OFPASeraformadoporcontribuiçõescompulsóriasdasempresaseempregadoresdo

mercado formal urbano, incidentes sobre a folha de salários e com a remuneração dos

empregadosetrabalhadoresautônomos,avulsosedomésticos.AContribuiçãodaUniãoteve

sua participação modificada na década de 1960. Entre 1930 e 1960, o modelo de

financiamentodaprevidênciaerabaseadonomodelo tripartite, segundooqualoEstado,

empregadoresetrabalhadorescontribuíamempartes iguais.Em1960,aaprovaçãodaLei

OrgânicadaPrevidênciaSocial(LOPS)rompeucomosistematripartite,eaContribuiçãoda

Uniãopassouaserdefinidapela“quantiadestinadaa financiaropagamentopessoaleas

despesas da administração geral da previdência social, bem como suprir as deficiências

financeirasverificadas”(FAGNANI,2005,p.10).

Assim,em1960eraestimadoqueacontribuiçãodaUniãoeracercade15%dareceita

total.Nopós-64essaregrafoimantida,masem1977comacriaçãodoSINPASfoialteradae

essaContribuiçãodeveriafinanciarocusteiodasentidadesvinculadasaele:INPS,INAMPS,

IAPAS,DATAPREV,LBAeFUNABEM.

Fagnani(2005,p.10-12)mostracomoeraregressivoofinanciamentocombaseem

quatroindicadores.Oprimeiroeraareduzidaparticipaçãoderecursosfiscais.Acontribuição

daUniãoeraresidualedecrescenteentre1970e1980(era10%em1970-1972ecaiupara

5,2% em 1980). Essa participação, além de residual, contrastava com a experiência

internacional,emqueofinanciamentoerabaseadoemrecursosfiscais.Alémdisso,naprática,

ogovernomilitarnãocumpriaalegislaçãoenãofaziaoaportenecessárioparaocusteioda

máquinaadministrativa.Nãoofezemnenhummomentoquefoinecessário,aliás,segundo

Fagnani.

OsegundoofinanciamentoregressivodoFPAS,quefinanciavacercade90%dototal

do SINPAS e era basicamente arcado com as contribuições dos assalariados do mercado

formal urbano, funcionando como tributo direto, já que a parte dos empregadores era

repassada aos preços dos produtos e, assim, indiretamente, pesava sobre todos os

consumidores(BRAGAePAULA,1981;FAGNANI,2005).

Oterceiroéoconceitodesegurosocial,istoé,oacessoaosbenefíciosdependiada

contribuiçãoindividual,eessaregraexcluíaparcelasignificativadapopulação,principalmente

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adaárearuraleomercadoinformalurbano.Oacessoàredeprivadadeassistênciamédica,

gerenciadapeloINAMPSefinanciadapeloFPAS,dependiadeointeressadocomprovarque

pagavaocarnêindividualdecontribuiçãodoINPS.

O quarto era a existência de um mecanismo “perverso” que penalizava os

trabalhadoresdemenorrenda.Omecanismoeradadopelafixaçãodeumaalíquota-tetode

10% sobre os salários superiores a 20 salários-mínimos. Com isso, os trabalhadores com

saláriosmaisbaixoseramrelativamentemaispenalizadosqueaquelesquerecebiamsalários

superioresavintemínimos.E,ressalte-se,eramamaioria.

Arenúnciafiscalfoiinstituídanessaépocaetambémmostrouregressividade.

ComareformaadministrativapromovidapeloDecreto-Lei200,em1967,e,sobretudocomasresoluçõesqueseseguiramaoAI-5,em1969,osistemadearrecadaçãodeimpostossemodernizou.FoicriadaaDeclaraçãoAnualdeAjusteenelaencaixadaafórmuladasdeduções.Asdeduçõesdegastoscomsaúdeprivada(naépocatambémdeduçõesgenerosíssimascomgastosem educação privada) se transformaram num dos principais incentivos àexpansãodeummercadodeassistênciamédicanopaís.Seafórmulanãofoiinventada pela ditadura militar, foi, durante ela, aprofundada. (VIANNA,2015,s/p).

Nocasodosubsetorpúblico,dasaúdepública,ofinanciamentoeradependentedo

TesouroNacionaleeradirecionadaumaparcelaínfimaderecursos,residuaismesmo.Fagnani

(2005,p.12-13)mostraqueaparticipaçãodoMSnoOrçamentoGeraldaUniãogirouem

tornode0,9a2,2%.

A assistência médica previdenciária desenvolvida pelo INAMPS era claramente

prioritáriaehegemônica,comojávimos.OsprogramasdoINAMPSforamresponsáveis,em

média,por85%dogastototalemsaúderealizadopelogovernofederalentre1978e1984,

enquantoaparticipaçãorelativadoMinistériodaSaúdenoOrçamentoGeraldaUniãoerade

2,2%(FAGNANI,2005;BRAGAeSILVA,2001).

Porfim,ébomsalientarqueessaexpansãodaredeprivadalucrativa,tantohospitalar,

quanto laboratorial e ambulatorial esteve articulada à compra de serviços da medicina

previdenciária. Esse movimento importante foi a marca da privatização do setor saúde

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consolidadaapartirdogovernomilitar,queveioasejuntaraoutramarcadonossosistema:

asegmentação,easduastêmumcaráterextremamenteregressivo.

Deve-seterclaroque,sedeumlado,oSUSrepresentaumarupturacomomodelo

anterior, no sentido da universalização, de outro, foi preservado e revigorado o arranjo

privadoanterior,paraossegmentosdemédiasaltasealtasrendas,nuncacompletamente

identificadoscomosistemapúblico.

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2.2 – Abertura democrática, movimento sanitarista e Assembleia NacionalConstituinte

Emumcontextodeaberturademocrática,osmovimentossociaisestavamativose

organizados, entre eles, omovimento sanitarista, que teve umpapel fundamental para a

constituiçãodoSistemaÚnicodeSaúdeequepodeserrevistopormeiodarecuperaçãodo

debateocorridonaAssembleiaNacionalConstituinte(ANC)26,queaconteceuem1987.

Nos ricos debates da ANC, os direitos sociais tiveram um papel importante,

constituíram-se garantia fundamental do cidadão commuito destaquena Constituição de

1988.Dentreeles,aseguridadesocialrefletiuoconceitoamploàlaBeveridge,seguindoo

modelo universal-redistributivo, ao compreender três sistemas de proteção integrados,

emboraorganizadoscadaqualcomsuasprópriasleiseestruturas:previdênciasocial,saúde

eassistênciasocial.

OEstadotevepapelativonoacessoaosserviçosdeproteção,eodireitoestágarantido

naConstituiçãoFederalde1988,comodireitodesocial,atributodacidadania(FAVARETFILHO

eOLIVEIRA,1990;KERSTENETSKY,2012).Gimenez(2017)aponta,também,queaConstituição

funcionou como elemento homogeneizador da sociedade, pois trazia um arcabouço

institucional com a seguridade social que estruturou uma política social de natureza

redistributiva,capazdecombaterapobrezaedinamizaraseconomiaslocais.

Analisadasobaconjunturade2016,naqualsepercebeumatendênciaàregressão

social,comosdireitosconquistadosnaConstituiçãoFederalde1988sobameaça(BELLUZZO,

2016),umaquestãosecoloca:comofoipossível,naquelaépoca,tamanhoavançodosdireitos

sociaisnaConstituiçãode1988?

NaépocadosdebatesdaANC,muitaseramaslinhasideológicasquecompunhama

coalizãoconstruídanoprocessodeaberturademocrática.Naáreadasaúde,osdebatesse

26MuitointeressanteéodocumentárioAConstituiçãodaCidadania,noqualpodemosrelembraroprocessodaAssembleiaNacionalConstituinte(ANC),em1987,comimagensedepoimentosmuitoelucidativos.Olinkparaacessarodocumentárioé<http://www.senado.leg.br/noticias/especiais/constituicao25anos/a-constituicao-da-cidadania.htm>.

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davam em torno da proposta apresentada e estruturada pelo Movimento da Reforma

SanitárianahistóricaVIIIConferênciaNacionaldeSaúde.

Foi criada uma Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS)27 após a VIII

ConferênciaNacionaldeSaúde,comoobjetivodeelaborarpropostasparaomarcolegaldo

sistemanacionaldesaúdeedisseminaraagendadareforma,cujaideiacentralerasuperara

divisão entre políticas de saúde pública e de medicina curativa individual (BRASIL, 1986;

BRASIL,1986a).

LájáestavamosprincípiosconstitutivosdoSUS,istoé,aideiadauniversalizaçãodo

acesso,daunificaçãodosistemadesaúde,daintegralidadedaatençãoedadescentralização

dagestão.Além,éclaro,daideiadesaúdeentendidacomodireitosocialdecidadania.Era

esperado que esse novo sistema rompesse com o modelo corporativista com vínculo

contributivodosistemaanterioreestatizassearedeassistencial.Essaagenda,diga-se,contou

comamploapoiodosmovimentosprogressistas(FAVARETFILHOeOLIVEIRA,1990).

ApósaVIIIConferênciaNacionaldeSaúdeeaelaboraçãodaComissãoNacionalda

ReformaSanitária,houve,ainda,aPlenáriaNacionaldaSaúde,quecontoucommaisde270

entidades sociais e era um espaço rico e forte de articulação da proposta que seria

encaminhadaàConstituinte.Assim,apropostachegouforte,articuladaecommuitoapoioda

sociedade, reflexo de um processo grande de gestação, discussão e formulação com

participaçãoativadasociedade.

QuandoapropostachegouaoLegislativo,comohaveriadeser,contoucomreaçãode

setoresconservadores,quesealinhavamemtornodocombateàunificação,porentenderem

que, dessa maneira, haveria a estatização do sistema e eles se alinhariam aos hospitais

privadoslucrativos.

Noentanto,osembatesnãosedavamsomenteemtornodesseponto.Outroserama

questão da estatização da rede assistencial; a questão do financiamento; a questão da

27ACNRSfoicriadapelaportariaInterministerialdoMEC/MS/MPASn.02/86.OrelatóriodaCNRSpodeseracessadoatravésdolink<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd05_07.pdf>.

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formação da seguridade social ou da saúde como uma área separada; a questão dos

medicamentos;dasaúdedotrabalhador,entreoutrostantos.

Sônia Fleury, emdepoimentodado sobreosdebatesem tornodaANCnaáreada

saúde para um estudo que resgata a memória desse movimento (BRASIL, 2006), mostra

claramente os pontos controversos, os grupos de interesse e a articulação em torno das

propostasmaispolêmicas,nopoderLegislativo.

DesdeosimpósiodaCâmaradosDeputados[1979],semprefoiomomentoemquevocêsereconhecia,vocêsabiaaforçaquetinha,coisaquevocênãosabia fora de lá, e lá você começava a perceber os enfrentamentos. OprimeiroenfrentamentoquetivemosfoicomaFBH[FederaçãoBrasileiradeHospitais] e nós não tínhamos noção se nós éramos só um bando demarginaisdeesquerdaousenóstínhamosforçaparalevaraquiloadiante.Alieraolugarondevocêencontravaooutro,oseuopositor,mastambémosseusaliadosqueseidentificavamesabiamotamanhodacorrelaçãodeforçaseoseupoderdentrodaquelaforça.Então,aquelaatuaçãodentrodoCongresso Nacional é privilegiada por causa disso e, também, superavacertas coisas meramente corporativas, como os conselhos regionais, queparticipavamativamentetambémealitranscendiamacoisacorporativaemdireçãoaoprojetomaisabrangente. Foiumaexperiência fantásticanessesentido.(BRASIL,2006,p.92).

Sobreoembateemtornodaestatizaçãodaredeassistencial:

Achoquenós,detodaaesquerda,tínhamosumavisãobastanteingênuadequeseriapossívelumsistemaestatal,quandoabasematerial toda jáeraprivada.Então,eradesconhecerarealidade,anãoserquesenacionalizasse,acabasse com o setor privado, o que seria uma intervenção de umabrutalidadeenorme.Ouseja,quandonósvamosparaomovimentodecriaro sistema único, com a base material privada, tinha que ser através deconvênios.Eessafoiumatensãomuitograndeporquenosdividia.Aquelesmaisàesquerdaachavamquetinhaqueserestataleaíagentecomeçaaperceberqueeraimpossível,queeramelhornegociareincorporarosetordasfilantrópicas.(Ibid.,p.93).

Sobreasaúdedotrabalhador:

E aí eu identifico no deputado Eduardo Jorge a tentativa de colocarmaisclaramente na Constituição Federal os direitos em relação à saúde dotrabalhador,dosquaisnãoentrouquasenada.[...]EumelembrotambémdoRobertoJefferson,queelemesmoseachavaumtrogloditanaquelaépocaenãoagora,eagenteseenfrentandocomeleassimmesmo.Nóséramosmeninos e lá brigando com ele, realmente era violenta a coisa, o setor

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privadofortementerepresentadopelaFBHeoRobertoJeffersontentandoreduziropapeldoSistemaÚnicodeSaúde.(BRASIL,2006,p.93).

Sobreosmedicamentos:

Foi impressionante porque a gente sentia essa questão da correlação deforças.Naáreademedicamentos,nósnãoconseguimosavançarnada.Todosos grupos que participavam da Plenária eram favoráveis a incluir maiorcontrole, a questão dos genéricos, e eu me lembro que o relator daConstituição retirou o item sobre os medicamentos, alegando que haviarecebido um telegrama da Abifarma e considerou que isso não tinhaimportância. Ou seja, esses que eram os mais poderosos sequer nós osenfrentávamos. Foi quando a gente percebeu que a FBH não era tãopoderosa,poisseestavamalitendoquebrigarcomagentedavaparamedirforças,porqueeraumsetorquedependiadoEstado.Aquelesqueestavamali, como nossos supostos inimigos, eram os que precisavam do próprioEstado e nós podíamosmedir força com eles. Os outros nem apareciam,mandavamtelegramaoufaziamolobbydelessequernosenfrentando–osgrandespoderososdaáreademedicamentos,saúdedotrabalhador–tudoissonósperdemos.(Ibid.,p.94).

Sobreofinanciamento:

Apartedefinanciamentotambémfoiumatensãoporquenósqueríamosorecursodefinidoparaaáreadesaúdeeacabamoscolocandoalgumacoisanasdisposiçõestransitórias.EssaeraaposiçãofechadadaáreadesaúdeeaíoenfrentamentofoicomoJoséSerraetodaaáreatributária,quediziaqueeraimpossívelvinculartodasasreceitas,poisnãosedariamargemnenhumaparaogestoreparaogoverno.Eelenosimpediu,passousóavinculaçãodaeducaçãoporqueesseeraummovimentoquejátinhaforçasocialsuficiente.Nósperdemosessatambém.Foramasáreasqueagenteperdeumais,osgrandes pontos de tensão com forças que estavam além da nossacapacidade.(Ibid.,p.94).

Gouveia(2016)sintetizaosposicionamentoseosembatesemtornodedoisgruposde

posições.

(...)deumlado,osgruposquetinhamrelaçãoorgânicacomosetorprivadodefendiam a manutenção do modelo pluralista, de inspiração neoliberal,baseadonacompradeserviçosprivadospeloaparelhodaPrevidênciaSocial,casoemqueMinistérioeSecretariasdeSaúdepermaneceriamlimitadosàpromoçãodeações coletivasde saúde.Nessa linha, havia aindapropostaalternativa de adoção de modelo concorrencial, a cargo exclusivo dainiciativaprivada,paraaatençãoàpopulaçãourbanaeinseridanomercadoformaldetrabalho.AoEstadocaberia,alémdasaçõesdesaúdepública,a

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atenção àqueles quenãopudessemassegurar, por questãode receita ouescala,alucratividadequeatraiaorganizaçãoempresarial,hipóteseemqueseinseriamosgruposnãoorganizadoseapopulaçãoruraloudebaixarenda(RodriguezNeto,2003;Costa,1996;Pereira,1996).

De outro estavam os que defendiam a ideia da unificação do sistema desaúde com acesso universal e equânime a todo cidadão. Rodriguez Neto(2003) identificaospontos cardeaisdessaproposta: (i) conceitode saúdeparaalémdaassistênciamédica,ao incluirseusdeterminantessociais; (ii)direitouniversaleigualitárioàsaúde;(iii)responsabilidadedoEstadosobreosistemadesaúde;(iv)naturezapúblicadasaçõeseserviçosdesaúde;(v)subordinaçãodosetorprivadoàsnormasdeumúnicosistema,comdiretrizde estatização progressiva (vi) organização dos serviços em rede única,regionalizada e hierarquizada; e (vii) proibição da destinação de recursospúblicos à iniciativa privada, bem como de participação do capitalestrangeiro.Acrescente-seaissoocontrolesocialdaspolíticasdesaúdepelaparticipação popular para sintetizar a pauta do movimento da ReformaSanitária.(GOUVEIA,2016,p.30).

Dopontodevistadospartidospolíticos,adiscussãosedavaemtornodetrêsgrandes

grupos,segundoGouveia(2016,p.31apudPEREIRA,1996):ogruporeformista,queincluía

ossetoresdomovimentosanitárioeparlamentaresprogressistasdoPMDB,PSDB,PT,PCB,

PDTePCdoB,aliadosagrupossociaissensíveisàreformasanitária;osetorprivadoprestador

deserviçosparaoEstado,quesealiouasetoresmaisconservadoresdoPMDB,PTB,PDS,PFL

eparlamentaresdoCentrão;eosubsistemaprivadoautônomo,quesealiouaosetorprivado

dependente.

SegundoGouveia(2016,p.34),tambémháconflitodentrodomovimentosindicalna

questãomodelouniversal,poisostrabalhadores,nomomentodaANC, jáseencontravam

abrigadosporformasprivadasdeassistênciaàsaúde,oquedificultouaidentificaçãocomo

projetodemodelouniversal.

A perspectiva corporativista na política de saúde, vinculada à relação detrabalho,traduziu-senaausênciademobilizaçãoeapoioefetivoàReforma.Essaposturacontribuiunãosóparaenfraqueceradefesadaproposta,mas,em outro polo, fortalecer a segmentação de clientelas, em que o SUS sedestinariaàcoberturadapopulaçãomaispobreeseminserçãonomercadodetrabalho.EsseelementoteveconsequênciasdecisivasnaimplantaçãodaReformanosanos1990.(Ibid.,p.34).

No entanto, a despeito das posições contrárias em torno de pontos polêmicos, a

propostadeReformachegouàANC,comaessênciapreservadaeforte.Contudo,naetapa

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finaldaPlenáriadaConstituinte,comaastutaatuaçãodoCentrão,otextoConstitucionalfoi

aprovadocomalgunspontosquedesvirtuaramapropostadaReformaSanitária,aindaqueos

pontosessenciaistivessemsidopreservados.

Segundo Rodrigues Neto (2003) e Bahia (2008), por exemplo, o que estava em

discussão não era o direito à saúde como atributo da cidadania, pois isso, inclusive,

interessavaaosetorprivado,umavezquehaveriaaumentodademandaparaosetorprivado.

Oproblemaeracomoassegurarodireitoàsaúdeequalpapelainiciativaprivadateria,jáque

haviaadiscussãodeestatizararedeassistencialprivada.Disso,porém,oCentrãonãoabriu

mão.

Assim,navotaçãodotextofinal,foramincorporadasconcessõesemrelaçãoaoprojeto

deReformaSanitárialevadoàANC,principalmenteorelativoaointeresseprivado,quequeria

seudireitodelivreexercíciosobreosserviçosdeassistênciaàsaúde.

Oqueresultoudoconsensofoiapossibilidadedeparticipaçãodoprestadorprivado, por contrato público, namedida dos limites da rede pública ematender à demanda, caso em que teriam preferência as entidadesfilantrópicas.Aalaprogressistaentendeu,naquelemomento,queoregimededireitopúblicodocontratoouconvênio,somadoàvedaçãodadestinaçãoderecursospúblicosaosetorlucrativo,seriaamarrasuficienteparablindaroSUS.

(...) A proposta da estatização progressiva foi um dos poucos temas queaglutinaramtodososrepresentantesdosetorprivadonointuitodebloquearqualquer estratégia nessa direção. Assim, a partir do instante em que acoalizão reformista abriu mão de defender a estatização do sistema desaúde, o debate passou a girar em torno da relação público-privado naprestaçãodosserviços.Paraosetorautônomo,játinhasidoalcançadoseuprincipal objetivo naANC, que era garantir sua existência emparalelo aoEstado.(GOUVEIA,2016,p.35).

Viannaetal.(1999),observaramque

(...)aformaçãodevontadedolegisladorconstituinte,nessascondições,nãoteria como ser frutodeumaaçãohegemônica,masda composiçãoedassoluções de compromisso entre forças díspares, cuja unidade se exerciamelhor sobre temas tópicos do que na formulação de uma concepçãosistemáticaecoerentedeumnovoprojetoparaopaís.(Ibid.,p.39).

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Promulgada a Constituição Federal de 1988, então, questões cruciais não foram

definidas.Gouveia(2016,p.36)sublinhaquais,algumasdelas,aliás,diretamente ligadasà

questãopúblico-privadaeaofinanciamento,cujasconsequênciasdaindefiniçãoafetamaté

hojeosproblemasdoSUS:

Vê-sequeaConstituiçãonãoconsideroumonopólioestatalosserviçosdesaúde, namedida empodem ser executados “diretamente ou através deterceiros”, pois “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Aconcepção de “natureza pública” das ações e serviços de saúde, comoproposto originalmente pelos reformistas, foi atenuada pela expressão“relevânciapública”(art.197e199),oquedescartaoobjetivodeestatizaçãoprogressivadefendidonaVIIIConferência.

A ideia de parceria com a iniciativa privada para a execução dos serviçospúblicosdesaúdetambémseexpressanoTextoConstitucionalpelaprevisãodeque“asinstituiçõesprivadaspoderãoparticipardeformacomplementardoSUS,segundodiretrizesdeste,mediantecontratodedireitopúblicoouconvênio, tendo preferência, mas não exclusividade, as entidadesfilantrópicas”, sendo, contudo, “vedadaadestinaçãode recursospúblicospara auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”,assim como “a participação direta ou indireta de empresas ou capitaisestrangeirosnaassistênciaàsaúdenoPaís,salvonoscasosprevistosemlei”(§§1ºa3ºdoart.199).

O desenho constitucional formulado para o sistema brasileiro de saúdedeixa, por conseguinte, incorporar alguma dualidade, ao oscilar entreprovisãopúblicaeprivada.Deumlado,volta-separatodososcidadãos,deformagratuita,universaleigualitária,financiadoportodaasociedadeeque,poressa razão,nãoadmite cobrançapontualpelos serviçosde saúde.Deoutro,ofereceolegisladorconstituintesaídaparaomercado,oumelhor,aporta aberta para que os arranjos privados de financiamento da saúdecoabitemcomoSistemaÚnico,comosubsistemaparalelo,dirigidoàquelesque podem ou desejam contratar, individual ou coletivamente, aintermediação dos serviços de saúde pela via do empresariamento damedicina.(Ibid.,p.37).

Ficaclaro,dessamaneira,queamobilizaçãoeaorganizaçãodomovimentosanitário

brasileiro,jánosanos60\70,foramfundamentaisparadarorganicidadeeforçaàproposta

quefoiapresentadaàANC,emumcontextodeaberturademocrática,comforteparticipação

dos movimentos sociais e da sociedade civil, na luta pela garantia dos direitos sociais.

Contudo,emquepeseesseviésdevanguardaeprogressistadapropostadoSUS,osinteresses

dosmercadosprivadoeconservador,preocupadosemgarantirseusprivilégios,manterseus

negócios e ampliá-los em detrimento de uma proposta mais solidária e universalizante,

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conseguiram alterar a proposta inicial e, como consequência, no texto constitucional foi

permitida a consolidação de uma estrutura dual, segmentada, com concorrência entre o

sistemapúblicodecaráteruniversaleoprivadodesaúde.

Dessamaneira,oSUS,claro,éummarcoimportantenaconquistadosdireitossociais

e seudesenho institucionalémesmoconsideradoumexemplo internacional.Contudo,ao

mesmo tempo, foimantida a característica de segmentação do sistema,marca originária

desdesuacriação,emoutraconfiguração,que,comoveremosnocapítulo3,prejudicamuito

asuaimplementaçãoeseufuncionamento.

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2.3 – A Constituição Federal de 1988: Orçamento da Seguridade Social e oSistemaÚnicodeSaúde

AConstituiçãoFederalde1988 instituiu,portanto,oSistemaÚnicodeSaúde,SUS.

ComoSUS,emprimeirolugar,todaapolíticanacionaldesaúdepassouaserregidaporum

sistemanoqualexistiaumcomandoúnicoemcadaesferadegoverno.

Segundo,estabeleceu-seoprincípioorganizacionalbásicodadescentralização,istoé,

as ações de saúde passaram a ser co-responsabilidade da União, Estados e Municípios,

cabendoaestasduasúltimasesferasaprimaziadaprestaçãodosserviços,restandoaonível

federaladefiniçãodapolíticanacionaldesaúde,bemcomodesuasnormas,regulamentose

regras gerais. Terceiro, o SUS consolidou o princípio da universalidade na cobertura dos

serviçosdesaúde,bemcomoodasuagratuidade.Porúltimo,seufinanciamentopassoua

ser,também,co-reponsabilidadedaUnião,EstadoseMunicípios.

ParafinanciaroSUS,aConstituiçãopreviurecursosdaSeguridadeSocial,daUnião,

dosEstadoseMunicípios,emboranãotenhagarantidoaseparaçãodefontesespecíficaspara

aSaúde–nemparaaAssistênciaePrevidênciaSocial.

Os recursos da Seguridade Social provinham das fontes que compunham seu

orçamento, a saber: Contribuição Social sobre Folha de Salários dos Empregados,

Empregadores e Trabalhadores Autônomos; Contribuição Social sobre o Faturamento das

Empresas, COFINS; Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas, CSLL; e

Contribuição Social sobre o Programa de Integração Social, PIS, e Contribuição sobre o

ProgramadeFormaçãodoPatrimôniodoServidorPúblico,PASEP,queintegramoFundode

AmparoaoTrabalhador,FAT.

DapromulgaçãodaConstituiçãoFederalde1988,quelegitimouosprincípiosdoSUS,

atéaaprovaçãodaLeiOrgânicadeSaúde,LOS,em1990,emquesedefiniramasregraspara

sua implementação, viveu-se um período marcado por conflitos de interesses quanto à

definição das diretrizes da LOS. Segundo Levcovitz (1997), após inúmeras audiências no

Congresso Nacional, produziu-se um acordo mínimo, “nos quais estavam traduzidas as

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aspirações dosmúltiplos grupos de interesses que não afetavamo cerne dos princípios e

diretrizesestabelecidosnaConstituiçãoFederalde1988”(LEVCOVITZ,1997,p.126).Desse

acordo,decorreua votaçãoda LOS– Lei 8.080/90,que sofreuvetospresidenciais, que “a

desfiguraramcompletamente”(Ibid.,p.126).

ALei8.080/90definiaorepasseautomáticodosrecursosapartirdeumtetomínimo

para cada município e considerava os critérios “população, perfil epidemiológico, gasto

proporcionalemserviços,desempenhotécnico/financeiroeeconômicodoperíodoanterior

eplanoquinquenaldeinvestimento”.

O repasse de recursos por meio de convênios foi abolido. Definiram-se, também,

exigênciasparaorecebimentodosrecursosporpartedosGovernosdosEstadoseMunicípios

comoa formaçãodeConselhosdeSaúde, a composiçãodeFundosdeSaúdeePlanosde

Saúde;earealizaçãodeConferências.

Entretanto,aLei8.080/90sofreuinúmerosvetospresidenciais.Issoobrigouque,após

outra negociação, fosse aprovada uma nova lei, a de número 8.142/90, que não definiu,

porém,osmontantesefontesdereceita,tampoucooscritériosefluxosparaorepasseaos

EstadoseMunicípios(LEVCOVITZ,1997).Assim,ofinanciamentodoSUStornou-seoponto

frágilemsuaimplantação.

Paraseterumaideiadoimpactodessasindefinições,bastaobservaroconflitocriado

entreasáreasdaSaúde,PrevidênciaeAssistênciaSocial,quedisputavamrecursos, jáque

todos provinham do mesmo Orçamento da Seguridade Social e não havia definição de

critériosdepartilha.ALeiOrgânicadeterminou,apenas,queadivisãodosrecursosentreas

áreasseriadefinidapelasLeideDiretrizesOrçamentáriaseLeidoOrçamento,acadaano,até

aaprovaçãodaLeidecusteiodaSeguridadeSocial(Lein.8.212/1991).

Em1991,quandoaindanãovigoravaaleidecusteio,definiu-seumpercentualde30%

dosrecursosdoOSSparaasaúde.Apartirde1992,quandojávigoravaaLei8.212/1991,os

recursosdestinadosacadapolíticadeveriamsernegociados.Em1992,foiestabelecido,por

meiodeacordoentreliderançasnoCongresso,queosrecursosdaContribuiçãosobreoLucro

LíquidoseriamdestinadosàáreadaAssistênciaSocial,eosdoFinsocial,àdasaúde.Jáem

1993,aLeideDiretrizesOrçamentáriasfixouque15,5%dosrecursosdaContribuiçãosobrea

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FolhadeSaláriosseriamalocadosnasaúde.Em1994,ofinanciamentofoivinculadoaoCOFINS

eàCSLL(ContribuiçãoSocialSobreoLucroLíquidodePessoaJurídica)eaempréstimosjunto

aoFundodeAmparoaoTrabalhador,FAT.

Essadificuldadeemchegaraumacordoquantoaoscritériosdepartilhadosrecursos

entreasáreasdaseguridadesocial,porsi só,seriasuficienteparaprovocarproblemasde

financiamento.Nãobastasseisso,houve,porpartedasempresas,oquestionamentojudicial

doFINSOCIALeodepósitodosrecursosemjuízo.Paracontornaraquestão,criou-se,para

substituí-lo,oCOFINS,maisbemenquadradonospreceitosconstitucionais.Em1993,ainda,

a subida do montante dos benefícios previdenciários com os benefícios decorrentes da

regulamentaçãodosnovosdireitosintroduzidospelaConstituiçãode1988drenourecursos

que eram antes destinados aos gastos com saúde. E tudo isso ainda coincidiu com uma

profundacrisefinanceiradosetorpúblico(MELO,1999,p.9-11).

Essa falta de clareza e definição relativa ao financiamento do SUS evidenciam a

instabilidade do volume e a garantia de recursos, bem como de sua suficiência em um

momentochavedeimplementaçãodoprojetouniversalizanteparaoqualeraessencialum

investimento de recursos considerável. A partir disso, continuou a haver propostas e

discussõessobreaquestãodofinanciamentodoSUS,equasetodasprocuravamaumentaro

volumeedarmaiorestabilidadeaosrecursosdoSUS.

Emmeioaessaconjunturadenovaspropostasdefinanciamento,ogovernofederal

apunhaloudevezofinanciamentodaseguridadesocialaodesvincularpartedeseusrecursos,

antes exclusivos da seguridade social, para que o governo federal pudesse usá-los para

qualquerfim,inclusiveparapagamentodejurosdadívida.

AdesvinculaçãodasreceitasdaUniãocapturou20%daarrecadaçãode impostose

contribuiçõesdaUnião,semincluirosFundosdeParticipaçãoedacontribuiçãosobreafolha

desalários.InicialmentechamadadeFundoSocialdeEmergência,vigorounosanosde1994

e 1995. Entre 1996 e 1999, foi postergada e teve seu nome alterado para Fundo de

EstabilizaçãoFiscal.Essaestratégiasetornoupermanentee,desde1999,ficousobonomede

DesvinculaçãoGeraldaUnião(DRU).Em8desetembrode2016,foipromulgadaaEmenda

Constitucional93(EC93),queprorrogaaDRUaté2023eelevaadesvinculaçãode20para

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30%dasreceitasobtidascomtaxas,contribuiçõessociaisedeintervençãosobreodomínio

econômico(Cide).

***

Síntesedocapítulo2

Nocapítulo2,vimosaorigemdosistemadesaúdebrasileiro,dentrodaproteçãosocial

brasileira, cujas características seguem o padrão meritocrático-particularista commatizes

corporativistas e clientelistas. O sistema de saúde brasileiro nasceu segmentado,

apresentandoumadimensãoprivatistaeoutrauniversalista.Paracumprira funçãodeum

sistema público de saúde, o sistema precisou contar com a participação privada para

conseguirampliaraofertadeserviçosdesaúde,emboraseu financiamento fossepúblico.

Então,nasuaexpansãonadécadade1970,ocarátersegmentadosereforçouaindamais.

Essaorigemmarcadapeladubiedadedefunçõesentreopúblicoeosegmentoprivado

foimarcantenomomentodaconsolidaçãodoSUSeacabouporalimentarocarátermercantil

dosetorprivadosemqueessesetorfosseintegradoesubmetidoaosobjetivosdeumsistema

desaúdeúnicoedeacessouniversal.

Outra característica importante é momento histórico em que o SUS se

institucionalizou. Em 1988, o mundo desenvolvido vivia o avanço do neoliberalismo, da

globalização e da financeirização. Assim, em um momento em que a tendência era a

privatização,oequilíbrio fiscal,adiminuiçãodopapeldoEstado,nomundoe inclusivena

AméricaLatina,oBrasilseviunacontramãodessemovimentoeaprovouaConstituiçãode

1988,oqueconfigurouumsistemadeproteçãosocialamploemseusdireitossociais.E,nela,

oSUSgarantiuodireitoàsaúde,comumfinanciamentobaseadoemcontribuiçõessociaise

impostos.

Isso foi possível devido ao processo de redemocratização do país, saindo de uma

ditaduraquesilenciouosmovimentossociaiseatoreseque,naquelemomento,fervilhavam.

SuaforçafoifundamentalparaexplicaresseavançoconquistadonaConstituiçãoFederalde

1988.

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Contudo, aomesmo tempo,no casodo SUS,os interessesdomercadoprivadode

saúdetambémsefizeramrepresentarealteraram,assim,apropostadoSUS,quefoifrutodo

movimentosanitárioque,lideradopelodeputadoUlissesGuimarães,ganhoumaisforçana

política,aosetornar,também,propostadoMDB(PMDB,1982).

Emquepeseesseavanço,a implementaçãodoSUSemplenadécadade1990teve

muitosreveses,principalmentenaquestãodofinanciamento.

O financiamento do SUS é emblemático das contradições dadas pelo avanço do

neoliberalismo, globalização e financeirização de um lado e, de outro, da busca pela

universalidadedoacessoaosserviçosdesaúdedentrodeumsistemacomooSUS.

Assim, o financiamentoda seguridade social, da qual a saúde faz parte, já nasceu,

também, tendoseus recursosdesviadosparaoutros finsde financiamentoque se fizeram

prioritáriosparaumestadoquefoicapturado(oununcadeixoudeser)pelosinteressesde

valorizaçãodocapitalenãoporaquelesinteressescondizentescomoavançodacidadania.

AdesvinculaçãodasreceitasdaUnião(emsuasváriasversões)éumdessesobstáculos

dentro das contradições das quais o financiamento é emblemático. No entanto, esse foi

somenteocomeçodahistóriadosubfinanciamentocrônicodoSUS.

Vejamos,nopróximocapítulo,alutapelagarantiadosrecursosparaofinanciamento

doSUS.

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Capítulo3-OfinanciamentodoSUSeosconflitosdistributivosnasaúde:as relaçõespúblico-privadasno financiamentodasaúdenoBrasil

Dentreosdesdobramentosdamercantilizaçãodosserviçosdesaúdeacargodosetor

público, há outro processo importante que será desenvolvido neste capítulo 3: a face da

desmercantilização do financiamento do setor privado, sem aumento da capacidade

regulatóriadoEstado,noBrasil.

Assim, neste capítulo, veremos, pela ótica privada, quais são as implicações das

relaçõespúblico-privadasnofinanciamentodasaúde.Mesmoosetorprivadosendoemparte

financiado publicamente, veremos que ele mostra não ter nenhum compromisso com o

ideáriodaConstituiçãoFederalde1988.

O orçamento do SUS, dentro da agenda pública, já é vulnerável, pois, dada sua

magnitude, é vítimada drenagemde recursos para o ajuste fiscal destinados a compor o

superávit primário. Por outro lado, o próprio setor privado se beneficia da capacidade

extrativa do Estado e consegue condições diferenciadas a partir do direcionamento da

renúnciadearrecadação.

Assim,arenúnciadearrecadaçãoafetaoOrçamentodaSeguridadeSocialnosentido

queDain(2016)demonstrou–ecomoveremos–retiraumagrandepartedascontribuições

sociais.Noentanto,ousoqueéfeitodessesrecursospelosetorprivadovaicontraalógicada

universalizaçãocomvaloressolidários,comoveremos,também,paraocasodasaúde.

Oobjetivodocapítulo3,portanto,émostrarcomoofinanciamentodoSUSrevelaa

complexidadedosconflitosdistributivosdopaís,analisarasrelaçõespúblico-privada,tanto

dopontodevistamacroeconômico–pormeiodaquestãodapolíticade incentivos fiscais

parareanimarosetorprivadoemummomentodecriseedapressãopeloacirramentoda

disputa dos recursos das contribuições sociais, entre elas as da saúde, para uso livre do

governo federal– comodopontodevistamaisespecíficodaáreada saúde,pormeioda

renúnciadearrecadação.

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Aodesenrolaroemaranhadodoconflitodistributivonaáreada saúde, revela-sea

particular desigualdade social brasileira e sua reprodução e perpetuação anacrônica. A

discussãodocapítulo3mostraránãosóoprocessodemercantilizaçãodosserviçosdesaúde

comoodedesmercantilizaçãodofinanciamentoque,nocasobrasileiro,vemassociado.

Noitem3.1,relembraremosohistóricodavulnerabilidadedofinanciamentodoSUSe

as lutas pela garantia de recursos no contexto das relações público-privada. Discutiremos

tambémo financiamentodopontodevistamacroeconômicoe suas relações como setor

privado. Exatamente em um momento em que a garantia de recursos públicos é mais

essencialparacombaterocontextodedesemprego,deadoecimentoemperíodosdecrise,

dedesalentoedenovasepidemias,comodedengueezika,esseselementospressionamo

gasto público de saúde de um lado. E, do outro lado, o esforço do governo federal para

reanimar o setor privado por meio de incentivos fiscais, desde 2014, sem exigir a

contrapartida,temumefeitopreocupanteeperigosoparaaseguridadesocial.

Noitem3.2,discutiremosaquestãodarenúnciadearrecadaçãoecomoelapodeser

especificadaparaasaúde.Veremosqueasempresasrecebemmuitomaisdoqueretribuem,

eessarelação,injusta,mostraopoderderegulaçãoqueosetorpúblicotem(ANS),masnão

outilizaouutilizasuaomissãopara favorecerasegmentaçãodosistemadesaúde,dando

prioridade ao setor privado. Por fim, ainda no item 3.2, veremos brevemente os efeitos

econômicospositivosdogastopúblicocomsaúdeeocaráterregressivodogastotributário

comsaúdeassociadoaosplanosdesaúde.

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3.1–AvulnerabilidadedofinanciamentodoSUSeas lutaspelagarantiaderecursosnocontextodasrelaçõespúblico-privadas

OSistemaÚnicodeSaúde,conformadodemaneirainéditanoseucaráterdemocrático

naconstruçãodeseuprojetoatésuaconfiguraçãotalcomoaparecenaconstituiçãoFederal

de1988,podeserconsideradoumavançobrutalnasociedadebrasileira,tãoacostumadacom

sua herança estrutural escravista que torna as mudanças na direção do progresso e

desenvolvimentosocial tãomais lentas,complexasedifíceis,quandonãomesmoseguidas

porregressõeseconômicasesociaisrápidas.

Talrelevânciadessapolíticanãoencontraigualexperiêncianomundo,dadapelofato

de ter-se constituído em um momento histórico da etapa do capitalismo financeiro e

neoliberal cuja onda propagava exatamente o contrário do que o proposto pelo SUS: um

estadomínimocomomáximodeapropriaçãoda riquezapelo setorprivado financeirode

todasasformaspossíveis.Nesseperíodo,aliás,aAméricaLatinasedefrontavacomoprocesso

deprivatizaçãoapartirdosanos1970(SOARES,2001).Alémdomomentohistóricodaetapa

docapitalismofinanceiro,outroaspectoquesedestacaéagrandezadeumpaíscomooBrasil,

federativo,heterogêneoeextremamentedesiguale,portanto,otamanhoecomplexidade

queissoimprimenaconstruçãodeumsistemadesaúdeuniversalepúblico.

EssemodelodoSUScarregaemsiumpotencialincrivelmentegrandedecombateàs

iniquidadesporconfigurar-seumarranjodeproteçãosocialquegaranteoacessointegralaos

serviçosdesaúdesemdistinçãoesemrequisitos.ComoapontadoporEspingAndersen(1991)

eGiaimo(2004),emoutrostermos,sistemasdessetipopromovemumadesmercantilização,

istoé,libertamoindivíduo–queseencontrainteiramentesubmetidoarelaçõesmonetárias,

dependentedomercado,doseusalárioerendaparagarantirsua“reproduçãosocial”–dessa

violência,masnãodeoutras28.Este,aliás,seriaumdosfivegiantsaqueBeveridge(1942)se

referia.

28Essadiscussãofoifeitanocapítulo1.

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Dessemodo,apósessesbrevescomentários,precisamosnosquestionarcomo,diante

de tamanho potencial de combate às iniquidades estruturais, a sociedade e o Estado

brasileiro,emseuconjunto,tratamevêmtratandooprojetoSUS.

Umadasdimensõesdessaquestãoéosubfinanciamentogeraldasaúde.

Paraseterumaideiabastantesimplesedecaráterintrodutório,oBrasil,apesarde

declararterumsistemapúblicouniversal(SUS),temumgastopúblicocomsaúdemenordo

que o gasto do setor privado, incluído aí o gasto direto desembolsado pelas famílias, o

chamadoout-of-pocket.Alémdisso,noconjuntodogastopúblicoeprivado,oBrasilgasta

menosdoquemuitospaíses, inclusivepaísesdaAmérica Latinaque sequer têm sistemas

universais.

Paraseterumadimensãodisso,noBrasil,aparticipaçãodogastopúbliconototaldo

gastocomsaúdenoBrasil,em2014,segundoGHO(2017),foide46%,enquantonaprivada,

essaparticipaçãofoide54%.Amédiadaparticipaçãodogastoprivadonototaldogastocom

saúde nos países europeus, segundo a OCDE (2017), foi de 27% em 2011. Na Argentina,

UruguaieColômbia,paíseslatino-americanoscujossistemasnãosãouniversaiscomoodo

Brasil,tiveram,em2014,aparticipaçãodogastoprivadocomsaúdenototaldogastocom

saúdede45%,29%e25%,respectivamente.NosEstadosUnidos,únicopaísdesenvolvidocujo

sistemanãoéuniversalequecontacomomaiorgastodesaúdedomundo,aparticipação

privadanogastototalfoide51%,em201429.

Diantedetamanhadistorção,precisamos,comosociedade,buscarexplicaçõespara

esse fato. Essas explicações nem sempre são evidentes e, pelo contrário, no exercício de

elucidá-las, deparamo-nos com a complexidade das relações público-privadas, reflexo da

nossasociedadetãoheterogêneaedesigualemtodosossentidosedimensões.

Umadessasdimensõesrefere-se,semdúvida,aofinanciamentodasaúdeedoSUS.

Veremosque,desdeoiníciodoSUS,houveconflitodedisputaporrecursosequedoSUSé

roubada parte dos recursos constitucionalmente garantidos. Afinal, a dimensão do gasto

29DadosdaGlobalHealthObservatoryData(GHO–WHO)(2017)paraoBrasil,Argentina,Uruguai,ColômbiaeparaosdemaispaísesOCDE(2017).Interessanteobservarque,nocasodaArgentina,houveumaumentoconsideráveldaparticipaçãodogastoprivadocomsaúdenogastototalcomsaúdeentre2011e2014,passandode36%para45%,respectivamente.NocasodoUruguai,aocontrário,aparticipaçãonogastoprivadodiminuiubastante,de35%,em2011,para29%,em2014.

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públicononossopaíségrande,emboranadasuficienteàrealizaçãodoprojetodoSUS,mas,

mesmo assim, considerável. Em 2015, por exemplo, o gasto público com saúde foi de,

aproximadamente,R$232bilhõesdereais,correspondentesa3,9%doPIB.

Quando, então, o setor privado tem amaioria da participação do gasto total com

saúde,aoutraparte,pública,torna-seconcorrente,oquegeramaisconflitopeladisputade

recursos. É, digamos assim, o orçamento público um “espaço fiscal” polpudo, que gera

ganânciaaosolhosdocapitalprivadoporocupá-lo(SALVADOR,2010).

A árdua e necessária luta pela garantia e ampliação do financiamento do SUS se

confunde com a própria luta do capital financeiro que busca sua realização sem valores,

destruindo, inclusiveeprincipalmente,ovalorda solidariedade,e,emúltima instânciado

humanismo,transformando,assim,oacessouniversalaoserviçodesaúde,porexemplo,um

entretantosoutros,algoaserdesmontadocomajustificativadequeoBrasil,nocaso,não

mereceenãopodeterumsistemadessetipo,pois“nãocabenoorçamento”.Quando,na

verdade, pretende-se pegar parte desse orçamento para alimentar o capital financeiro. A

batalha,portanto,édura,comoveremos.

Dessamaneira,ficaevidentequeoSUSgastapoucoemrelaçãoàssuasnecessidades

para se conformar um sistema universal. Essas necessidades não se referem somente ao

financiamento corrente da saúde, mas, também, à urgência de se fazer um “choque de

investimentos”paraqueacoberturadesaúdesetornemaishomogêneaemtodooterritório

nacional,acabandocomosvaziossanitáriosquepersistemdesdesempre,atémesmoantes

doSUS,comovimosnocapítulo2.

Aquestãoterritorialé fundamentale temaextremamenterelevante–emboranão

sejapartedoobjetivodestatese–,poisnãobastateracessonosentidoabstrato.Épreciso

de investimentoparagarantiroacessoaosserviçosdesaúde,expandindoa infraestrutura

físicae criando redes comunicantes. Entretanto,para isso, sãonecessários investimentoe

recursosfinanceiros,eesseobjeto,sim,dizrespeitoaestatese.

Dessaforma,háumsubfinanciamentogeraldasaúdee,aomesmotempo,umnão

financiamentodasnecessidadesdeinvestimento.

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Outroaspectodaquestãodofinanciamentorefere-seàsrelaçõesdefinanciamento

que derivam da descentralização e do federalismo no SUS e que são importantes para a

relaçãopúblico-privada.Umadelaséaquestãodecomoessafaltadefinanciamentofederal,

derecursosfederais,afetaosgovernosestaduaisemunicipais,sobretudonoquesereferea

gastoscompensatóriosparaatendereenfrentarasdesigualdadeseheterogeneidadesquese

relacionam, principalmente, com a questão de onde estão, ou não, instalados os

equipamentosdeproduçãoeserviçosdesaúde.

OsdadosdoSIOPSmostram,segundoartigodopresidentedoCONASEMSem2011,

AntônioCarlosFigueiredoNardi,porexemplo,queosmunicípiosdegrandeporteederegiões

metropolitanas,sejapelaausênciadogovernoestadualefederal,sejapelapressãosocietal,

jáestãogastandomaisdoqueos15%obrigatóriosemsaúde.Jáosmunicípiosque,emsua

maioria,sãodepequenoporteeindigentesnãoconseguemcompensarafaltaderecursos

federais,poisnãotêmrecursossuficientesparatanto30.

Umdosprocessosquefragilizamosistemaéque,desdeaorigemeacriaçãodoINPS,

nãohavia redepública capazdeatender todaapopulaçãoempregada formalmente. Essa

populaçãopassouaterdireitocomaunificaçãodosInstitutosnoINPS.Apartirdeentão,um

contingente populacional liderado pelos segmentos de trabalhadores da população com

maiorpoderdepressãoemaisaltossaláriosacabavaconfirmandoomovimentonosentido

deestabelecerdiferençasentrepopulaçõeseatende-lasdeformasegmentada.Então,era

simultaneamenteummecanismodealargamentodogrupoatendido,maseratambémum

mecanismodeexclusãodaquelesquenãotinhamcarteiraassinada.

Nessemovimentodealargamentodogrupoatendidoaoqualforamincorporadosos

trabalhadoresformaisemgeral,nãoháumaredeprópriapúblicasuficienteparaatendê-los.

EessasituaçãosetornouaindamaiscomplexanaConstituiçãode1988,quandoelaestendeu

aassistênciamédicaatodaapopulaçãobrasileira.

Essa extensão se deu com uma rede precária e um sistema de financiamento que

nuncafoicapazdeenfrentarasquestõesdeinvestimento,oquesignificaque,porpressão

30Aesserespeito,verartigodopresidentedoCONASEMS,em2011,AntonioCarlosFigueiredoNardi,disponívelnositedoconselho: <http://www.conasems.org.br/e-no-municipio-que-a-saude-acontece-e-e-ele-que-mais-esta-investindo-por-antonio-carlos-figueiredo/>.

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das populações demais alto poder de renda e reivindicação, a rede de atendimento nas

metrópolesenasregiõesmetropolitanasfoiampliada,masnãoatendeuaheterogeneidade

brasileiranemadesigualdaderegional(FAVERETFILHOeOLIVEIRA,1990).

Por outro lado, esse sistema frágil – e sequer endossado por aqueles que não se

reconheciamnoatendimentopúblico,quenãosesentiamrepresentadospeloatendimento

público–,aliadoàdificuldadeparaconstruirasolidariedadeemumasociedadealtamente

desigual,autoritária,poucodemocráticaehierarquizada,alimentaodesenvolvimentooua

manutençãodasbarreirasentreopúblicoeoprivado(Ibid.).

Se, por um lado, acontece a mercantilização, ocorre, também, por outro, e em

simultâneo, a desmercantilização, isto é, a apropriação de recursos públicos pelo setor

privado,poisosetorprivado,sendoindiretamentefinanciadopelosetorpúblico,entregaao

setor público umaparte dos seus custos (DAIN, 2015;GIAIMO, 2002 e 2014).Nãohá um

processounidirecionaldemercantilização.OgastoindiretodoEstado–asrenúnciasfiscais,

porexemplo–,éumprocessodedesmercantilização.OEstadonãoapoiaosetorprivadosó

privatizando.

Dain (2007) mostra que a prestação de serviços hospitalares com financiamento

público no Brasil opera via empresas privadas lucrativas, entidades beneficentes e

filantrópicasouhospitaisuniversitáriosedeensino(DAIN,2007,p.1859).Segundoaautora,

A distribuição da rede de serviços hospitalares pelo setor privado não éhomogênea em todo o território nacional, apresentando diferençasregionais, estaduais e pormunicípio, e por natureza das intervenções. Sebemsejaverdadequeaorganizaçãomacroemicrorregionaldasredesdeserviços incluiosetorprivado,háumaclaraconcentraçãodaredepúblicanas regiõesNorteeNordeste.Adistribuição tampoucoéhomogêneaporportedehospitais,funções,alémdoqueacoberturaprivadavariapornívelderenda,faixaetária,gênero,portedecidadeetc.(Ibid.,p.1860).

Já há umaquase completa separação das funções de financiamento e provisão de

serviços no SUS e subsiste, no entanto, uma relação de concorrência entre os segmentos

públicoeprivadocomsuperposiçãoentreclientelas.Importante,porisso,umanecessidade

dearticulaçãoentreosdoissetores(Ibid.,p.1858).

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Financiamentodasaúdeemtemposdeglobalizaçãofinanceira

OSUSfoiimplementadonoBrasilemumperíododeglobalizaçãoefinanceirização.

EmquepesealutadofinanciamentodoSUSpelagarantiadosrecursosorçamentáriosepela

sua tão necessária ampliação para conseguir obedecer aos preceitos constitucionais de

universalidadee integralidadenaofertadosserviços,osistemaprecisa, também,batalhar

contraacobiçadosetorprivadodesaúdequevênosrecursosdoseuorçamentoumafonte

importanteparaaampliaçãoereproduçãodeseucapital,emtemposdeforteconcorrência

e,também,decrisefinanceiranomundo.Háumadisputaentredinheiroeosjuros.Aquestão

do financiamento da saúde é permanentemente acossada pelas finanças globalizadas e,

portanto,pelosjuros,epeloorçamentofiscal.Nofundo,ofinanciamentodapolíticasociale

dasaúdeconvivecomumapermanentepressãodosgastosfinanceiroscontraeles.Pressão

dogastofinanceirocomogastosocial.

Veremoscomoissosedá.

Comovimosnoitem2.3,comamontagemdaseguridadesocialedoSUS,apartirda

ConstituiçãoFederalde1988,aquestãoda implementaçãoedagarantiaesuficiênciapor

recursosorçamentáriostornou-seumabatalhacujossignificadosrefletemváriosaspectosda

peculiar relação público-privada na saúde. Após promulgada a CF 1988, houve uma regra

transitóriadeaplicaçãoderecursosemsaúdepelaUnião,quenãofoirespeitadaduranteo

período de vigência dessa transitorialidade, nos anos 1990. Não podemos nos esquecer,

também,queadécadade90foimarcadaporgravescrisesdefinanciamentodoSUS,semque

umasoluçãodefinitivafosseadotadapelospoderesexecutivoelegislativo.

ApósaimplementaçãodoFundoSocialdeEmergência,em1994,edeessapolíticater

se tornado permanente com a Desvinculação Geral da União (DRU), houve, também, a

questãodairregularidadedosaportesdosrecursosdoOSSparaasaúde.

Diante deste subfinanciamento, em 1996, o então ministro da Saúde Adib Jatene

conseguiu a aprovaçãodaContribuiçãoProvisória sobreMovimentação Financeira, CPMF,

parareforçarofinanciamentodasaúde(LEVCOVITZ,1997),quepassouafuncionarapartirde

1997.

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Contudo,apesardessasupostanovaeadicionalfonteexclusivaparaofinanciamento

dasaúde,aCPMFnãologrouaumentarosrecursosparaasaúde,pois,aomesmotempo,os

recursosdaCSLLeCOFINSdecresceramsuaimportância.Nãobastasseisso,aCPMFdeixou

deserfonteexclusivadasaúdeapartirde1999atéoseuencerramento,em2007,epassou

afinanciartambémaPrevidênciae,apartirde2001,oFundodeCombateàpobreza(DAIN,

2007).

Gráfico1-MinistériodaSaúde(MS):execuçãodogastototalporfontederecursos,CPMFedemaisfontes(1995-2011)(EmR$bilhõesde2011)

Fonte:Piolaetal.,2013,p.11.

Ouseja,mesmocomacriaçãodaCPMF,duranteseuperíododevigência,nãohouve

garantiademaisrecursosparaasaúde,poisosrecursosdaCPMFforamdesviadosparaoutros

finseoutrasárease,alémdessedesvio,houvetambémsubstituiçãodefontes.Assim,como

jáanunciado,ascontribuiçõessociaisquedeveriamfinanciarasaúdeforamrealocadaspara

outrasáreas.Houve,portanto,substituiçãodefontesedesviossomados.

Texto paraDiscussão1 8 4 6

11

Financiamento Público da Saúde: uma história à procura de rumo

em termos reais, a partir da cobrança da CPMF e da destinação de parcela de sua arrecadação para a saúde.6 Durante o período em que vigorou, entre 1997 e 2007, a CPMF representou em torno de 30% do total dos recursos federais para a saúde (tabela 1).

Apesar da extinção da CPMF em 2007, a participação das contribuições sociais7 no financiamento da saúde tem conseguido se manter no patamar médio de 89%, observado de 2004 a 2011 (tabela 1). A exceção ocorre apenas em 2008, ano em que se pode observar uma forte queda das contribuições em relação a 2007, tanto em termos de sua participação no total quanto em termos reais. Isso pode ser explicado não só pela ausência de recursos da extinta CPMF como pelo fato de a recomposição das fontes de financiamento do MS em 2008 ter sido feita por uma aplicação maior de recursos ordinários (impostos).

6. Inicialmente, a totalidade dos recursos arrecadados com a CPMF era destinada para a saúde. A partir de junho de 1999, a alíquota desse tributo aumentou de 0,20% para 0,38% e previu-se a destinação de parcela de sua arrecadação para a previdência social.

7. As contribuições sociais que financiam a saúde são: i ) Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL); ii ) Contribuição sobre Financiamento da Seguridade Social (Cofins); iii ) CPMF (vigente até o ano de 2007); iv) Contribuição do Plano de Seguridade Social do Servidor (CPSS); e v) Contribuição Patronal do Plano de Seguridade Social do Servidor.

GRÁFICO 1 Ministério da Saúde (MS): execução do gasto total por fonte de recursos, CPMF e demais fontes (1995-2011) (Em R$ bilhões de 2011)

Fontes: Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi)/Sistema Integrado de Dados Orçamentários (Sidor), (Gasto Social Federal-Ipea: 1995 a 2007), e Siga Brasil, 2008 a 2011.

43,5 36,1 31,5

25,2

34,4 31,4 35,3

30,6 31,2 37,0 38,1 38,6

42,5

62,9

69,4 71,5

78,6

-

-

12,2 14,8

9,7 14,2 13,9 19,0

15,0

15,4 15,8

18,4

18,9 0,6

1,1 0,3

-

-

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

70,0

80,0

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Demais fontes CPMF

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113

Tabela1-DistribuiçãopercentualdaexecuçãodoMSporfontedefinanciamento(1995a2011)

Fonte:Piolaetal.,2013,p.12.

No final de 2000, finalmente foi aprovada, depois de 7 anos de debates e

reformulações,aEmendaConstitucionaln.29(EC29).Comela,ficouestabelecidoumaporte

mínimoderecursosdastrêsesferasfederativasnofinanciamentodasaçõesedosserviços

públicosdesaúdequedeveriamserimplementadasdemodogradativoaolongodosanos.

Assim, a União, no ano de 2000, deveria assegurar o montante aplicado no ano

anterior,acrescidode,nomínimo,5%.Apartirdeentão,ovalormínimoseriaequivalenteao

doanoanteriorecorrigidopelavariaçãonominaldoPIB.Osestadosemunicípiosdeveriam

aplicar, em2000, opercentualmínimode7%da receita vinculada31.Apartir de2000, os

31Areceitavinculadaéassimdefinida:“Areceitavinculadarefere-seàbasedecálculoparaaplicaçãomínimadosrecursosemsaúde.Abasedecálculodosestadoscompreendeasreceitasdeimpostosestaduais(ICMS,IPVA,ITCMD),asreceitasdetransferênciasdaUnião(FPE,IPI,LeiKandir),oImpostodeRendaRetidonaFonte(IRRF),outrasreceitascorrentes(receitadadívidatributáriadeimpostos,multas, jurosdemoraecorreçãomonetária)eexcluiastransferênciasconstitucionaiselegais amunicípios (ICMS, IPVA e IPI – exportação). A base de cálculo dosmunicípios abrange as receitas de impostosmunicipais(ISS,IPTU,ITBI),asreceitasdetransferênciadaUnião(FPM,ITR,LeiKandir),oImpostodeRendaRetidonaFonte(IRRF),asreceitascorrentes(receitadadívidatributáriadeimpostos,multas,jurosdemoraecorreçãomonetária)”.(FIOCRUZetal.,2012,p.28).

12

Rio

d

e

Ja

ne

ir

o,

ju

lh

o

de

2

01

3

TABELA 1Distribuição percentual da execução do MS por fonte de financiamento (1995-2011)(Em %)

Fonte (Cod./Desc.) 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Recursos ordinários 3,2 0,2 1,0 10,8 15,1 5,3 12,5 10,3 13,1 7,4 4,8 7,1 5,2 20,1 4,4 4,6 2,4

Operações de crédito interna e externa 1,1 0,9 0,5 1,1 1,5 2,7 2,2 1,9 1,1 0,7 0,7 0,4 0,1 0,0 0,0 0,0 0,1

Recursos diretamente arrecadados 2,5 2,5 2,4 2,6 3,5 3,3 5,1 2,7 2,3 2,2 2,4 3,1 3,7 4,0 3,9 4,3 4,0

Títulos de Responsabilidade do Tesouro Nacional 2,7 3,4 2,8 0,2 0,3 0,2 0,3 0,4 0,5 – – – – – – – 0,03

Contribuições sociais 70,5 66,2 72,8 71,8 61,5 80,9 74,9 81,3 82,5 88,3 91,3 88,8 87,1 71,8 90,8 86,0 89,9

CSLL – Pessoa Jurídica 20,2 20,7 19,3 8,0 13,2 12,6 7,0 22,5 27,4 32,3 39,7 40,3 38,7 34,7 49,4 37,6 37,7

Cofins 48,8 42,2 25,6 25,9 26,3 37,1 38,5 18,6 21,1 25,2 19,2 13,5 15,4 34,9 37,1 45,8 52,0

CPMF – – 27,9 37,0 22,0 31,2 28,2 38,4 32,5 29,4 29,3 32,4 30,8 1,0 1,5 0,4 0,0

CPSS 1,5 3,3 – 0,9 – – 1,2 1,9 0,8 0,9 1,2 1,0 0,9 0,2 0,9 0,6 0,2

Contribuição Patronal do Plano de Seguridade Social do Servidor – – – – – – – – 0,01 0,5 1,9 1,6 1,3 1,0 1,9 1,6 0,1

Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza – – – – – – 4,5 2,4 – 0,9 0,3 – 3,0 3,0 – – –

Fundo Social de Emergência 11,7 17,9 19,6 13,3 14,5 – – – – – – – – – – –

Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) – – – – – – – – – – – – – – – 2,2 0,0

Demais fontes 8,3 8,9 0,8 0,3 3,6 7,6 0,6 0,9 0,6 0,5 0,6 0,6 0,8 1,1 0,9 2,9 1,0

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fontes: Siafi/Sidor, (Gasto Social Federal-Ipea: 1995 a 2007), e Siga Brasil, 2008, 2009, 2010 e 2011.

TD

_03_Miolo.indd 12

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estados e o Distrito Federal deveriam aplicar, nomínimo, 12% da receita vinculada, e os

municípios,15%.

EmrelaçãoàUnião,aEC29nãoexplicitaqualseriaaorigemdosrecursose,emrelação

à seguridade social, não enfrenta a questãoda disputa por recursos, nemapresenta uma

soluçãoatodaessadisputapelosseusrecursos.

Obviamente,suaaprovaçãodeveserconsideradaumavançonadefiniçãodefontes

de financiamento do SUS e, principalmente, no comprometimento efetivo dos três níveis

federativoscomauniversalizaçãodasaúde;contudo,osconflitossemantiveramindefinidos

e,comoveremos,continuaramacriarobstáculosàaplicaçãodaEC29,mesmoporquesua

regulamentaçãosósedeuem2012(DAIN,2007;MARQUESEMENDES,2012;PIOLAetal.,

2013).

Dain(2007)destacaoutropontoimportantequefoi“perdido”comaEC29:

(...)noplanofederal,aEC29reforçouatendênciaàdefiniçãodesoluçõesespecíficasdefinanciamentodentrodoOSS,alémdedissociaraSaúdedosexpressivosaumentosdareceitadascontribuiçõessociais.AUniãopassouabeneficiar-se do dinamismo dessas contribuições, sem a ele associar aexpansãodegastosuniversaisdaseguridade.(Ibid.,p.1854).

Outro impasse da EC 29, no plano federal, foi o seu texto ter geradouma intensa

disputaentreoMinistériodaSaúdeeoMinistériodaFazendaemrelaçãoàbasedecálculoa

ser utilizada para estimativa domínimo de recursos que seria disponibilizado. Comobem

descrevemMarqueseMendes(2012),oconflitosedavaemrelaçãoà“basemóvel”eà“base

fixa”:

NainterpretaçãodoMS,oano-base,paraefeitodaaplicaçãodoadicionalde5%,seriaode2000,eovalorapuradoparaosdemaisanos,sempreodoanoanterior,ouseja,calculadoanoaano,daíserchamadode“basemóvel”.ParaoMinistério da Fazenda, contudo, o ano-base seria o de 1999, somenteacrescidodasvariaçõesnominaisdoPIBanoaano,denominado“basefixa”.Essadiferençadeinterpretaçãoresultavajánoorçamentode2001,emR$1,19 bilhão, o que permitiria, por exemplo, a duplicação dos recursos doProgramaAgentesComunitáriosemrelaçãoa2000.AAdvocaciaGeraldaUnião(AGU)deuganhodecausaaoministroMalan(Fazenda),quetambémcontavacomoapoiodoMinistériodoPlanejamento–órgãofundamental,com poder de orientação aos vetos presidências à Lei de DiretrizesOrçamentárias (LDO) e à Lei Orçamentária. Tal discussão teveprosseguimento,perpassandoosprimeirosanosdogovernoLula.Somentenametadede2005,oTribunaldeContasdaUnião(TCU),pormeiodeseu

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Acórdão n. 957/2005, considerou oficialmente a “base móvel” como ométodoapropriadoparaocálculodopisomínimodeaplicaçõesemaçõeseserviçosdesaúde.(MARQUESeMENDES,2012,p.354).

Noplanodosestados,osestudosmostramquehouvemuitaresistênciaedificuldade

naampliaçãodesuaparticipaçãonocusteio.Em2000,osEstadosaplicavam,emgeral,6%de

suareceitanasaúde.NosanosposterioresàEC29,muitosEstadosnãocumpriramaEC29e,

além disso, usaram artifícios contábeis para inflar o gasto com saúde por meio da

contabilização de despesas alheias à saúde e, assim, atingirem suameta. Essas despesas

incluíam itens como “o pagamento de inativos, os gastos com empresas de saneamento,

habitaçãourbana, recursoshídricos,merendaescolar,alimentaçãodepresos,hospitaisde

‘clientelafechada’(comohospitaisdeservidoresestaduais).”(MARQUESEMENDES,2012,p.

355).

Jáparaosmunicípios,o impactodaEC29 foimenordoqueparaosestados,pois,

desde a Constituição de 1988, os municípios vinham aumentando o gasto com recursos

própriosnasaúde.Contudo,algunsmunicípiostambémutilizaramomesmoartifíciocontábil

queosestadosfizeram(MARQUESEMENDES,2012).

MuitossãoosestudossobreoimpactodaEC29nosgastoscomsaúdeesobreolongo

períododeesperaparasuaregulamentação,quesósedeuem2012(MARQUESEMENDES,

2012;PIOLAetal.,2009;2013).

UmdosefeitospositivoscomaaprovaçãodaEC29 foique finalmentehouveuma

estabilidadedasreceitascomavinculação,mesmoqueelasótenhasidoregulamentadaem

2012.Contudo,aestabilizaçãonofinanciamentonãosignificousuficiência.

Alémdisso, a EC 29 tambémestava limitada ao piso constitucional e comelevada

inscriçãodedespesas, como restos apagar, e segundoPiola et al. (2013) apontam, ao se

deduzir os restos a pagar cancelados ao longo dos anos dos respectivos pesos anuais, é

possívelverificarqueomínimoconstitucionalnãofoiefetivamenteaplicadonamaioriados

anosdoperíodode2002a2013.

DaineCastro(2016)mostramqueesselongoperíododeesperadaregulamentação

daEC29tevedoisefeitosnofinanciamentopúblicodasaúdenoBrasil:ogovernofederal

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116

gastou menos do que deveria em ASPS (até 2011) e os governos subnacionais foram

aumentandoaparticipaçãonacomposiçãodessegasto.

No gráfico 2, a seguir, podemos ver como cresceu a participação dos governos

subnacionais na composição do gasto público total com saúde, especialmente a dos

municípios.

Gráfico2-ParticipaçãodastrêsesferasdegovernonototaldogastopúblicocomASPS–2002a2015

Fonte:elaboraçãoprópriaapartirdeVieiraeBenevides(2016).

Jáatabela2mostraadiferençaentreogastoefetivoeogastosegundoaEC29.Entre

2000 e 2004, o gasto efetivo superou omínimo regulamentado,mas a simulação para o

períodoentre2000e2013équeasaúdedeixoudereceber,pelocritériodaEC29,cercade

R$8,3bilhões, comexceçãodosanosde2000e2004,quandoogastoefetivo superouo

mínimoregulamentado(DAINeCASTRO,2016).

52,150,1 49,3 48,2 46,7 45,8

43,446,6

44,7 45,3 45,342,5 42,4 43,0

22,624,5 26,0 25,5 26,3 26,9 27,6

25,8 26,9 26,0 25,3 26,8 26,5 26,0

25,3 25,4 24,7 26,3 27,0 27,3 29,0 27,6 28,4 28,8 29,4 30,7 31,1 31,0

-

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

2 0 0 2 2 0 0 3 2 0 0 4 2 0 0 5 2 0 0 6 2 0 0 7 2 0 0 8 2 0 0 9 2 0 1 0 2 0 1 1 2 0 1 2 2 0 1 3 2 0 1 4 2 0 1 5

DespesaFederalcomASPS DespesaEstadualcomASPS DespesaMunicipalcomASPS

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Tabela2-SimulaçãodegastoscomASPSnaECn.29semainclusãodaContribuiçãoSocialparaaSaúde,emR$milhõescorrentes–1999-2013

Fonte:DaineCastro,2016,p.140.

Emmarçode2015,comoapoiodogovernofederal,foiaprovadaaPEC358,conhecida

comoPECdoOrçamentoImpositivo,econvertida,então,paraEC86,substituindoocritério

dado pela EC 29. Nela foi introduzido um artigo relativo ao financiamento da saúde que

estabeleceuumaalteraçãonabasedecálculodaaplicaçãodosrecursospelogovernofederal,

quepassoua ser calculadanãomaispelavariaçãonominaldoPIB (EC29),mas, sim,pela

ReceitaCorrenteLíquida(RCL),sendoexecutadadeformaescalonadaemcincoanos.Assim,

paraoprimeiroexercíciofinanceirosubsequenteaodapromulgaçãodaPEC358,abasede

cálculodaaplicaçãodosrecursospelogovernofederalcorresponderiaa13,7%daRCL.Em

cincoanos,subiriaatéchegara15%,queseriam,assim,aplicadosapartirde2020.

DaineCastro(2016)simulamque,setalcritériotivessesidoaplicadodesde2000,em

2013,asaúdeteriarecebidoR$130bilhõesamaisemrecursos,comopodeservistonatabela

3.MuitomaisdoqueocritériodaEC29.

SimulaçãodeGastoscomAçõeseServiçosPúblicosdeSaúdenaEC29semCSS-R$MilhõesCorrentes

AnoGastosEfetivos

comASPSPIBNominal

Var.NominalPIBdoAno

Anterior

Gastosegundoa

EC29(Δ PIB)

D iferençap/

GastoEfetivo

D iferença

Acumulada

1999 18.353 1.065.000 18.353 0 02000 20.351 1.179.482 5,00% 19.271 1.081 1.0812001 22.474 1.302.136 10,75% 22.539 -65 1.0162002 24.737 1.477.822 10,40% 24.883 -146 8702003 27.181 1.699.948 13,49% 28.240 -1.059 -1902004 32.703 1.941.498 15,03% 32.485 219 292005 37.146 2.147.239 14,21% 37.350 -205 -1762006 40.750 2.369.484 10,60% 41.308 -558 -7342007 44.303 2.661.344 10,35% 45.584 -1.280 -2.0142008 48.670 3.032.203 12,32% 51.199 -2.529 -4.5432009 58.270 3.239.404 13,94% 58.333 -63 -4.6062010 61.965 3.770.085 6,83% 62.319 -354 -4.9602011 72.357 4.143.013 16,38% 72.529 -172 -5.1322012 78.211 4.402.537 9,89% 79.703 -1.492 -6.6252013 83.053 4.806.925 6,26% 84.696 -1.642 -8.267

Elaboraçãoprópria.Fontesprimárias:IBGE,STNeRFB.

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118

Tabela3-SimulaçãodegastoscomASPSnaPECdoOrçamentoImpositivo(n.358)semainclusãodaContribuiçãoSocialparaaSaúde,emR$milhõescorrentes–1999-2013

Fonte:DaineCastro,2016,p.141.

Vale ressaltar que a proposta contida na PEC do Orçamento Impositivo não foi a

defendidapelosmovimentossociaiseinstituiçõesdesaúde,quepromoveramumacampanha

nacionalafavordapropostachamadaSaúde+1032.

Essa proposta aglutinou os atores que defendiamque a saúde precisava demaior

volumedegastosesebasearamnapropostaPLC01/2003,queobrigavaaUniãoadestinar

10%daReceitaCorrenteBrutaparaosgastoscomASPS.

DaineCastro(2016)simularam,também,que,sefosseutilizadoessecritériodos10%

daRCB,em2013,ogastoefetivodasaúdeseriaaproximadamenteR$121,9bilhões.Além

disso,aosimularqualpercentualdaReceitaCorrenteLíquida(EC86)serianecessárioparase

chegar aos valores estimados se o critério fosse o dos 10% da RCB, os autores (2016)

constataramqueoessenúmerodeveriaser19%enão15%(quesóserá,naverdade,apartir

de2020).

32ASaúde+10 foi lideradapeloCentroBrasileirodeEstudosdeSaúde (Cebes),AssociaçãoBrasileiradeSaúdeColetiva(Abrasco)eoutrasentidadesque,historicamente,participaramdomovimentosanitário,comovimosnocapítulo2.

SimulaçãodeGastoscomAçõeseServiçosPúblicosdeSaúdenaEC29semCSS-R$MilhõesCorrentes

AnoGastosEfetivos

comASPSPIBNominal

Var.NominalPIBdoAno

Anterior

Gastosegundoa

EC29(Δ PIB)

D iferençap/

GastoEfetivo

D iferença

Acumulada

1999 18.353 1.065.000 18.353 0 02000 20.351 1.179.482 5,00% 19.271 1.081 1.0812001 22.474 1.302.136 10,75% 22.539 -65 1.0162002 24.737 1.477.822 10,40% 24.883 -146 8702003 27.181 1.699.948 13,49% 28.240 -1.059 -1902004 32.703 1.941.498 15,03% 32.485 219 292005 37.146 2.147.239 14,21% 37.350 -205 -1762006 40.750 2.369.484 10,60% 41.308 -558 -7342007 44.303 2.661.344 10,35% 45.584 -1.280 -2.0142008 48.670 3.032.203 12,32% 51.199 -2.529 -4.5432009 58.270 3.239.404 13,94% 58.333 -63 -4.6062010 61.965 3.770.085 6,83% 62.319 -354 -4.9602011 72.357 4.143.013 16,38% 72.529 -172 -5.1322012 78.211 4.402.537 9,89% 79.703 -1.492 -6.6252013 83.053 4.806.925 6,26% 84.696 -1.642 -8.267

Elaboraçãoprópria.Fontesprimárias:IBGE,STNeRFB.

AnoGastosEfetivos

comASPSReceitaCorrenteL íquida

daUnião

GastosegundoaPECOrçamentoImpositivo

(15%daRCL)

D iferençap/GastoEfetivo

D iferençaAcumulada

1999 18.353 0 0 0 02000 20.351 145.111 21.767 -1.415 -1.4152001 22.474 167.739 25.161 -2.687 -4.1022002 24.737 201.927 30.289 -5.552 -9.6542003 27.181 224.920 33.738 -6.557 -16.2112004 32.703 264.353 39.653 -6.949 -23.1602005 37.146 303.016 45.452 -8.307 -31.4672006 40.750 344.731 51.710 -10.960 -42.4272007 44.303 386.682 58.002 -13.699 -56.1252008 48.670 428.563 64.284 -15.614 -71.7402009 58.270 437.199 65.580 -7.310 -79.0492010 61.965 499.867 74.980 -13.015 -92.0642011 72.357 558.706 83.806 -11.449 -103.5132012 78.211 616.933 92.540 -14.329 -117.8432013 83.053 656.094 98.414 -15.361 -133.204

Elaboraçãoprópria.Fontesprimárias:IBGE,STNeRFB.

SimulaçãodeGastoscomAçõeseServiçosPúblicosdeSaúdenaPECOrçamentoImpositivosemCSS-R$MilhõesCorrentes

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119

Há,ainda,umatristeironia.Comacriseeconômica,aelasticidadedearrecadaçãonão

foifavorável.Dessepontodevista,quandoseconseguiu,finalmente,amudançadaregrado

PIB(EC29)paraaregradaReceitaCorrente(eaEC86nãoteveomesmoteorqueaproposta

daSaúde+10,comovimos),elaacabounãofavorecendomaisosgastoscomASPS–comose

esperava–,dadoomomentodecrisedaeconomia.

Aárduabatalhaderesistêncialideradapelosmovimentossociaisligadosaoprojetodo

SUS,que,comovimosdeixatãoevidenteeescandalosaatrajetóriadosubfinanciamentodo

SUS,sofreuseumaisdurorevésegolpeemdezembrode2016,justamenteemumdosmais

críticos momentos da história do país, quando um governo fraco e ilegítimo tem levado

adiantereformasdecunholiberalmortaisaosdireitossociaisdaConstituiçãode1988,que

nãoforamlegitimadaspelovotonaseleiçõesde2014.

Noroldessasreformas, játivemosoduroajustefiscal logoapósavitóriadeDilma

Roussef,em2014,aaprovaçãodaemendaconstitucional95 (EC95),que ficouconhecida

comoaPECdamorte33,aaprovaçãodaemendaconstitucional93(EC93),queaumentade

20 para 30% a desoneração da DRU, a aprovação da reforma trabalhista, que libera a

terceirização em todas as atividades e a reforma da previdência, que ainda está em

andamento34.

A EC 95 afeta gravemente a saúde, além de todo o setor social. Sua aprovação

representou um duro golpe na Constituição de 1988 por resultar na desvinculação

constitucionaldasaúdeeeducação,agravandoosubfinanciamentodasaúdeuniversal(SUS).

AEC95determinaqueogastocomsaúde,em2017,seráde15%dareceitacorrente

líquidae,apartirdeentão,ogastofederalestarácongeladopor20anos,nopatamarde2017,

sendosomentereajustadopelainflação.Omesmocálculovaleparaaeducação.

33QuandotramitavanaCâmaradosDeputados,eraaPEC241;quandotramitavanoSenado,eraaPEC55.Apósaaprovação,virouemendaconstitucional,aEC95.APEC55foiaprovadaemprimeiroturnopeloSenadoem1dedezembrode2016,emsegundoturno,em13dedezembrode2016,epromulgadaem15dedezembrode2016,pelosenadorRenanCalheiros,doPMDB,passandoasechamarEmendaConstitucional95.OtextodaEC95estánoanexodocapítulo3.34Areformatrabalhistafoiaprovadapelosenadoem12/07/2017.Areformaprevidenciáriaaindaestáemcursoedeveservotadanosegundosemestrede2017.

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Antesdediscutirmosasconsequênciasimpositivasparaasaúde,contidasnaEC95,

convémfazerumacríticamaisgeral,relacionadaaodiagnósticorelacionadoàpropostado

NovoRegimeFiscal,quesemostraequivocada.

De acordo comHenriqueMeirelles,ministro da Fazenda, na ExposiçãodeMotivos

Interministerial,EMIn.00083/2016MFMPDG,parágrafo4º,sobreoNovoRegimeFiscal,“a

raizdoproblemafiscaldoGovernoFederalestánocrescimentoaceleradodadespesapública

primária”.Maisadiante,noparágrafo8º,elecontinua:

Dentre outros benefícios, a implementação dessa medida: aumentaráprevisibilidade da política macroeconômica e fortalecerá a confiança dosagentes;eliminaráa tendênciadecrescimento realdogastopúblico, semimpedir que se altere a sua composição; e reduzirá o risco-país e, assim,abriráespaçoparareduçãoestruturaldastaxasdejuros.Numaperspectivasocial,aimplementaçãodessamedidaalavancaráacapacidadedaeconomiadegerarempregoserenda,bemcomoestimularáaaplicaçãomaiseficientedosrecursospúblicos.Contribuirá,portanto,paramelhorardaqualidadedevidadoscidadãosecidadãsbrasileiros.(BRASIL,2016)35.

BelluzzoeGalípolo(2016)argumentammuitoapropriadamente,afirmandoqueesta

éamesmapromessaefaláciacontidanajustificativadosuperávitprimárioháquasevinte

anos.Mostramque,deláparacá,

(...) a economia brasileira exibiu, ao longo de 16 anos (1998 a 2013),superávits primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do setorpúblico do patamar de 40%, em 1998, para quase 58% do PIB, em 2013,acompanhadadaelevaçãode6%nacargafiscal,tambémmedidaemrelaçãoaoPIB.(Ibid.).

Osautoresmostramaindaque

(...)oBrasilapresentouamaiormédiadesuperávitprimárioentre2007e2015dentreospaísessuperavitários,sugerindoumespaçofiscaldequase2%doPIB,e, aindaassim,exibehojepoucomenosde14%de taxaSelic,comprometendoquase10%doPIBcompagamentoaosdetentoresdadívidapública,querepresentamenosde70%PIB.Nooutroextremo,naGrécia,quetem uma relação dívida/PIB de 170%, a despesa com juros responde poraproximadamente5%doseuPIB.(Ibid.).

35Aíntegradodocumentoencontra-senoanexodocapítulo3destatese.

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Sendoassim,ajustificativaparaaimplementaçãodonovoregimefiscal,apoiadana

reduçãodosgastosprimários,nãoencontrasuportenaevidênciaempíricanemconsideraos

possíveisefeitosdeumcrescimentodoPIB,daquedadaarrecadação,dosaltosjurossobre

osdesequilíbriosobservados.Portanto,éumafalácia,umargumentocriadoparavendera

ideiadecortenosgastosprimárioscomoutrosobjetivosvelados.

Nocasodasaúde,porexemplo,VieiraeBenevides(2016)mostramqueaparticipação

dasdespesascomASPSnasdespesasprimáriasdaUniãocaiuentre2002e2015,apartirde

2013.Então,nãoforamessesgastosquepressionaramaampliaçãodasdespesasprimárias

alegadanoparágrafo4ºdaPEC241,citadaanteriormente.

Nãobastasseisso,háqueseconsiderarqueexistemoutraspossibilidadespolíticase

econômicasquepoderiamsolucionaroproblemafiscaldeumamaneiramaisprogressista,o

queajudaria,inclusive,acorrigirasdesigualdadesnadistribuiçãodacargatributáriaemvez

daclássicasoluçãodoreceituárioneoliberaldacontençãodogastopúblico.Porexemplo,uma

reformatributáriaqueincluísseacriaçãodeimpostossobreariquezaepatrimônio(grandes

fortunas)demaneiraacorrigirahistóricainjustiçatributáriaqueoneraosmaispobresea

classemédiaque,emúltimainstância,sãoosquesustentamacargatributáriabrasileira.

Belluzzo e Galípolo (2016) criticam a imposição de um limite linear e genérico às

despesasprimárias, tal qual constavanapropostadaPEC241, já aprovada,pois elapode

deterioraraqualidadedogastopúblico.ValeapenalermosaspalavrasdeBelluzzoeGalípolo

(2016):

A abordagem do Orçamento camuflada em uma áurea exclusivamentetécnicaecientíficadelegávelàsburocraciasnãoeleitastransformou-seemferramentapara limitaradisponibilidadedepolíticasquepareçamviáveisparaacomunidade.

O Orçamento é um pilar do Estado Social, expressão da confiança éticaconstruídaa ferroe fogopelos subalternos,que impôso reconhecimentodos direitos do cidadão, a partir do princípio que estabelece que onascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, oreconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com suadignidade, comsuaeducação, comsuascondiçõesde trabalhoecomsuavelhice.

A imposição de limites cada vez mais restritos às despesas com serviçosessenciais, enquanto juros podem exorbitar livremente, sinaliza

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simultaneamente credibilidade ao rentismo e temor à população demoratóriaaocontratosocial.(BELLUZZOeGALÍPOLO,2016).

Alémdessacríticamaisgeral,vejamosasconsequênciasdaEC95paraaáreadasaúde.

Dopontodevistalegal,háumefeitomuitonegativo,poisoSUS,comaEC95,deixou

decontarcomavinculaçãoconstitucionaldesuasdespesasàsreceitasdearrecadação,tão

caras,comovimos,nahistóriadaresistênciacontraosubfinanciamentodoSUS.Assim,devido

aotetodegastoedapossibilidade(remota)dedestinaçãoderecursosadicionaisacimada

aplicação domínimo pelo Congresso a cada ano, regredimos a uma situação de disputar

recursoscomoutraspolíticaspúblicas também importantes.Emoutraspalavras,paranão

ultrapassaroteto,sehouverumaumentoderecursosemumaárea,seránecessáriodiminuí-

losemoutra.Eestamostratandodeáreassociaisimportantes.

Nocasodasaúde(eeducação),apesardeovalorrealsercongelado,aEC95garante

o piso. No entanto, para as outras áreas sociais, haverá um encolhimento. Os benefícios

previdenciários,porexemplo,consumirãoumaboaparcelado teto,mesmoquehajauma

reformadaprevidênciaacurtoprazo(gráfico3)(ROSSIeDWECK,2016,p.3).

E as outras áreas, como habitação, assistência social, segurança pública, cultura,

alimentação,ciênciaetecnologia,saneamentobásico,transporte?Paraasaúdeganharmais

recursos,outrapolíticaprecisaráperdê-los.

OutraquestãoquesecolocatemrelaçãocomocrescimentodoPIBedaarrecadação.

ComaEC95,aperdaderecursosparaasaúdeserámenorseaeconomianãocrescerouse

retrair.E,aocontrário,sehouvercrescimentodaeconomiaearrecadaçãonesses20anos,a

saúdeteráperdasecompararmosaocritérioanteriordaEC86,recém-extinto,poishouvea

desvinculação constitucional de suas despesas à receita de arrecadação, conforme já

mencionado.

OutracríticaàEC95équenãoeranecessárioconstitucionalizararegrafiscal,istoé,

nãohavianecessidadedesecriarumaemendaconstitucionalparaamudançadoregimefiscal

proposto pela PEC 241, não fosse a desvinculação das receitas destinadas à saúde e à

educação.ComobemapontamRossieDweck(2016),umestudodoFMImostraquenenhum

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123

país do mundo estabeleceu uma regra para gasto público por meio de uma emenda à

Constituição.

Nessa mesma publicação, Rossi e Dweck (2016) mostram que, no caso da saúde,

haveráum“pisodeslizante”, istoé,comotempo,ovalormínimodestinadoàsaúdecairá

tantoemproporçãodasreceitascomodoPIB.Asimulaçãodogastocomsaúdepara2026é

de12%dareceitacorrentelíquidae,em2036,de9,4%(gráfico3).Mesmoqueestejaprevista

apossibilidadedeaumentonogastoparasaúdeacimadomínimo,istosóseriapossívelse

outros gastos fossem reduzidos. Porém, como há um teto que reduz o gasto público em

proporçãodoPIB,haveriaefetivamenteumareduçãodosgastossociais.

Gráfico3-Simulaçãodaaplicaçãomínimaparaogastocomsaúdecomaregrade2016ecomaregraestabelecidapelaPEC55(2017–2036)

Fonte:RossieDweck,2016,p.3.36

36DeacordocomoRossieDweck(2016,p.3),ahipóteseconsideradanasimulaçãoéqueoPIBcresce2,5%aoanonoperíodo,eareceitalíquidaacompanhaocrescimentodoPIB.

IMPACTOS DO NOVO REGIME FISCAL NA SAÚDE E EDUCAÇÃO 3

Cad. Saúde Pública 2016; 32(12):e00194316 | www.ensp.fiocruz.br/csp

Figura 1

Mínimo para gastos com saúde e educação com a regra atual e com a PEC 55 *.

Fonte: elaboração própria.

* A simulação parte da hipótese de que o PIB cresce 2,5% ao ano no período e que a receita líquida acompanha

o crescimento do PIB.

Federal passaria de 19,6% do PIB em 2015, para 15,8% em 2026 e 12% em 2036.

Adicionalmente, os gastos com previdência, hoje em torno de 8% do PIB, devem aumentar

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124

Outra projeção (gráfico 4), presente no documento “Austeridade e Retrocesso:

FinançasPúblicasePolíticaFiscalnoBrasil”(FUNDAÇÃO,2016),mostraosgastospúblicosdo

Governo Federal sob a vigência da nova regra aprovada pela PEC 55. Podemos observar

(gráfico4)queogastoprimáriototaldoGovernoFederalatingiria15,8%doPIBem2026e

12%em2036,considerandoque,em2015,foide19,2%.

Gráfico4-Brasil:simulaçãodasdespesaspúblicasem%doPIBcomaECn.95,2015-2036.

Fonte:Fundação,2016,p.48.

Aprojeçãomostradanográfico4deixaevidentesareduçãoenormedogastoprimário

totaldogovernofederaletambémaquedabrutaldosgastoscomsaúdeeeducação.

Nocasodasaúde,asimulaçãoprevêqueogastofederalpassariade4%doPIB,em

2015, para 2,7%, em 2036. Uma queda dramática, sem precedentes. E ainda temos que

considerar a previsão de um crescimento populacional de 10% na população brasileira

duranteoperíododevigênciadaEC95.

E isso é apenas uma simulação, pois é provável que os gastos com previdência

aumentemdevidoàquestãodemográfica,enãopodemossaberqualoefeitoqueissoterá

sobreosgastosdareformadaprevidênciaqueestáprevistaparaservotadaaindaem2017.

Considerandoqueosgastosdaprevidênciaseestabilizassemem8,5%doPIB–umahipótese

4 1

1

Contexto m

ais amplo da reform

a da Previdência e da Seguridade Social

1.4. O aprofundamento da austeridade econômica e o Estado Social No Brasil, as políticas de austeridade têm sido impulsionadas no período recente por duas medidas principais. A primeira é a ampliação da desvinculação de recursos constitucio-nais assegurados ao gasto social. O Congresso Nacional aprovou em 2016 a majoração da Desvinculação de Receitas da União (DRU) de 20% para 30%.

A segunda ação é o chamado Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional 95/2016) que cria, por 20 anos, um teto para o crescimento

das despesas vinculado à inflação, constitucio-nalizando a austeridade sobre o gasto social até 2036. O propósito é reduzir a despesa primária do governo federal de cerca de 20% para 12% do PIB entre 2017 e 2036.

Nesse sentido, convém destacar que como o gasto previdenciário inevitavelmente crescerá em razão da dinâmica demográfica em curso (e mesmo que a atual proposta de reforma seja aprovada), para que o teto seja cumprido, os investimentos e os demais gastos precisarão encolher de 8% para 3% do PIB nos próximos 20 anos, conforme apresentado na Figura 8 (Austeridade e Retrocesso, 2016).

Nesse cenário, segundo estimativas de Rossi e Dwek (2016) haverá forte redução do percentual da receita corrente líquida destinada para Educação (de 18,0% para

FIGURA 8 EC Nº 95/2016: SIMULAÇÃO DAS DESPESAS PÚBLICAS (EM % DO PIB) (2015-2036) BRASIL Fonte: Austeridade e Retrocesso (2016)

 

0.0%

2.0%

4.0%

6.0%

8.0%

10.0%

12.0%

14.0%

16.0%

18.0%

20.0%

2015

2016

2017

2018

2019

2020

2021

2022

2023

2024

2025

2026

2027

2028

2029

2030

2031

2032

2033

2034

2035

2036

Despesas  púb

licas  em  %  do  PIB

Anos

Despesa  saúde

Despesa  Educação

Demais  despesas

Benefícios  previdenciários

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quase impossível – e com um crescimento médio de 2,5%, o documento mostra que é

matematicamenteimpossíveloBrasilchegara2036comummaiorníveldegastocomsaúde

eeducaçãoemproporçãoaoPIB.

VieiraeBenevides(2016)mostramumaestimativadaperdaacumuladaderecursos

paraofinanciamentodoSUSentre2017e2036,deacordocomalgunscenáriosdevariação

docrescimentodoPIB.

Osvaloresdatabela4mostramasestimativas,partindodebasesdeaplicaçãomínima,

em2016,de13,2%ede15,0%daRCL.Entretanto,jásabemos,apósaaprovaçãodaEC95,

queabasedeaplicaçãomínimafoide15,0%daRCL.Então,podemosconsiderarsomenteo

segundocenário.

Deacordoatabela,paraocrescimentorealanualdoPIBde,respectivamente,0%,1%

e2%,teremosasseguintesperdasacumuladas:R$49bilhões;R$162bilhõeseR$400bilhões.

Éprecisonotarque,quantomelhorforodesempenhodaeconomia,maiorseráaperdapara

asaúdeemrelaçãoàregradaEC86.

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Tabela4–EstimativadeimpactodaPEC241paraofinanciamentofederaldoSUS–cenáriosparaoperíodode2017a2036

Fonte:VieiraeBenevides,2016,p.13.

EmumestudodoDIEESE(2016),háoutrasimulação,quemostraasdiferençasanuais

entreasdespesasrealizadascomeducaçãoesaúdeduranteoperíodode2006a2015,eas

mesmasdespesascalculadassearegradaEC95estivessevalendoduranteomesmoperíodo.

Osdadosdatabela5mostramque,valendoaregradaEC95desde2006,osgastoscomsaúde

ecomeducaçãoteriamsidomenores,oqueevidenciaumadisparidadesignificanteentreos

doisgastos(oefetivoeosimulado).

AnoGastosEfetivos

comASPSReceitaCorrenteL íquida

daUnião

GastosegundoaPECOrçamentoImpositivo

(15%daRCL)

D iferençap/GastoEfetivo

D iferençaAcumulada

1999 18.353 0 0 0 02000 20.351 145.111 21.767 -1.415 -1.4152001 22.474 167.739 25.161 -2.687 -4.1022002 24.737 201.927 30.289 -5.552 -9.6542003 27.181 224.920 33.738 -6.557 -16.2112004 32.703 264.353 39.653 -6.949 -23.1602005 37.146 303.016 45.452 -8.307 -31.4672006 40.750 344.731 51.710 -10.960 -42.4272007 44.303 386.682 58.002 -13.699 -56.1252008 48.670 428.563 64.284 -15.614 -71.7402009 58.270 437.199 65.580 -7.310 -79.0492010 61.965 499.867 74.980 -13.015 -92.0642011 72.357 558.706 83.806 -11.449 -103.5132012 78.211 616.933 92.540 -14.329 -117.8432013 83.053 656.094 98.414 -15.361 -133.204

Elaboraçãoprópria.Fontesprimárias:IBGE,STNeRFB.

SimulaçãodeGastoscomAçõeseServiçosPúblicosdeSaúdenaPECOrçamentoImpositivosemCSS-R$MilhõesCorrentes

13

TABELA 1

Estimativa de impacto da PEC 241 para o financiamento federal do SUS - cenários para o período de 2017 a

2036.

4.3. Redução do gasto público per capita com saúde

Em 2013, o IBGE publicou estudo de projeção da população do Brasil por sexo e idade para o

período 2000-2060, mostrando que a população brasileira atingirá o seu ápice em 2042, com

228,4 milhões de habitantes, e passará a partir de então a decrescer.15 Para 2060, a projeção é

de 218,2 milhões. No horizonte da PEC, a população projetada para 2036 é de 226,9 milhões de

habitantes, 10,1% superior à de 2016.

O orçamento deste ano prevê a aplicação de valor equivalente a R$ 519 per capita –

valor que se reduziria em 2017 para R$ 459 (em R$ de 2016) em caso de continuidade da regra

da EC 86 (devido à queda da RCL), e para R$ 446 com a aplicação da regra da PEC 241. O

crescimento populacional no período 2017-2036 provocaria uma redução do gasto público

federal com saúde per capita em caso de aprovação da PEC 241, chegando a R$ 411 em 2036,

em R$ de 2016 (gráfico 4). Já com a manutenção da regra da EC 86, o valor per capita depende

da taxa de crescimento do PIB e acompanhará o crescimento dessa taxa: com crescimento de

0,0%, o valor per capita chegaria em 2036 a R$ 460; com 1,0% ao ano, a R$ 556; com 2,0% ao

ano, a R$ 671, e, com as taxas da projeção atuarial do RGPS, a R$ 822.

15

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação.

Disponível em: http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/. Acesso em: 20 jul. 2016.

R$ bilhões de

2016% do PIB

% da RCL

Valor per capita em R$ de 2016

0,0 % ao ano -205 93,3 1,48 13,4 4111,0 % ao ano -416 93,3 1,22 11,1 4112,0% ao ano -654 93,3 1,01 9,2 411LDO 2017 (*) -999 94,2 0,84 7,6 4150,0 % ao ano 49 106,0 1,68 15,2 4671,0 % ao ano -162 106,0 1,39 12,6 4672,0% ao ano -400 106,0 1,15 10,4 467LDO 2017 (*) -743 107,0 0,95 8,6 472

106,9 1,71 15,5 519

Hipóteses: 1) taxa de crescimento real de PIB de 1,1% em 2017 (Focus/Bacen); 2) IPCA de 5,29% em 2017 e 4,5% entre 2018 e 2036; 3) RCL/PIB constante em 11,02% do PIB (estimativa 2016); 4) RCL de 2016 estimada em R$ 689 bilhões, conforme PLOA 2016 (R$ 759,4 bilhões), com redução de 9,3%, conforme previsão de queda da receita líquida constante do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da Secretaria de Orçamento Federal/SOF - 3º Bimestre/2016 (tabela 9, página 24); 5) PIB nominal de 2016 estimado em R$ 6.247,9 bilhões, conforme Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da SOF/MPOG - 3º Bimestre/2016; 6) Aplicação mínima em ASPS de 13,2% e 15% da RCL de 2016.

15,0%

Orçamento 2016*** LDO 2017 - anexo RGPS. Taxa de crescimento real do PIB das projeções atuariais para o RGPS (LDO 2017 - PL 02/2016). A média no período 2017-2036 é de 3,00% ao ano. IPCA de 6,0% em 2017, 5,4% em 2018, 5,0% em 2019 e 3,5% a partir de 2020.

** Valor para empenho previsto na LOA 2016. Foi calculado com base em uma RCL mais alta. O valor final da RCL pode ficar muito mais baixo, resultando em aplicação mínima inferior àquela prevista na LOA.

Limite inicial 2016 conforme PEC 241

Taxa de crescimento anual

do PIB

Perda Acumulada 2017-2036 em relação

à regra da EC 86 (R$ bilhões de 2016)

Valor do Gasto Federal com Saúde

13,2%

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127

Tabela5–DespesasrealizadasemEducaçãoeSaúdenoperíodo2002a2015comparadoasimulaçãodasdespesasemEducaçãoeSaúdepelaregradaPEC241–Brasil2002–2015.(Valores

reaisdedezembrode2015(IPCA).Ano-base2002).

Ano

Educação Saúde

Despesasrealizadas(R$bi)

RegraPEC241/16

DiferençaEducação(R$bi)

Despesasrealizadas(R$bi)

RegraPEC241/16

DiferençaEducação(R$bi)

2006 32,8 30,9 2 67,8 59,4 8,4

2007 39,2 30,7 8,5 73,7 59,1 14,5

2008 43,1 30,4 12,7 76,4 58,4 18

2009 53,3 30,7 22,6 84,5 59 25,5

2010 67,1 30,5 36,7 85,6 58,6 27

2011 75,9 30,3 45,6 93,8 58,2 35,6

2012 89,4 30,6 58,8 98,4 58,8 39,6

2013 95,4 30,5 64,9 98,9 58,6 40,3

2014 102,4 30,3 72 102,6 58,4 44,2

2015 90,3 29,6 60,7 94,6 57 37,7

Totalacumulado 688,9 304,5 384,5 876,3 585,5 290,8Fonte:DIEESE,2016,p.10.

Nocasodasaúde,considerando-seoperíodoentre2006e2015,seaEC95jáestivesse

valendo,areduçãodovalordestinadoàáreaseriade33%.Jáemrelaçãoàsdespesascom

educação,areduçãoseriade55%,noperíodo.Emrelaçãoaomontantederecursos,aperda

nasaúde,entre2006e2015,teriasidodeR$290,8bilhões,valorquecorrespondeaquase

120vezesocustodoPrograma“MaisMédicos”,porexemplo.E,nocasodaeducação,teria

sidode384,5bilhõesdereais,conformemostraatabela5.

Éevidentequeessebrutalcortederecursosafetaráaspolíticassociaise,nocasoda

saúde, comprometerá não só os programas como também o tão necessário choque de

investimentosparaatenuarasdesigualdadesdeacessonoBrasil.

Outraquestãoqueosestudosapontaméaquedadogastopercapitaemsaúde.Vieira

eBenevides(2016)comparamcenáriosdegastopercapitacomrecursosfederaisaté2036,

confrontandoavinculaçãovigenteaté2015comavinculaçãodaemenda86,quefoirevogada

pelaEC95.Noscenáriosprospectivos,haveriaumaumentonogastopercapita,comalguma

variação,dependendodocenário(gráfico5).Contudo,diantedamudançaimpostapelaEC95

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128

epelaviolentaquedadoPIBem2014,2015e2016,ocenáriodecrescimentodogastoper

capitaestácomprometido.

Gráfico5–ProjeçãodoimpactodaPEC241sobreogastofederalcomsaúdeemcomparaçãocomamanutençãodaregradaEC86–emR$de2016percapita

Fonte:VieiraeBenevides,2016,p.1437.

Nográfico5,ficaclaraareduçãodogastopercapitacomaaplicaçãodaregradaEC

95(PEC241).Ogastopercapitaparaoanode2016previstoeradeR$519,00percapita.Esse

valorpassariaparaR$411,00em2036.Ográficotambémmostraaprevisãofeitanoanode

2016paraoanode2017(anocorrente).EmcasodacontinuidadedaregradaEC86,ovalor

37Ashipótesesdosautoresparaconstruçãodaprojeçãoforam:pisodaPEC241=13,2%daRCLde2016;eRCL2016=R$689bilhões.

14

GRÁFICO 4

Projeção do impacto da PEC 241 sobre o gasto federal com Saúde em comparação com a manutenção da

regra da EC 86 - em R$ de 2016 per capita (Hipóteses: piso da PEC 241 = 13,2% da RCL de 2016; e RCL 2016

= R$ 689 bilhões).

Com a regra da PEC 241, o SUS teria menos recursos por pessoa para fazer frente às

necessidades de promoção, prevenção e recuperação da saúde da população brasileira.

4.4. Desobrigação de os governos alocarem mais recursos em saúde em contextos de crescimento econômico

Outra consequência da desvinculação proposta na PEC é a desobrigação de os governos

alocarem mais recursos no SUS em contextos de crescimento econômico. O que as estimativas

demonstram na tabela 1, mais acima, é que, com a retomada do crescimento do PIB, no cenário

de 2% ao ano, por exemplo, o governo federal não estaria obrigado a alocar R$ 654 bilhões no

SUS. Esses recursos deixariam de ser utilizados para financiar bens e serviços de saúde e

poderiam ser deslocados para outras finalidades como, por exemplo, o pagamento de despesas

financeiras. Esta é uma questão muito relevante, dado que a situação dos serviços de saúde é

uma das principais queixas da população nas pesquisas de opinião sobre a administração

pública.16

4.5. Provável aumento das iniquidades no acesso a bens e serviços de saúde

A redução do financiamento do SUS afetará mais intensamente os grupos sociais mais

vulneráveis. Segundo Barata (2009), em todas as sociedades as situações de risco, os

16

REIS, T. Saúde é o principal problema citado em todas as capitais, aponta Ibope. Disponível em:

http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/blog/eleicao-2016-em-numeros/post/saude-e-o-principal-problema-

citado-em-todas-capitais-aponta-ibope.html. Acesso em: 16 set. 2016.

446427

411

519

459

561

671

518

556

459

478460

459

632

822

300

400

500

600

700

800

900

2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024 2025 2026 2027 2028 2029 2030 2031 2032 2033 2034 2035 2036

PEC 241 EC 86 PIB 2,0% a.a.EC 86 PIB 1,0% a.a. EC 86 PIB 0,0% a.a.EC 86 PIB RGPS (média: 3,0% a.a.)

Hipóteses: 1) taxa de crescimento real de PIB de 1,1% em 2017 (Focus/Bacen); para 2018 a 2036, cenários com 0,0%, 1,0%, 2,0% (taxa média anual do crescimento do

PIB entre 2010 e 2015) e da LDO 2016, anexo RGPS (média de 3,00% a.a.); 2) IPCA de 5,29% em 2017 e 4,5% entre 2018 e 2036; 3) RCL/PIB constante em 11,02% do

PIB (previsão 2016); 4) RCL de 2016 estimada em R$ 689 bilhões, conforme PLOA 2016 (R$ 759,4 bilhões), com redução de 9,3%, conforme previsão de queda da receita

líquida constante do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da Secretaria de Orçamento Federal/SOF - 3º Bimestre de 2016 (tabela 9, página 24); 5) PIB

nominal de 2016 estimado em R$ 6.247,9 bilhões, conforme Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da SOF/MPOG - 3º Bimestre de 2016; 6) Base para

aplicação mínima em ASPS conforme a PEC 241 de 13,2% da RCL de 2016.

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129

para2017seriadeR$459,00.E,em2036,dependendodocrescimentodoPIB,ovalorseria

crescente,diferentementedocenárioatual,comaEC95.

É precisomencionar, também, o efeito federativo que a EC 95 terá, em relação à

saúde,nosgastosdosestadosemunicípios.Comojáfoimencionado,ogastodosestadose

municípios aumentarammuito suaparticipaçãona composiçãodo gasto total com saúde,

desdeaConstituiçãoFederalde1988.Em2000,ambosparticipavamcom48%dototaldo

gastopúblicoemsaúde.Jáem2015,aparticipaçãofoide57%,sendoaparticipaçãomunicipal

aquemaiscresceu,chegando,em2015,a31%dototal.Éprecisosublinharqueambosos

entes federativos, em 2015, superaram o percentual mínimo previsto na EC 29. E a

consequênciaqueaEC95terásobreissoédevastadora,jáqueosestadose,principalmente,

osmunicípiosestãoemumpatamaraltodecomprometimentodosseusgastoscomsaúdee

emummomentomuitodelicadodasfinançassubnacionais,videoquevemacontecendono

estado do Rio de Janeiro e que deverá se repetir com outros importantes estadosmuito

brevemente.E,paraainda ficarmosnaquestão federativa,nãopodemosnosesquecerda

heterogeneidade da situação dos quase 6.000 municípios brasileiros, cuja maioria é

extremamentedependedetransferênciasfederais,queserãocomprometidastantopelaEC

95, por exemplo, por uma possível desvinculação do salário mínimo dos benefícios

previdenciários38.

Comoapontamosestudos sobrea recentee gravemudança trazidapela EC95,o

cenário é desolador para as políticas sociais em geral. E nunca é demais lembrar que as

despesas comos juros da dívida continuamaltas e tratadas comprioridade pelo governo

federal.

Emrelaçãoaospróximosanos,osestudosmostramalgumasquestõesetendências

nefastasparaoSUS.Umadelasrefere-seaondeseriamaplicadososrecursosque,segundoa

hipótese dos defensores do diagnóstico por trás da EC 95, viriam a aumentar com a

desvinculaçãodasreceitascomsaúdeedocrescimentodaarrecadaçãoquepoderiahaver

nesses20anosdecongelamento impostospelaEC95.Ondeseriamaplicados?Parapagar

38 Essa proposta é presente no debate atual, e a hipótese de sua realização não pode ser descartada no atual cenáriobrasileiro.

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juros? Para pagamento das despesas financeiras? Para onde iriam? (VIEIRA e BENEVIDES,

2016).

Outropontodizrespeitoàconsequênciadareduçãodofinanciamentoparaosgrupos

sociaismaisvulneráveis,jáqueestudosmostramqueasdesigualdadesnoestadodesaúde

estãoassociadasàorganizaçãosocial,oqueespelhaasiniquidadesdasociedade(Ibid.).

A reduçãodo financiamento trarámais dificuldades ao acesso, principalmente nos

estadosmaispobres,quedependemmaisdastransferênciasfederaisparafinanciarasaúde,

poistêmmenospoderarrecadatórioderecursospróprios(Ibid.).

Tambéméprovávelqueaumenteapressãodademandasobreosserviçosdeurgência

eemergênciaeprontoatendimento,quesãoserviçosmaiscaros.Nessesentido,oquefarão

com os programas preventivos? Esses programas, segundo a literatura mundial, são as

melhoresopçõesdeescolhade saúdepública,pois sãomuito importantesemaisbaratos

(Ibid.).

Tambéméprovávelquehajaumaumentodajudicializaçãodasaúde,pois,comuma

maiordemanda,épossívelquemaispessoastentemgarantiroacessopormeioda justiça

(Ibid.).

Ogovernoteminduzidoumapossívelsoluçãoquevainosentidodeaumentaraoferta

via planos privados baratos e de baixa cobertura assistencial, os chamados “planos

populares”. Essa solução, entretanto, continuaria onerando os serviços de alta e média

complexidadeeoacessoamedicamentos.

Como podemos perceber, a batalha pela suficiência de recursos para a saúde é

constanteelenta.DaíquepodermospensarsobreadificuldadedeimplementaroSUS,eesta

ésomenteumadasbatalhas,querefleteadisputaeodesejopelosrecursosdaáreadasaúde,

paraquesejamdirecionadosparaoutrosfins.IssoincluitantoosrecursosdoOSSquantoos

dasaúde.

Ouseja,estamosmuitolongedealcançarumpatamarrazoáveldegastopúblicono

Brasil que seja compatível com um sistema universal e de atendimento integral quando

comparadoaosdecomoutrospaíses.Alémdisso,aparticipaçãodogastoprivadoémuito

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maior do que a do gasto público e, naquele, há também uma alta participação do gasto

privadodiretodasfamílias(outofpocket).Vejamoscommaisdetalhesofinanciamentoesuas

relaçõescomosistemaprivado.

OFinanciamentoPúblicodaSaúdeesuasrelaçõescomosetorprivado

O gasto com saúde é um dado importante para medir a quantidade de recursos

dispendidoscomsaúde.Nogastototalcomsaúde,estãoincluídostodososgastosrealizados

pelasfamílias(comassistênciamédica,medicamentos,planosdesaúde),pelogoverno(com

o sistema único de saúde) e pelas empresas (planos de saúde, assistência médica,

medicamentos,equipamentos,pesquisasetecnologia,trabalhadoresdasaúde).

Umindicadorbastanteutilizadoparamediraquantidadederecursosetambémpara

compará-lasentreosdiferentespaíseséaparticipaçãodogastototalcomsaúdeemrelação

aoPIB.

Odispêndiocomsaúdetemcrescidobastanteemquasetodosospaísesdomundoe,

inclusive,ataxamédiadecrescimentodosgastoscomsaúdeentre1998e2003superouade

crescimentodaeconomiamundial.SegundoHSIAO(2007apudFIOCRUZetal.,2012,p.171),

a primeira foi de 5,7% e a segunda de 3,6%, nesse período. Para se ter uma ideia, a

participaçãodogastomundialcomsaúdenoPIBmundialerade3%,em1948,e,em2004,

alcançou8,4%,deacordocomaOPAS(2007).

E,comopodemossupor,osgastosdetodosospaísesacompanharamatendênciade

crescimentoaolongodotempo.

Vejamos,nográfico6,aparticipaçãodogastototalcomsaúdenoPIB,em2011,em

algunspaísesselecionados.

ComexceçãodosEUA,deumlado,quetêmomaiorgasto,(17,7%),edepaísescomo

aChina,Índia,RússiaeChile39,deoutro,quetêmumgastoabaixode8%,amaioriadospaíses,

incluindooBrasil,gastoude8a12%doPIBcomsaúde,em2011.

39EtambémpaísesdaAméricaLatina,comoArgentina,VenezuelaeColômbia.

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132

Háumaenormediversidadedesituaçõesaoanalisarmososindicadoresdospaísesque

desmentem a conclusão, óbvia para alguns, de que os países já investem uma parcela

consideráveldoPIBemsaúdee,portanto,nãohaveriamaiscondiçõesparaocrescimento

dessaporcentagem.

Gráfico6-GastototalcomsaúdecomopercentagemdoPIB(2011)diversospaíses.

Fonte:Giaimo,2016,p.7.

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Dado um gasto tão alto com saúde, seria de se supor que as condições de saúde

estivessem melhorando, a desigualdade, diminuindo e que haveria pouca iniquidade no

acessoaosserviçosdesaúde.

Porém,nãoéissooquetemacontecido.Namaioriadospaíses,principalmenteosem

desenvolvimento–masemmuitosdesenvolvidostambém,dentreosquaisosEUA–,para

qualquerdireçãoqueolharmos,adesigualdadeeiniquidadeestarãopresentes,inclusiveno

gasto.

Então, qual seria a explicação para o fato de um alto volume do gasto não

corresponderàmelhoradascondiçõesdesaúdeedoacessoaosserviçosdesaúde?

Pelaóticadacontabilidadedogasto,arespostapodeserencontradaaoanalisarmosa

participaçãopúblicaeprivadadogastocomsaúdeeogastopúblicoeprivadopercapita.

Vejamos,nográfico7,qual foi aparticipaçãopúblicaeprivadanogasto total com

saúdedealgunspaísesselecionados.

Gráfico7-Participaçãodogastopúblicoedogastoprivadonogastototalcomsaúdeempaísesselecionados(2011).

Fonte:elaboraçãoprópria,apartirdeTheWorldHealthStatistic,2014,eGlobalHealthObservatoryData,2014.

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NaVenezuela,Brasil,Chile,EUAeMéxico,aparticipaçãodogastoprivadocomsaúde

compõemetadeoumaisdogastototalcomsaúde.NocasodoBrasil,ogastopúblicoparticipa

com47%(4,23%doPIB),eoprivado,com53%(4,47%doPIB).

Issosignificaque,nessespaíses,amaiorpartedogastocomsaúdeéresponsabilidade

das famíliasedasempresas;amenor,doEstado40.NocasodoBrasil,eradeseesperaro

contrário,jáquecontamoscomumsistemauniversalpúblico.

Éimportanterelembrarmos,aqui,aquestãodomixpúblicoeprivadodossistemasde

saúde,comovimosnocapítulo1.Ofatodeumpaísterumsistemauniversalnãosignificaque

eleseja100%público.Vimosque,nospaíseseuropeuscomsistemaspúblicos,háumamistura

desituaçõesnaofertadosserviçosdesaúde,inclusivecomaparticipaçãodesegurosdesaúde

privados.Contudo,comonocasodaAlemanha,porexemplo,háumagarantiadeque,seos

indivíduosnãopuderempagarosegurodesaúdeporalgummotivo,ofinanciamentoestará

garantidopeloEstado.Issoquerdizerque,emumsistemauniversal,ofinanciamentopúblico,

emgeral,serásempremuitomaiordoqueaparceladofinanciamentoprivado.Eaparcelado

financiamentoprivadoteráumaparticipaçãomaiordasempresasdoquedasfamílias.

Nesse sentido, chama muito a atenção o fato de o Brasil ser um dos países cuja

participaçãodogastoprivadonacomposiçãodofinanciamentodosistemadesaúdesejaum

dosmaisaltosdomundo,inclusivemaisaltodoqueodosEstadosUnidos,sendoosistema

vigenteaquiouniversal.

Ogastodasfamíliasedasempresascomsaúdeenglobaopagamentodeconsultas,

exames e internações, diretamente das famílias para o médico, laboratório e hospital; o

pagamento das famílias e empresas aos planos e seguros de saúde; a compra de

medicamentos; o gasto com serviços de saúde prestados por enfermeiros, auxiliares de

enfermagem,comcompradeequipamentosmédicospelasempresasefamílias;ogastocom

pesquisadasempresasfarmacêuticasetc.Essesitensdogastoprivadotambémpodemser

divididos em gastos diretos das famílias – os chamados out-of-pocket – ou os gastos das

empresas.

40Comoseriadesesupor,pois, comoveremosnospróximos itens,hágasto indiretodoEstadoviagasto tributário,porexemplo.

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Todos esses itens de gastos privados têm um peso crescente no orçamento das

famíliase,alémdisso,umaporcentagemdesigual,conformesuasrendas.

Porúltimo,seanalisarmosogastopercapita,ficaclarooquãodistanteestamosdo

patamardegastodospaísescomsistemasuniversaisequantoélongoocaminhoqueteremos

quepercorrer.Natabela6,podemosver,paraoanode2011,que,enquantoogastopúblico

percapitanoBrasilfoideUS$477,00,osdoReinoUnido,AlemanhaeFrança,porexemplo,

foramderespectivamente,US$2.747,0,US$3.315,9,US$3.135,2.Onossoémenor,inclusive,

doquemuitosdenossosvizinhoslatino-americanos,comoUruguai(US$817,8)eArgentina

(US$869,4).

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Tabela6-Brasilepaísesselecionados–Gastototalcomsaúde,gastopúblicocomsaúde,gastoprivadocomsaúde,gastoprivadoout-of-pocketcomsaúdecomo%doPIB.Gastototalper

capitaegastopúblicopercapita(PPPintUS$).–2011

País

GastoTotal

Saúde%PIB

%GastoPúblico2011

%GastoPrivado2011

Desembolsodiretodasfamílias(outofpocket)%Gastototalcom

saúde

Gastototalpercapita2011(PPPintUS$)

Gastopúblicopercapita2011(PPPintUS$)

Cuba 11,0 95,0 5,0 5,0 459,8 407,0CostaRica 10,0 75,0 25,0 23,0 1.242,6 932,1Brasil 9,0 46,7 53,3 31,0 1.035,2 477,0Uruguai 9,0 65,0 35,0 17,0 1.293,6 817,8Argentina 8,0 67,0 33,0 21,0 1.392,7 869,4Chile 7,0 48,0 52,0 33,0 1.478,3 606,7

Colômbia 7,0 75,0 25,0 16,0 657,0 462,5México 6,0 50,0 50,0 46,0 1.004,1 464,9

Venezuela 5,0 37,0 63,0 61,0 574,5 241,9EUA 17,7 48,0 52,0 11,0 8.467,0 3.954,2

Holanda 11,9 86,0 14,0 6,0 5.117,9 4.388,2França 11,6 77,0 23,0 7,0 4.128,4 3.135,2

Alemanha 11,3 77,0 23,0 12,0 4.473,8 3.315,9Canadá 11,2 70,0 30,0 14,0 4.541,4 3.183,6Suíça 11,0 65,0 35,0 26,0 5.672,9 3.639,9

Dinamarca 10,9 85,0 15,0 13,0 4.456,2 3.886,4Portugal 10,0 65,0 35,0 27,0 2.615,0 1.681,0Noruega 10,0 85,0 15,0 13,0 6.105,9 4.859,2

ReinoUnido 9,4 83,0 17,0 10,0 3.364,3 2.747,0Espanha 9,0 73,0 27,0 21,0 2.984,5 2.237,8Itália 9,0 78,0 22,0 21,0 3.016,8 2.417,4

Finlândia 9,0 75,0 25,0 19,0 3.382,0 2.492,0Suécia 9,0 82,0 18,0 16,0 3.938,0 3131,8Austrália 8,9 68,0 32,0 18,0 3.970,1 2.529,2

MédiaOCDE 9,3 73,0 27,0 - 3.410,0 China 5,0 56,0 44,0 35,0 423,1 241,6

Fonte:elaboraçãoprópria,apartirdeWorldHealthOrganization,2014eWorldHealthOrganization(GHO)2017.

No entanto, para além da análise da suficiência de recursos para a saúde, outras

evidênciasemedidasforamtomadasedeixamclaraqualéaprioridadedosgovernosdaépoca

(incluídosoExecutivoeoLegislativo).Dopontodevistadasrelaçõespúblico-privada,essas

medidasfavorecemosetorprivadoemdetrimentodosetorpúbliconaáreadasaúde,oque

dificulta aindamais a implementação do SUS. Algumas delas são relembradas por Santos

(2015).

Apartirde1998,essapolítica[deEstado]levouàLei9656/98,quepermiteaaquisiçãodeempresasnacionaisdeplanosprivadosporcapitalestrangeiro

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(casodaAmileIntermédica)eodescumprimentodoressarcimentoaoSUS,previstos na mesma lei, pelos serviços públicos de saúde prestados aosconsumidores de planos privados. Em 1998 e 2000, são criadas asOrganizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de InteressePúblico (Oscips), entes privados para gerenciar hospitais, ambulatórios elaboratóriospúblicos.Aindaem2000,sãolimitadasdrasticamentepelaLeidaResponsabilidadeFiscal(LRF)ascontrataçõesnabasedoSUS,enquantoa EC-29 determina que somente os estados, Distrito Federal (DF) emunicípios são obrigados a destinar percentagem mínima da suaarrecadação ao SUS (12% para estados e DF e 15% para os municípios).Estavaclaro,aofinaldessadécada,queapolíticadeEstadoquegolpeiaoSUS era nucleada nos Ministérios da Fazenda, da Casa Civil e doPlanejamento, o “núcleo duro” do Poder Executivo, articulado a lobbiespoderosos instalados no Legislativo. Foram a lógica e a estratégiadominantesdedesviarorumodoEstadodeBem-EstarSocialUniversalista,constitucional,nocampodaspolíticaspúblicasparaosdireitossociais,parao rumo do EstadoNeoliberal submisso aomercado. Já́ ficava claro que agrandeinclusãosocialpeloSUSestavanorumodomodelodeatendimentodedemandareprimidaemtodososníveisassistenciais,demodomassivo,permanecendoo“modeloSUS”noníveldosnichosetrincheirasjá́referidos.(SANTOS,2015,p.584).

Como já foimencionadoanteriormente, oque Santos (2015) chamadepolíticade

Estado também impediu,em2004,avitóriadoprojetodeLei1/2003,quemais tarde, foi

retomadonacampanhafeitapelomovimentosanitárioqueficouconhecidacomoSaúde+

10.Santos(2015)continuaaelencarasmedidastomadasduranteadécadade2000:

tambémforamatualizadasasisençõesfiscaiscriadaspelogovernoanteriorsobre contribuições sociais aos hospitais privados, sofisticados, sem finslucrativos mediante serviços especiais encomendados pelo Ministério daSaúde(MS),esefomentafinanciamentobaratoefacilitadoparaampliaçãode hospitais privados e sofisticados de grande porte, bem como para aaquisição e construção de hospitais próprios das empresas de planosprivados, inclusivepeloBancoInteramericanodeDesenvolvimento(BID)eBanco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), dandocontinuidadeaosdurosgolpesdosanos1990contraoSUS.Já́ficavaclaraaestratégiadedestinaraAtençãoBásicadebaixaresolutividadeàpopulaçãomaispobreecomcarátercompensatório.Poroutrolado,simultaneamente,nessamesmadécada,aconjugaçãodosaláriomínimoacimadainflaçãocomo Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada, o boom dascommoditiesetc.levaramàamplainclusãosocialcomentradanomercadode dezenas de milhões de novos consumidores, reativando o mercadointernoeapontandoparaprovávelretomadadodesenvolvimento.(SANTOS,2015,p.584/585).

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Como vai ficando evidente, está em curso uma transferência de recursos do setor

públicoparaosetorprivadonasaúdequevaicontraoprojetodoSUS,aosprincípiosdoacesso

universaledaequidade,favorecendoumsistemaprivadoqueatuaemparaleloaoSUSeque

concorrecomeleporrecursosfinanceiros,mascujoacessonãoéparatodos,éapenaspara

quemcondiçõesdeterumplanodesaúde.

Contudo,mesmoparaquemtemumplanodesaúde,nãohácoberturaparatodosos

níveisdecomplexidade,somenteparaosserviçosincluídosnoplano.Segundooautor,perto

dos anos 2010, já ficava claro que “a soma dos recursos destinados ao setor privado

complementar (substituto) e os gastos tributários destinados ao mercado dos planos

privados”jáerabemmaiordoque“osvaloresdosrecursosfederaisinicialmenteindicadose

consignadospelaConstituição(...)Istoé,grandeeconomiadegastosfederaiscomosistema

públicodesaúde,valendo-sedaprivatização”(Ibid.,p.585).

Em2013,ogovernoemitiuaMedidaProvisória619,queampliouarenúnciafiscalpara

as empresas de planos privados sobre a Cofins (Contribuição para o Financiamento da

SeguridadeSocial)eparaoPIS(ProgramadeIntegraçãoSocial).

Em2014,foiaprovadaaMedidaProvisória656,que legalizouaaberturadetodaa

estrutura assistencial privada à aquisição pelo capital estrangeiro. Medida, aliás,

inconstitucional,segundoapontamváriosautores(SANTOS,2015).Essaaberturarepresenta

um campo apetitoso ao capital, que, segundo estimativas, representa algo como 55 a 60

milhõesdeconsumidoresdeplanosprivadosdesaúdeefortementesubsidiadosporrecursos

públicos.Issopermiteaconcentraçãoaindamaiordograndecapitalnaáreadasaúde.

Em2014,tambémentrouemtramitaçãonaCâmaradosDeputadosaPEC451/2014,

que obrigou os empregadores a incluir plano privado de saúde em todos os vínculos

empregatícios dos trabalhadores urbanos e rurais, com renúncia fiscal a favor dos

empregadores,que,seaprovada,representariaumdurogolpenoSUS,poisodeixariaemuma

situaçãomarginalizada, tornando-o apenas complementar dentro de um sistema privado.

ComoVianna(1998)jáapontounosanos1990,éoprocessode“americanizaçãoperversa”.

Nãosãopoucososautores(COSTA;BAHIA;SCHEFFER,2013;BAHIA;SCHEFFER2010;

OCKÉ-REIS,2013;SANTOS,2015)quevêmapúblicoapontarqueessaestratégiaemcurso

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reforça cada vezmais a segmentação da cobertura universal do nosso sistema de saúde.

SegundoSantos(2015),entre25e30%dapopulaçãoconsomemplanosprivadossubsidiados,

(...)compercapitamédioanual“privado”trêsaquatrovezesmaiorqueobaixíssimopercapitapúblico“SUS”paratodaapopulação.Comoesses25a30%utilizamosserviçosemateriaisdoSUSemintensidadecrescente,tantona rotina como pelas ações judiciais individuais, seu per capita público ésomadoaoseupercapita“privado”,resultandonumpercapitaquatroaseisvezesmaiordoqueodos70a75%quenãotêmcondiçõesdecomprarplanoprivado.Asegmentaçãodoacesso,qualidadeeofertaevidencia-setambémnoconjuntodosconsumidores:segmentossociaiscommensalidadeentre80e8.000reais.Exemplomarcantedessasegmentaçãoéopesocrescentedos idosos nos planos privados, compondo mais da metade dosconsumidores: apesar do maior custo assistencial, a estabilidade dosaposentadosresultaemmaioradimplênciacomoplanoprivadodesaúde(representandograndepartedosseusproventos)levandoaocrescimentodeempresaseplanosvoltadosparaosidosos.Éum“filão”demercadoatrativoparaempresas estrangeiras.Ao golpearo SUSperanteo crescimentodosidosos,arealpolíticapúblicadesaúdevem,inclusive,gerandodificuldadeeleitoralnasdisputassindicais:asimplesdefesadoSUSretraiosvotosnasurnas dos aposentados, eleitores de maior peso e sustentabilidade naentidadesindical.Essacobertura“universal”segmentada,construídaem25anos,tripudiaaEquidade,aIntegralidadeeodireitosocial:éoanti-SUS.OEstadoNacional,pelomenosnasaúde,vematuandocomograndeaparelhocriador demercado, dado que delega aomercado uma responsabilidadeconstitucionalrepublicanadoEstado.OsignificadodecadaumdessesgolpesnoSUSeseuencadeamentonos25anosdasuaexistênciaé insofismávelcomograndeindicadordapolíticapúblicaimplícita(real),comlógicavoltadaparaomercado,fragmentaçãoeiniquidade.(Ibid.,p.587).

Ficouclaro,então,queofinanciamentopúblicodasaúdetambémserelacionacom

outrossegmentosdaáreadasaúde,comoopróprioSUS,osplanosesegurosdesaúde,a

assistência a servidorespúblicos eprivados autônomos.O financiamentopúblico a alguns

dessessegmentossedádeumaformanãotãodiretaeconstituiumaquestãoimportanteda

relaçãopúblico-privadanaSaúde.(FIOCRUZetal.,2012,p173).Essasformasindiretassãoas

renúnciasfiscais,comoveremosnoitem3.2.

Vimostambémque,seconsolidarmostodasasfontesdefinanciamentodaatençãoà

saúdenoBrasil,asfontesprivadassuperarãoaspúblicas,eaparticipaçãodogastodiretodas

famílias é bastante elevada, mesmo se excluirmos as despesas com o pagamento de

mensalidadeaplanosdesaúde(DAIN,2007,p.1860).

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Asformascomoosplanosprivadosdeassistênciaàsaúdeatuamnosistemadesaúde

comprometemsuauniversalidadee,maisdoqueisso,geramdesigualdadessociaisnoacesso

enautilizaçãodeserviçosdesaúde,poiscobremapenasumaparcelaespecíficadapopulação,

em geral demaior renda, inserida nomercado formal de trabalho nas grandes capitais e

regiõesmetropolitanase tambémnosmunicípios commaisde80milhabitantes (Ibid.,p.

1860).

ComoapontaDain(2007),

Amarca da universalização do Sistema de Saúde no Brasil é que ela nãoconfigurou uma relação de complementaridade entre o setor público e osetorprivado,havendo,aocontrário,concorrênciaentreosdoissegmentos,apesardopesodiretoeindiretodosrecursospúblicosaofinanciamentodasaúdesuplementar.(Ibid.,p.1860).

Relaçõespúblico-privadasdopontodevistamacroeconômicoesuasrelaçõescomosetor

privado:incentivosfiscais

Aduradouracriseinternacional,iniciadaem2008,temrepercutidoaqui,noBrasil,e

seusdesdobramentosinternos,juntamentecomosproblemasespecíficosdopaís,têmsido

cadavezmaisfortes.Se,noiníciodosefeitosdacrisemundialnoBrasil,apolíticaeconômica

brasileiraconseguiudiminuirseusefeitosnegativos,pormeiodeincentivosaoinvestimento,

àproduçãoeaoconsumo,comusodemúltiplossubsídios,desoneraçõesfiscaiseampliação

docrédito,comopassardosanos,osbonsresultadosforamperdendofôlegoeseesgotando,

principalmenteapartirde2012.Alémdisso,associam-seàcriseinternacionalosefeitosda

grave crise política e econômica interna brasileira, e vemos o aumento dos níveis de

desemprego,quedadarenda,precarizaçãodosdireitosedosserviçospúblicos.

Dada essa conjuntura, é difícil sustentar a manutenção desse elevado índice de

desoneraçõesesubsídios,queforamdrasticamenteampliadosnosúltimosdoisanos.Assim,

exatamente nesse momento de crise, quando a garantia de recursos públicos seria mais

essencialparacombateressecontextodedesemprego,hápressãodogastopúblicodesaúde.

E, também,houveesforçodogoverno federalpara reanimaro setorprivadopormeiode

incentivosfiscais,desde2014,semexigiracontrapartida,oquetemumefeitopreocupante

eperigososobreaseguridadesocial.

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Asperspectivasnãosãonadaotimistas.Alémdesseefeitosobreaseguridadesocial,

háaquestãodaDesvinculaçãodasReceitasdaUnião(DRU).

ADRU,acadaano,retiradoOSSummontanteconsiderávelecrescenteemtermos

correntes.Em2010,asreceitasdesvinculadaspelaDRUforamdeR$45,8bilhõese,em2014,

foramquaseR$63,2bilhões.ADRUesvaziaofinanciamentodaseguridadesocialediminuio

superávitdaseguridade,oqueimpedeadiscussãosobreaprioridadeemsuadestinaçãoentre

asáreasqueacompõem,conformemostraatabela7.

Tabela7-ReceitadecontribuiçõessociaisselecionadaseosefeitosdadesvinculaçãopromovidospelaDRU,exercíciosselecionadosde2005,2008,2010e2012a2014[valorescorrentes,R$milhões]

Fonte:ANFIP,2015,p.137.

Essa subtração de recursos não aparece nos relatórios governamentais como uma

transferênciaderecursosdaseguridadesocialparaoorçamentofiscal;elajáaparecedireto

noorçamentofiscal,comosefossedelápordireito.

Recentemente, com o aprofundamento do ajuste fiscal, o governo enviou ao

CongressoaPEC680,de2015,quepretendeprorrogarmaisumavezaDRUpormais8anos,

até2023.Noentanto,apropostanãotratasomentedaprorrogação,mastambémpermitiria

aogovernodesvincular30%enãomaisosatuais20%dasreceitasdecontribuiçõessociais,

contribuiçõesdeintervençãonodomínioeconômico(CIDE),taxas,participaçõesnoresultado

daexploraçãoderecursoshídricoseminerais(royalties).

Seessasregrasjáestivessemválidasparaoanode2014,porexemplo,aoinvésdo

desviodeR$63,2bilhõesdoOrçamentoda SeguridadeSocial paraoOrçamento Fiscal, o

desvio seria de R$ 100 bilhões, quase duas vezesmaior. Dain (2016) lembra que, se não

137

Análise dA seguridAde sociAl em 2014

TABELA 34RECEITA DE CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS SELECIONADAS E OS EFEITOS DA

DESVINCULAÇÃO PROMOVIDOS PELA DRU, EXERCÍCIOS SELECIONADOS DE 2005, 2008, 2010 E 2012 A 2014

Valores correntes, em R$ milhões

2005 2008 2010 2012 2013 2014

Cofins 17.919 24.019 28.005 36.311 39.882 39.183

CSLL 5.246 8.500 9.151 11.463 12.509 12.639

PIS/Pasep 4.417 6.166 8.074 9.548 10.213 10.384

Outras contribuições (1) 6.246 410 630 753 811 955

RECEITAS desvinculadas pela DRU 33.829 39.095 45.860 58.075 63.415 63.161

Fonte: dados da STN. Nota: (1) Até 2007, em Outras contribuições, está incluída a receita da CPMF. Organização: ANFIP e Fundação ANFIP.

Essa subtração de recursos não aparece nos relatórios governa-mentais como uma transferência de recursos da Seguridade Social para o Orçamento Fiscal. É como se esses recursos fossem, por natureza, do Orçamento Fiscal.

Em 2015, o Congresso deverá votar pela renovação ou não dessa desvinculação. Trata-se de um importante momento para discussão das inú-meras tarefas e dos muitos desafios colocados para a Seguridade, sempre postergados pelo argumento de falta de recursos. Nada mais falso diante de dezenas de bilhões subtraídos da seguridade anualmente.

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houvesseDRU,haveriaquaseumorçamentodoSUS,jáqueovalordesviado,calculadocom

basenanovaproposta,seriaquaseequivalenteaoorçamentodoSUSde2014,quefoideR$

94bilhões,conformemostraatabela8.

Tabela8-EvoluçãodasdespesasdoMScomaçõeseserviçosdesaúdepúblicaemrelaçãoadiversosindicadores,2005,2008,2010,2012a2014.

Fonte:ANFIP,2015,p.113.

Nãoérepetitivosublinharoimportantepapeldaseguridadesocialnofinanciamento

de vários programas relacionados aos direitos sociais conquistados na CF 1988, como os

programasdedistribuiçãodebenefíciosprevidenciários,assistenciais,trabalhistaseoSUS.As

fontesdefinanciamentodaseguridadesocial,comojávimos,sãoascontribuiçõessociais.Elas

tambémfinanciamimportantesprogramas,comooPROUNIeoPRONATEC.Nessesentido,a

políticaderenúnciasquefinanciarampartedosprogramaseprojetosdedesenvolvimento

realizados para conter os problemas econômicos advindos da crise mundial diminui o

financiamentodessesprogramassociais.

No caso das renúncias, desonerações tributárias e incentivos fiscais, esses

instrumentos foram usados largamente para combater a crise, principalmente a partir de

2011,comoobjetivodefinanciardiretaouindiretamenteaeconomia,emprego,exportações

einvestimentos.

ASecretariadaReceitaFederaldoBrasil(RFB)mostraqueosvaloresdessasrenúncias,

aprovadasapartirde2010,forammultiplicadosentre2011e2012,passandodeR$10bilhões

paraR$46bilhões.Essesvalores,entretanto,continuaramacrescerfortemente,chegando,

113

Análise dA seguridAde sociAl em 2014

cessário ou importante efetuar gastos acima do mínimo, essa despesa extra não impacta todos os demais exercícios seguintes. Torna-se mais razoável atender a demandas pontuais se as consequências podem ser isoladas a um determinado período.

As mudanças não alteraram as regras que definem a aplicação desses recursos: consideram-se despesas com as ações e programas de saúde públi-ca aquelas realizadas exclusivamente no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, somadas às de custeio e de pessoal ativo do Ministério.

A Tabela 23 apresenta algumas informações que permitem analisar o quantitativo de gastos de 2005 a 2014 sob alguns parâmetros.

TABELA 23

EVOLUÇÃO DAS DESPESAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE COM AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA EM RELAÇÃO A DIVERSOS INDICADORES,

2005, 2008, 2010 E 2012 A 2014

2005 2008 2010 2012 2013 2014

Valores nominais (R$ bilhões) 34,52 50,27 62,33 80,09 85,43 94,24

Valores constantes (R$ bilhões, INPC de dez/2014) 57,01 72,06 80,96 92,45 93,03 97,01

Em relação ao PIB (%) 1,61 1,66 1,60 1,70 1,66 1,71

Em relação às Receitas de contribuições sociais (%) 13,92 14,01 14,12 13,96 13,47 14,17

Em relação às receitas das Contribuições sociais, exceto RGPS (%)

24,75 25,72 27,18 27,58 26,94 29,85

Gasto per capita (R$ de dez/2014, pelo INPC) 309,52 380,04 424,44 476,68 462,76 478,42

Fonte: para as despesas, Siga Brasil; para a população IBGE (população residente, estimativas enviadas ao TCU).Nota: despesas do Ministério da Saúde, desconsiderados o pagamento de inativos, de juros, encargos e amortização de dívidas e transferências de renda às famílias.Organização: ANFIP e Fundação ANFIP.

Os dados apontam para um crescimento das alocações federais em relação a itens como valores nominais e constantes (tendo como base o INPC)14. Observa-se uma tendência de crescimento dos valores per capita atualizados monetariamente. Para o total gasto, a alocação de recursos em saúde pelo governo federal cresceu 70% em valores reais nos últimos

14 A opção pelo INPC está relacionada à escolha de um indexador único para todas as despesas da Seguri-dade e o INPC é o mais apropriado, pois quase 90% das despesas são relativas a benefícios. Ressalte-se que a diferença entre a correção pelo INPC ou pelo IPCA, de janeiro de 2005 a dezembro de 2014, é pequena: 68,38% pelo INPC e 68,26%, pelo IPCA.

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em2014,amaisdeR$100bilhões.Apenasasnovasrenúnciasrepresentamcercade10%da

arrecadação(ANFIP,2015,p.43).

Se considerarmos os valores totais das renúncias, incluindo as novas, segundo os

cálculosdaRFB,em2012,chegaramaR$182,4bilhões(18,4%daarrecadaçãoe4,2%doPIB)

e,em2014,o totaldas renúnciaschegouaR$253,9bilhões, correspondendoa22,1%da

arrecadaçãoea4,92%doPIB(ANFIP,2015,p.43).Éoquemostraatabela9.

Tabela9-Brasil–Valoresdasnovasrenúnciasfiscaisadotadasapartirde2010,queproduziramefeitosde2012a2014[emR$milhões]

Fonte:ANFIP,2015,p.44.

Ficaevidente,assim,aquantidadederecursosquesãodesviadosdosetorpúblicopara

o setor privado. Deve-se sublinhar que a contrapartida que seria de se esperar e exigir é

mínima, para não dizer nula. Dessamaneira, a questão da equidade fica prejudicada, e a

injustiçaprevalece.

44

Análise dA seguridAde sociAl em 2014

TABELA 3VALORES DAS NOVAS RENÚNCIAS FISCAIS ADOTADAS A PARTIR DE 2010,

QUE PRODUZIRAM EFEITOS DE 2012 A 2014R$ milhões

Desonerações 2012 2013 2014

Folha de Salários 3.703 12.284 21.568

Cide-Combustível 8.461 11.481 12.717

IPI-Total 9.673 11.822 10.796

Cesta Básica 995 6.764 9.331

Simples e MEI 5.740 6.315 7.235

IOF-Crédito PF 2.278 3.595 3.982

ICMS Base de Cálculo PIS/COFINS-Importação 0 715 3.641

Nafta e Álcool 21 1.933 3.552

Planos de Saúde 0 307 1.919

Tributação PLR 0 1.703 1.889

Entidades Beneficentes - Cebas 0 0 1.692

Vale-Cultura 0 441 1.676

INOVAR-Auto 0 1.500 1.662

Depreciação Acelerada BK 0 1.374 1.522

Transporte Coletivo 0 746 1.424

PRONON e PRONAS 0 1.223 1.349

IRPF-Transportadores 0 1.210 1.341

REPNBL-Redes 0 566 1.018

Lucro Presumido 0 0 976

Outros 15.593 14.605 14.756

Soma itens acima 46.464 78.584 104.046

Diferença ano anterior - 32.120 25.462

Total de renúncias 182.410 225.630 253.902

Fonte: RFB, Análise da Arrecadação das Receitas Federais, quadros de apresentação das diversas edições.Organização: ANFIP e Fundação ANFIP.

Pelas mais diversas razões, o financiamento do Estado sempre privile-giou a tributação indireta, ao invés de alcançar a renda e a propriedade. Isto ocorre tanto a nível federal, quanto estadual. Aliás, o ICMS, o tributo com maior arrecadação nacional, não somente é indireto, como também apresen-ta uma concentração desproporcional em serviços públicos, como energia, telefonia, água e saneamento.

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Embora não caibam aqui considerações macroeconômicas mais profundas, é

interessantemencionarotextodeCarneiro(2017)queanalisaasdesoneraçõesdopontode

vistadapolíticaeconômicae industrial.Apolíticadedesoneração foiduplamentedanosa,

poisnãoresolveuaquestãoinicialaquesepropôs,dopontodevistadapolíticaeconômica,

etambémacentuouaindamaisofinanciamentopúblicosocial,inclusivedaprevidênciasocial

edasaúde.

Nessesentido,apolíticadedesoneraçõestributáriaspromovidaembenefíciodosetor

privado,sejanosentidodefomentarocrescimentoeconômico,aáreaindustrial(reduçãodo

IPIparaautomóveis,desoneraçãodafolhadepagamentosqueafetaaprevidência,redução

noimpostoderendasobreparticipaçãodelucrosedividendos),sejanosentidodecombater

a inflação (desoneração da cesta básica e redução da CIDE-combustíveis), influencia a

capacidadedogovernoemcumprir seus compromissose, também,mostraquehá/houve

espaçofiscalparaarealizaçãodetalpolítica(aindaque,nosanosde2011e2012,apolítica

dedesoneraçõestenhasidoexagerada).

Seistoéverdade,podemospensarqueogoverno,apesardainsuficiênciacrônicade

recursosque já vimospara a saúde, tinhaespaço fiscal ao longodadécadade2000para

aumentarrecursosparaasaúde.

Nessesentido,Dain(2016)apontaqueapolíticadedesoneraçãoafetaindiretamente

ogastocomASPS,poismostraaumentodoespaçofiscaldaUniãoeperdadecapacidadedo

governoemcumprirseuscompromissoscomoSUS.

Entretanto, comoveremosno item3.2,háumoutro tipodedesoneração,queéa

desoneraçãotributárianasaúde,quefavoreceosetorprivadodesaúdepormeiodarenúncia

fiscal, o que contribui para o baixo nível de gasto público em saúde e, também, para a

desigualdadederendaesocial.

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3.2–Renúnciasfiscaiscomomecanismodetransferênciadosfundospúblicosparaosetorprivadonasaúde

HáumsignificativoestímulofiscalporpartedoEstadobrasileiroquebeneficiadireta

ouindiretamenteosegmentoprivadodeplanosesegurosdesaúdenoBrasil.Noentanto,os

estudosquemostramovolumedessegastoindiretoeseusefeitossobreosetorsaúdesão

recentes,emboraasquestõesligadasaessarelaçãopúblico-privadaapareçamnaliteratura

principalmenteapartirdaconstituiçãodoSUS.

Hámuitadificuldadeparasemedirovolumedogastoindireto,poisosdadossãode

difícilacessooumesmonãoexistem.Osestudosrecentessobreestimativasdessesgastos

têmdadonovaperspectivasobreaimportânciadessaquestão(OCKÉ-REIS,2013;DAINetal.,

2015) ao desnudarem a falta de regulação diante de um contexto de subfinanciamento

público da saúde e avanço do setor privado com concorrência ao sistemapúblico. Assim,

estudosnessaperspectivatornam-secadavezmaisrelevantesenecessários,sobretudoem

sociedadestãodesiguais,comoabrasileira,poispodemjogarluzsobreumaestratégiaque

abrigauma“escolhatrágicaesilenciosaentreosqueterãoacessoaserviçoseosqueserão

maisumavezexcluídos”(DAIN,2007,p.1861).

Naprática,éesteosignificadoquearenúnciadearrecadaçãofeitanaáreadasaúde

temquandonãoconseguimosidentificarclaramentequaissãoossetoreseaçõesbeneficiadas

poressadespesae,portanto,quaissãoasverdadeirasprioridadesdogastopúblico.

Nãohá consensonadefiniçãode renúncia de arrecadaçãoou gasto tributário, e a

análise da bibliografia internacional (DAIN et al., 2015, p. 27-32)mostra divergências nos

métodosdecálculoepráticasdequantificação.

Dentreasdiversasformasquearenúnciapodeassumir,estariam

-Isenções,ouseja,exclusõesderendadabasedeincidênciadetributos;-Deduçõesdequantias,darendabruta,antesdadefiniçãodarendaasertributada;-Deduçõesdecréditos,ouquantias,doimpostodevido;-Reduçõesdealíquotasa favordeumconjuntodecontribuintese/oudeatividades;

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146

- Diferimentos tributários, ou seja, a defasagem consentida, a título deincentivo,paraoiníciodospagamentosdosimpostosdevidos.(DAINetal.,2015,p.27).

NoBrasil,asrelaçõesentreopúblicoeoprivadoquepredominamnosistemadesaúde

estãoorganizadas juridicamentedemodoa refletirdeterminadosmodelosdeorganização

doscuidadoseassistênciaàsaúde.“Asdeduçõeseisençõesfiscaiseosrepassesderecursos

públicoscontemplamincentivosàdemandaeàofertadeserviçosdesaúde(sejaaprestação

diretadeserviços,sejaaquela intermediadaporempresasdeplanosesegurosdesaúde)”

(DAINetal.,2015,p.33).

Asdeduçõeseisençõesfiscaisàdemandacontemplamosincentivosaosprestadores

deserviçoseasempresasdeplanosesegurosdesaúde.

Asprincipaisformasdeincentivoàdemandasãoasseguintes:

-adedução fiscalparapessoas jurídicasepessoas físicasdo impostode rendadosgastos com despesasmédicas e contraprestações pecuniárias de planos e segurosprivadosdesaúde;

-osrepassesderecursosorçamentáriosparaaaquisiçãodecoberturasdeplanosesegurosparaservidorespúblicos;

-ofinanciamentodeplanosprivadosdesaúdeparaservidorescivisdaUnião;e

- o financiamento de planos privados de saúde para servidores civis estaduais emunicipais.

Asprincipaisformasdeincentivoàofertasãoosseguintes:

-osincentivosaosprestadoresdeserviçosdesaúde;e

-osincentivosàsempresasdeplanosesegurosdesaúde.

Areformatributáriade1966,ocorridanoperíododitatorial,modificou,entreoutros

pontos,aestruturadoimpostoderenda.ALein.4.357,de16dejulhode1964,facultoupela

primeiravezoabatimentodedespesascom instruçãoemum limitedeaté20%da renda

bruta.

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147

Noentanto,foiaLein.4.506,de30denovembrode1964,queextinguiuaincidência

de impostos cedulares sobre os rendimentos líquidos declarados pelas pessoas físicas, e

passouavigoraroimpostodevidoexclusivamentepelatabelaprogressiva.Oartigo9desse

dispositivo legal foi que regulamentou “o abatimento das despesas com hospitalização,

cuidadosmédicosedentárioscobertasporseguros(§3o)epreservouasdeduçõesparaas

despesaspagasdiretamenteaosprestadoresdeserviços(§4o)”(DAINetal.,2015,p.49).

Várias foram as modificações realizadas na legislação que não cabem aqui

detalhamento41.Oimportante,contudo,éque,atualmente,asdespesasmédicaspodemser

deduzidasintegralmentedabasedecálculodoImpostodeRendadaPessoaFísicae,dessa

maneira,ocontribuintepodeincluirtodososgastoscomsaúdeprevistosna legislaçãoem

vigorsemlimitesenãocomonocasodaeducação,porexemplo,queélimitada.

Os itenspermitidospelaReceitaFederal incluemtodosospagamentosefetuadosa

médicosdequalquerespecialidade,dentistas,psicólogos,fisioterapeutas,fonoaudiólogose

terapeutasocupacionais,hospitais,despesascomexameslaboratoriais,transfusãodesangue,

serviçosradiológicos,aparelhosortopédicoseprótesesortopédicasedentárias.Asdespesas

dedutíveis incluem até cirurgia plástica, mesmo com finalidade puramente estética, e

despesas relacionadas ao tratamento físico ou mental do próprio contribuinte e de seus

dependentes.

Dessemodo,arenúnciafiscalbeneficiaindiretamenteosserviçosprivadosdesaúde

em geral e as operadoras de planos e seguros de saúde em particular ao incentivar seu

consumo.

Há, ainda, outromodopelo qual a saúde suplementar se beneficia: quandoo SUS

atende pacientes que são usuários de planos e seguros de saúde. Isso acontece de duas

maneiras.Primeiro,quandoosplanosesegurosdesaúdenãoressarcem42oSUS;segundo,

41Paramaioresdetalhes,consultaranáliseminuciosafeitaporDainetal.(2015,p.47-59).42“OressarcimentofoiinstituídopelaLei9.656,de3dejunhode1998,massuaimplementaçãoencontraresistênciaporpartedasoperadoras.UmadasalegaçõesquetêmsidoutilizadasparanãoressarciroSUSéagarantiaconstitucionaldeacessoaosserviçospúblicosdesaúdeportodososbrasileiros.Oressarcimentotambémenfrentaaresistênciadealgunscríticosqueconsideramqueosvaloresenvolvidoseasdificuldadesparaoressarcimentoefetivonãosuperamoscustosdaestruturanecessáriaparasuacobrança.Quantoaosvaloresenvolvidos,valelembrarquedificuldadesadministrativas,assimcomoafaltadeidentificaçãodousuárionamaioriadosprocedimentosrealizadospeloSUS,impedemaAgênciaNacionaldeSaúdeSuplementar(ANS)deincluirnoressarcimentoosdemaistiposdeatendimento.”(FIOCRUZet.al.,2012,p.175).

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148

quando há ressarcimento baseado na Tabela Única Nacional de Equivalência de

Procedimentos (Tunep).SegundoorelatóriodoProjetoSaúdeBrasil2030 (FIOCRUZetal.,

2012),

De acordo com o último Caderno de Informação de Ressarcimento eIntegraçãocomoSUS(ANS,2009),entresetembrode1999ejunhode2006,foram identificados 992.110 atendimentos hospitalares do SUS prestadosaosbeneficiáriosdeplanosesegurosdesaúde.OvalordessesatendimentossuperouR$1,4bilhão.Contudo,quase73%dosatendimentosidentificadostiveramseupedidoderessarcimentoimpugnadopelasoperadoras.Assim,quandodaelaboraçãodoCaderno,apenas473.540atendimentos,novalorde aproximadamente R$ 652milhões, eram passíveis de ressarcimento eapenas 76.675, no valor de R$ 97,3 milhões, haviam sido efetivamenteressarcidos. Os demais valores estavam pendentes de decisõesadministrativasoujudiciais.(Ibid.,p.175).

Renúnciafiscalnasaúde:análisedosdados

EmestudoinéditopublicadopelaANS,Dainetal.(2015)mostramarelaçãoentreos

planosdesaúdeeosbenefíciostributáriosfederais,noâmbitodasrelaçõespúblico-privada.

Pararelembrar,osistemadesaúdebrasileirofuncionapormeiodedoissubsistemas

principais,quetêm,contudo,lógicasdistintas,conformandoumsistemadual.Deumlado,o

SUS,subsistemapúblico,deacessouniversal,queintegraumconjuntodeaçõeseserviçosde

saúdeorganizadospormeiodeumarede regionalizadaehierarquizada,comdiretrizesde

descentralizaçãoadministrativa,atendimentointegraleparticipaçãosocial,comogarantea

ConstituiçãoFederalde1988.Dooutrolado,estáosubsistemaprivado,queoperasegundoa

lógicacapitalistaecujoacessoé feitopelacompradiretadeserviçosoupordeplanosde

saúdeprivados.Arededeestabelecimentosprivadosmantémrelaçõesdecompraevenda

comossubsistemaspúblicoeprivado.Enquantoisso,osubsistemapúblicotambémpresta

atendimentoaseguradosdosubsistemaprivado,comoserviçosdealtacomplexidade,que

sãomaiscaros(SILVA,2007).

Essesubsistemaprivadotambéméchamadodesaúdesuplementar,éformadopor

empresas operadoras de planos de saúde privados com diferentes formatos jurídico-

institucional,quesãoclassificadospelaliteraturapelaformacomosecolocamnomercado,

conformedefiniçãomostradanoquadro2.

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149

Quadro2-Modalidadesdeclassificaçãodasempresasoperadorasdeserviçosdeatençãoàsaúde

Modalidades DefiniçãoANSAutogestão “Entidadequeoperaserviçosdeassistênciaàsaúdeou

empresa que se responsabiliza pelo plano privado deassistência à saúde, destinado, exclusivamente, aoferecer cobertura aos empregados ativos de uma oumaisempresas,associadosintegrantesdedeterminadacategoriaprofissional,aposentados,pensionistasouex-empregados, bem como a seus respectivos gruposfamiliaresdefinidos.”

Cooperativasmédicas “OperadoraqueseconstituinaformadeassociaçãodepessoassemfinslucrativosnostermosdaLein.5.764,de16dedezembrode1971,formadapormédicos,equecomercializaouoperaplanosdeassistênciaàsaúde.”

Filantropia “Operadora que se constitui em entidade sem finslucrativosqueoperaplanosdesaúdeequetenhaobtidocertificado de entidade filantrópica junto ao ConselhoNacionaldeAssistênciaSocial(CNAS).”

Medicinadegrupo “Operadora que se constitui em sociedade quecomercializaouoperaplanosdesaúde,excetuando-seas classificadas nas modalidades: administradora,cooperativa médica, autogestão, filantropia eseguradoraespecializadaemsaúde.”

Seguradoraespecializadaemsaúde “Empresaconstituídaemsociedadeseguradoracomfinslucrativosquecomercializasegurosdesaúdeeoferece,obrigatoriamente, reembolso das despesas médico-hospitalares ouodontológicas, ouque comercializa ouopera seguro que preveja a garantia de assistência àsaúde,estandosujeitaaodispostonaLein.10.185,de12defevereirode2001,sendovedadaaoperaçãoemoutrosramosdeseguro.”

Cooperativaodontológica “OperadoraqueseconstituiemassociaçãodepessoassemfinslucrativosnostermosdaLein.5.764,de16dedezembro de 1971, formada por odontólogos, e quecomercializa ou opera planos de assistência à saúdeexclusivamenteodontológicos.”

Odontologiadegrupo “Operadora que se constitui em sociedade quecomercializa ou opera exclusivamente planosodontológicos.”

Administradoradeplanodesaúde “Empresaqueadministraplanosdesaúde,semassumiroriscodecorrentedaoperaçãodessesplanos,equeseprivaderedeprestadoradeserviçodesaúde.”

Fonte:elaboraçãoprópria,apartirdeBRASIL,2009.

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150

Osetordesaúdesuplementarestáinseridonosetordeseguros,doqualfazemparte,

também,ossegurospessoais,capitalizaçãoeprevidência,alémdasaúdesuplementar.

O setor de seguros teveum faturamento, no anode 2014, deR$ 326bilhões, um

crescimentode4,82%emrelaçãoa2013eumcrescimentoacumulado,entre2009e2014,

de39%,segundodadosdeDainetal.(2015).

O faturamentodosetordesaúdesuplementar representa,sozinho,39%dareceita

comsegurosnoBrasil,sendoomaisimportanteemtermosdereceita.Em2014,teveuma

receitadeR$127bilhões,eocrescimentodosetordesaúdesuplementarsuperouamédia

dosetorcomoumtodo:cresceu7,83%emrelaçãoa2013,comopodemosvernatabela10e

nográfico8.

Tabela10-ReceitadoSetordeSegurosporSegmento,Brasil,2009–2014[R$bilhõesde2014(IPCA)]

Fonte:Dainetal.,2015,p.69.

69

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

69

foi de 7,7%, superando apenas o crescimento dos seguros tradicionais, que cresceram 6,7% em média.

Apesar do crescimento abaixo da média dos seguros, o setor de Saúde Suplementar se destaca pela forte participação na receita desta atividade. Aproximadamente 39% da receita com seguros no país são decorrentes do faturamento dos planos de saúde, como pode ser visto no Gráfi co 14.

Duas modalidades de planos de saúde têm se destacado nos últimos anos em termos de aumento de receita: as seguradoras especializadas em saúde e a odontologia de grupo. Ambas as modalidades cresceram acima de 10% ao ano, em média, de 2009 a 2014, fi cando bem acima da média do grupo (Tabela 3).

Tabela 2 – Receita do Setor de Seguros por Segmento, Brasil, 2009 - 2014 [R$ Bilhões de 2014 (IPCA)]

Segmento 2009 2010 2011 2012 2013 2014Crescimento Acumulado

(%)

Crescimento Médio Anual

(%)

Capitalização 13,60 14,98 16,78 18,75 22,33 21,90 61,1% 10,0%

Saúde Suplementar 87,73 94,68 100,76 107,77 118,09 127,33 45,1% 7,7%

Pessoas – Planos de Risco 20,66 22,34 25,35 27,44 30,41 30,70 48,6% 8,2%

Pessoas – Planos de Acumulação 48,93 55,85 61,18 76,90 75,60 80,60 64,7% 10,5%

Segmentos Tradicionais 47,33 51,28 54,28 57,93 64,43 65,30 38,0% 6,7%

Total 218,24 239,12 258,35 288,79 310,86 325,83 49,3% 8,3%

Var. % – Total – 9,57% 8,04% 11,78% 7,64% 4,82% – –

Var. % – Saúde Suplementar – 7,92% 6,42% 6,96% 9,57% 7,83% – –

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/ANS, SES/Susep e IBGE

Gráfi co 1 – Participação dos Segmentos na Receita do Setor de Seguros, Brasil, 2009 - 20014

22%

22%

9%

40%

6%

21%

23%

9%

40%

6%

21%

24%

10%

39%

6%

20%

27%

10%

37%

6%

21%

24%

10%

38%

7%

20%

25%

9%

39%

7%2009 2010 2011 2012 2013 2014

CapitalizaçãoPessoas – Planos de RiscoSegmentos Tradicionais

Saúde SuplementarPessoas – Planos de Acumulação

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/ANS, SES/Susep e IBGE

4 O percentual de 39%, apresentado acima, foi obtido a partir de informações extraídas de dois relatórios da CNseg e de dados da ANS (Dados Financeiros – Tabnet). Uma vez que a diferença entre as duas fontes não tem signifi cado estatístico, foram utilizados os dados da ANS (para Saúde Suplementar) combinados com os dados do CNseg (para o demais setores de seguros). Os dados apresentados referem-se exclusivamente à arrecadação.

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151

Gráfico8-ParticipaçãodossegmentosnaReceitadoSetordeSeguros,Brasil,2009-2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.69.

Dentre as modalidades da saúde suplementar, destacam-se, em termos de

participação na receita do setor como um todo, aMedicina de Grupo e as Cooperativas

Médicas.Em2014,areceitadaMedicinadeGrupofoideR$44bilhões,eadasCooperativas

Médicas, de R$ 35,7 bilhões. Essas duas principais modalidades também apresentaram

crescimentomédioanualde,respectivamente,6,5%e7,2%.

OestudodeDainetal.(2015)mostroutambémqueasduasmodalidadescommaior

crescimentoemtermosdeaumentodereceitaforamasseguradorasespecializadasemsaúde

eaodontologiadegrupo.Ambascrescerammaisque10%aoano,emmédia,entre2009a

2014. A odontologia de grupo, em que pese seu considerável crescimento, tem uma

participaçãode2%nosetor,mesmataxadafilantropia.Entretanto,essamodalidadeteveum

crescimentomuitopequeno (0,8%)emcomparaçãoàmédia geral, comopodemos verna

tabela11.

69

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

69

foi de 7,7%, superando apenas o crescimento dos seguros tradicionais, que cresceram 6,7% em média.

Apesar do crescimento abaixo da média dos seguros, o setor de Saúde Suplementar se destaca pela forte participação na receita desta atividade. Aproximadamente 39% da receita com seguros no país são decorrentes do faturamento dos planos de saúde, como pode ser visto no Gráfi co 14.

Duas modalidades de planos de saúde têm se destacado nos últimos anos em termos de aumento de receita: as seguradoras especializadas em saúde e a odontologia de grupo. Ambas as modalidades cresceram acima de 10% ao ano, em média, de 2009 a 2014, fi cando bem acima da média do grupo (Tabela 3).

Tabela 2 – Receita do Setor de Seguros por Segmento, Brasil, 2009 - 2014 [R$ Bilhões de 2014 (IPCA)]

Segmento 2009 2010 2011 2012 2013 2014Crescimento Acumulado

(%)

Crescimento Médio Anual

(%)

Capitalização 13,60 14,98 16,78 18,75 22,33 21,90 61,1% 10,0%

Saúde Suplementar 87,73 94,68 100,76 107,77 118,09 127,33 45,1% 7,7%

Pessoas – Planos de Risco 20,66 22,34 25,35 27,44 30,41 30,70 48,6% 8,2%

Pessoas – Planos de Acumulação 48,93 55,85 61,18 76,90 75,60 80,60 64,7% 10,5%

Segmentos Tradicionais 47,33 51,28 54,28 57,93 64,43 65,30 38,0% 6,7%

Total 218,24 239,12 258,35 288,79 310,86 325,83 49,3% 8,3%

Var. % – Total – 9,57% 8,04% 11,78% 7,64% 4,82% – –

Var. % – Saúde Suplementar – 7,92% 6,42% 6,96% 9,57% 7,83% – –

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/ANS, SES/Susep e IBGE

Gráfi co 1 – Participação dos Segmentos na Receita do Setor de Seguros, Brasil, 2009 - 20014

22%

22%

9%

40%

6%

21%

23%

9%

40%

6%

21%

24%

10%

39%

6%

20%

27%

10%

37%

6%

21%

24%

10%

38%

7%

20%

25%

9%

39%

7%2009 2010 2011 2012 2013 2014

CapitalizaçãoPessoas – Planos de RiscoSegmentos Tradicionais

Saúde SuplementarPessoas – Planos de Acumulação

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/ANS, SES/Susep e IBGE

4 O percentual de 39%, apresentado acima, foi obtido a partir de informações extraídas de dois relatórios da CNseg e de dados da ANS (Dados Financeiros – Tabnet). Uma vez que a diferença entre as duas fontes não tem signifi cado estatístico, foram utilizados os dados da ANS (para Saúde Suplementar) combinados com os dados do CNseg (para o demais setores de seguros). Os dados apresentados referem-se exclusivamente à arrecadação.

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152

Tabela11-Receitadecontraprestaçãonosetordesaúdesuplementarpormodalidade,Brasil,2009–2014R$bilhõesde2014(IPCA)]

Fonte:Dainetal.,2015,p.70.

Seanalisarmosaevoluçãodasmodalidadespelonúmerodebeneficiários,conforme

mostra o gráfico 9, poderemos perceber quehouveum crescimento considerável: se, em

marçode2009,tínhamos52,8milhõesdebeneficiários,emmarçode2015,eram72,2bilhões,

aproximadamente35%dapopulaçãobrasileira.Houvecrescimentodebeneficiáriosemtodas

asmodalidades,comexceçãodafilantropia,queperdeubeneficiáriosnoperíodo.

70

Regime Fiscal dos Estabelecimentos e Empresas de Planos e Seguros Privados de Saúde – Relatório Final

70

Tabela 3 – Receita de Contraprestação no Setor de Saúde Suplementar por Modalidade, Brasil, 2009 - 2014 [R$ Bilhões de 2014 (IPCA)]

Modalidade 2009 2010 2011 2012 2013 2014Crescimento Acumulado

(%)

Crescimento Médio Anual

(%)

Autogestão 10,29 10,88 11,27 12,05 13,18 14,39 39,9% 6,9%

Cooperativa Médica 30,98 33,56 35,78 38,36 40,40 43,93 41,8% 7,2%

Filantropia 2,08 2,28 2,34 2,42 2,44 2,16 3,9% 0,8%

Medicina de Grupo 26,05 27,94 29,06 31,26 33,54 35,67 36,9% 6,5%

Seguradora Especializada em Saúde 16,54 17,89 19,88 21,09 25,86 28,47 72,1% 11,5%

Cooperativa Odontológica 0,54 0,56 0,58 0,61 0,60 0,62 14,8% 2,8%

Odontologia de Grupo 1,25 1,57 1,86 2,00 2,07 2,09 67,4% 10,8%

Total 87,73 94,68 100,76 107,77 118,09 127,33 45,1% 7,7%

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/AN S e IBGE.

Apesar da signifi cativa evolução destas modalidades, as cooperativas mé-dicas e as medicinas de grupo ainda são líderes de mercado em volume de receita. Em 2014 elas obtiveram uma receita de, respectivamente, R$ 44 bilhões e R$ 35,7 bilhões. A única modalidade que aparenta ter problemas e se encontra praticamente estável no período em análise é a fi lantropia.

Atualmente, apenas três modalidades respondem por 85% do mercado: cooperativa médica, medicina de grupo e seguradoras especializadas em saúde. Esta última modalidade teve um aumento de participação da ordem de três pontos percentuais entre 2009 e 2014, passando de 19% para 22%. O gráfi co a seguir apresenta a evolução da participação das modalidades dentro dos planos de saúde (Gráfi co 2).

Gráfi co 2 – Participação da Modalidade na Receita do setor de Saúde Suplementar, 2009 - 2014

2%19%

2%19%

2%20%

2%20%

2%22%

2%22%

30% 30% 29% 29% 28% 28%2% 2% 2% 2% 2% 2%

35% 35% 36% 36% 34% 35%

12% 11% 11% 11% 11% 11%2009 2010 2011 2012 2013 2014

AutogestãoFilantropiaSeguradora Especializada em Saúde

Cooperativa MédicaMedicina de GrupoOdontologia

Elaboração própria. Fonte primária: Diops/ANS e IBGE.

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153

Gráfico9-Númerodebeneficiáriosnosetordesaúdesuplementarpormodalidade,Brasil,2009-2015

Fonte:Dainetal.,2015,p.71.

Outraanáliseinteressantemostraarelaçãoentreadiferençanaqualidadedeserviço

enacapacidadefinanceiradoindivíduo.Dainetal.(2015)analisaramasreceitaseonúmero

debeneficiáriosdasdezmaioresoperadorasdeplanosdesaúdedoBrasil43.

Em relação à participação na receita total do setor, as dezmaiores operadoras de

planosdesaúdetêm42,3%departicipaçãonareceitatotaldosetor(R$53,86bilhões),sendo

aBradescoSaúdeamaioroperadora,com11%dareceitatotal(R$13,6bilhões).

Emrelaçãoaonúmerodebeneficiários,asdezmaioresoperadorascontamcom39,3%

domercado,númeroinferior,secomparadocomareceita.Nesseranking,aBradescoSaúde

estáemterceirolugarenãoemprimeiro,comonocasodareceita.AempresaOdontoprevé

alíderdorankingemnúmerodebeneficiários,com6,47milhõesdeusuários.

OestudodeDainetal. (2015)mostra tambémaarrecadação tributária federalno

setordesaúdesuplementar44,comomostraatabela12.

43 De acordo com a ANS, o número de operadoras com beneficiários ativos em dezembro de 2014 era de 1.217 (875operadoras médico-hospitalares e 342 operadoras exclusivamente odontológicas). Em junho de 2016, o número deoperadorascombeneficiárioserade1.112(800médico-hospitalarese312exclusivamenteodontológicas).44Oestudousouumaestimativaparaconseguiratingiradesagregaçãonecessáriadosdados,jáqueháfaltadedadospúblicosde arrecadação tributária desagregada por setor. O nível de desagregação setorial fornecido pela Receita Federal é aClassificaçãoNacionaldeAtividadesEconômicas(CNAE),2.2Subclasses,queéosetordeseguroscomoumtodo.Parachegar

71

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

71

Outra forma de observar a evolu ção das modalidades dos planos de saúde é através do número de benefi ciários. A tendência de crescimento deste indi-cador é clara: entre março de 2009 e março de 2015 o total de benefi ciários dos planos de saúde passou de 52,8 milhões para 72,2 milhões (aproxima-damente 35% da população brasileira), o que representa um crescimento acumulado de quase 37% e um crescimento médio anual de 5,4%. Com ex-ceção das modalidades de autogestão e de fi lantropia, houve razoável cres-cimento do número de benefi ciários nas demais modalidades (Gráfi co 3).

Gráfi co 3 – Número de Benefi ciários no Setor de Saúde Suplementar por Modalidade, Brasil, 2009 - 2015

mar

-09

ago-

09jan

-10

jun-

10no

v-10

abr-1

1se

t-11

fev-

12ju

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dez-

12m

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out-1

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4ag

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jan-1

5

Milh

ões

25

20

15

10

5

0

Autogestão

Cooperativa Médica

Filantropia

Medicina de Grupo

Seguradora Especializada em Saúde

Cooperativa Odontológica

Odontologia de Grupo

Fonte: Diops/ANS.

A odontologia de grupo foi a modalidade de plano que mais cresceu neste quesito, quase dobrando o número de segurados entre 2009 e 2015. Já a modalidade “fi lantropia” perdeu benefi ciários no período em análise, o que se refl etiu no fraco desempenho de receitas mostrado anteriormente.

As dez maiores operadoras de planos de saúde em volume de receita repre-sentaram aproximadamente 42,3% de toda a receita do setor em 2014 (R$ 127,33 bilhões). A maior operadora sob esta ótica é a Bradesco Saúde, que obteve uma receita de R$ 13,66 bilhões. O gráfi co 4 apresenta a participação das empresas no volume de receita.

A mesma comparação pode ser feita pela ótica do número de benefi ciários. Neste caso, as dez primeiras operadoras do ranking, detiveram, em 2014, 39,3% do mercado – resultado inferior ao da receita. Nesta análise, a líder do ranking de receitas passou ao terceiro lugar. A empresa Odontoprev aparece como a operadora com maior número de benefi ciários neste caso, com 6,47 milhões de usuários. O gráfi co 5 apresenta a participação das operadoras no número de segurados.

A relação entre as duas análises – receita e benefi ciários –revela uma razoá-vel distorção entre os líderes de mercado e as demais operadoras. Consi-derando apenas as oito operadoras que fi guram entre as dez melhores nas duas óticas de análise (Bradesco Saúde, Amil, Sul América Saúde, Unimed

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154

Tabela12-ArrecadaçãoTributáriaFederalnoSetordeSaúdeSuplementar,Brasil,2008-2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.7345.

Osetordesaúdesuplementartemumaparticipaçãobastanterelevantenosetorde

segurosemgeraleéresponsável,sozinho,por40%.Aestimativafeitapeloestudofoiade

queasaúdesuplementararrecadouaoscofresfederais,em2014,cercadeR$10,4bilhõesde

reaisemimpostosecontribuições.

Ocrescimentodaarrecadaçãoentre2008e2014foide48,3%,umcrescimentomédio

anualde6,8%,abaixo,portanto,docrescimentomédioanualdareceitaque,comovimos,foi

de7,7%.Háumaforteoscilaçãonavariaçãodaarrecadaçãodeumanoparaooutro.Nosanos

de2010,2011e2013,areceitadaUniãocresceucomosetor;contudo,nosanosde2009e

2012,essecrescimentofoinegativo.Enquantoisso,ocomportamentodareceitanãofoiassim

volátil.

Oestudomostra, também,queháuma tendênciaclaradeexpansãoda tributação

sobre a média das atividades econômicas, e isso não é verificado no caso da saúde

suplementar,quepareceestagnada(DAINetal.,2015,p.74).Segundoapontamosautores,

esseresultadoéumindíciodeque“aatividadedeplanosdesaúdepodeestararrecadando

aosetordesaúdesuplementar,oestudoobteveaparticipaçãodareceitageradapelosserviçosdeatividadesuplementarefezumaproxyparaestimativadaarrecadação tributária, “aplicando-seaparticipaçãoda saúdesuplementarno totaldareceitadosetoranualmentesobreaarrecadaçãodadivisão65daCNAE”(DAINetal.,2015,p.73).45AparticipaçãodaSaúdeSuplementarnosetordesegurosde2008foiestimada.

73

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

73

3.2. Arrecadação tributária federal no setor de Saúde Suplementar

Devido à falta de dados públicos de arrecadação tributária do governo federal com abertura setorial detalhada, foi necessário fazer algumas hi-póteses para se chegar a uma estimativa de recolhimento de impostos do setor de Saúde Suplementar. O nível de desagregação setorial forneci-do pela RFB é a Cnae (Classifi cação Nacional de Atividades Econômicas) 2.2 Subclasses. Neste nível de desagregação, o setor de Saúde Suplemen-tar está compreendido na divisão 65 – “Seguros, Resseguros, Previdência Complementar e Planos de Saúde”. Ou seja, trata-se do setor de seguros como um todo.

A partir da análise inicial do referido setor, foi possível obter a participação da atividade de Saúde Suplementar dentro do setor de seguros no que diz respeito à receita gerada por estes serviços. Este indicador serviu de proxy para estimativa da arrecadação tributária apresentada nesta seção. Em ou-tras palavras, aplicou-se a participação da Saúde Suplementar no total da receita do setor anualmente sobre a arrecadação da divisão 65 da Cnae. A tabela 4 resume os dados.

Tabela 4 – Arrecadação Tributária Federal no Setor de Saúde Suplementar, Brasil, 2008 - 2014

Indicador 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Participação da Saúde Suplementar no Setor de Seguros (% do Total) 40,07% 40,20% 39,60% 39,00% 37,32% 37,99% 39,08%

Arrecadação Estimada – Saúde Suplementar (R$ Bilhões) 5,02 5,20 6,10 7,31 7,63 9,02 10,41

Arrecadação Estimada – Saúde Suplementar (R$ Bilhões de 2014/IPCA) 7,02 6,93 7,74 8,70 8,61 9,59 10,41

Taxa de Crescimento da Arrecadação (%) – -1,33% 11,75% 12,38% -0,97% 11,35% 8,56%

Participação na Arrecadação do Setor de Serviços (% do Total) 1,77% 1,69% 1,63% 1,65% 1,58% 1,67% 1,80%

Participação na Arrecadação de Todos os Setores (% do Total) 1,09% 1,11% 1,07% 1,11% 1,10% 1,10% 1,22%

Elaboração própria. Fonte primária Diops/ANS, SES/Susep, RFB e IBGE.Nota: A participação da Saúde Suplementar no setor de seguros de 2008 foi estimada.

Em 2014, estima-se que a setor de Saúde Suplementar tenha recolhido aproximadamente R$ 10,4 bilhões aos cofres federais em impostos e contri-buições. Entre 2008 e 2014 esta arrecadação cresceu 48,3%, o que representa um crescimento médio anual de 6,8% - resultado um pouco abaixo do cres-cimento médio anual da receita do setor entre 2009 e 2014, que foi de 7,7%. Chama a atenção também a forte oscilação na variação de arrecadação de um ano para outro: enquanto em 2010, 2011 e 2013 a receita da União com o setor cresceu, em termos reais, acima de 10%, nos anos de 2009 e 2012 esse crescimento foi negativo. Tal volatilidade não é corroborada pelo compor-tamento da receita, que teve uma variação muito mais suave e linear.

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155

relativamentemenos,vis-à-visamédiadosdemaissetoresdaeconomia”(Ibid.,p.75).Ou,de

outro modo, “a arrecadação pode estar relativamente menor, devido a um aumento da

renúnciafiscalnosetordesaúdesuplementar”(DAINetal.,2015,p.75).

Defato,apesquisaestimaocustoderenúnciafiscalcomosplanosdesaúde,pormeio

daidentificaçãodosgastostributáriosfederaiscomsaúde.

Éimportanteressaltarqueogastotributárioearenúnciafiscaltêmumaimportância

grandenoorçamentopúblicoedevemserentendidoscomogastosefetivos,eseuefeitonas

contaspúblicaséexatamenteigualaodeumadespesadireta.

O gasto tributário é relacionado a algum estímulo que o governo deseja dar a

determinado grupo de agentes econômicos, normalmente grupos que têm poder de

influênciasobreasdecisõesdegoverno.

A pesquisa deDain et al. (2015)mostrou que quasemetade da renúncia fiscal do

governofederaldiretamenterelacionadacomsaúdeéoriundadasdeduçõespordespesas

médicasnoImpostodeRendaPessoaFísica,queétipicamentemaioremfamíliascommaior

poderaquisitivo.

(...)tomandoporbaseaDIRPF2014(ano-calendário2013),60%dovolumede dedução por despesa média foram realizados por indivíduos querecebiammais de dez saláriosmínimos. Porém, esse grupo de indivíduosrepresentouapenas21,7%dosdeclarantesdaqueleano.(Ibid.,p.75).

Em 2014, o governo federal “gastou”, pormeio do gasto tributário, R$ 22 bilhões

apenas com saúde, o que corresponderia a 24%amais de recursosparaoorçamentoda

saúde,casoessesrecursosfossemdirecionadosparaosgastoscomAçõeseServiçosPúblicos

deSaúde(ASPS)em2014.

Atabela13mostraaevoluçãodosgastostributáriosfederaiscomsaúdede2006a

2014. Épossívelobservarqueasdespesasmédicasdo IRPF sãoamaior rubricadentreas

modalidadesderenúncia,representando46,8%dototaldegastostributáriosemsaúde.As

despesasmédicasdo IRPF tambémapresentaramamaior taxadecrescimentoacumulado

entre2006e2014,maisde200%(crescimentoanualmédiode15,1%).

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156

Soma-seaissoqueasegundamodalidadequemaiscresceufoiadasdespesascom

assistênciamédica, odontológica e farmacêutica fornecida aos funcionários das empresas

(queentramnacategoriadoImpostodeRendaPessoaJurídica),comumcrescimentomédio

de6,3%aoano.Estas,aliás,representaram19%dototaldosgastostributáriosemsaúde,em

2014.

Valedizerque,de2006para2014,houveumaalteraçãodeposiçãodos itensque

compõemogastotributárioemsaúde.Em2006,osmedicamentoseramosquemaispesavam

nacomposiçãodogastotributárioemsaúde(36,41%),seguidodasdespesasmédicasdoIRPF

(23,58%)edaassistênciamédica,odontológicaefarmacêuticaaempregados(IRPJ)(18,25%).

Foiapartirde2007queopesodasdespesasmédicasdoIRPFaumentousubstancialmentee

passou a ser o mais representativo dentre os outros gastos. Contudo, desde 2006, os

medicamentosforamperdendogradualmentepesonogastotributárioemsaúdetotal,eas

despesascomassistênciamédica,odontológicaefarmacêuticaaosempregadosdoIRPJforam

crescendo,atéinverterem-se,em2013.

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157

Tabela13-Gastostributáriosemsaúdepormodalidadedogasto,Brasil,2006–2014[R$milhõesde2014(IPCA)]

Fonte:Dainetal.,2015,p.76.

76

Regime Fiscal dos Estabelecimentos e Empresas de Planos e Seguros Privados de Saúde – Relatório Final

76

Tabe

la 5

– G

asto

s Trib

utár

ios e

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aúde

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Mod

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asto

, Bra

sil, 2

006

- 201

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ilhõe

s de 2

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(IPCA

)]

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ãoM

odali

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2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

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cimen

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cimen

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04,39

9.614

,8210

.518,0

99.0

57,49

8.647

,409.1

84,22

9.887

,3110

.120,0

710

.469,7

020

7,5%

15,1%

Ass

ist. M

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– IR

PJ2.6

35,63

3.105

,933.0

50,50

3.035

,253.3

71,75

3.495

,933.7

77,29

4.304

,104.3

08,74

63,5%

6,3%

Prod

utos

Quí

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s e

Farm

acêu

ticos

805,2

41.1

21,25

1.101

,351.0

43,31

977,1

381

0,48

765,1

989

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508,7

8-3

6,8%

-5,6%

Entid

ades

Sem

Fin

s Luc

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A

ssist

ência

Soc

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32,47

2.155

,972.4

65,93

2.467

,792.6

76,67

2.687

,803.0

43,19

3.212

,443.2

15,90

37,9%

4,1%

Pron

on –

Pro

gram

a N

acio

nal d

e Ap

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o O

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ógica

0,00

0,00

0,00

0,00

0,00

0,00

3,87

72,27

72,59

Pron

as/P

CD –

Pro

gram

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à A

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010

,7910

,89-

-

Água

min

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0,00

0,00

0,00

0,00

0,00

0,00

14,80

61,53

64,10

--

Med

icam

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s5.2

56,97

3.128

,483.2

22,10

3.563

,513.6

09,48

3.446

,483.9

64,01

3.713

,763.7

17,77

-29,3

%-4

,2%

Tota

l14

.434,6

919

.126,4

520

.357,9

619

.167,3

519

.282,4

419

.624,9

121

.458,4

722

.393,5

122

.368,4

755

,0%5,6

%

Elab

oraç

ão p

rópr

ia. F

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prim

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: RFB

(201

1), R

FB (2

012)

, RFB

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3), R

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014)

, RFB

(201

5) e

IBG

E.

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158

Ográfico10 ilustraoquantoo governo federal gasta (oudeixadearrecadar) com

isençõestributáriasnosetorsaúdeeoquantogastacomasASPS.Podemosterumaideiado

quantoogastoefetivofederalcomasASPSpoderiasercomplementadocasonãohouvesse

essevolumedegastostributários.Obviamente,éumaanáliseempotencial,poisnadagarante

que,sehouverumadiminuiçãodessasisençõesfiscais,elasseriam,defato,direcionadaspara

asASPS.Aliás,sepensarmosnodesviodosrecursosdascontribuiçõessociaisquedeveriam

comporoOrçamentodaSeguridadeSocial,essaconjecturasequerdeveserlevantadapelos

atuaispolicymakersdaáreaeconômicadogovernofederal.Muitopelocontrário.

Gráfico10-GastotributárioemSaúdeversusGastoscomASPS,Brasil,2008–2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.77.

77

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

77

farmacêutica fornecida aos funcionários das empresas. Esta rubrica cresceu, em média, 6,3% ao ano e representa aproximadamente 19% do total dos gastos tributários em saúde.

Quando se compara o total “gasto” pelo governo federal com isenções tri-butárias no setor de saúde com as despesas em saúde pública (ASPS) efeti-vamente executadas podemos notar uma evolução parecida e visualizar o quanto o orçamento da saúde pública poderia se benefi ciar caso não hou-vesse um volume tão expressivo de perda de receita (Gráfi co 7).

Gráfi co 7 – Gasto Tributário em Saúde versus Gasto com ASPS, Brasil, 2008 - 2014

R$ B

ilhõe

s de

2014

(IPC

A)

100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

02008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Gasto Tributário em Saúde

ASPS

Linear (Gasto Tributário em Saúde)

Linear (ASPS)

Elaboração própria. Fonte primária: RFB (2011), RFB (2012), RFB (2013), RFB (2014), RFB (2015), IBGE e Siops/Datasus.

A despeito do crescimento das renúncias tributárias na área da saúde, estas, quando comparadas às renúncias das demais funções do setor público, per-deram espaço nos últimos anos, como pode ser visto no gráfi co 8.

De forma mais detalhada, e desagregando informações recentes da Segu-ridade Social, segundo a Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB, os valores das renúncias realizadas a partir de 2010, cresceram, entre 2011 e 2012, de quase R$ 10 bilhões para R$ 46 bilhões. Em 2014, esses valores já superavam R$ 100 bilhões. As novas renúncias representam quase 10% da arrecadação e se somam a um extenso rol de outras renúncias.

A Receita Federal ainda informa que, em 2014, o total das renúncias (vi-gentes anteriormente e as efetivadas a partir de 2010), totalizou R$ 253,9 bilhões, correspondendo a 22,1% da arrecadação e 4,92% do PIB.

A Tabela 6 mostra apenas a renúncia recente, adotando-se os valores apre-sentados pela RFB5.

5 A ANFIP calcula que algumas renúncias, como a desoneração da folha de pagamentos, envolvem cifras ainda maiores. E ressalta que, ainda assim, os valores não refl etem o real signifi cado do conjunto das desonerações. Assim, a Tabela 5 adota para o Simples Nacional uma renúncia de R$ 7,2 bilhões – porque é o impacto recentemente aprovado – mas, para o Regime Geral de Previdência Social - RGPS o efeito total acumulado do Sistema Simples é de 17,7 bilhões.

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159

Outroponto, também importantepara refletirmossobreessaquestão,é relativoà

equidadedogasto.Asisençõesfiscaisbeneficiamquemequantos?Eosgastoscomasações

eserviçospúblicosdesaúde?Faremosessaanálisemaisadiante.

Quandocomparamosaevoluçãodogasto tributárioemsaúdecomaevoluçãodas

renúnciasfiscaisemgeral,incluindoasdemaisáreasdosetorpúblico,nósnosdeparamoscom

umdecréscimonessaparticipaçãoapartirde2009,comoépossívelvernográfico11.

Entretanto,há,aí,umaimportanteressalvaasefazer.Houveumfortecrescimento

dasrenúnciasfiscaisaalgunssetoreseconômicos,especialmenteindustriais,comoobjetivo

decombateracriseeconômica.Essecrescimentocoincidiucomoperíododedecréscimoda

participaçãodosetordasaúdenototaldasrenúnciasfiscais.Jávimos,noitemanterior(3.1),

aevoluçãodasrenúnciasfiscaistotaisecomoelascresceramapartirde2009,incluindonovas

renúnciasfiscaisàsjáantesexistentes.Dainetal.(2015)consideramqueasupressãodesses

benefícios,que já foi iniciadaem2015, farácomqueogastotributáriocomsaúdevoltea

aparecercomaexpressividadequesempreteve.

Gráfico11-ParticipaçãodafunçãoSaúdenoTotaldoGastoTributárioFederal,Brasil,2006–2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.78.

78

Regime Fiscal dos Estabelecimentos e Empresas de Planos e Seguros Privados de Saúde – Relatório Final

78

Gráfi co 8 – Participação da Função Saúde no Total do Gasto Tributário Federal, Brasil, 2006 - 2014

16%

14%

12%

10%

8%

6%

4%

2%

0%2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Elaboração própria. Fonte primária: RFB (2011), RFB (2012), RFB (2013), RFB (2014) e RFB (2015).

Tabela 6 – Valores das novas Renúncias Fiscais adotadas a partir de 2010, com efeitos de 2012 a 2014 (R$ milhões)

Desonerações 2012 2013 2014Folha de Salários 3703 12.284 21.568Cide-Combustível 8.461 11.481 12.717IPI-Total 9.673 11.822 10.796Cesta Básica 995 6.764 9.331Simples e MEI 5740 6.315 7.235lOF-Crédito PF 2.278 3.595 3.982ICMS Base de Cálculo PIS/Cofi ns-lmportação 0 715 3.041Nafta e Álcool 21 1.933 3.552Planos de Saúde 0 307 1.919Tributação PLR 0 1.703 1.889Entidades Benefi centes - Cebas 0 0 1.692Vale-Cultura 0 441 1.676INOVAR-Auto 0 1 500 1 662Depreciação Acelerada BK 0 1.374 1.522Transporte Coletivo 0 746 1.424PRONON e PRONAS 0 1 223 1 349IRPF-Transportadores 0 1 210 1.341REPNBL-Redes 0 566 1.018Lucro Presumido 0 0 976Outros 15 593 14.605 14.756Soma itens acima 46.464 78.584 104.046Diferença ano anterior – 32.120 25.462Total de renúncias 182.410 225.630 253.902

Fonte: RFB, Análise da Arrecadação das Receitas Federais, quadros de apresentação das diversas edições. Organização: ANFIP e Fundação ANFIP.

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160

Comoficouclaraaimportânciadaáreadasaúdenarenúnciafiscaldogovernofederal,

analisaremoscommaisdetalhesoqueocorreemrelaçãoaoIRPF,cujarenúnciachegouaR$

10bilhõesem2014,umadasmodalidadesprincipaisdogastotributáriodasaúde.

AsdeduçõescomdespesasmédicasnoIRPF,comovimos,sãoilimitadasemvalore

amplasemrelaçãoaoescopodeprocedimentoseserviçospermitidos.Natabela14,podemos

verqueadeduçãocomplanosdesaúdenoIRPF,alémdeseroprincipalitemdedespesas

médicasnaDeclaraçãodo ImpostodeRendaPessoaFísica (DIRPF), tambémapresentouo

maiorcrescimentomédioanualentre2008e2014,de9,8%.Podemosobservar,também,que

asdeduçõescomplanosdesaúdeem2014representaram22%detodosospagamentose

doaçõesemsaúdenaDIRPF.

Tabela14-PagamentoseDoaçõesemSaúdenaDIRPFportipo,Brasil,2008–2014.

Fonte:Dainetal.,2015,p.80.

O gráfico 12, de outramaneira, analisa três indicadores: o total de deduções com

saúdenototaldepagamentosedoaçõesnaDIRPF;asdeduçõesexclusivamentecomplanos

de saúdeno total dededuções com saúde; e as deduções exclusivamente complanosde

saúdenototaldepagamentosedoações.Ográfico12mostraque,enquantohouvecerta

estabilidadedototaldededuçõescomsaúdefrenteaototaldepagamentosedoaçõesna

DIRPF,houve crescimentodasdeduçõesexclusivamente complanosde saúdeno totalde

deduçõescomsaúdeenototaldepagamentosedoaçõesnaDIRPF.

80

Regime Fiscal dos Estabelecimentos e Empresas de Planos e Seguros Privados de Saúde – Relatório Final

80

Já se sabe que as despesas médicas na DIRPF são a principal fonte de renún-cia tributária do governo central na área da saúde, tendo superado a casa dos R$ 10 bilhões em 2014. Importa agora identifi car a que se referem estes R$ 10 bilhões. Ou seja, deve-se identifi car que tipo de despesas médicas que compõem esta modalidade de renúncia em saúde. A tabela a seguir apresenta o total de deduções com despesas médicas na DIRPF entre 2008 e 2014 (Tabela 8).

Tabela 8 – Pagamentos e Doações em Saúde na DIRPF por Tipo, Brasil, 2008 - 2014

Tipo de Pagamento 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014Crescimento Acumulado

(%)

Crescimento Médio Anual

(%)

Planos de saúde no Brasil 24,53 26,19 27,79 31,05 36,14 41,62 43,08 75,6% 9,8%

Hospitais, clínicas e laboratórios no Brasil 9,00 8,75 7,87 8,91 10,04 10,79 10,61 17,9% 2,8%

Médicos, dentistas e etc no Brasil 6,69 6,59 7,03 7,67 8,42 8,79 9,20 37,5% 5,4%

Médicos, dentistas e etc no exterior 0,66 0,22 0,05 0,03 0,03 0,03 0,03 -95,4% -40,2%

Hospitais, clínicas e laboratórios no exterior 0,15 0,08 0,06 0,07 0,07 0,09 0,05 -64,6% -15,9%

Pronon/Pronas – – – – 0,01 0,01 0,01 – –

Total 41,03 41,83 42,80 47,72 54,70 61,34 62,75 52,9% 7,3%

Total de Pagamentos e Doações 125,75 129,03 139,62 149,80 171,23 186,99 194,70 54,8% 7,6%

Elaboração própria. Fonte primária: GN-DIRPF/RFB.Nota: Os valores de 2014 foram estimados.

Como é possível observar, os planos de saúde lideram as despesas médi-cas na DIRPF e apresentaram o maior crescimento médio anual entre 2008 e 2014 (9,8%). Com efeito, em 2014 (ano-calendário 2013) os gastos com planos de saúde aparecem em primeiro lugar no ranking de pagamentos e doações, superando os gastos com instrução (educação) e representando aproximadamente 22% de todos os pagamentos e doações daquele ano. O gráfico a seguir apresenta uma forma alternativa de visualizar a impor-tância dos planos de saúde na determinação da renúncia fiscal em saúde (Gráfico 9).

Enquanto o total de deduções com saúde tem um comportamento estável frente ao total de pagamentos e doações na DIRPF (barra verde do gráfi co), as deduções decorrentes exclusivamente dos planos de saúde apresentam crescimento frente ao total de deduções com saúde (barra azul do gráfi co) e frente ao total de pagamento de doações (barra vermelha do gráfi co). Ou seja, sua importância na renúncia fi scal via IRPF não é desprezível: além de representar mais de 1/5 (um quinto) das deduções, apresenta comporta-mento expansivo.

A observação das deduções da DIRPF – que não deve ser confundida com a renúncia – também se torna relevante nesta análise por permitir fazer uma estimativa de quanto seria o gasto tributário exclusivamente oriundo dos planos de saúde. Para isso, bastou aplicar a participação das deduções de

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161

Gráfico12-PagamentoseDoaçõesemSaúdenaDIRPFem%doTotal,Brasil,2008–2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.81.

Éimportanteressaltarque,atéagora,estávamosutilizando,paraaanálisedogasto

tributárioemsaúde,osdadosdaRFBequenãoerapossível,comeles,desagregaroitemde

despesas médicas do IRPF para conhecermos a participação dos planos de saúde nessas

despesas.Dessamaneira,oestudodeDainetal.(2015)utilizouarelaçãoentreasdeduções

exclusivamentecomplanosdesaúdenototaldasdeduçõesemsaúde–indicadorescriadosa

partirdosdadosdaDIRFP–comouma“taxa”paraestimarquantodogastotributáriocom

despesasmédicasdoIRPFseriamexclusivamentecomosplanosdesaúde.

Dessamaneira,paraoanode2014,porexemplo,quase69%dasdeduçõesemsaúde

na DIRPF foram oriundos dos planos de saúde. Se esse percentual for aplicado no gasto

tributário de R$10,5 bilhões, teremos uma estimativa de que R$ 7,19 bilhões de gasto

tributárioforamexclusivamentecomplanosdesaúde.Éoquefoifeitoparatodososanos,no

gráfico13.

81

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

81

planos de saúde com relação ao total de deduções em saúde, sobre o gasto tributário com despesas médicas do IRPF. Para o ano de 2014, por exemplo, quase 69% das deduções de saúde na DIRPF são oriundas dos planos de saúde – percentual este que aplicado aos R$ 10,5 bilhões de gasto tributário com despesas médicas gera uma estimativa de R$ 7,19 bilhões de gasto tri-butário exclusivamente com planos de saúde. O gráfi co a seguir apresenta esta estimativa para todos os anos da série, comparando-o com o total do gasto tributário em saúde (Gráfi co10).

Gráfi co 9 – Pagamentos e Doações em Saúde na DIRPF em % do Total, Brasil, 2008 - 2014

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Planos de Saúde/Total deDeduções em Saúde

Planos de Saúde/Total de Pagamentos e Doações

Total de Deduções em Saúde/Total de Pagamentos e Doações

Linear (Planos de Saúde/Totalde Deduções em Saúde)

Linear (Planos de Saúde/Totalde Pagamentos e Doações)

Linear (Total de Deduções em Saúde/Total de Pagamentos e Doações)

Elaboração própria. Fonte primária: GN-DIRPF/RFB.

Gráfi co 10 – Gasto Tributário em Saúde versus Gasto com ASPS, Brasil, 2008 - 2014

R$ B

ilhõe

s de

2014

(IPC

A)

25

20

15

10

5

02008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Gasto Tributário em Saúde

Gasto Tributário com Planosde Saúde (IRPF)

Linear (Gasto Tributário em Saúde)

Linear (Gasto Tributário comPlanos de Saúde (IRPF))

Elaboração própria. Fonte primária: RFB (2011), RFB (2012), RFB (2013), RFB (2014), RFB (2015), IBGE e GN-DIRPF/RFB.

Page 162: MARIA FERNANDA GODOY CARDOSO DE MELO RELAÇÕES … · onde tenho o privilégio de trabalhar, pelo apoio generoso, pela inestimável convivência intelectual e pelo exemplo de dignidade

162

Gráfico13-GastoTributárioemSaúde,versusGastoTributáriocomPlanosdeSaúde,Brasil,2008–2014.(R$bilhõesde2014[IPCA]).

Fonte:Dainetal.,2015,p.81.

Como tendência, observamosum crescimentoda estimativa de renúncia tributária

complanosdesaúde(viaIRPF)emumritmoinferioràrenúnciatotalemsaúde.E,alémdisso,

temosqueconsiderarqueháoutrositensdebenefíciosfiscaisaosetordesaúdesuplementar

quenãoestãocontempladosnessaestimativa,porexemplo:namodalidade“entidadessem

finslucrativos–AssistênciaSocial”,podemestarincluídosbenefíciosaalgunstiposdeplanos

desaúdefilantrópicosoucooperativas.Nãohá,noentanto,informaçõesparaestimarmoso

volumedebenefícios.

Em função dessas várias limitações dos dados, o estudo de Dain et al. (2015)

apresentouumanovapropostametodológicaparacalcularaparticipaçãodosplanosdesaúde

nogastotributárioemsaúde,pormeiodosbalançoscontábeisdasoperadorasdosetorsaúde

cadastradaseativasnaAgênciaNacionaldeSaúde(ANS)edeoutrabasededadosdaANSa

TABNET46.Osautoresapontamque

(...)comumcruzamentodedadosentreasduasbases,épossívelinferirotamanho relativo da tributação em cada segmento dos planos de saúde,facilitandoassimoestabelecimentodeumatipologiaentresegmentos–isto

46EssasinformaçõeseessesdadossãoverificadoseconsolidadospelaANS,queéainstituiçãoreguladoradosetordesaúdesuplementar.Alémdisso,comoasinformaçõesconstamnobalançodasempresas,estãosujeitasaauditoriasexternas,tendo,portanto,credibilidade.

81

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

81

planos de saúde com relação ao total de deduções em saúde, sobre o gasto tributário com despesas médicas do IRPF. Para o ano de 2014, por exemplo, quase 69% das deduções de saúde na DIRPF são oriundas dos planos de saúde – percentual este que aplicado aos R$ 10,5 bilhões de gasto tributário com despesas médicas gera uma estimativa de R$ 7,19 bilhões de gasto tri-butário exclusivamente com planos de saúde. O gráfi co a seguir apresenta esta estimativa para todos os anos da série, comparando-o com o total do gasto tributário em saúde (Gráfi co10).

Gráfi co 9 – Pagamentos e Doações em Saúde na DIRPF em % do Total, Brasil, 2008 - 2014

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Planos de Saúde/Total deDeduções em Saúde

Planos de Saúde/Total de Pagamentos e Doações

Total de Deduções em Saúde/Total de Pagamentos e Doações

Linear (Planos de Saúde/Totalde Deduções em Saúde)

Linear (Planos de Saúde/Totalde Pagamentos e Doações)

Linear (Total de Deduções em Saúde/Total de Pagamentos e Doações)

Elaboração própria. Fonte primária: GN-DIRPF/RFB.

Gráfi co 10 – Gasto Tributário em Saúde versus Gasto com ASPS, Brasil, 2008 - 2014

R$ B

ilhõe

s de

2014

(IPC

A)

25

20

15

10

5

02008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Gasto Tributário em Saúde

Gasto Tributário com Planosde Saúde (IRPF)

Linear (Gasto Tributário em Saúde)

Linear (Gasto Tributário comPlanos de Saúde (IRPF))

Elaboração própria. Fonte primária: RFB (2011), RFB (2012), RFB (2013), RFB (2014), RFB (2015), IBGE e GN-DIRPF/RFB.

Page 163: MARIA FERNANDA GODOY CARDOSO DE MELO RELAÇÕES … · onde tenho o privilégio de trabalhar, pelo apoio generoso, pela inestimável convivência intelectual e pelo exemplo de dignidade

163

é,torna-seclaroquaisossegmentosquearcamcommaiorônustributárioe–indiretamente–quaissãomaisbeneficiados.(DAINetal.,2015,p.83).

Osresultadosobtidoscomestanovametodologiaestãoapresentadosnatabela15,

paraoanode2014.Combaseneles,foiestimadootamanhodaarrecadaçãotributáriana

receitadosplanosdesaúdepara2014,queestáapresentadanográfico14.

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164

Tabela15-ReceitaseDespesascomTributoscomPlanosdeSaúde,porsegmento,Brasil,2014(R$milharescorrentes)

Fonte:Dainetal.,2015,p.84.

Tabe

la 9

– Re

ceita

s e D

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014

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Rece

itas c

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aúde

14.24

7.693

,8344

.550.1

01,11

2.025

.727,7

233

.997.3

55,64

27.99

9.738

,5162

5.082

,752.1

69.45

0,46

1.311

.657,1

386

6.574

,2012

7.793

.381,3

5

(-) Tr

ibut

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açõe

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ssist

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a

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7.155

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,88-5

87.66

6,53

-127

.680,0

6-1

6.273

,20-9

0.941

,45-1

10.95

8,96

-14.6

42,91

-1.74

8.795

,45

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ras R

eceit

as O

pera

ciona

is1.3

33.66

0,31

8.353

.899,4

03.6

33.44

4,12

931.1

94,74

34.32

1,16

94.70

4,71

36.26

5,89

31.11

5,91

129.1

19,90

14.57

7.726

,13

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ibut

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,78-1

31.89

9,86

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,19-1

6.991

,760,0

0-4

52,98

-1.29

2,18

-1.26

0,43

0,00

-153

.219,1

7

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itas F

inan

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74.21

3,82

1.349

.158,5

315

1.970

,1775

3.327

,381.7

32.37

5,28

15.65

7,86

56.38

8,09

86.57

6,65

36.48

4,29

6.856

.152,0

7

Rece

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7.590

,0016

8.691

,5886

.546,5

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4.425

,8574

4.570

,612.8

47,03

11.63

1,42

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68,77

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,061.6

45.27

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Rece

ita T

otal

18.36

5.367

,4153

.507.0

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5.896

.393,4

435

.431.6

45,32

30.38

3.325

,5172

1.566

,172.1

81.50

2,24

1.458

.099,0

71.0

25.53

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148.9

70.51

5,75

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pesa

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187.9

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385.9

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130.4

30,78

23.09

5,68

49.44

1,80

30.66

4,39

9.842

,911.5

64.17

6,89

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137.3

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,711.1

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39.77

1,63

133.8

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27,05

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4,12

5.116

,7710

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71,30

4.823

,5137

5.785

,34

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espe

sas

10.77

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22.79

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230

0,13

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028

,6885

.738,2

6

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84,02

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45,86

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977

,3513

0.613

,55

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39,24

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47,28

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,8592

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282.3

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1.249

,2989

.154,6

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05,70

3.985

,544.4

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,273,6

73.2

15,63

Impo

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7.424

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6,82

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1.107

,731.6

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,822.0

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9.666

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,041.7

98,10

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919

6.752

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25,57

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311

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,93

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tribu

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,367.0

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de S

aúde

Supl

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6.829

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1.725

,3273

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13.42

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710

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411

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31.71

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8,10

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.771,2

5

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TABN

ET.

Page 165: MARIA FERNANDA GODOY CARDOSO DE MELO RELAÇÕES … · onde tenho o privilégio de trabalhar, pelo apoio generoso, pela inestimável convivência intelectual e pelo exemplo de dignidade

165

Ográfico14mostraqueosplanosdesaúdepagaramparaosetorpúblico,namédia,

1,76%desuareceitatotale2,05%desuareceitacomoperaçõesdeassistênciaàsaúde.

Gráfico14-TributaçãodosPlanosdeSaúdeporSegmento,Brasil,2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.85.

Em relação à composição dos tributos sobre os planos de saúde, amaior parte é

derivada dos encargos sociais, especialmente previdência social e FGTS, com exceção das

modalidadesde “autogestão”e “seguradoraespecializadaem saúde”.Osencargos sociais

correspondem a 65% da carga tributária do setor de saúde suplementar. Os impostos

participamcom21%,eascontribuições,com7,5%,conformepodemosvernográfico15.

85

Renúncia de Arrecadação e Demais Despesas Tributárias no Campo da Saúde Suplementar

85

assistência à saúde, enquanto as “cooperativas odontológicas” têm a maior tributação com relação à receita total.

Gráfi co 11 – Tributação dos Planos de Saúde por Segmento, Brasil, 2014%

da

Rece

ita

10%9%8%7%6%5%4%3%2%1%0%

Tributos/Rec.Total

Tributos/Rec. Operações Assist. Saúde

Autogestão

Coop. Méd

ica

Medicin

a de G

rupo

Coop. Odontológic

a

Adm. de B

enefí

cios

Filantro

pia

Seg. Es

pecializ

ada e

m Saúde

Odontologia de G

rupo

Não id

entifi

cado

Média

Elaboração própria. Fonte primária: Demonstrações Contábeis/ANS e ANS TABNET.

A maior parte do peso dos tributos sobre os planos de saúde é decorrente dos encargos sociais, especialmente previdência social e FGTS. Apenas dois segmentos não se enquadram nesta característica: “autogestão” e “segura-dora especializada em saúde”, como mostra o gráfi co a seguir (Gráfi co 12).

Considerando todo o setor de Saúde Suplementar, os encargos sociais res-pondem por 65% de sua carga tributária. Os impostos têm participação de 21% e as contribuições 7,5%. No caso do segmento “autogestão”, os impos-tos (federais, primordialmente) têm um peso bem mais relevante (56,8% do total), sendo o restante praticamente todo destinado aos encargos sociais. Já no segmento “seguradora especializada em saúde”, apesar dos encargos sociais ainda responderem pela maior parte da tributação, as contribuições também possuem alto peso (42,5% do total), devido à elevada arrecadação de PIS/Pasep. Em compensação, a arrecadação de impostos é muito baixa.

Um ponto que chama muito a atenção sobre os dados anteriores é a dife-rença deles para a estimativa de arrecadação tributária feita na seção 3.2. Naquele caso, fazendo uma inferência a partir de dados RFB e do setor de seguros, observou-se que a tributação do governo federal representava aproximadamente 8% da receita dos planos de saúde. Aqui esse percentual caiu para 2% e trata de toda a arrecadação tributária e não apenas federal. Reforçando, isso só permite concluir que o dado estimado anteriormen-te não deve ser tomado de forma absoluta e conclusiva, mas apenas para

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166

Gráfico15-ComposiçãodaTributaçãodosPlanosdeSaúdeporsegmento,Brasil,2014

Fonte:Dainetal.,2015,p.86.

Podemosobservar,deacordocomosdadosapresentados,orelativobaixopesodos

tributos.OestudodeDainetal.(2015)indicaquepodehaverumarelaçãodiretadobaixo

pesorelativodostributoscomasrenúnciasfiscaispromovidaspelogovernofederal:“Emum

paíscomcargatributáriaelevadaparaseuníveldedesenvolvimentoenoqualatributação

absorveentre15%e20%dareceitadamaiorpartedossetores,uma‘carga’detributosde

aproximadamente2%dareceitachamamuitoaatenção”(Ibid.,p.86).

Oestudomostrouqueostrêssegmentoscommaiorvolumedebenefíciosfiscaissão

justamenteossegmentosquedominamomercadodesaúdesuplementar,ouseja,medicina

degrupo,cooperativamédicaeseguradoraespecializadaemsaúde.

Fica evidente o amplo espaço existente que precisa ser urgentemente objeto de

regulação na área da saúde, principalmente porque “o campo da regulação não impõe,

atualmente, condicionalidades à concessão de renúncia de arrecadação ao setor, em que

pesemimpactossignificativosdestesgastostributáriossobreaofertaedemandadosetor”

(Ibid.,p.8).

86

Regime Fiscal dos Estabelecimentos e Empresas de Planos e Seguros Privados de Saúde – Relatório Final

86

observar o comportamento do indicador ao longo do tempo. Já o dado estimado com esta nova metodologia é mais fi dedigno e é uma proxy mais fi el da realidade. Isso permite afi rmar que a tributação no setor de Saúde Suplementar é relativamente baixa.

Gráfi co 12 – Composição da Tributação dos Planos de Saúde por Segmento, Brasil, 2014

Autogestão

Coop. Méd

ica

Medicin

a de G

rupo

Coop. Odontológic

a

Adm. de B

enefí

cios

Filantro

pia

Seg. Es

pecializ

ada e

m Saúde

Odontologia de G

rupo

Não id

entifi

cado

Média

Outros Tributos

Taxa de Saúde Suplementar

Contribuições (Sociais e Econômicas)

Impostos

Encargos Sociais

Elaboração própria. Fonte primária: Demonstrações Contábeis/ANS e ANS TABNET.

4.2. As limitações na apuração da renúncia fi scal

O relativo baixo peso dos tributos observado a partir das informações con-tábeis das operadoras de planos de saúde nos induz a acreditar que há uma relação direta deste fato com as renúncias fi scais promovidas pelo setor pú-blico, especialmente pela União. Em um país com carga tributária elevada para seu nível de desenvolvimento e no qual a tributação absorve entre 15% e 20% da receita da maior parte dos setores, uma “carga” de tributos de aproximadamente 2% da receita chama muito a atenção.

Os balanços contábeis das empresas não apresentam nenhum indicador aproximado do quanto seria a renúncia de tributos em seu favor. Nem po-deria, uma vez que este tipo de informação é uma estimativa feita exclusi-vamente pela autoridade fi scal, que calcula, aproximadamente, de quanto seria sua arrecadação com e sem o benefício fi scal, para chegar sua diferença (renúncia).

Entretanto, os resultados obtidos até o momento permitem, ao menos, apontar os segmentos que aparentam ter o maior volume de benefícios fi s-cais, que são justamente aqueles três segmentos que dominam o mercado de Saúde Suplementar e têm um ônus tributário inferior à média do setor: “coo-perativa médica”, “medicina de grupo” e “seguradora especializada em saúde”. O grupo de planos “não identifi cado” (não foi possível atribuir a nenhum dos segmentos por falta de informação) também apresenta esta característica.

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167

Dimensão da desigualdade: efeitos econômicos do gasto público com saúde o caráter

regressivodogastotributáriocomsaúdeassociadoaosplanosdesaúde

Comovimos,umdosencaminhamentosaoproblemadosubfinanciamentodoSUSdos

diversosgovernosfederaisdesdeosanos1990,emvezdemelhoraroaportedeinvestimentos

e fortalecer a universalização, foi conceder significativos incentivos governamentais à

iniciativaprivada,especialmenteaosplanosdesaúde.

Alémdisso,comotambémsublinhamos,osetorprivadotemumarelaçãohistóricade

interdependênciacomoSUS,umadesuasmarcasoriginárias.

Esses fatores fortalecem distorções importantes no sistema brasileiro, como a

segmentação,jáqueoaumentodogastoprivadoconcorrecomosubfinanciamentodoSUSe

dificultatambémaregulaçãodeumsistemaduplicado,principalmentenaassistênciamédica

demédiacomplexidade(VIANNA,2005;DAINetal.,2015).

Na conjuntura de inversão da tendência de crescimento contínuo a partir de

2014/2015paraumperíododerecessãoquejásefazlongoecheiodeconsequências,entre

elasocrescentedesemprego47,vemosoefeitoqueesteúltimotemcausadoeaindacausará

nonúmerodebeneficiáriosdosplanosdesaúde:dedezembrode2015ajaneirode2017,1,6

milhãodebeneficiáriosquedeixaramdeterplanodesaúde,deacordocomaANS,conforme

aponta o gráfico 16. Tem havido um enorme contingente de trabalhadores que estão

perdendo seus planos de saúde concedidos por seus empregadores que antes, portanto,

integravamosistemaprivado.Ográfico16tambémmostraque,dentretodososbeneficiários

deplanosdesaúde,aquedamaiornonúmerodeplanossedeuentreosbeneficiáriosde

planocoletivoempresarial,tipodecontrataçãodiretamenteligadoaoemprego.Diantedesse

fato,ébemprovávelqueademandasejaredirecionadaaoSUS,que,porsuavez,encontra-

secadavezmaissubfinanciadoe,portanto,semrecursosparaexpandirseusserviços,quiçá

mantê-los48.

47De acordo comGimenez (2017, p. 22), “entredezembrode2014edezembrode2016, 3,2milhõesde trabalhadoresingressaramnaforçadetrabalho(3,3%decrescimento),eapopulaçãoocupadacaiu2,6milhões(-2,8%).Oresultadoobjetivodissofoioincrementode5,8milhõesdedesempregadosemdoisanos.Emdezembrode2014,ataxadedesocupaçãoerade6,5%epassoupara12%aofinalde2016.”48 Em reunião extraordinária em6 de julho de 2017, o ConselhoNacional de Saúde, pela primeira vez em sua história,reprovouascontasdoMinistériodaSaúdeem2016.Ascontasforamreprovadaspor29votosafavordareprovaçãoe8

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168

Gráfico16-BeneficiáriosdeplanosdeassistênciamédicaportipodecontrataçãonoBrasil-dez/2000ajan/2017-emmilhões

Fonte:elaboraçãoprópriaapartirdosdadosdaANS.

O fator pró-cíclico, peculiar do sistema de saúde brasileiro, faz-nos pensar no

importante papel que o Sistema Único de Saúde tem e exerce (ou poderia exercer) no

combateàdesigualdadebrasileira.Noentanto,devidoànaturezaepeculiaridadedasrelações

públicoeprivadasdenossosistemadesaúdeedafaltadeprioridadedosgovernosemrelação

ao SUS, o potencial distributivo do gasto público com saúde tem sido abafado, seja para

contráriosaela.OparecerelaboradopelaComissãodoOrçamentoeFinanciamento (COFIN)sobreoRelatórioAnualdeGestão(RAG),de2016,mostraqueoMinistériodaSaúdenãocumpriuaaplicaçãomínimaconstitucionalde15%dasreceitasem2015efoireincidentenosbaixosníveisdeexecuçãoorçamentáriaefinanceiraem19itensdedespesa.Odocumentooficial do parecer da COFIN pode ser acessado no link:<http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/documentos/noticias/rag2016ms_parecer_final_apos-esclarecimentos-spo-e-mesa-juridica_2017_0706_x.pdf>. A entrevista em que o economista Francisco Funcia explica os problemas quelevaram o CNS a reprovar as contas do Ministério da Saúde de 2016 pode ser acessada no link:<http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/o-ministerio-deixou-de-investir-r-692-milhoes-na-saude-dos-brasileiros-no-ano>.Vale registrarqueessadecisão inéditadoCNSmostraa importânciadeseupapelna fiscalizaçãodasdiretrizesconstitucionaisrelativasaofinanciamentodoSUS.Alémdisso,váriositensexpostosnoparecertocamempontosdiscutidosnestateserelativosàquestãodosubfinanciamentodasaúde.Contudo,comoadecisãodoCNSsedeunodia6dejulhode2017,oacessoaoparecerdaCOFINparaconhecimentodosdetalhesmaistécnicosdascontasdoMSnãosedeuemtempoparaquesuaanálisepudesseserincluídaantesdafinalizaçãodestatese.Foipossível,apenas,registrarofatonestanotaderodapé.AnotíciaoriginalsobreareuniãodoCNSpodeseracessadanolink:<http://www.susconecta.org.br/2017/07/cns-reprova-o-relatorio-anual-de-gestao-2016-do-ministerio-da-saude/>).

7,69,3

11,313,7

16,017,8

19,521,3

23,4 24,727,2

28,931,0

32,6 33,4 32,7 31,8 31,5

5,7 6,5 7,1 7,8 8,3 8,7 8,9 9,0 9,0 9,1 9,4 9,6 9,7 9,8 9,8 9,7 9,4 9,4

3,4 4,0 4,5 5,6 6,4 6,6 6,8 6,9 7,1 7,2 6,9 6,6 6,5 6,6 6,8 6,6 6,5 6,5

16,719,8

22,9

27,1

30,733,1

35,237,2

39,541,0

43,545,1

47,249,0 50,0 49,0 47,7 47,4

0

10

20

30

40

50

60

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez dez jan

Milhõe

s

Coletivoempresarial Individualoufamiliar coletivoporadesão Total

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169

recompensar o efeito regressivo do sistema tributário, seja pela inibição causada pelo

subfinanciamentoefaltadeinvestimentonaáreadasaúdepública.

OsestudosdeAbrahãoetal.(2011)eIpea(2011),porexemplo,procurammostraros

efeitoseconômicosdogastosocial.Emrelaçãoaosefeitoseconômicos,osautoresmostraram

asconsequênciasdocrescimentodogastosocialsobreoPIB.

Ográfico17mostraoresultadoparaocrescimentonoproduto(PIB)apósasimulação

deumincrementonovalordecadatipodegastosocialselecionadode1%doPIB.Ogasto

socialemeducaçãoapresentouomaiormultiplicador:tudoomaisconstante,aogastarR$

1,00emeducaçãopública,oPIBaumentaráemR$1,85peloprocessodemultiplicaçãoda

rendaqueessaatividadepropicia.Ogastoemsaúdetambémsemostroubastanteefetivo:

tudoomaisconstante,aogastarR$1,00emsaúdepública,oPIBaumentaráemR$1,70pelo

processodemultiplicaçãodarendaqueessaatividadepropicia.Dessamaneira,ficaevidente

aimportânciadessapolíticasocialparaocrescimentodoproduto.

Gráfico17–Multiplicadoresdecorrentesdeumaumentode1%doPIBsegundotipodegastosobreoPIB

Fonte:elaboraçãoprópriaapartirdeIpea,2011.

Saúdepública Educaçãopública

ProgramaBolsaFamília

RegimeGeralda

previdênciasocial

Investimentonosetordeconstrução

civil

Jurossobreadívidapública

Exportaçõesde

commoditiesagrícolaseextrativas

MultiplicadorPIB 1,7 1,85 1,4 1,2 1,5 0,7 1,4

0

0,5

1

1,5

2

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170

OutroestudodoIpea(2011a),comdesdobramentosfeitosporSilveira(2012)eSilveira

etal.(2013),mostrouopotencialdistributivoedereduçãodasdesigualdadesdogastopúblico

comsaúde,educação,tributaçãoedasoutraspolíticasdeseguridadesocial,paraosanosde

2003a2009,usandoosdadosdaPesquisadeOrçamentoFamiliar(POF)ePesquisaNacional

porAmostradeDomicílios(PNAD).

Um dos achados relevantes foi evidenciar o efeito do que a literatura chama de

benefíciosemespécie(inkind).Silveira(2012)medeosefeitosredistributivosnosdiferentes

estágiosdarenda,desdearendaoriginalatéarendafinal.

Figura1–EstágiosdeRedistribuiçãodeRenda

Fonte:Silveira,2012,p.3649.

AFigura1mostraosseguintesestágiosdaredistribuiçãoderenda:i)rendaoriginalé

arendaqueconsideratodososrendimentosrecebidospelasfamílias(semosbenefícios);ii)

renda inicial é a renda original acrescida dos benefícios e transferências monetárias

(aposentadorias, pensões, auxílios, bolsas, seguro); iii) renda disponível é a renda inicial

descontada do pagamento dos impostos diretos (imposto de renda, contribuições

previdenciárias, IPTU, IPVA e outros); iv) a renda pós tributação, por sua vez, é a renda

disponívelapósaretiradadosimpostosindiretos(ICMS,IPI,PIS,Cofins,Cide,eoutros);ev)

porfim,arendafinalqueéarendapóstributaçãoacrescidadovalormonetáriodosbenefícios

emespécie(saúdeeeducação).

49 Silveira(2012)usaametodologiadeJones(2008).

36

da renda – especialmente o índice de Gini – antes e depois da intervenção

governamental. A figura abaixo apresenta os diferentes estágios de renda,

considerando-se inicialmente a renda auferida no mercado ou privadamente –

transferências inter-domiciliares – denominando-a de renda original. Em verdade

estão contemplados nessa fase aqueles rendimentos auferidos pelos membros das

famílias antes da adição dos benefícios ou da dedução dos impostos. O segundo

estágio refere-se a renda inicial, resultado da adição à renda original dos benefícios

monetários concedidos pelo Estado, sejam de caráter previdenciário, sejam

assistenciais. Essa é a renda que contém todos os rendimentos investigados pela

pesquisa domiciliar, sendo, assim, a renda “publicada”. Em um terceiro estágio,

deduzem-se os impostos sobre a renda, as contribuições previdenciárias e os

impostos sobre patrimônio – imóveis e veículos, chegando-se a renda disponível.

Figura 1 – Estágios de Redistribuição da Renda

renda pós-tributação

renda original

rendainicial

rendadisponível

rendafinal

+previdência e

assitência

−tributos diretos

−tributos indiretos

+saúde e educação

públicas

Elaboração própria com base em JONES (2007)

Nas duas etapas seguintes, a renda pós-tributação e a renda final, resultam, a

primeira, da subtração dos impostos indiretos a segunda da adição à renda pós-

tributação da valoração e alocação da provisão pública em educação e saúde. Vale

sublinhar que a renda pós-tributação e a renda final são tão somente artifícios para a

simulação dos impactos dessas políticas. No caso dos tributos indiretos, por

exemplo, a isenção ou a desoneração deles não implicaria em aumentos na renda

similares ao volume dos benéficos fiscais, e sim alterações na renda real devido às

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171

Paracadaumdosestágios,Silveira(2012)analisaoíndicedeGiniem2003eem2009

emostraqueomaiorimpactosobreareduçãodadesigualdaderesultadaevoluçãopositiva

dosgastosemsaúdeeeducação.OíndicedeGiniretrataadinâmicadistributiva–semais

progressiva ou mais regressiva – de cada um desses estágios da renda da família. O

comportamento mostra uma redução da desigualdade até a renda disponível (há

progressividade na distribuição dos benefícios previdenciários e da tributação direta da

renda).Seguindopelosestágios,ocorreumareversãodadistribuiçãonoestágioiv,darenda

pós tributação,emdecorrênciada rendaapósos impostos indiretos,mostrandoocaráter

regressivodatributaçãoindireta.Noúltimoestágio,háreforçodareduçãodadesigualdadee

daprogressividadedistributivadogastocomsaúdeeeducação.Vejamosográfico18.

Gráfico18–ComportamentodoíndicedeGiniedasrendastotais(original,inicial,disponível,pós-tributaçãoefinal)–Brasil–2003e2009

Fonte:Silveiraetal.,2013,p.41.

Essesestudosmostramquearegressividadedosistematributáriobrasileirotemsido

compensadapelaprogressividadedogastosocial,especialmentedosgastoscomeducaçãoe

saúde públicas, e também os gastos previdenciários e assistenciais. Além do efeito

compensatóriodaprogressividadedogastosocial,houvemaioralocaçãodogastosocialnos

estratosderendamaisbaixos,oqueatestasuaprogressividade.

Working Paper 41

more than 5 per cent lower for initial income. This difference remains stable at this level (5 per cent) when considering direct and indirect taxes. The gap expands when comparing the final incomes in 2003 and 2009, incorporating education and public health. Specifically in 2009, the Gini Index of final income is 9.3 per cent lower than in 2003, which is almost double the fall in inequality achieved through social security and assistance policies.

The data make it clear that the progress made from 2003 to 2009 is due to public expenditures, not their funding. This is because, as seen before, after the 5.2 per cent drop in the Gini Index for initial monetary income, which includes the granting of social security and assistance benefits, there was no further significant decline in inequality in the stages of income related to tax incidence between 2003 and 2009. The Gini Index of disposable income and after-tax income in 2009 were, respectively, 5.7 per cent and 5.4 per cent lower than the respective indices in 2003. In fact, taxation preserves the same distributional effect, with a 2.5 per cent drop in the disposable income Gini (i.e. after direct taxation), which is more than offset by growth of over 3.5 per cent in the index that reflects the effect of indirect taxes. And, actually, what was more effective in reducing inequality was universal spending — on public health and education.

FIGURE 13

Behaviour of the Gini Index in the Total, Original, Initial, Disposable and Final Income, Brazil (2002–2003 and 2008–2009)

Source: IBGE-POF (2002–2003 and 2008–2009) microdata.

As a result of the greater progressivity of social security and assistance benefits and the stability of the incidence of direct and indirect taxes, there was a more significant drop in the Gini Index between original income and after-tax income. In 2003, the Gini Index fell by only 1.3 per cent as a result of social security, assistance and taxation; it fell by 4.4 per cent in 2009.

Tables 10 and 11 show information about the structure of the distribution of household income per capita, in each of the income stages in 2003 and 2009, respectively. As indicated, there is a significant change between 2003 and 2009 in the decrease in inequality when moving from original income to initial income — the Gini Index decreases by 5.2 per cent in 2009, compared to 2.3 per cent in 2003.

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172

Oautoraindasimulaadistribuiçãodogastopúblicofederalemsaúdenaestruturada

renda monetária familiar per capita, cujos resultados estão apresentados na tabela 16 a

seguir.

Tabela16–Distribuiçãodogastopúblicofederalemsaúde,segundorubricasdegastoepordécimosderenda–2008.

Fonte:Silveira,2012,p.57.

Osgastoscominternaçõeshospitalareseprocedimentosambulatoriaissãolevemente

progressivos. Há destaque para a progressividade dos gastos com saúde pública, isto é,

apresentamumacurvaemUinvertido,ondeosdecisdemaiorrenda(quesãoos8o,9oe10o)

recebemmenorgastopúblicofederaldoqueosdemenorrenda.Seolharmosporitensde

gasto (internações, procedimentos ambulatoriais, bens e serviços universais, servidores

públicos federaisemedicamentos), todosapresentamprogressividade,echamaatençãoa

neutralidadedaprogressividadenoscasosdosbenseserviçosuniversais, istoé,ogastoé

distribuído equanimemente. Chama atenção também que os gastos com medicamentos

acompanham a distribuição na curva do U invertido, mas a participação no gasto com

medicamentosdodécimodecil(maisricos)ébeminferioraodosoutrosdecisdomesmoitem

(medicamentos).

Política Fiscal e Dívida Pública ‒ Fernando Gaiger Silveira

Finanças Públicas ‒ XVII Prêmio Tesouro Nacional ‒ 2012 57

taBEla 6 distriBuição do Gasto púBlico fEdEral Em saúdE,

sEGundo ruBricas dE Gasto E por décimos dE rEnda (2008)

Décimos Total Internações Procedimentos ambulatoriais

Bens e serviços universais

Servidores públicos federais Medicamentos

1º 10,0 12,5 10,5 10,6 11,3 7,6

2º 11,0 13,0 11,8 9,9 11,7 8,2

3º 11,3 11,3 12,0 10,0 11,4 12,1

4º 10,7 11,2 11,1 10,1 11,4 8,5

5º 11,3 11,9 11,5 9,9 11,2 10,7

6º 12,7 14,3 12,7 10,0 11,5 15,7

7º 10,5 9,2 10,4 10,0 10,1 10,1

8º 9,6 7,5 9,4 9,9 9,1 11,0

9º 8,4 6,2 7,6 9,8 7,3 11,3

10º 4,7 3,1 3,1 9,8 4,9 4,9

Fonte: Microdados da Pnad (2008), Datasus e Siops (MS).

4 Impactos distributivos da tributação e do gasto social

4.1 Estágios de renda e mudanças no Índice de Gini

A avaliação dos impactos distributivos do sistema de proteção social, da política tributária e da oferta de serviços públicos de caráter universal – saúde e educação – de mais fácil apreensão é aquela que compara as medidas de concen-tração da renda – especialmente o Índice de Gini – antes e depois da intervenção governamental. Verdade que ela não indica de modo claro a que se deve a mudan-ça no Índice, se à progressividade da política ou se à alterações no ordenamento das famílias. Ou seja, não aponta qual dos dois efeitos predominou.

Os resultados aqui apresentados se referem às mudanças na renda total, ou seja, considerou-se tanto a parcela monetária com a não monetária da renda.22

22 No emprego da renda total apurada pela POF incorre-se, em alguma medida, em dupla contagem, pois parcela dos gastos públicos em saúde e educação é objeto de captação pela POF nos rendimentos (gastos) não monetários. Efetivamente, nos rendimentos não monetários apurados na POF estão contemplados o aluguel estimado para aquelas famílias que residem em imóveis próprios ou cedidos, a produção própria para autoconsumo, a retirada do negócio, as doações recebidas e outros gastos não monetários, abrangendo tão somente bens. Assim, é objeto de investigação na POF,

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173

Oestudomostrouqueogastopúblicofederalemsaúdeéprogressivo,pois,deacordo

comoSilveira(2012),

aprogressividadedosgastosemsaúderevela-senofatodequeos40%maispobres da população se apropriam de cerca da metade dos gastos cominternações hospitalares e de 45% das despesas com procedimentosambulatoriaisfrenteaumaparticipaçãodaordemde10%paraos20%maisricos.Nacomposiçãodototaldasdespesas,cabeàmetademaispobrepoucomaisde55%frenteaumaparticipaçãode1/5paraos30%maisricos.(Ibid.,p.56).

Seogastopúblicofederalcomsaúdepúblicasemostrouprogressivo,édesedestacar,

poroutrolado,ocaráteraltamenteregressivodarenúnciafiscaldasaúde,comomostrao

estudodeDainetal.(2015).Nocasodarenúnciafiscaldasaúde,osindivíduosquepodem

realizaradeduçãodosgastoscomsaúdenoimpostoderendasãoasfamíliascommaiorrenda

equetêmmaiorgastocomplanosdesaúdeegastosout-of-pocket.

O estudo de Dain et al. (2015) parte do mesmo princípio de Silveira (2012),

apresentadonaanáliseanterior(gráfico18etabela16),eusaosdadosdeseupróprioestudo

sobrearenúnciafiscalemsaúde,apresentadosnestecapítulo3,anteriormente.Eleavaliaa

relaçãoentreogastopúblicoeogastoprivadoemsaúde,segundoosestratosderenda,com

oobjetivodeavaliaremquemedidaogastopúblicoemsaúdeatenuaanecessidadedegastos

privadosemsaúde.

A tabela 17mostraos valores per capitamensais estimadosdo gastopúblico com

saúde,dogastoprivadocomsaúdeedaestimativadarenúnciafiscal,pordécimosderenda

domiciliar.Osautoresconcluemque

Verifica-se,poroutrolado,apoucaimportânciadogastoprivadofrenteaogasto público nos três primeiros décimos, com as despesas privadasrepresentandoentre14%e23%daestimativadogastopúblico.Nosestratosintermediários–do4ºao7ºdécimos–,aparticipaçãocrescede29%para66%, apontando para a insuficiência do gasto público para reduzir asdespesastributáveis.Nos30%maisricos,opesodogastoprivadosuperaopúblico,que,nos10%maisricos,ogastopúblicotemparticipaçãomarginal.Oimportanteasublinharéqueosdécimosintermediários(4ºao7º),aindaquetenhamgastosprivadosexpressivosemseuorçamento,oquerefleteainsuficiênciadogastopúblico,nãocontamcombenefíciofiscalassociadoaessesgastos,que,comodito,sãofundamentaisnoconsumodeassistênciaasaúdedessaspopulações.(DAINetal.,2015,p.109).

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Tabela17-Valorespercapitamensaisdaestimativadogastopúblico,dogastoprivadoedaestimativadarenúnciafiscal–R$jan./2009.

Fonte:Dainetal.,2015,p.109.

Assim,ficavisívelqueogastotributárioqueestáassociadoaosplanosdesaúdenão

contribuiparaaequidadenofinanciamentodasaúde.

***

Síntesedocapítulo3

Ocapítulo3tratoudasrelaçõespúblico-privadasnofinanciamentodoSUS,mostrando

as inter-relaçõescomosetordesaúdesuplementare,por fim,chamandoatençãoparao

efeito positivo que o gasto público com saúde tem para a progressividade e combate à

desigualdadesocial.

Vimosqueogastopúblicocomsaúde,noBrasil,émenordoqueogastoprivadocom

saúde,eoBrasiltemumsistemadesaúdepúblicoeuniversal.Em2014,aporcentagemdo

gastopúblicocomsaúdenogastototalcomsaúdefoide46%,enquantoqueaprivadafoide

54%,segundodadosdaGHO/WHO.Amédiadogastoprivadocomsaúdenototaldogasto

comsaúdenospaísesdaOCDEfoide27%em2011.NaArgentina,UruguaieColômbia,países

109

Levantamento de Dados para Subsidiar Estudos de Equidade Relativos às Despesas Tributárias e Gastos com Saúde...

109

insuficiência do gasto público para reduzir as despesas tributáveis. Nos 30% mais ricos o peso do gasto privado supera o público, sendo que nos 10% mais ricos o gasto público tem participação marginal. O importante a sublinhar é que os décimos intermediários (4o ao 7o) ainda que tenham gastos privados expressivos em seu orçamento, o que reflete a insuficiên-cia do gasto público, não contam com benefício fiscal associado a esses gastos, que, como dito, são fundamentais no consumo de assistência a saúde dessas populações.

Tabela 13 – Valores per capita mensais da estimativa do gasto público, do gasto privado e da estimativa da renúncia fi scal – R$ jan./09

DécimosEstimativa do Gasto Público Gasto Privado Renúncia Fiscal

(15%)

2003 2009 2003 2009 2009

1º 27,96 47,88 4,41 6,47

2º 31,27 52,67 5,52 8,54

3º 30,90 54,10 7,22 12,27

4º 34,63 51,23 9,96 15,05

5º 33,08 54,12 13,58 19,70 0,01

6º 36,28 60,80 17,19 29,27 0,05

7º 38,57 50,27 23,13 33,13 0,11

8º 30,93 45,97 30,63 48,02 0,34

9º 25,27 40,24 47,21 72,62 1,25

10º 15,92 22,49 103,62 173,56 6,81

Média 30,48 47,88 26,26 41,87 0,86

Fonte: POFs 2002/03 e 2008/09; PNADS 2003 e 2008; Datasus e Siops.

As estimativas do impacto distributivo da estimativa da renúncia fi scal à pessoa física e do gasto público são apresentadas na tabela 14, com a apre-sentação dos índices de Gini da Despesa Global incorporando tais gastos públicos: o indireto e o direto. Para a estimativa da renúncia fi scal aplicou-se uma alíquota geral aos gastos privados tendo por resultado o valor do gasto tributário. Aplicou-se a alíquota de 15%, próxima da alíquota efetiva dos benefi ciados por essa dedução, valor relativamente elevado frente à alíquo-ta efetiva media do IRPF, dado que a parcela dos declarantes que se bene-fi ciam desse gasto encontram-se em estratos superiores de renda; não se utilizam do desconto simplifi cado e não se encontram nas faixas menores de alíquotas, onde se sobressaem outras deduções, além da contribuição previdenciária.

Fica patente o expressivo efeito distributivo do gasto direto – SUS – com o Gini do Gasto caindo entre 7% ou 4 pontos percentuais, considerando Gini em percentual. Já o gasto indireto tem, groso modo, nenhum efeito, ou melhor, tênue incremento da desigualdade. Vale notar que no caso da renúncia as estimativas são bastante conservadoras, dado que o montante da renúncia é de R$ 2 bilhões, em 2009, frente ao dado administrativo de R$ 9 bilhões, em 2013. Ou seja, esse efeito concentrador marginal é o menor

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quenãotêmsistemauniversal,aparticipaçãodogastoprivadonototaldogastocomsaúde

foide33%,35%e25%,respectivamente,segundodadosdaGHO/WHO.E,nosEUA,únicopaís

desenvolvidoquenão temsistemadesaúdeuniversal,aparticipaçãodogastoprivadono

totaldogastocomsaúdefoide51%,em2014,segundoaOCDE.

VimostambémqueaparticipaçãodogastopúblicocomsaúdenoPIB,noBrasil,foide

3,9%,em2015,representandoR$232bilhões.Dessetotal,cercade43%sãodaUnião,31%

dosestadose26%dosmunicípios.AparticipaçãodogastototalcomsaúdenoPIBéde8,9%.

Dessamaneira,aparticipaçãodogastoprivadonoPIBéde5%(R$297,4bilhões).

EmrelaçãoaosubfinanciamentocrônicodoSUS,vimosqueteveiníciocomafaltade

regulamentaçãodoscritériosdepartilhadoorçamentodaseguridadesocialeque,apartirde

1994,comacriaçãodofundosocialdeemergência,houveoiníciododesvioderecursosda

seguridade social para outros fins, desvio quepersiste até hoje, comaDesvinculaçãodas

ReceitasdeUnião (DRU),que foideR$63,2bilhõesem2014.Comoaprofundamentodo

ajustefiscalapartirde2015,foipropostaaPEC680,paraprorrogaraDRUaté2023e,ainda,

aumentarovalordadesvinculaçãodosatuais20para30%doorçamentodaseguridadesocial.

APEC680foiaprovadaemsetembrode2016(EC93).Seessaregraestivessevalendoem

2014,ovalordaDRUteriasidodeR$100bilhões,quaseoequivalenteaoorçamentodoSUS

em2014,quefoideR$94bilhões.

Naquestãodosubfinanciamento,tambémfoivistaaevoluçãodasfontesecritérios

devinculaçãodosgastosenvolvendoaCPMF,aEC29,aEC86eaEC95.ACPMFfoicriadaem

1997,e,até1999,suareceitafoiexclusivaparaasaúde.De1999até2007,suareceitafoi

divididaentreasaúde,aprevidênciae,apartirde2001,tambémcomofundodecombateà

pobreza.ACPMFnãogarantiurecursos fixosparaasaúdepois,alémdeseremdesviados,

foramtambémsubstituídosporoutrasfontes.

AEC29,quefoiaprovadanofinalde2000,massomenteregulamentadaem2012,

vinculou o gasto da União ao crescimento do PIB, o que assegurou um teto mínimo de

aplicaçãodareceitavinculadaparaosestados(12%)emunicípios(15%).ComaEC29,houve

certaestabilidadedogasto,maslongedesignificarsuficiênciasderecursos.

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Em2015,foiaprovadaaEC86quesubstituiuaEC29.AEC86alterouabasedecálculo,

quepassouaservinculadaàreceitacorrentelíquidaenãomaisàvariaçãodoPIB.Abasede

cálculopassariaaser15%dareceitacorrentelíquidaapartirde2020.Estimativasdecálculo

dasreceitasparaasaúde,segundoocritériodaEC29,mostramque,entre2000e2013,a

saúdedeixoudereceberR$8.3bilhões.PelocritériodaEC86,asaúdeteriarecebido,entre

2000e2013,R$130bilhões.Há,nisso,umatristeironiaporque,comoaaprovaçãodaEC86

e amudança de critério para a vinculação da receita corrente líquida ao invés da do PIB

aconteceramemummomentodecriseeconômica,oefeitodaelasticidadedaarrecadação

nãofoifavorável.

Nofinalde2016,foiaprovadaaEC95,queestabeleceuocongelamentodosgastos.

Nocasodogastocomsaúde,determinouqueelesejade15%dareceitacorrentelíquidajá

em2017e,apartirdeentão,ogastofederalserácongeladopor20anos,nopatamarde2017,

sendoajustadopelavariaçãodainflação.Estudosprospectivos(VIEIRAeBENEVIDES,2016)

preveemumcenáriobastantepessimistaparaofuturodosgastosfederaiscomsaúde,oque

agravaráaindamaisosubfinanciamentocrônicodasaúdebrasileira.

Emquepeseosubfinanciamentodasaúde,vimosquehouveaorientaçãodapolítica

econômicaparaumapolíticadedesoneração fiscal apartirde2012,principalmente,para

financiar direta ou indiretamente a economia, emprego, exportações e investimentos. Os

dadosmostraramqueasnovasrenúnciasfiscaispassaramdeR$10bilhões,em2011,paraR$

46bilhões,em2012,echegaramamaisdeR$100bilhõesem2014.Seconsiderarmosototal

detodasasrenúnciasfiscais(enãosóasnovas),ovalortotalfoideR$182,4bilhões,em2012,

eR$253,9bilhõesem2014,oquecorrespondea4,92%doPIB.Eapolíticadedesoneração

nãofoiacompanhadaemmuitoscasosdecontrapartidas,nemteveoefeitoesperadosobre

oempregoeadinamizaçãodaeconomia.

Noqueconcerneàáreadasaúde,apolíticadedesoneraçãoafeta indiretamenteo

gastocomasaçõeseserviçospúblicoscomsaúde(ASPS),poismostraoaumentodoespaço

fiscaldaUniãoeperdadecapacidadedogovernoemcumprirseuscompromissoscomoSUS

(DAIN,2016).

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Há,contudo,outrotipodedesoneração,queéadesoneraçãotributárianasaúde,que

favoreceosetorprivadodesaúdepormeiodarenúnciafiscalecontribuiparaobaixonível

degastopúblicoemsaúdee,também,paraadesigualdadederendaesocial,comomostrou

adiscussãofeitanoitem3.2.

Vimosqueháumsignificativoestímulofiscalquebeneficiadiretaouindiretamenteo

segmentoprivadodeplanosesegurosdesaúdeequehádificuldadeemmedirovolumedesse

gasto indiretoemfunçãodeosdadosseremdedifícilacessooumesmonãoexistirem.Há

estudosrecentesparatentarmediressesgastos(OCKÉ,2013,DAINetal.,2015),emborao

problemajásejaapontadohábastantetempo.

Vimostambémqueosetordesaúdesuplementar,ousubsistemadesaúdeprivado,é

formadoporempresasoperadorasdeplanosdesaúdeprivadosequeessesetorfazpartedo

setordeseguros,comossegurospessoaisecapitalizaçãoeprevidência.Osetordeseguros

tevefaturamentodeR$326bilhõesem2014,crescimentode4,82%emrelaçãoa2013eum

crescimentoacumuladode39%entre2009e2014(DAINetal.,2015).

Ofaturamentodosetordesaúdesuplementarrepresentou39%dareceitacomseguro

noBrasil;areceita,em2014,foideR$127bilhões;eocrescimento,de7,83%emrelaçãoa

2013.Dentreasmodalidadesdasaúdesuplementar,destacam-se,emtermosdeparticipação

dareceitadosetorcomoumtodo,amedicinadegrupoeascooperativasmédicas.Em2014,

arecitadamedicinadegrupofoideR$44bilhõesedascooperativasmédicas,deR$35,7

bilhões.Onúmerodebeneficiários em2015erade cercade72,2milhões, quase35%da

populaçãobrasileira.Eosetordesaúdesuplementararrecadouaoscofrespúblicosfederais

R$10bilhõesemimpostosecontribuiçõesem2014(DAINetal.,2015).

Quase a metade da renúncia fiscal do governo federal relacionada com saúde é

oriunda das deduções por despesas médicas com imposto de renda (IRPF). Em 2014, o

governo federal “gastou”, via gasto tributário, R$ 22 bilhões apenas com saúde, o que

corresponderiaa24%de recursosamaisparaoorçamentoda saúde casoesses recursos

fossemdirecionadosparagastoscomASPS,em2014.

AsdespesasmédicasdoIRPFsãoamaiorrubricadentreasmodalidadesderenúncia,

representando46,8%dototaldegastostributáriosemsaúde,conformesepodevernatabela

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13. As despesas com assistência médica, odontológica e farmacêutica fornecidas aos

funcionáriosdasempresas(IRPJ)representaram19%dototaldosgastostributáriosemsaúde,

em2014.AestimativacalculadaporDainetal.(2015)équeogastotributáriocomsaúdefoi

deR$10,5bilhões,em2014,equeR$7,19bilhõesdessetotalsereferemexclusivamentea

planosdesaúde.

Fica evidente, portanto, o amplo espaço existente que precisa ser urgentemente

objetoderegulaçãonaáreadasaúde.

Finalmente,ocapítulo3tratoudeapontaralgunsefeitosdogastopúblicocomsaúde

sobreadesigualdade.Háumfatorpró-cíclico,peculiardosistemadesaúdebrasileiro,quenos

fazpensarno importantepapelqueoSistemaÚnicodeSaúdetemeexerce–oupoderia

exercer–nocombateàdesigualdadebrasileira.Noentanto,devidoànaturezaepeculiaridade

das relações público e privadas de nosso sistema de saúde e da falta de prioridade dos

governosemrelaçãoaoSUS,opotencialdistributivodogastopúblicocomsaúdetemsido

abafado,sejapararecompensaroefeitoregressivodosistematributário,sejapelainibição

causadapelosubfinanciamentoepelafaltadeinvestimentonaáreadasaúdepública.

Ogastoemsaúdemostrou-sebastanteefetivo(IPEA,2011;gráfico17):tudoomais

constante,aogastarR$1,00emsaúdepública,oPIBaumentariaemR$1,70peloprocesso

de multiplicação de renda. Outro estudo (IPEA, 2011a) mostrou que, nos estágios de

redistribuição de renda proposto por Silveira (2012), há um reforço da redução da

desigualdade do gasto com saúde (e educação) no estágio de renda final, no qual são

acrescidosàrendapóstributaçãoosvaloresmonetáriosdosbenefíciosemespécie(saúdee

educação). A regressividade do sistema tributário brasileiro é compensada pela

progressividadedogastosocial,especialmente,osgastoscomsaúdeeeducação,alémdos

previdenciárioseassistenciais.

Entretanto, se o gasto público federal com saúde semostrou progressivo, é de se

destacar,poroutrolado,ocaráteraltamenteregressivodarenúnciafiscaldasaúde,como

mostraoestudodeDainetal.(2015).Nessecaso,osindivíduosquepodemrealizaradedução

dosgastoscomsaúdenoimpostoderendasãoasfamíliascommaiorrendaequetêmmaior

gastocomplanosdesaúdeegastosout-of-pocket.

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Conclusão

Estatesebuscouentenderanaturezadasrelaçõespúblico-privadasdofinanciamento

do sistema de saúde brasileiro a partir de uma moldura mais ampla do movimento de

transformaçãosofridopelossistemasuniversaisdesaúdedospaísesdaEuropaocidental–os

quederamorigemaowelfarestate–para,dessamaneira,tentarentenderanaturezadas

relaçõespúblico-privadasquetantooriginaramoSUScomoofizeramtrilharumcaminhoque,

embora, traçado pelasmesmas forças que influenciaram os sistemas universais de saúde

dessespaísesdaEuropaocidental,foiporelasafastadodocombateàdesigualdadepormeio

dos efeitos distributivos e progressivos presentes em sua configuração.Nesse percurso, a

naturezadarelaçãopúblico-privadadofinanciamentodosistemadesaúdebrasileirotemsido

fortementeinfluenciadapelaforçaquefezavançaramercantilizaçãoemváriasdimensões.

A saúde torna-se espaço de acumulação e valorização de capital. A lógica de

valorização do capital avança no espaço mercantil do complexo industrial da saúde que

influenciaequetemrelaçõesestreitas,entreoutrasáreas,comossistemasdesaúde.Essa

dimensão,emboraimportanteefundamental,nãofoiobjetodestatese.Contudo–eoque

nosinteressou–,équealógicadevalorizaçãodocapitalavançatambémemumoutroespaço,

configuradoapartirdopós-guerra,emumespaçodesmercantilizado,quefoiconcebidocomo

sistemanacionaldesaúde,criadoapartirdovalordasolidariedade,dacidadaniadosdireitos

sociais e da garantia de acesso universal para todos os cidadãos que pudessem ou não

contribuirparasustentarseufinanciamento.

Portanto, com a invasão dessa lógica de valorização do capital nesse espaço não

mercantil, frutodeumprocessodedesmercantilização,houveumacolonizaçãodopúblico

pelo privado, alterando a natureza das suas relações cujos objetivos serão, portanto,

alterados.Seantesoobjetivoeraaproteçãosocialcomovalorsolidário,agoranãoémais

esteovalorqueomove.Comoreflexo,comovimos,agestãoeosrecursosdofundopúblico

vãosendocapturadospelosinteressesdomercadodesaúdeprivadoefinanceiro.

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A invasão dessa lógica mercantil nos arranjos dos sistemas de saúde nacionais é

emblemáticadaevoluçãodocapitalismopós-fordista.Umadasdimensõesconcretasdissoé

a mercantilização e seus efeitos sobre a natureza das relações público e privada no

financiamentodossistemasdesaúde.Nessesentido,retomamosnossahipótesedequeos

sistemasdesaúdesãoalvosdacrescentepresençadosetorprivadoporapresentaremmaior

diversidade nas formas de concepção, valores, institucionalidade e financiamento. E, na

análisedasrelaçõespúblico-privadas,noBrasil,mostramosqueosistemaprivadodesaúde

estevepresentedesdeaorigemdoSUS,queessapresençaécadavezmaisforteecrescente

equeelaassumeumanaturezanocasobrasileiroqueprejudicaaplenauniversalidadedo

sistemadesaúdebrasileiro.

Levando em conta esse movimento, algumas reflexões devem ser consideradas a

partirdosdesdobramentosdostemasdiscutidosporestatese.

Umdessesdesdobramentosserefereàmanutençãodogastopúblico,discutidano

capítulo1,edapreservaçãoeaumentodauniversalidadedoacessoaosistemadesaúdenos

paísesdaEuropaocidental,nocontextodeavançodamercantilização.

Eradeseesperarquehouvesseumadiminuiçãodogastocomsaúde,porexemplo,

diantedafortepressãodecortedegastosqueocorreuapartirdadécadade1980.Contudo,

sobaóticadalógicadevalorizaçãodocapital,ogastocomsaúdenãodeveriadiminuir,pois

eleprecisadesseincentivoparasuavalorizaçãoeexpansão.

Nessesentido,háumarelaçãoentreopúblicoeoprivadocujanaturezaassumeuma

direçãocontráriaàdovalordasolidariedadeedobemcoletivo.Elaéinvertida.Assim,por

exemplo, o seguro privado de saúde precisa que o sistema público garanta o acesso aos

serviçosdesaúdeàquelaclientelaqueseencontra,porexemplo,insolventeouquenãopode

arcar com as despesas dos seguros de saúde privados, seja o seguro de saúde de tipo

suplementar,complementarouprincipal.

Nessesentido,apreservaçãoeoaumentodoacessouniversalobservadoporGiaimo,

Kerstenestzky,Jansen-Ferreiraeoutros,porexemplo,mesmoemumcontextodeavançoda

mercantilização,temumaexplicaçãocomplexaecontraditória.Porumlado,Jansen-Ferreira

apontaaquestãodainérciainstitucional.Emumamesmadireção,éoqueprocuramosmarcar

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emrelaçãoàdesmercantilização,queéumaforçaderesistênciadosespaçosnãomercantis

dadapeloarranjosolidárioconstituídopeloswelfarestates.Noentanto,poroutro lado,a

preservação e aumento do acesso aos sistemas de saúde dos países da Europa ocidental

tambémtêmumadimensãodeexplicaçãodadaporessalógicadocapitalavançandonesse

camponãomercantilecolonizandoesseespaço.Porumaviaescusa,essalógicatambémtem

interessedepreservareaumentaroacessouniversalaosserviçosdesaúde,poisseuobjetivo

éabocanharoslucrospormeiodaconquistadosfundospúblicosquesustentemepreservem

oseucampoprivadodeatuação,alimentando-o.

Essaexplicaçãoparecesermaisforte,donossopontodevista,doqueaoutra,embora

hajaumconvívioentreessesdoismovimentos,queacaba“nublando”ohorizontedeanálise.

Nessemesmosentido,podemosentender,também,omovimentodiscutidonatese

queapontaoesgarçamentodasfronteirasentreopúblicoeoprivado,mostradonadiscussão

sobre as tipologias e formas de financiamento dos modelos de proteção social,

especificamente,nocasodossistemasdesaúde.Quandoolhamosparaospaíses,vemosque

os arranjos de financiamento se tornam menos definidos em relação às características

predominantesoriginalmenteemcasapaís.Ahibridizaçãodasformasdefinanciamentoedas

fronteiras de atuação dos sistemas de saúde público e privado nos tipos de mercados e

serviçosquesãopermitidosaossegurosprivadosdesaúdeatuaremeemcomosedáessa

interaçãoéumexemplodisso.Vimosqueasfronteirasvãosemodificando,confundindo-see

seembaçando.

Aidentificaçãodessasformasearranjosécadavezmaiscomplexa.Noentanto,como

interpretarisso?Ora,esserecorteexplicativosoboqualolhamosaquestão,istoé,anatureza

darelaçãoentreopúblicoeocapitalprivado,tambémnospermiteinterpretaressemix,na

mesma direção: é fruto do avanço da lógica do capital dentro dos sistemas de saúde,

particularmentenoseufinanciamento.

Outro desdobramento discutido foi a forte ampliação dos mecanismos de co-

pagamentoparaalgunstiposdeserviços(quevariamemcadapaís)querecaem,muitasvezes,

sobreospacientes.Essapartilhadecustoscrescentesqueoneraospacientesalivia,poroutro

lado,apressãosobreolucrodossegurosprivadosdesaúdee,dependendodoarranjoeda

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situação,atenua,também,apressãosobreogastopúblico.Osistemadesaúdeoriginalmente

concebidoeconstruídoparaproteçãodoscidadãos(pacientes)acabousevirandocontraeles,

comoavançodessaformademercantilização.

Contudo,esseavançodalógicadocapitalpareceencontrarumacertaresistêncianos

paíseseuropeuscentrais,cujowelfarestateépioneiro.Eissonãoàtoa.Porqueláháuma

certaresistência?Arespostanãofoiobjetodestatese,maséumaquestãointeressante.

Oponto,noentanto,éseaessaresistêncianãoseriaelaprópriapartedointeresseda

lógica do capital como considerado anteriormente na explicação para a preservação e

aumentodoacessouniversaledamanutençãodogastopúblico.

Dequalquermodo,menosarazão,maisofatoemsi–vemosresistência–interessa-

nos por outromotivo: para interpretarmos a peculiaridade, infelizmente trágica, do caso

brasileiro.Assim,aanálisedosistemadesaúdebrasileiro,desuasrelaçõespúblicoeprivadas

no financiamento, particularmente, é emblemática da não resistência. Ou, em outras

palavras,dafragilidadecomquevemosanãorealizaçãodoprojetoSUSemsuaplenitudee,

atémaisdoqueisso,dafacilidadecomqueseregride,comoéocasodarecenteaprovação

daEC95,quecongelaogastopor20anos.

NoBrasil,aexperiênciadeconstruçãodoSUSsemostraumcasoexcepcionale,de

algumaforma,“milagroso”,comovimos,pois,aconstitucionalizaçãodoSUS,segundoseus

preceitos de universalidade, unicidade e integralidade, com financiamento parte da

seguridadesocial,aconteceemummomentodecrisedessemodelonomundocentral,como

vimosnocapítulo1.Nessecaso,oBrasilconseguiu,digamosassim,serumaresistênciadesse

modelo,quandoeleeraatacadoporpaísescentraiseuropeuse,naAméricaLatina,sofriaa

privatizaçãodeseusespecíficosecaracterísticossistemasdeproteçãosocial.

EssaresistênciatemrelaçãocomofatodeomomentoderedemocratizaçãonoBrasil

tersidocoincidentecomessafasedeavançoneoliberal.Emmeioaoprocessodeaberturae

redemocratizaçãodopaís,aorganizaçãodoSUSéumadasmaisbem-sucedidasexperiências

de política pública no Brasil, junto com a previdência e a assistência social, não por

coincidência, parte da seguridade social e de seu espectro de financiamento. Entretanto,

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comoafirmouPlíniodeArrudaSampaioapropósitodosignificadodaConstituiçãoFederalde

1988,“foiumailusão"50.

A forte presença do setor privado de saúde brasileiro desde sua origem e a falta

estruturalde investimentoemequipamentosde saúdeparaenfrentaros vazios sanitários

configuraramumadependênciadosetorprivadodesaúdequeocolocoupermanentemente

dentrodoespaçonãomercantilqueéoSUS.Maisdoque isso,a“ilusão"daConstituição

Federal de 1988, por exemplo, está no fato de os interesses privados da saúde terem

conseguido manter seu campo de atuação e até sua expansão de modo a conviver

paralelamenteaoSUS,criandoumespaçodemercadosegmentadoe,porvezes,concorrente

aoSUS.

Osplanosde saúde,porexemplo, aproveitaram-seda fraca regulaçãodomercado

privadodesaúde,porumlado,e,poroutro,foramtambémsendobeneficiadospelarenúncia

dearrecadaçãoegastotributáriocomsaúde,comovimos.

Obtervantagenseincentivosparaodesenvolvimentodeumsetorprivadodeplanos

desaúde,viarenúnciafiscalegastotributáriodasaúde,significa,nocontextodanatureza

peculiar das relações público-privadas brasileiras, prejuízo à consolidação do SUS, já que

ambosconcorremporrecursos,comovimos,nadiscussãodosubfinanciamentodoSUS.

MasesseprejuízoaoavançodoSUSnadireçãodesuauniversalidadeefetivatemum

efeito ainda pior: mitigar o potencial desse sistema em contribuir para o combate às

desigualdadessociais, tão fundamentalnomundoe,especialmente,noBrasil.Oefeitodo

processodedesmercantilizaçãomostra,assim,suaautênticabrasilidade.

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Anexos

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Anexodocapítulo2

A título de ilustração da evolução de nosso sistema de saúde, Paim et al. (2011)

mostram,noquadro3,umasíntesedascaracterísticasprincipaisenvolvidasnoprocessode

formaçãoeorganizaçãodenossosistemadesaúde.

Quadro3-Oprocessohistóricodaorganizaçãodosetordesaúdeeoantecedenteparaosistemabrasileirodecuidadodasaúde

Fonte:PAIMetAl.,2011,p.16-17.

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Quadro3-Oprocessohistóricodaorganizaçãodosetordesaúdeeoantecedenteparaosistemabrasileirodecuidadodasaúde(continuação)

Fonte:PAIMetal.,2011,p.16-17.

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Anexosdocapítulo3TextodaEmendaConstitucional95.

PresidênciadaRepública

CasaCivil

SubchefiaparaAssuntosJurídicos

EMENDACONSTITUCIONALNº95,DE15DEDEZEMBRODE2016

Altera o Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias,parainstituiroNovoRegimeFiscal,edáoutrasprovidências.

AsMesasdaCâmaradosDeputadosedoSenadoFederal,nostermosdo§3ºdoart.60daConstituiçãoFederal,promulgamaseguinteEmendaaotextoconstitucional:

Art.1ºOAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitóriaspassaavigoraracrescidodosseguintesarts.106,107,108,109,110,111,112,113e114:

“Art.106.FicainstituídooNovoRegimeFiscalnoâmbitodosOrçamentosFiscaledaSeguridadeSocialdaUnião,que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 107 a 114 deste Ato das DisposiçõesConstitucionaisTransitórias.”

“Art.107.Ficamestabelecidos,paracadaexercício,limitesindividualizadosparaasdespesasprimárias:

I-doPoderExecutivo;

II-doSupremoTribunalFederal,doSuperiorTribunaldeJustiça,doConselhoNacionaldeJustiça,daJustiçadoTrabalho,daJustiçaFederal,daJustiçaMilitardaUnião,daJustiçaEleitoraledaJustiçadoDistritoFederaleTerritórios,noâmbitodoPoderJudiciário;

III - do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, no âmbito do PoderLegislativo;

IV-doMinistérioPúblicodaUniãoedoConselhoNacionaldoMinistérioPúblico;e

V-daDefensoriaPúblicadaUnião.

§1ºCadaumdoslimitesaqueserefereocaputdesteartigoequivalerá:

I-paraoexercíciode2017,àdespesaprimáriapaganoexercíciode2016,incluídososrestosapagarpagosedemaisoperaçõesqueafetamoresultadoprimário,corrigidaem7,2%(seteinteirosedoisdécimosporcento);e

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II -paraosexercíciosposteriores,aovalordo limitereferenteaoexercício imediatamenteanterior,corrigidopelavariaçãodoÍndiceNacionaldePreçosaoConsumidorAmplo-IPCA,publicadopeloInstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística,oudeoutroíndicequevierasubstituí-lo,paraoperíododedozemesesencerradoemjunhodoexercícioanterioraquesereferealeiorçamentária.

§2ºOslimitesestabelecidosnaformadoincisoIVdocaputdoart.51,doincisoXIIIdocaputdoart.52,do§1ºdoart.99,do§3ºdoart.127edo§3ºdoart.134daConstituiçãoFederalnãopoderãosersuperioresaosestabelecidosnostermosdesteartigo.

§ 3º A mensagem que encaminhar o projeto de lei orçamentária demonstrará os valores máximos deprogramaçãocompatíveiscomoslimitesindividualizadoscalculadosnaformado§1ºdesteartigo,observadosos§§7ºa9ºdesteartigo.

§4ºAsdespesasprimáriasautorizadasnaleiorçamentáriaanualsujeitasaoslimitesdequetrataesteartigonãopoderãoexcederosvaloresmáximosdemonstradosnostermosdo§3ºdesteartigo.

§5ºÉvedadaaaberturadecréditosuplementarouespecialqueamplieomontantetotalautorizadodedespesaprimáriasujeitaaoslimitesdequetrataesteartigo.

§6ºNãoseincluemnabasedecálculoenoslimitesestabelecidosnesteartigo:

I-transferênciasconstitucionaisestabelecidasno§1ºdoart.20,noincisoIIIdoparágrafoúnicodoart.146,no§5ºdoart.153,noart.157,nosincisosIeIIdoart.158,noart.159eno§6ºdoart.212,asdespesasreferentesaoincisoXIVdocaputdoart.21,todosdaConstituiçãoFederal,eascomplementaçõesdequetratamosincisosVeVIIdocaputdoart.60,desteAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias;

II-créditosextraordináriosaqueserefereo§3ºdoart.167daConstituiçãoFederal;

III-despesasnãorecorrentesdaJustiçaEleitoralcomarealizaçãodeeleições;e

IV-despesascomaumentodecapitaldeempresasestataisnãodependentes.

§ 7ºNos três primeiros exercícios financeiros da vigência doNovoRegime Fiscal, o Poder Executivo poderácompensarcomreduçãoequivalentenasuadespesaprimária,consoanteosvaloresestabelecidosnoprojetodeleiorçamentáriaencaminhadopeloPoderExecutivonorespectivoexercício,oexcessodedespesasprimáriasemrelaçãoaoslimitesdequetratamosincisosIIaVdocaputdesteartigo.

§8ºAcompensaçãodequetratao§7ºdesteartigonãoexcederáa0,25%(vinteecincocentésimosporcento)dolimitedoPoderExecutivo.

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Texto da Exposição deMotivos Interministerial (EMI) que acompanha o texto da EmendaConstitucional95.SUBCHEFIADEASSUNTOSPARLAMENTARESEMIn.00083/2016MFMPDGBrasília,15dejunhode2016.ExcelentíssimoSenhorVice-PresidentedaRepública,noexercíciodocargodePresidentedaRepública,1.TemosahonradesubmeteràelevadaconsideraçãodeVossaExcelênciaPropostadeEmendaàConstituiçãoquevisacriaroNovoRegimefiscalnoâmbitodaUnião.Esseinstrumentovisareverter,nohorizontedemédioelongoprazo,oquadrodeagudodesequilíbriofiscalemquenosúltimosanosfoicolocadooGovernoFederal.2.Faz-senecessáriamudançaderumosnascontaspúblicas,paraqueoPaísconsiga,comamaiorbrevidadepossível,restabeleceraconfiançanasustentabilidadedosgastosedadívidapública.Éimportantedestacarque,dadooquadrodeagudodesequilíbriofiscalquesedesenvolveunosúltimosanos,esseinstrumentoéessencialpara recolocar a economia em trajetória de crescimento, com geração de renda e empregos. Corrigir odesequilíbriodascontaspúblicasécondiçãonecessáriapararetiraraeconomiabrasileiradasituaçãocríticaqueVossaExcelênciarecebeuaoassumiraPresidênciadaRepública.3.NoâmbitodaUnião,adeterioraçãodoresultadoprimárionosúltimosanos,queculminarácomageraçãodeum déficit de até R$170 bilhões este ano, somada à assunção de obrigações, determinou aumento semprecedentesdadívidapúblicafederal.Defato,aDívidaBrutadoGovernoGeralpassoude51,7%doPIB,em2013,para67,5%doPIBemabrilde2016easprojeçõesindicamque,senadaforfeitoparaconteressaespiral,o patamarde80%doPIB seráultrapassadonospróximos anos.Note-seque, entre as consequências dessedesarranjofiscal,destacam-seoselevadosprêmiosderisco,aperdadeconfiançadosagenteseconômicoseasaltas taxas de juros, que, por sua vez, deprimem os investimentos e comprometeram a capacidade decrescimentoegeraçãodeempregosdaeconomia.Dessaforma,açõesparadarsustentabilidadeàsdespesaspúblicasnãosãoumfimemsimesmas,masoúnicocaminhoparaarecuperaçãodaconfiança,quesetraduziránavoltadocrescimento.4.AraizdoproblemafiscaldoGovernoFederalestánocrescimentoaceleradodadespesapúblicaprimária.Noperíodo 2008-2015, essa despesa cresceu 51%acimada inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%.Torna-se,portanto,necessárioestabilizarocrescimentodadespesaprimária,comoinstrumentoparaconteraexpansãodadívidapública.EsseéoobjetivodestaPropostadeEmendaàConstituição.5.Oatualquadroconstitucionalelegaltambémfazcomqueadespesapúblicasejaprocíclica,ouseja,adespesatendeacrescerquandoaeconomiacresceevice-versa.Ogoverno,emvezdeatuarcomoestabilizadordasaltasebaixasdocicloeconômico,contribuiparaacentuaravolatilidadedaeconomia:estimulaaeconomiaquandoelajáestácrescendoeéobrigadoafazerajustefiscalquandoelaestáemrecessão.Afacemaisvisíveldesseprocesso são as grandes variações de taxas de juros e de taxas de desemprego, assim como crises fiscaisrecorrentes.Aesserespeito,cabemencionaravinculaçãodovolumederecursosdestinadosasaúdeeeducaçãoaumpercentualdareceita.6.Tambémtemcaráterprocíclicoaestratégiadeusarmetaderesultadosprimárioscomoâncoradapolíticafiscal.Nafasepositivadocicloeconômico,érelativamentefácilobtersuperávitsdevidoaonaturalcrescimentodasreceitas,ouseja,torna-sefactívelconjugarobtençãodesuperávitprimáriocomelevaçãodegastos.Comooinversoocorrenafasenegativadocicloeconômico,acabasendonecessáriofazerajustefiscalemmomentosderecessão.7.Nosúltimosanos,aumentaram-segastospresentesefuturos,emdiversaspolíticaspúblicas,semlevaremcontaasrestriçõesnaturaisimpostaspelacapacidadedecrescimentodaeconomia,ouseja,pelocrescimentodareceita.Éfundamentalparaoequilíbriomacroeconômicoqueadespesapúblicasejageridanumaperspectivaglobal.Nessesentido,qualqueriniciativaqueimpliqueaumentodegastosnãodeveseranalisadaisoladamente,hajavistaqueessaabordagemtendealevaraconclusõesequivocadassobreseusbenefíciosecustos.Defato,nossa experiência ensinou que o processo descentralizado e disperso de criação de novas despesas geroucrescimento acelerado e descontrolado do gasto. Isso posto, faz-se necessário a introdução de limites ao

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crescimento da despesa global, ao mesmo tempo em que se preservam as prerrogativas dos poderesconstituídos para alocarem os recursos públicos de acordo com as prioridades da população e a legislaçãovigente.8.Comvistasaaprimorarasinstituiçõesfiscaisbrasileiras,propomosacriaçãodeumlimiteparaocrescimentodas despesas primária total do governo central. Dentre outros benefícios, a implementação dessa medida:aumentará previsibilidade da política macroeconômica e fortalecerá a confiança dos agentes; eliminará atendênciadecrescimentorealdogastopúblico,semimpedirquesealtereasuacomposição;ereduziráorisco-país e, assim, abrirá espaço para redução estrutural das taxas de juros. Numa perspectiva social, aimplementaçãodessamedidaalavancaráa capacidadedaeconomiadegerarempregose renda,bemcomoestimularáaaplicaçãomaiseficientedosrecursospúblicos.Contribuirá,portanto,paramelhorardaqualidadedevidadoscidadãosecidadãsbrasileiro.9.ONovo Regime Fiscal, válido paraUnião, terá duração de vinte anos. Esse é o tempo que consideramosnecessário para transformar as instituições fiscais pormeio de reformas que garantamque a dívida públicapermaneçaempatamarseguro.Talregimeconsisteemfixarmetadeexpansãodadespesaprimáriatotal,queterácrescimentorealzeroapartirdoexercíciosubsequenteaodeaprovaçãodestePEC,oquelevaráaumaqueda substancial da despesa primária do governo central como porcentagemdo PIB. Trata-se demudar atrajetóriadogastopúblicofederalque,noperíodo1997-2015apresentoucrescimentomédiode5,8%aoanoacimadainflação.10.Por serdeduraçãopreviamenteestabelecida,oNovoRegimeFiscal será inscritonoAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias.Fixa-se,paraoexercíciode2017,limiteequivalenteàdespesarealizadaem2016,corrigidapelainflaçãoobservadaem2016.Apartirdosegundoexercício,olimiteparaadespesaprimáriaseránaturalmenteincorporadoaoprocessodeelaboraçãodaleidediretrizesorçamentáriasedaleiorçamentáriaanual, e consistirá no valor do limite do exercício anterior, corrigido pela inflação do exercício anterior. TalcorreçãoseráfeitapeloÍndiceNacionaldePreçosaoConsumidorAmplo(IPCA).11.OutracaracterísticarelevanteéqueolimiteseráestabelecidoparacadaumdosPodereseparaosórgãoscomautonomiaadministrativaefinanceira.Ouseja,haverálimiteindividualizadoparaoPoderExecutivo,paraoPoderJudiciário,paraoPoderLegislativo(aíincluídooTribunaldeContasdaUnião),paraoMinistérioPúblicodaUnião e para aDefensoria Pública daUnião. Trata-se de garantir a autonomia de cada umdos Poderes,evitando-sequeoExecutivo,sozinho,diteoslimitesdecadaum.Oquesefazéestabelecer,notextodoADCT,olimiteparacadaumdosPodereseórgãosautônomos,paratodooperíododevigênciadoNovoRegimeFiscal,semdaraoExecutivodiscricionariedadenafixaçãodetaislimites.12.Aregradesefixarolimitededespesadeumano,comosendoolimitevigenteparaoanoanterior,corrigidopela inflação,éaparentemente simples.Noentanto,ela contémumadificuldadedeordemprática.A leidediretrizesorçamentáriasealeiorçamentáriaanual,referentesaumdeterminadoexercício,sãoelaboradasaolongodoexercícioanterior,quandoaindanãoseconheceainflaçãodaqueleexercício.Assim,nomomentodeelaboraçãodaleidediretrizesorçamentáriasedaleiorçamentáriaanualnãoseconheceráataxadeinflaçãoquecorrigiráolimitedegastosparaoexercícioseguinte.Parasuperartallimitação,propomosqueolimitedegastos inscrito na LDO e no orçamento seja calculado combase em estimativa de inflação feita pelo PoderExecutivo.Nomêsdejaneirodoexercícioemquevigoraráolimitedegastos,quandojáforconhecidaainflaçãoocorridanoperíodo janeiro-dezembrodoexercícioanterior,ajusta-seo limitededespesadecadaPoderouórgãoparaconsiderarainflaçãodesseperíodo.Taisajustesserãopequenosegraduais,restritosamudançasnoíndicedeinflaçãoacumuladoemdozemeses,eserãofacilmentegerenciáveisdentrodomodeloproposto.13.Paracorrigirojáreferidoproblemadepossuirmosumaestruturadegastosprocíclica,oNovoRegimeFiscalevitaqueolimitesejaestabelecidocomopercentualdareceitaoudoProdutoInternoBruto.Essasduasmétricaspermitiriamumaexpansãomais acelerada do gasto durante osmomentos positivos do ciclo econômico, aomesmotempoemqueexigiriamajustesdrásticosnosmomentosderecessão.Nossoobjetivoégarantirumatrajetóriasuavedogastopúblico,nãoinfluenciadapelasoscilaçõesdocicloeconômico.Tendoemvistaqueareceitacontinuaráaoscilardeformacorrelacionadaaoníveldeatividade,oNovoRegimeFiscalseráanticíclico:uma trajetória real constante para os gastos, associada a uma receita variando com o ciclo, resultarão emmaiores poupanças nosmomentos de expansão emenores superávits emmomentos de recessão. Essa é aessênciadeumregimefiscalanticíclico.

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14.Ocorre,porém,quenãopoderemosmigrar,deimediato,paraessemodelo.Agravíssimasituaçãofiscaleorisco não desprezível de perda de controle sobre a dívida pública nos obriga a continuar perseguindo, nospróximosanos,omaiorresultadoprimáriopossível.Assim,trabalharemosconciliandoolimitededespesaaquiinstituídocomojáexistentearcabouçoinstitucionaldefixaçãoeperseguiçãodemetasderesultadoprimário,comoprevistono§1ºdoart.4ºdaLeideResponsabilidadeFiscal.15.Utilizaremos,portanto,uminstrumentodegestãodaestabilidadefiscalnocurtoprazo(oresultadoprimário)euminstrumentodemédioelongoprazo(olimitededespesa).Éimportanteressaltarqueamaiorrelevânciadolimitedecrescimentorealzerodadespesanãofinanceiraserájustamentenomomentoemquesairmosdaatualrecessão.Quandoareceitavoltaracrescer,ecomelaaspressõesparagastarmais,contaremoscomumatravaparaogastopúblicoquenospermitiráevitarodesequilíbriofiscalcrônico.16.A conciliaçãodemetasde resultadoprimário com limitededespesanos levouaescolhero conceitodedespesasobreoqualse imporáo limitedegastos.Poderíamostanto limitaradespesaempenhada(ouseja,aquelaqueoEstadosecomprometeuafazer,contratandoobemouserviço)ouadespesapaga(aquelaquegerou efetivo desembolso financeiro), aí incluídos os “restos a pagar” vindos de orçamentos de exercíciosanterioresequesãoefetivamentepagosnoano.Comoésabido,oresultadoprimárioéapuradopeloregimedecaixa(desembolsoefetivoderecursos),oquenoslevaaescolheromesmocritérioparafinsdefixaçãodelimitededespesa.Assim,comomesmocritérioadotadonosdoisprincipais instrumentosdegestãofiscal,teremosmaior transparêncianoacompanhamentodos resultadosobtidosemaior facilidadeparaconsideraroefeitosimultâneodoresultadoprimárioedolimitedegastos.17.Essaescolhanãosefazsemperdas.Olimitesobreadespesaempenhadateriaassuasvantagens.AoimporrestriçãoaoscompromissosqueoEstadopodeassumir,evitaríamosaocorrênciadedespesasrealizadasenãopagas.Adotando-seocritériode“despesaspagas”nãoseafasta,apriori,apossibilidadedocumprimentodolimite por meio de atrasos de pagamentos, o que não constituiria ajuste fiscal legítimo, mas tão somenterepressãofiscal,queempurrariaoproblemaparafrente,semresolvê-lo.18.TallimitaçãolevantaimportantequestãoarespeitodoNovoRegimeFiscal.Elenãoéuminstrumentoqueresolverátodososproblemasdasfinançaspúblicasfederais.Asregrasaquipropostassófuncionarãoseforembemutilizadasporumgovernoimbuídoderesponsabilidadefiscal.Aexperiênciadopassadorecentemostraquenãoháregradecondutafiscalquesejablindadacontraintençõesdistorcidas,masodesenhoinstitucionaldestaPECdificultaránoperíododesuavigênciaoaumentodadespesaprimáriadogovernocentral.19.NossaintençãoéqueoNovoRegimeFiscalsejaumadasváriasferramentasutilizadasparaumagestãosériadoorçamento.Paraevitarqueoslimitessejamcontornadospormeiodorepresamentodegastoseacúmuloderestosapagar,vamosadotarmedidasgerenciaiselegaisadicionais,comoumapolíticaprudentedeempenhodedespesas,limitaçõesàinscriçãodedespesasemrestosapagareregrasmaisrigorosasparacancelamentoautomáticoderestosapagarnãoprocessados(aquelesparaosquaisnãohouveaefetivaprestaçãodoserviçoouentregadobem).20. É preciso, também, conferir flexibilidade ao Novo Regime Fiscal. A meta de crescimento real zero dasdespesas, referenciada na inflação passada, ora considerada importante e atingível, pode não ser a maisadequadadaquialgunsanos.Osucessodaestabilizaçãofiscalpodepermitirque,nofuturo,tenhamosumametaaindamaisambiciosacomo,porexemplo,corrigirolimitepelainflaçãofuturaesperada.Issoteriavantagensdoponto de vista da estabilização econômica, ao colaborar com a política monetária, reduzindo a memóriainflacionáriaecoordenandoexpectativasemtornodametadeinflaçãofutura.Alternativamente,osucessodaestabilizaçãofiscaleaaceleraçãodocrescimentodoPIBpodemviabilizarqueadespesacresçaaumataxaumpoucomaisalta.Paralidarcomessaspossibilidades,aPECprevêqueumalei,deiniciativaexclusivadoPoderExecutivo,proporáqualseráataxadecrescimentodolimitedegastosapartirdodécimoexercíciodevigênciadaregra.21. Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico da despesa pública, é essencialalterarmosaregradefixaçãodogastomínimoemalgumasáreas.IssoporqueaConstituiçãoestabelecequeasdespesascomsaúdeeeducaçãodevemterumpiso,fixadocomoproporçãodareceitafiscal.Éprecisoalteraresse sistema, justamente para evitar que nos momentos de forte expansão econômica seja obrigatório oaumentodegastosnessasárease,quandodareversãodocicloeconômico,osgastostenhamquedesacelerarbruscamente.Essetipodevinculaçãocriaproblemasfiscaiseéfontedeineficiêncianaaplicaçãoderecursos

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públicos.Note-sequeestamostratandoaquidelimitemínimodegastos,oquenãoimpedeasociedade,pormeiodeseusrepresentantes,dedefinirdespesamaiselevadaparasaúdeeeducação;desdequeconsistentescomolimitetotaldegastos.22.NocasodeolimitedegastodeumdosPoderesouórgãoautônomoserdesrespeitadoemumexercício,automaticamenteentramemvigorregrasdecontençãodedespesasdepessoaldaquelePoderouórgãoparaoexercícioseguinte.Casoaextrapolaçãodo limiteocorranoâmbitodoPoderExecutivo,aplicam-se,também,vedaçõesàconcessãodenovossubsídiosesubvençõeseconômicas,assimcomoaconcessãodenovosincentivosoubenefíciosdenaturezatributária.23.Relevantenotarascategoriasdedespesaquenãoestarãosubmetidasaolimite.Aprincipaldelaséoconjuntode transferências feitas a estados e municípios por repartição de receitas. A maioria destas já não constaefetivamentecomodespesafederal,esimcomodeduçãodereceita.Outrassãoregistradaspelomesmovalor,tanto na receita quanto na despesa da União. Também se excluem as despesas de caráter eventual ou desazonalidademultianual,taiscomooscréditosextraordináriosparalidarcomsituaçõesatípicas,acapitalizaçãodeempresasestataisnãodependenteseofinanciamentodeprocessoseleitorais.24.Certamentea contençãodo crescimentodogastoprimário, emumaperspectivademédioprazo, abriráespaçoparaareduçãodastaxasdejuros,sejaporqueapolíticamonetárianãoprecisarásertãorestritiva,sejaporque cairá o risco de insolvência do setor público. Jurosmenores terão impacto sobre o déficit nominal(representadopelasomadodéficitprimáriocomasdespesasfinanceiras)esobreatrajetóriadadívidabruta.25.Trata-se,também,demedidademocrática.NãopartirádoPoderExecutivoadeterminaçãodequaisgastoseprogramasdeverãosercontidosnoâmbitodaelaboraçãoorçamentária.OExecutivoestápropondoolimitetotalparacadaPoderouórgãoautônomo,cabendoaoCongressodiscutiresselimite.Umavezaprovadaanovaregra,caberáàsociedade,pormeiodeseusrepresentantesnoparlamento,alocarosrecursosentreosdiversosprogramaspúblicos,respeitadootetodegastos.ValelembrarqueodescontrolefiscalaquechegamosnãoéproblemadeumúnicoPoder,Ministériooupartidopolítico.Éumproblemadopaís!Etodosopaísteráquecolaborarparasolucioná-lo.26.EssassãoasrazõesdarelevânciadapropostadeEmendaConstitucionalquesubmetemosàapreciaçãodeVossaExcelência.

Respeitosamente,

HenriquedeCamposMeirelles DyogoHenriquedeOliveiraMinistrodaFazenda MinistroInterinodoPlanejamento,DesenvolvimentoeGestão