Maria da Glória Gohn - scielo.br · número de Sociedades Amigos de Bairros, respon-sáveis, em...

15
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 267-281, Maio/Ago. 2010 267 Maria da Glória Gohn O trabalho apresenta um estudo sobre o processo de urbanização em São Paulo em um de seus bairros mais contraditórios: o Morumbi. Na atualidade, a região do Morumbi abriga a segunda maior favela de São Paulo, Paraisópolis, a quinta do Brasil e a quarta da América Latina. Dada a complexidade do bairro-região em termos socioeconômicos, políticos, culturais e ambientais, neste artigo, os dados são analisados segundo dois movimentos articulados. O primeiro, mais geral, retrata o cenário de suas paisagens, as mudanças ao longo dos últimos 30 anos, tanto no que se refere à verticalização de moradias para as camadas altas e médias da população, como a criação de polos de consumo de luxo e modernas torres empresariais. O segundo movimento retrata a expansão e o crescimento de suas favelas, analisando a sociabilidade existente nas associações de moradores de Paraisópolis e os principais projetos sociais que lá são desenvolvidos. PALAVRAS-CHAVE: Associativismo civil, requalificação urbana metropolitana, projetos sociais em áreas pobres, Morumbi e Favela Paraisópolis, São Paulo. DOSSIÊ MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo 1 MariadaGlóriaGohn * INTRODUÇÃO São Paulo é, na atualidade, palco de novas redes de associativismo, tanto por parte da socie- dade civil – com iniciativas inovadoras que abran- gem de resistência pacífica, desobediência civil, movimentos sociais, cooperativas de produção, fóruns e assembleias permanentes, redes de ONGs, acompanhamento de políticas públicas etc. – como por parte da sociedade política, com ações coleti- vas mais institucionalizadas, em parceria entre re- presentantes do poder público e representantes da população organizada, como nos diversos conse- lhos e câmaras de gestão existentes. O destaque que registramos é que há um novo associativismo, localizado prioritariamente no urba- no, e ele é novo na forma de se organizar, nas de- mandas e nas práticas desenvolvidas. Ele é ativo e propositivo, não se limita às camadas populares, atua em rede e se articula com uma nova esfera pú- blica, criando espaço de interlocução, debates, pro- posições. Esse associativismo é herdeiro da trajetó- ria de inúmeros sujeitos sociopolíticos na socieda- de civil brasileira, representados por movimentos sociais, ONGs, associações de moradores, CEBS e outras entidades. A herança da militância em movi- mentos sociais nos anos 1970/80 deixou marcas diferenciadas. A influência das práticas da ala pro- gressista da Igreja junto à organização popular fez do tema da autonomia um recurso estratégico, utili- zado de diferentes formas pelos movimentos. Abrem- se, com isso, possibilidades para uma participação com controle social mais efetivo, menos cooptada e menos caudatária das redes de clientelismo. As organizações populares, tradicionais e novas, têm enfrentado desafios inéditos para se readaptarem à nova conjuntura. Relações de novo tipo têm sido propostas por órgãos governamen- * Doutora em Ciência Política. Professora Titular do Pro- grama de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp e do Programa de Pós Graduação da Universi- dade Nove de Julho e de Comitês Acadêmicos e de Assessoramento da ISA e do CNPq.Vice-Presidente do Comite “Social Movements and Social Classes” da ISA- International Sociological Association. Rua Bertrand Russel, 801 - Cep: 13083-970. Barão Ge- raldo - Campinas - São Paulo - Brasil - Caixa-Postal: 6120. [email protected] 1 Na fase de coleta de dados da pesquisa que deu origem a este trabalho, colaboraram os bolsistas do PIBIC/CNPq: Caroline Almeida de Carvalho, Antonio Carlos de Ânge- lo e Elisângela Souza Lima Watanabe, alunos da Uninove. São Paulo.

Transcript of Maria da Glória Gohn - scielo.br · número de Sociedades Amigos de Bairros, respon-sáveis, em...

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

267

Maria da Glória Gohn

O trabalho apresenta um estudo sobre o processo de urbanização em São Paulo em um de seusbairros mais contraditórios: o Morumbi. Na atualidade, a região do Morumbi abriga a segundamaior favela de São Paulo, Paraisópolis, a quinta do Brasil e a quarta da América Latina. Dadaa complexidade do bairro-região em termos socioeconômicos, políticos, culturais e ambientais,neste artigo, os dados são analisados segundo dois movimentos articulados. O primeiro, maisgeral, retrata o cenário de suas paisagens, as mudanças ao longo dos últimos 30 anos, tanto noque se refere à verticalização de moradias para as camadas altas e médias da população, como acriação de polos de consumo de luxo e modernas torres empresariais. O segundo movimentoretrata a expansão e o crescimento de suas favelas, analisando a sociabilidade existente nasassociações de moradores de Paraisópolis e os principais projetos sociais que lá são desenvolvidos.PALAVRAS-CHAVE: Associativismo civil, requalificação urbana metropolitana, projetos sociais emáreas pobres, Morumbi e Favela Paraisópolis, São Paulo.

DO

SS

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo 1

Maria da Glória Gohn*

INTRODUÇÃO

São Paulo é, na atualidade, palco de novasredes de associativismo, tanto por parte da socie-dade civil – com iniciativas inovadoras que abran-gem de resistência pacífica, desobediência civil,movimentos sociais, cooperativas de produção,fóruns e assembleias permanentes, redes de ONGs,acompanhamento de políticas públicas etc. – comopor parte da sociedade política, com ações coleti-vas mais institucionalizadas, em parceria entre re-presentantes do poder público e representantes dapopulação organizada, como nos diversos conse-lhos e câmaras de gestão existentes.

O destaque que registramos é que há um novoassociativismo, localizado prioritariamente no urba-no, e ele é novo na forma de se organizar, nas de-mandas e nas práticas desenvolvidas. Ele é ativo epropositivo, não se limita às camadas populares,atua em rede e se articula com uma nova esfera pú-blica, criando espaço de interlocução, debates, pro-posições. Esse associativismo é herdeiro da trajetó-ria de inúmeros sujeitos sociopolíticos na socieda-de civil brasileira, representados por movimentossociais, ONGs, associações de moradores, CEBS eoutras entidades. A herança da militância em movi-mentos sociais nos anos 1970/80 deixou marcasdiferenciadas. A influência das práticas da ala pro-gressista da Igreja junto à organização popular fezdo tema da autonomia um recurso estratégico, utili-zado de diferentes formas pelos movimentos. Abrem-se, com isso, possibilidades para uma participaçãocom controle social mais efetivo, menos cooptada emenos caudatária das redes de clientelismo.

As organizações populares, tradicionais enovas, têm enfrentado desafios inéditos para sereadaptarem à nova conjuntura. Relações de novotipo têm sido propostas por órgãos governamen-

* Doutora em Ciência Política. Professora Titular do Pro-grama de Pós-Graduação da Faculdade de Educação daUnicamp e do Programa de Pós Graduação da Universi-dade Nove de Julho e de Comitês Acadêmicos e deAssessoramento da ISA e do CNPq.Vice-Presidente doComite “Social Movements and Social Classes” da ISA-International Sociological Association.Rua Bertrand Russel, 801 - Cep: 13083-970. Barão Ge-raldo - Campinas - São Paulo - Brasil - Caixa-Postal: [email protected]

1 Na fase de coleta de dados da pesquisa que deu origem aeste trabalho, colaboraram os bolsistas do PIBIC/CNPq:Caroline Almeida de Carvalho, Antonio Carlos de Ânge-lo e Elisângela Souza Lima Watanabe, alunos da Uninove.São Paulo.

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

268

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

tais e agências multilaterais, em processos massivose sistemáticos de participação comunitária. Novasformas de organização têm sido criadas sob a for-ma de fóruns específicos ou transversais, assimcomo novas redes temáticas têm se formado, emarticulações eventuais ou mais permanentes, ondese juntam movimentos de moradia, saneamento,transporte, jovens, mulheres, negros, grupos cul-turais, atividades artísticas e ativistas ambientais esindicais, fazendo dos problemas sociais e daspolíticas públicas tema e objeto renovado de ação.

Para exemplificar o novo processoassociativo existente neste novo século, este traba-lho apresenta uma pesquisa realizada em São Pau-lo, focalizando um de seus bairros mais contradi-tórios: o Morumbi. Dada a complexidade do bair-ro-região do Morumbi em São Paulo, em termossocioeconômicos, políticos, culturais e ambientais,neste artigo, os dados são analisados segundo doismovimentos articulados. O primeiro, mais geral,retrata a paisagem desse cenário, analisando asmudanças ao longo dos últimos 30 anos, tanto noque se refere à verticalização de moradias para ascamadas altas e médias da população, como à cri-ação de polos de consumo de luxo e modernastorres empresariais, e os problemas existentes emtermos de mobilidade urbana em sua malha viá-ria, criada há mais de cinco décadas; o segundomovimento retrata a expansão e o crescimento desuas favelas, analisando a sociabilidade existentena associação de moradores da região, com desta-que para a favela de Paraisópolis e para os princi-pais projetos sociais que ali são desenvolvidos.

TRANSFORMAÇÕES URBANAS: o cenário donovo do Morumbi

A pesquisa selecionou para estudo a ZonaSudoeste de São Paulo e, nela, a atual subprefeiturado Butantã, que compreende os bairros de Butantã,Morumbi, Raposo Tavares, Rio Pequeno, Vila Sôniae Jaguaré. Este artigo aborda, por questão de espa-ço, apenas dois desses bairros: o Morumbi pro-priamente dito (o mais contraditório deles) e a Vila

Sônia. Na realidade, o bairro do Morumbi origi-nal, dos casarões, abrange uma pequena área naregião selecionada. E mesmo essa região já está sedescaracterizando como padrão residencial dasmansões, uma vez que, atualmente, condomínioshorizontais de alto luxo estão sendo construídosem terrenos de antigos casarões. Portanto, hoje,quando se fala “Morumbi”, trata-se do “Novo”Morumbi, um grande território onde ainda há muitoverde, mas a moradia predominante é de compo-sição social mista, pois ele foi ressignificado pelomarketing imobiliário.

A escolha da região e dos bairros daSubprefeitura do Butantã deve-se a dois critérios: oprimeiro, alicerçado no passado, de caráter históri-co, e o segundo, associado às novidades atuais que aregião apresenta em termos do padrão predominantede urbanização de São Paulo em décadas passadas.Na década de 1970, realizamos pesquisa sobre asSociedades Amigos de Bairros da Zona Sul nas en-tão Regiões Administrativas (ARs) de Santo Amaroe de Campo Limpo. Eram regiões periféricas, queexpressavam o padrão de urbanização então vigentede desenvolvimento em círculos concêntricos, docentro para a periferia, e concentravam um grandenúmero de Sociedades Amigos de Bairros, respon-sáveis, em grande parte, pela obtenção dainfraestrutura urbana e melhorias nos bairros. Essasregiões também foram palco de vigorosos movimen-tos sociais, notadamente os articulados pelas Comu-nidades de Base da Igreja (CEBs): Movimento Custode Vida/Carestia, Movimento de Luta por Crechesetc. Eram também regiões-dormitório de trabalhado-res que migraram para São Paulo e passaram a repre-sentar a mão de obra básica do boom da construçãocivil e da quase verticalização nas regiões “nobres”paulistanas da Zona Sul, nos anos 1970 e parte dos1980, como Moema, Campo Belo, Brooklin, VilaMariana, Pinheiros e Jardins. A Zona Sul periféricaera também o local de moradia da maioria das mu-lheres que passaram a trabalhar no serviço domésti-co nas novas áreas nobres verticalizadas. Por isso,vários movimentos populares daquele período eramcompostos basicamente por mulheres, como o Mo-vimento por Creches, que nasceu e se tornou forte

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

269

Maria da Glória Gohn

na Zona Sul de São Paulo (Gohn, 1985).Na atualidade, observa-se uma mudança do

padrão de urbanização em São Paulo, da segrega-ção concêntrica contínua no território para padrõesmistos. Áreas nobres se formam em lugares antesde camadas médias baixas, e ocupações popularesocupam brechas nessas áreas e lá permanecemcomo enclaves.

O MORUMBI2 NA ATUALIDADE: expansão das‘áreas nobres’ e das favelas

Como assinala Caldeira,

O Morumbi e a Vila Andrade tiveram um signifi-cativo crescimento populacional nos anos 80.Apesar do Morumbi ser um bairro de classe altahá pelo menos 30 anos, ele mudou radicalmentedepois do início da década de 80. O que era umbairro de enormes mansões, terrenos vazios e áre-as verdes, foi transformado, depois de uma déca-da de construção frenética, num distrito de edifí-cios. No final dos anos 70, ele foi “descoberto” porincorporadores imobiliários que decidiram apro-veitar o baixo custo dos terrenos e o código dezoneamento favorável e o transformaram no bair-ro com o mais alto número de novos empreendi-mentos imobiliários da cidade durante os anos 80e 90. [...] a novidade no Morumbi e na Vila Andradenão é só o volume de construção, mas também otipo de construção: os conjuntos habitacionaismurados (Caldeira, 2000, p. 244-245).

Conforme assinalamos anteriormente, seolharmos no mapa de São Paulo, o distrito doMorumbi propriamente dito abrange uma área pe-quena. Mas a força do capital imobiliário expan-diu a região para efeito de venda de apartamentos,por meio da propaganda e do marketing, constitu-indo o novo Morumbi, onde proliferaramloteamentos denominados como Jardim, Vila, Par-que, Cidade, Chácara, Granja, Hípica, etc.

O novo Morumbi incorpora o Distrito deVila Andrade, distrito esse que teve o maior cres-cimento da cidade de São Paulo no período entre1990-2000 – 70% –, concentrando 5,8% do totalde oferta de imóveis novos no início de 2002. AVila Andrade foi a região campeã de lançamentosimobiliários nos últimos dez anos e, mais recente-mente trouxe para a região a sofisticação e os servi-ços especializados antes existentes apenas em áre-as nobres, como os Jardins, Higienópolis ou VilaMariana. O grande número de colégios particula-res e o preço do metro quadrado em unidades deluxo explicam igualmente a procura e o grandecrescimento do novo Morumbi. Na Vila Andrade,localiza-se o Parque Burle Marx, assim como a re-gião do Panamby, onde estão os condomínios ver-ticais mais sofisticados da região. Ela também tematraído edifícios comerciais, todos ao redor do lu-xuoso Shopping Jardim Sul.

Mas o Morumbi não é apenas a morada dascamadas de alto poder aquisitivo. Contrastandocom a forma de ocupação concêntrica que caracte-rizou a urbanização de São Paulo até 1970, na quala segregação socioespacial entre zonas centrais eperiféricas crescia em forma anelada, o Morumbifoi ocupado simultaneamente por loteamentos dealto padrão e por favelas. Forma-se, então, ummosaico, onde um morro, uma declividade, ou atémesmo uma rua, podem separar a moradia de gru-pos sociais distintos socioeconomicamente, geran-do um padrão híbrido de ocupação do território.Há uma foto emblemática da região: um edifício,dos anos 1970, cujas varandas, com piscinas priva-tivas, são todas voltadas para a favela Paraisópolis,que fica logo abaixo.

2 Segundo os historiadores, o Morumbi foi povoado emmeados do século XVI pelos jesuítas, até que o FiscoReal, órgão controlador de terras na colônia, os expulsouem 1750, na época pombalina. No século XVIII, eleadotou “ares de nobreza” quando D. João VI desejouoferecer aos nobres da Corte um chá de melhor qualida-de. Ele teria presenteado um produtor inglês, JohnMaxwel Rudge, com um terreno para o cultivo do chá,iniciando, assim, a plantação de chá no Brasil, na Fazen-da Boa Vista do Morumby, que hoje ocupa uma área de8.000 m2 e onde está localizada a Casa da Fazenda. ACasa da Fazenda foi construída em 1813 pelo Regente doImpério, P. Antonio Feijó. Após a abolição da escravaturano Brasil, em 1888, o cultivo do chá entrou em decadên-

cia e com ele a Fazenda Boa Vista do Morumby. Só em1940 o antigo casarão foi reconstruído, mantendo o es-tilo colonial que veio a inspirar muitas mansões do bair-ro, em sua ala tradicional, horizontalizada. Atualmente,tomar o chá da tarde na Casa da Fazenda do Morumbi éum programa cultural e uma arte gastronômica. O Casa-rão tem abrigado também exposições de artistas e mos-tras de artesanato produzido com o apoio de entidadesdo Terceiro Setor patrocinadas por empresas e grandeseventos sociais. O nome Morumby advém do tupi-guarani. Há controvérsias quanto ao seu significado,sendo citados os de colina verde em forma de cone, moscaverde e luta oculta. Qualquer que seja ele, os “nobres”também já lutaram para defender o bairro. Em 1974,seus moradores se organizaram para impedir que o Bos-que do Morumbi fosse privatizado.

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

270

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

Para completar a caracterização do cenáriodos bairros investigados, algumas linhas sobre oDistrito da Vila Sônia, que é composto por 43 bair-ros ou loteamentos. Vila Sônia propriamente ditaé um bairro tradicional, de colonização japonesa,tendo inclusive uma avenida que se chama: “Imi-grante Japonês”. Na Vila Sônia, observa-se um gran-de parcelamento do solo e a predominância decamadas médias. Contudo, a tendência tem sido ada transformação do padrão médio para averticalização em alto padrão, devido ao encareci-mento de outras áreas do Morumbi, à chegada dometrô etc. O que existe atualmente é um padrãomisto, em que a mudança entre o alto padrão e omédio, ou até mesmo o popular, é brusca. A Av.Francisco Morato – principal via de articulaçãoentre bairro e centro da região da Vila Sônia – estáem processo de transformação de seu perfil emvários trechos, com o lançamento de altas torresde apartamentos para moradia, perto das estaçõesdo metrô, e abertura de lojas de redes de grandessupermercados. Dentre os bairros de Vila Sônia,Vila Morse está localizada numa baixada, com ruasíngremes, povoada por moradores das classes po-pulares, antigos na região, e está também passan-do por uma completa reestruturação nos últimosanos: as casas populares estão sendo adquiridaspor construtores de porte médio, que lá constro-em conjuntos de sobrados (usualmente aos pares).A Vila Morse é cercada pelos “nobres” – a VilaInah –, área de casas de alto padrão, Z 1, JardimLeonor, e o Condomínio Quintas do Morumbi,uma antiga chácara de 60 mil m2, que foi transfor-mada, entre 1995 e 2000, em um condomínio com11 torres. Manteve-se o bosque e o pomar origi-nais, além do casarão da chácara, mas muitas ár-vores foram retiradas para dar lugar ao clube delazer implantado no empreendimento. O JardimColombo – que também dá nome a um dos pou-cos ônibus coletivos que circulam na região – ficana zona pobre do distrito e está quase todo toma-do pela favela do mesmo nome. Monte Kemel tam-bém é uma área popular, com córregos a céu aber-to, próxima a cemitérios.

O ASSOCIATIVISMO ENTRE OS MORADORESDO NOVO MORUMBI DAE DA VILA SÔNIA

Existiam, em 2005, 149 entidades associa-tivas listadas pela subprefeitura do Butantã, queatuavam em 133 agrupamentos de moradia na re-gião do Morumbi e Vila Sonia. Das 149 entidades,89 eram associações de moradores com diferentesdenominações: sociedades amigos de bairros (amais tradicional em São Paulo e a mais comum naregião estudada), centro comunitário, união demoradores, associação de cidadãos etc. Tambémeram encontrados seis movimentos sociais: doisde moradia, sediados em bairros, dois movimen-tos de sem-teto, localizados em áreas de ocupaçãoque não são ainda favelas, um movimento de De-fesa do Cidadão, e um movimento de preservação,o “Defenda São Paulo”– que atua em toda a capi-tal. Havia um Comitê de combate às Enchentes,especialmente do Rio Pirajussara, e várias ONGs,algumas famosas, como a Meninos do Morumbi;fundações ligadas a casas culturais, como a Fun-dação Oscar Americano; associações de empresári-os que atuam na área social ou em obras públicas;centros de convivência para jovens, associações cul-turais e científicas, como a Casa do Sertanista. Háainda inúmeras entidades assistenciais, filantrópi-cas ou beneficentes, que atuam principalmente juntoa creches e pré-escolas.

Na região do novo Morumbi, também em2005, concentravam-se 30 das 89 Associações deMoradores da região do Butantã, sendo que 12 per-tenciam a núcleos de favelas (várias delas têm o nomefavela no próprio nome da entidade). As entidadesque se destacam e predominam nos jornais de bair-ros são as localizadas nas áreas nobres. As associa-ções de favelas localizadas em Paraisópolis, Real Par-que, Jardim Panorama são as entidades comunitáriaspopulares das favelas mais famosas da região.

Há associações de moradores de favelas naregião do novo Morumbi que são mais recentes,como a AMACOL (Associação de Moradores eAmigos do Jardim Colombo), e outras mais anti-gas, como a União dos Moradores do JardimColombo e a Comunidade Jardim Colombo. As

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

271

Maria da Glória Gohn

principais reivindicações dessas entidades são:canalização de córregos, bocas de lobo, asfalto, obraspara conter enchentes etc. Mas há também umademanda fora do rol infraestrutura: a construçãode uma biblioteca pública, algo notável se consi-derarmos o perfil dos moradores associados daAMACOL. A favela do Real Parque também de-manda, além de serviços na área da cultura, servi-ços na área da saúde. É interessante destacar que ademanda na área da cultura, em vilas e jardinspopulares (favelas ou não), contém uma significa-tiva racionalidade: eles demandam equipamentosque “ocupem” os jovens e adolescentes, que osafastem do mundo das drogas. Não demandamcursos que os profissionalizem, pois consideramque não há empregos e que, na área da cultura, osjovens se interessam mais, pois ela fala sobre omundo deles. O Hip hop é muito mais valorizadodo que um curso na área da marcenaria, por exem-plo. O único curso que atrai os jovens e tambémos capacita para uma função é o de computação.

Ao lado das associações das favelas, exis-tem outras entidades de moradores de áreas pre-dominantemente populares, associativas ou reli-giosas que atuam no Morumbi e na Vila Sônia, aexemplo da União de Moradores do Jardim MonteKemel e Vila Belo, da Sociedade de Amigos daVila Morse, da Casa da Cultura do Butantã, a Redede entidades do Butantã na área da saúde, Fórumde Entidades do Butantã, do Mosteiro de São Ge-raldo de São Paulo, ou do Movimento DefendaSão Paulo, que atua em toda capital e tem grandeespaço na mídia. Os dois distritos contam tam-bém com a atuação de inúmeras ONGs, com sedese programas sociais na região. Destacam-se: OsMeninos do Morumbi, uma espécie de escola deeducação não-formal para as crianças carentes dobairro, que funciona em um amplo galpão e émantida por personalidades e entidades, como ofilho do cantor Roberto Carlos, o grupo Pão deAçúcar e o Banco Itaú. A Fundação Abrinq tam-bém atua na região, apoiando os Projetos Amigoda Criança, Casa da Criança, e Empresa Amiga daCriança. Também são conhecidas a Fundação Golde Letra, que oferece complementação escolar a 600

alunos de escolas (crianças e adolescentes), o Pro-jeto Aprendiz, que conta com a colaboração deGilberto Dimenstain, e o Instituto Ayrton Senna.

A Associação Comercial de São Paulo, secçãoButantã, tem atuado em projetos de reurbanizaçãoda região, especialmente da Av. Prof. FranciscoMorato, a principal via de ligação entre bairro e cen-tro da subprefeitura. O Banco do Brasil, a USP, oJornal Estado de São Paulo e o SEBRAE também sefazem presentes em programas sociais e projetoslocalizados de reurbanização. O Instituto de Cida-dania Empresarial (ICE), entidade formada por vá-rios empresários paulistas, desenvolve desde 2001o Projeto Casulo, no Programa de DesenvolvimentoComunitário do Real Parque e Jardim Panorama.3

AS FAVELAS DO NOVO MORUMBI E DAREGIÃO DE VILA SÔNIA

Em 1987, havia 233.429 pessoas morandoem favelas nos distritos do oeste e sudoeste da ci-dade, o que correspondia a 28,62% dos moradoresde favelas de São Paulo. Em 1993, os moradores defavelas desses distritos aumentaram para 482.304,o que representava 25,36%dos residentes de fave-las da cidade (São Paulo, SEMPLA, 1995, p.76; apud

Caldeira, 2000, p.247). Em 2000, a população quemorava nas principais favelas da nova regiãoMorumbi era estimada em 47,7 do total da popula-ção do Morumbi propriamente dito, ou seja, quasea metade. A região insere-se parte na Sub- Prefeitu-ra do Butantã e parte na do Campo Limpo. Segun-do a administração do Butantã, havia, no início dosanos 2000, 54 favelas na área de sua responsabili-dade, com um total de 350 mil habitantes. Já na

3 O ICE desenvolve projetos nas áreas de educação, saúde,saneamento, lazer etc. Na área de “DesenvolvimentoComunitário o Projeto Casulo tem o objetivo depotencializar os grupos formais e informais da comuni-dade, através de ações político-educativas centradas nodesenvolvimento local. Pretende contribuir para aviabilização de novos ativos, formação de agentes soci-ais e lideranças comunitárias, capacitando-os comoarticuladores e implementadores de ações para o desen-volvimento de sua comunidade. Pretende ainda criar umConselho Gestor tripartite, com representantes do PoderPúblico, da Iniciativa Privada e da Comunidade, que as-sumirá integralmente a gestão do Casulo no prazo decinco anos.” Doc. Instituto Cidadania Empresarial.

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

272

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

Administração da Região do Campo Limpo – ondese situa parte da Vila Andrade e a favela Paraisópolis–, em 2003, registravam-se 2387 núcleos de favelas.No perímetro que delimitamos nesta pesquisa – oNovo Morumbi (Morumbi original e a Vila Sonia),além de Paraisópolis –, destacam-se quatro outrasfavelas: Real Parque, Jardim Panorama, Porto Segu-ro, Jardim Colombo I e II. Vamos fazer uma brevecaracterização dessas últimas para nos determos,depois na Paraisópolis.

Panorama é a menor favela da região, com 2mil habitantes e 280 domicílios, encravada na áreamais valorizada do distrito de Vila Andrade. Partedela foi eliminada pela compra ou troca com umagrande construtora para a construção do shoppingCidade Jardim e o complexo de edifícios de luxoque o acompanha. É interessante que os murosdessas edificações são tão altos, que esconderam aoutra parte da favela que restou – a qual deverátambém sair brevemente, a depender das negociaçõessobre os valores dos barracos. Real Parque é outrafavela antiga e em área nobre. Tem 18 mil habitantese situa-se na área de transição e de expansão doboom imobiliário dos anos 1980 (prédiosresidenciais de alto padrão) e anos 90 (escritórios e

hotéis de luxo, no lado oposto da famosa Av. Berrini,na Marginal do Rio Pinheiros). As favelas RealParque e Jardim Panorama são próximas e formamum aglomerado. Em 2003, 11 entidades assistenciaisou organizacionais atuavam na área com suaspopulações, indo de associação de moradores, aIgrejas (católica, anglicana e seitas várias), o Institutode Cidadania Empresarial, com uma unidade doProjeto Casulo, equipamentos de educação daprefeitura – uma escola e uma creche –, e até umaassociação comunitária indígena, pois há 580 índiosPankararó (originários de Pernambuco), que habitamno local. Havia um conjunto residencial Cingapurana entrada da Favela Real Parque, com cerca de 2500moradores. Além das 11 entidades, que formaramuma rede, há inúmeras instituições externas atuandono local via projetos e convênios, tais como a PUC/SP, a Politécnica da USP, a FAU/USP etc.

A FAVELA PARAISÓPOLIS

Paraisópolis, apresentada abaixo por umafoto emblemática, e foi selecionada porque é o maiore um dos mais peculiares agrupamentos de mora-

Foto: Tuca Vieira

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

273

Maria da Glória Gohn

dia em áreas ocupadas ou invadidas de São Paulo.Ela é a segunda maior favela de São Paulo, a quin-ta do Brasil e a quarta na América Latina. Possui89 mil moradores, ocupa 1,5 milhões de metrosquadrados e agrega 21 mil moradias, incluindobarracos, construções em alvenaria e sobrados econstruções mais antigos e sólidos. Em 2000, ocenso do IBGE encontrou ali 65 mil habitantes,sendo 13 mil crianças. Em 1996, segundo dadosdo IBGE, a população da favela Paraisópolis repre-sentava 45% dos habitantes da Vila Andrade, dis-trito onde ela se localiza. Em 2008, esse número jáatingia a cifra de 80 mil habitantes. Em 2009, noti-ciou-se que eram 89 mil, com renda média de R$614,43 (Folha de São Paulo, 3/2/2009, C1). Calcula-se que 80% da população local seja de origem nor-destina, porque a região foi, e continua sendo, umgrande espaço de acolhimento de migrantes daque-la região. Inicialmente, eles vieram para São Paulo afim de trabalhar na construção do estádio do SãoPaulo. Alguns ficaram na região e depois foram tra-balhar na indústria da construção civil, que teveum boom nos anos 70- 80. Aqueles trabalhadores,em sua grande maioria, foram os “recepcionistas”de centenas de parentes e conhecidos do Nordeste,em seus barracos na Paraisópolis. Hoje, grande par-te deles são os faxineiros e porteiros dos edifíciosque ajudaram a construir, e suas mulheres e filhastrabalham como empregadas domésticas nas cente-nas de apartamentos que foram edificados na re-gião.

Em 2008, segundo a Secretaria Municipalde Habitação de São Paulo, o índice de desempre-go na favela era de 22,6%. Paraisópolis é a única,entre as 1573 favelas de São Paulo, cuja área nãopertence ao poder público ou a um pequeno nú-mero de proprietários. Ao contrário, era umloteamento muito antigo; alguns citam os anos 20do século passado como sua origem, ou, mais pre-cisamente, 1923. Eram lotes grandes e chegou a ter2529 proprietários. Com a construção do estádiodo São Paulo e a transferência do governo estadualpara o Palácio do Morumbi, a região foi tomando“ares” de nobreza, lugar de mansões das elites,que foram se deslocando dos Campos Elíseos, no

início do século XX, para Higienópolis e Av.Paulista, a partir dos anos 30, e para os Jardins,nos anos 40-50. Nos anos 60, o ciclo de novosloteamentos que se abriu encontrou, na região doMorumbi, áreas propícias. Era o sonho da casaprópria via a construção de uma minimansão, paramuitos profissionais liberais, professores univer-sitários, comerciantes etc. – as novas camadasmédias então ascendentes.

Nos anos 70, ocorreu o boom da constru-ção civil na Zona Sul de São Paulo, bem como ogrande fluxo migratório do Nordeste para essa ca-pital. Em São Paulo, a partir dos anos 1970, ocu-par terrenos passou a ser a forma de alojamentodos operários da construção civil, pois canteirosde moradia na própria obra não eram usuais. As-sim surgiu Paraisópolis, singular também por tersido criada a partir da ocupação de um loteamentode classe média. Isso gerou casos pitorescos, açõesjudiciais e, posteriormente, dificuldades para aregularização das ocupações, pois os proprietáriosdos terrenos invadidos deixaram de pagar os im-postos, já que o poder público não promovia adesocupação da área, gerando dívidas astronômi-cas com o fisco municipal.

Em 2007, foi promulgado um decreto per-mitindo que esses proprietários doassem os terre-nos na Paraisópolis, abatendo as dívidas dos im-postos, ou trocassem a dívida por certificados daPrefeitura de potencial construtivo – aqueles quepodem ser vendidos a construtoras interessadasem erguer edifícios em regiões onde é possível atroca de limites de zoneamento. O ano de 2007 foitambém o início da implantação do plano de regu-larização fundiária e urbanização da favela, poisseu contingente populacional era de tal ordem, quenão se poderia mais pensar em retirar a populaçãoinvasora, e sim em regularizar a ocupação. Criou-se um Conselho Gestor de Urbanização deParaisópolis, o qual elaborou um plano de obraspara transformar, gradativamente, a favela em umbairro popular. Os próprios moradores passarama se autodenominar como moradores e uma “co-munidade”, não como uma favela.

Em 2001, Paraisópolis inovou quando re-

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

274

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

criou sua associação de moradores, juntamente coma Favela Heliópolis – a maior de São Paulo – sob aforma de uma “Prefeitura Local”. O nome oficialda entidade originária é União de Moradores deParaisópolis, criada em 1983. Atualmente, são re-alizadas eleições na associação a cada dois anos.Um ex-presidente da associação foi também presi-dente da Federação das Favelas de São Paulo, emtrês mandatos, e conseguiu eleger-se vereador em2005 pelo PSDB, mas não se reelegeu em 2008.Nos últimos anos, a favela Paraisópolis, ou a co-munidade de Paraisópolis, como preferem seusmoradores, tem sido assediada por diferentes gru-pos políticos partidários que atuam junto a suasassociações comunitárias. Com isso, as demandastêm se politizado e saído do plano apenas localpara abranger problemas de ordem mais geral eestrutural, como o emprego. Durante a campanhaeleitoral de 2008, por exemplo, a União de Mora-dores sistematizou suas demandas em três reivin-dicações: urbanização com garantia de moradia paratodos, educação (da alfabetização à universidade)e qualificação para um emprego com carteira assi-nada. A União tem atuado desde 2003 no campoda educação – tanto para alfabetização de adultoscomo na oferta de cursos para qualificação profis-sional – em parceria com a Central Geral dos Tra-balhadores do Brasil (CGTB) e a União Municipaldos Estudantes Secundaristas (UMES). Cursos deTécnicas Administrativas, Informática, Manuten-ção de Computadores e Operador de Telemarketingsão ministrados para jovens, que depois são enca-minhados para o Centro de Integração escola Em-presa (CIEE).

A questão educacional é crítica na favela deParaisópolis, pois, em 2008, havia ainda 5000 crian-ças fora da escola. Em 2008, foi inaugurado um CEU(Centro Educacional Unificado), com capacidade paraatender a 2,8 mil alunos; mas dados de 2009 indi-cam que 54% da população da área possuíam ape-nas o ensino fundamental, e só 7% ingressaram noensino do terceiro grau. (Datafolha, 2007). Em 2005,por meio de um projeto de urbanização da prefeituramunicipal e contando com o apoio de dados daSEHAB, “descobriu-se” que a favela tinha 15 mil

analfabetos, cerca de 19% da sua população.Em 2007, auxiliada inicialmente por jovens

do Rotary Clube de Campo Limpo, a União deMoradores criou o projeto Escola do Povo, ao qualse seguiram programas governamentais de alfabe-tização (como o Programa Brasil Alfabetizado), como apoio ou em parceria com entidades como oCarrefour, o Jóquei Clube de São Paulo e lojas doShopping Jardim Sul. O projeto tem até um “pa-drinho”– o jornalista Chico Pinheiro – que aca-bou por divulgá-lo na mídia. Quando a escola foiiniciada, foram mobilizadas 600 alfabetizadores, 15coordenadores e 30 supervisores para atender a1040 alunos, distribuídos em 52 turmas. Mas oprograma cresceu tanto que extrapolou a capacida-de da União em desenvolvê-lo em sua sede e pas-sou a ocupar outros espaços como ONGs, igrejas,garagens, danceterias, e salas da unidade do Hos-pital Einstein que funciona na favela. O projeto dealfabetização da Escola do Povo dura seis meses efunciona duas vezes por semana, com aulas detrês horas. Há propostas para a continuidade doensino fundamental e a conclusão do ensino mé-dio, assim como um convênio com o InstitutoMackenzie para vagas no Prouni. Essa universida-de mantém um cursinho pré-vestibular na favela.

A escola do Povo não é criação da Paraisópolis.Em 2008, havia 15 núcleos do projeto em São Pau-lo, atuando em sedes de Associações de Morado-res e funcionando em vários turnos. Destaca-se,na Escola do Povo, o apoio da Confederação dasMulheres do Brasil (CMB), entidade fundada em1988, assim como o apoio da Federação das Mu-lheres Paulistas (FMP), criada em 1981, a primeirafederação de mulheres fundada no Brasil na eramovimentalista dos anos 80. A favela tem tambémum movimento de mulheres local – a Associaçãode Mulheres de Paraisópolis. O Congresso Nacio-nal Afro-Brasileiro (CNAB), criado em 1995, é ou-tra entidade que apoia a Escola do Povo. Já em2007, o projeto ganhou o prêmio da revista Dolce

Vita, na categoria “Ação em Educação & Cultura”.A Escola do Povo mobiliza igualmente jovens daprópria Paraisópolis e de fora da favela, em con-gressos juvenis, a exemplo do I Conferência da

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

275

Maria da Glória Gohn

Juventude de Paraisópolis, ocorrida em 2008. Osjovens representavam, em 2008, 31% da popula-ção local. Tendências políticas da esquerda, pre-sentes entre organizações de jovens no plano naci-onal, como o MR8, têm participado desses even-tos, principalmente através a UBES – União Brasi-leira dos Estudantes Secundaristas.

Em 2008 a União de Moradores criou umaCozinha Comunitária, a partir de doações,objetivando profissionalizar moradores da área atra-vés da produção e distribuição de alimentos. Em2009, o projeto de uma nova sede para a associação– idealizado pelo arquiteto Franklin Lee – entrouem fase de captação de recursos. Com salas, quadraesportiva, anfiteatro e até horta comunitária, a ideiaé criar um centro cultural que acolha os vários pro-jetos sociais ali desenvolvidos – como a bibliotecacomunitária, a capacitação profissional, a alfabeti-zação de adultos da Escola do Povo e os cursos depré-vestibular. A nova sede deverá ainda promoveratividades socioeducativas e culturais para a popu-lação. O projeto já tem o aval da Secretaria Munici-pal de Habitação e, curiosamente, foi elaborado porum arquiteto que é filho de um ex-proprietário delote na região onde a favela cresceu. Junto da novasede, deverão ser implantadas hortas comunitárias,outro projeto da União. O terreno onde essa sedese localizará é emblemático – fica ao lado de um“escadão” de 183 degraus, que liga a favela à Av.Giovanni Gronchi, principal avenida que corta aregião do Morumbi. Esse “escadão” foi construídoapós muitas demandas e lutas, pois a maior parteda favela fica em um grande buraco, às margens daAv. Gronchi. Como a maioria dos moradores traba-lha na própria região do Morumbi, o acesso às ruasdo bairro ou aos principais pontos de ônibus é feitopor esse “escadão”. O site Paraisópolis informa que

No ano passado (2008), o projeto da União dosMoradores de Paraisópolis ficou entre os 12finalistas do Deutsche Bank Urban Age Award,uma premiação que, naquele ano, selecionou tra-balhos que apresentaram soluções criativas paraproblemas de São Paulo. A sede da associação foiescolhida entre 133 projetos. Mas quem ganhouo prêmio de U$ 100 mil foi o programa derevitalização de um cortiço do centro da capital.(www.paraisopolis.org).

Ainda no plano de projetos, em 2009,Paraisópolis esteve representada na Bienal de Arqui-tetura de Roterdã. O projeto apresentado reuniu trêsgrupos internacionais de arquitetos: o Urban ThinkTankde Nova York, ligado à Universidade deColumbia, o Elemental do Chile, ganhador do Leãode Prata da Bienal de Veneza de 2008, e o suíçoChristian Kerez, famoso por suas obras minimalistas.Do Brasil participaram Edson Elito, criador do Tea-tro Oficina, Lina Lo Bardi, Ciro Pirondi, criador daEscola da Cidade, e Marcos Boldarini.

O diferencial do projeto não é apenas o ca-ráter internacional de seus formuladores e o status

que ganhou ao ser apresentado na Bienal de Ro-terdã. O diferencial é a possibilidade da participa-ção dos moradores na execução de suas novasmoradias (compondo o interior ou criando a pró-pria fachada) e a existência de espaço para futurasexpansões. Em termos do coletivo, o projeto in-clui um Centro Comunitário e uma Escola deMúsica, elevadores em áreas de grandes desníveis(lembrando o elevador Lacerda, de Salvador),despoluição do córrego local e criação de áreas delazer nas suas margens, prédios de uso misto (mo-radia e comercial), ciclovias de acesso à futura es-tação do metrô da região. Ou seja, no projeto,Paraisópolis se transformaria em um território quejustificaria seu nome – “cidade paraíso”. Comoisso, realmente, se desdobrará, como serão evita-das novas ocupações que continuamente adensamo local, ou como serão contornados problemas fo-cais como violência e drogas são indagações quesurgem à primeira vista. Segundo a Prefeitura deSão Paulo, ela já disponibilizou recursos para aexecução de partes do projeto, cuja conclusão estáprevista para 2011.

Como foi visto, a favela Paraisópolis desta-ca-se no conjunto das existentes em São Paulo nãoapenas pela sua origem (um loteamento particularque foi invadido aos poucos) e pela sua localiza-ção – encravada junto a mansões e condomíniosde luxo ou básicos – de moradia das camadasmédias. Ela se destaca, também, porque tem o apoiode um conjunto de personalidades, empresas e

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

276

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

empresários. O site já mencionado acima listou,em 2008, 41 entidades ou projetos sociais que atu-avam na comunidade, alguns com sede na própriacomunidade e outros não. Atualmente, existemcerca de 50 entidades, entre associações, ONGs einstituições filantrópicas que desenvolvem proje-tos e trabalho social em Paraisópolis, sendo os maisfamosos o Hospital Albert Einstein e a ONG Meni-nos do Morumbi. O Programa Einstein na Comu-nidade foi criado em 1998 e possui um ambulató-rio hospitalar dentro da própria favela, além deum extenso programa de voluntariado. A Univer-sidade Mackenzie desenvolve um cursinho pre-paratório para vestibulares na favela. Há um Espa-ço Esportivo e Cultural Bovespa e uma Escola daComunidade, mantida pelo Colégio Porto Seguroque atende, em suas instalações, a 850 crianças deParaisópolis, em atividades de reforço escolar. Re-gistram-se, também, iniciativas louváveis, como ade um morador que criou uma biblioteca para con-sulta pública aberta aos demais moradores da fa-vela. Nos últimos anos, inúmeros projetos sociaistêm se destacado em Paraisópolis no campo daeconomia solidária, com pequenos empreendimen-tos para geração de renda, especialmente oficinasde costura para confecção de jeans reciclados. Osprodutos são vendidos em Shopping Centers dacidade. Moradores da favela lutaram e consegui-ram a concessão de uma rádio comunitária parater espaço e alternativas de informação para a po-pulação local. Há um jornal, o Espaço do Povo,uma publicação do Centro Cultural Espaço Jovemda Paraisópolis.

Em 2009, encontramos cinco Associaçõesde Moradores ou de Amigos que atuam dentro deParaisópolis. A mais ativa é a União de Moradorese do Comercio de Paraisópolis, que abriga váriosdos projetos citados acima, assim como acolheONGs e outros movimentos sociais, como a Asso-ciação da Mulheres de Paraisópolis. No conjuntodas entidades, destaca-se também o Fórum Multi-entidades de Paraisópolis, criado em 1994, o qualcongrega as ONGs do bairro. “São cerca de 25 en-tidades que operam em rede, com reuniões men-sais nas diversas organizações em sistema de rodí-

zio, objetivando fortalecer as iniciativas popularesem Paraisópolis e os esforços para melhoria daqualidade de vida na região. Não tem filiação polí-tica, religiosa ou comercial”, segundo informaçãodivulgada no site www.paraisopolis.org.

Associações de moradores de favelas, comoa de Paraisópolis, conseguem algum espaço na mídiapela sua densidade populacional, ou quando ocor-rem desastres – incêndios, deslizamentos na épocadas chuvas, crimes e sequestros-relâmpago. Em2001, houve um grande incêndio na favela, e 79famílias perderam suas casas. Em 2002, o incêndioocorreu no Jardim Panorama, e 742 pessoas ficaramdesabrigadas. Em 2009, uma rebelião relacionada acrimes e drogas levou à ocupação da favela pelasforças policiais. Foi o maior noticiário já feito sobreParaisópolis na mídia televisiva, on line e escrita.Foi organizada uma grande operação policial queocupou a favela por vários dias, após um grandemotim e quebra-quebra. O motivo inicial noticiadofoi uma rebelião de moradores, que fecharam aveni-das importantes próximas à favela, atearam fogo empneus, pedaços de madeira etc., em protesto contraa morte de um morador. Inicialmente, 150 soldadosda PM foram deslocados para o local e houve umconflito que durou seis horas, com tiroteios, pri-sões, barricadas e feridos. A favela ficou às escuras,entradas e saídas foram proibidas. As cenas daocupação policial e a resistência de moradores combarricadas de fogo, paralisação do trânsito local etc.foram ao ar em jornal nacional, em chamadas naTV, à moda de como são reportados acontecimentosde urgências e catástrofes. Nos dias que se seguiramaos conflitos, a favela foi ocupada por cerca de 300policiais, alterando o cenário e o imaginário da po-pulação moradora ao redor da favela. Uma moradorade um prédio de alto padrão, próximo à favela, che-gou a afirmar, em entrevista na mídia, que “caiu aficha” sobre onde morava, e comparou a situaçãocom a do Rio de Janeiro. Por vários dias, a entrada ea saída dos moradores da favela foi controlada, e aimprensa noticiou cenas de medo e violência.

Deve-se destacar ainda a intensa sociabili-dade existente na Paraisópolis devido às redes devizinhança e parentesco existentes. Pesquisa de

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

277

Maria da Glória Gohn

Comin (2008) comprovou que “os mecanismos deintegração social produzidos pelas redes de rela-ções primárias e associativas, tais como as religio-sas, as familiares, as de vizinhança, as de carátercivil etc., que se entrecruzam e se retroalimentam.”,e explicam grande parte da estrutura social exis-tente. O dinamismo da vida sociocultural existen-te não se deve, portanto, apenas à presença de umagrande rede de associações, ONGs e entidades deapoio, mas se deve, sobretudo a redes pessoais,aos laços sociais e à experiência cotidiana das pes-soas e dos diferentes grupos sociais locais, decompartilhamento de valores, estruturas de paren-tesco, amizade etc..

A PARTICIPAÇÃO DOS MORADORES DONOVO MORUMBI E DA VILA SÔNIA NAGESTÃO URBANA

Alvaro Comin destaca que “transformaçõesna estrutura produtiva, no mercado de trabalho, noterritório e nos instrumentos urbanísticos são ape-nas algumas das grandes questões que precisam denovas lentes para a produção de análises que subsi-diem o planejamento da cidade” (2008). Acompa-nhar as relações que vêm se estabelecendo entre osdiferentes segmentos socioeconômicos doa regiãodo Morumby, no que se refere ao planejamento ur-bano da área, faz parte desse novo olhar, ou de no-vas lentes. Assim, na elaboração do Plano Regionaldo Morumbi, em 2003, o problema principal de-mandado pelas entidades que representam as áreasnobres dizia respeito ao trânsito. Segundo um dosdiretores das entidades citadas acima, “a região foiprojetada para ser fechada em termos urbanísticos,mas hoje é um bairro de passagem, o que aumentademais o trânsito local”. Certamente que a lideran-ça em tela se refere a partes do núcleohorizontalizado, de casas e grandes sobrados. Mas,de fato, as vias de transito local da região, ou de sualigação com as áreas mais centrais, são praticamenteas mesmas de décadas atrás, quando o bairro nãohavia se verticalizado. Foram criados novos aces-sos à região, mas o grande problema atual é o fluxo

de carros, a falta de alternativas na malha viária.Os moradores do Novo Morumbi deman-

daram, no Plano Diretor em 2003, a construção deuma nova ponte sobre o Rio Pinheiros e um túnelsob a Av. Giovanni Gronchi, ligando a Av. JoãoDias à Av. Francisco Morato. Demandaram tam-bém uma regulamentação sobre a abertura de su-permercados e estabelecimentos comerciais na re-gião: formularam a sugestão de proibir os que te-nham menos de 1.000 m2. A ponte foi construída;aliás, foram duas – uma delas inaugurada em 2007,conhecida como ponte estaiada, ganhou o nomedo jornalista Otávio Frias, e logo foi incorporadacomo novo marco da arquitetura paulistana, trans-formando-se rapidamente em um dos cartões pos-tais de São Paulo. Até a Copa do Mundo de 2014,está prevista a construção de novas vias para otransporte na região, inclusive uma linha demonotrial, tendo em vista que o Estádio doMorumbi, localiza-se na região.

Agravando o tráfego na região, para além dadensidade populacional, há um grande númerode escolas particulares tradicionais e famosas emSão Paulo. Só nos subdistritos do Morumbi pro-priamente dito e da Vila Andrade, há 19 grandesescolas particulares e 8 públicas, além de hospi-tais famosos, como o Albert Einstein e o São Luiz,e o próprio trânsito diário ao Palácio do Governo.

Ao final de 2008, após um curto período decrise econômica – fruto da conjuntura internacio-nal – o governo federal deu grande incentivo àaquisição de carros novos, ao reduzir alíquotas deimpostos sobre os automóveis e outros bens. Essefato aumentou enormemente a frota de veículoscirculantes na capital paulista, como em todo opaís, agravando os problemas de trânsito. Na re-gião do Morumbi, o resultado foi um verdadeiro“engessamento” na principal via de acesso da re-gião, a Av. Giovanni Gronchi, tornando o fluxo desaída e entrada dos moradores da região, pela ma-nhã e à tarde, uma verdadeira via crucis diária.

Nesse cenário, os moradores da região no-bre do Morumbi reivindicam a construção de umaavenida paralela à Av. Giovanni Gronchi (o que éum problema social, porque implica desalojar parte

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

278

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

dos moradores de Paraisópolis), além de mais umaponte para atravessar o Rio Pinheiros. Essas duasgrandes obras estão previstas para conclusão até2014. Há ainda, no bairro, córregos não canaliza-dos e problemas de alagamento na época das chu-vas ao redor do estádio conhecido como estádio doMorumbi, que também deverápassar por grandesreformas.

A defesa do verde, principalmente em áre-as que ainda não foram devastadas, é a segundamaior reivindicação dos moradores das áreas no-bres. A diferença é que eles não ficam apenas nodiscurso ou reivindicação da preservação do ver-de: eles assumem obras de reurbanização, fazemparcerias com a subprefeitura e urbanizam praças.Há também uma grande articulação contra adensificação disfarçada dos bairros nobres: casa-rões que ocupam grandes terrenos têm sido ad-quiridos por grandes incorporadores que constro-em condomínios horizontais de casas térreas ousobrados. Em alguns casos, um lote gera 8 ou 10novas moradias, algumas de alto luxo, preços al-tos e uso de tecnologia informatizada em seu inte-rior. Segundo os líderes de entidades de morado-res, esse tipo de moradia trará a degradaçãoambiental porque aumentará o fluxo de pessoas ede carros, com perda da qualidade de vida, asso-ciada à existência de grandes áreas verdes e redu-zida poluição. O preço que dizem pagar por essaperda é o isolamento, a distância, a falta de segu-rança e problemas de trânsito.

Já os representantes das associações das fa-velas locais têm outras prioridades. O presidenteda União de Moradores e do Comércio deParaisópolis demandou a reurbanização da área,centros de lazer e a abertura de ruas sem saída quecortam a favela Paraisópolis e não tem acesso àGiovanni Gronchi. Para a maioria das favelas, sa-neamento é a prioridade atual, principalmente acanalização de córregos. Em Paraisópolis, já bas-tante urbanizada, reivindicam-se equipamentos delazer, pelo fato de não se ter nenhuma praça ouárea para a prática de esportes ou outra recreação.Em 2008, a favela também inovou ao organizar umsetor de esportes e sua participação no Programa

Circuito das Corridas Populares. A corrida foi emruas da própria favela, mas contou com treinos etreinador. Observe-se que a entidade de morado-res de Paraisópolis é uma novidade criada nos anos1990 no associativismo urbano das camadas po-pulares, porque inclui a representação dos mora-dores junto com a dos comerciantes. Nos anos1950-1960 e 1970, os comerciantes também pre-dominavam nos cargos das antigas SABS, mas onome da entidade, sua identidade, era a de mora-dor e não a do comerciante.

Todo o cenário descrito está sofrendo alte-rações no final desta década, a partir das novasorientações e regulamentações advindas do Esta-tuto das Cidades, que obriga cada município acuidar de suas áreas com habitação subnormal ouirregular.

Se essa política for efetivamente implementada,moradores de favelas como os da região do Morumbideverão, necessariamente, dialogar com os vizinhospara a delimitação da região fundiária e outros temas(negociando com os ricos das “mansões” ou propri-etários das glebas de terras onde estão instalados),para definir quem os representará nesses diálogos.Certamente, as Sociedades Amigos de Bairros ganha-rão vida e luzes da mídia nesse processo. Algumasentidades já estão caminhando nessa direção, comoo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), que inau-gurou, em 2003, um projeto na favela Real Parque epropôs um Conselho Gestor tripartite para adminis-trar o equipamento, composto de moradores (favelase condomínios), poder público e técnicos e empresá-rios do ICE.

CONCLUSÕES

Há um novo modelo de urbanização emcurso em São Paulo, pois ricos e pobres convivemna mesma região, separados muitas vezes por ummuro, uma avenida, um pequeno morro. O mode-lo da segregação em áreas periféricas não acabou,já que novas periferias continuamente estão se for-mando, em anéis concêntricos à cidade e cada vezmais longe de suas fronteiras. Mas a pobreza que

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

279

Maria da Glória Gohn

se estabeleceu nos anos 1960-70, em áreas consi-deradas então como periféricas, agora convive commansões e condomínios de luxo, a exemplo doscasos aqui retratados. É um processo diferente doque ocorre no Rio de Janeiro, porque foram osmoradores de maior poder aquisitivo que avança-ram em áreas periféricas, ocasionando uma“carioquização” da ocupação do solo em São Pau-lo. Favelas que não se situam em morros, mas embaixadas e declives, convivem ao lado de condo-mínios de luxo. Os mesmos problemas de segu-rança, tráfico, guerra, entre quadrilhas e outrasmazelas dos poderes paralelos, estão também pre-sentes em São Paulo, da mesma forma que no Riode Janeiro.

Os pobres garantem sua sobrevivência tra-balhando no setor de serviços para os ricos oucamadas médias do Morumbi. E sobrevivem tam-bém graças às redes de sociabilidade que desen-volveram entre parentes e “conhecidos da terra”.Duas cidades convivem lado a lado, e a dos po-bres consegue alguns melhoramentos graças àsações solidárias e às redes de associativismo exis-tentes. No caso da favela Paraisópolis, essa redeinclui moradores e lideranças, sendo que algumasdelas têm percorrido os caminhos já clássicos napolítica brasileira: presidente da associação demoradores, vereador, etc. Há também uma fortepresença de agentes externos, que podem ser sub-divididos em duas categorias: aqueles que desen-volvem ações sociais de diferentes tipos na favelae os que apoiam financeiramente os projetos soci-ais ou a mídia (jornalistas, radialistas, jogadoresde futebol, fundações empresariais e outros agen-tes do Terceiro Setor).

Costurando esse leque de relações, ações eprojetos, encontramos a presença do poder públi-co, via programas sociais, como o Bolsa Família, oBrasil Alfabetizado, ações na área da saúde e edu-cação, assim como a ocupação ou intervenção mi-litar em situações de conflito. Partidos e grupospolítico-partidários também atuam na favela, prin-cipalmente na programação com os jovens. Movi-mentos sociais, como o das mulheres ou dosafrodescendentes, convivem com associações,

ONGs e outras entidades caritativas e assistenciais.Do ponto de vista da religião, todas as seitas e cren-ças são encontradas, mas são os católicos que es-tão à frente da maioria das ações sociais, via osmosteiros e colégios que possuem no Morumbi edo trabalho de instituições que contam com seuapoio, como a Cáritas. Destaque-se também o gran-de número de organizações espíritas na região.

Concluindo, este texto desenhou o cenáriode uma região “famosa” e contraditória de São Pau-lo: o Morumbi. Local de moradia de ricos e mora-dia e trabalho de pobres. A sociabilidade e a soli-dariedade existentes contêm elementos novos eelementos “antigos” agora reciclados, como as for-mas tradicionais de participação – via associaçãode moradores, grupos político-partidários e unspoucos movimentos sociais propriamente ditos.Podemos falar de um interclassismo em curso, cominterações e diálogos sobre questões comuns, masseparação e defesa de interesses de classes especí-ficos no tratamento de outras questões. Noassociativismo existente, não se trata do dualismoentre o tradicional e o moderno, nem do velho edo novo. Trata-se de um novo amálgama, em queum novíssimo tipo de associativismo está nascen-do, interclassista, carregando elementos conserva-dores mas também pequenos grãos de inovações epossibilidades transformadoras. A Escola do Povopode ser citada como um de seus exemplos. Aexperiência de Paraisópolis é completamente dife-rente de outras formas de urbanização já ocorridasem São Paulo, porque ela está passando da fase“favela” para a fase “bairro popular”, sem expul-sar seus antigos moradores.

(Recebido para publicação em dezembro de 2009)(Aceito em fevereiro de 2010)

REFERÊNCIAS

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia.A cidade do pensamento único: desmanchando consen-sos. Petrópolis: Vozes, 2000.

AVRITZER, Leonardo (Org.). A participação em São Pau-lo. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

280

MORUMBI: o contraditório bairro-região de São Paulo

BLOCH, Janaina Aliano. Movimentos de moradia no cen-tro de São Paulo. 2007. Dissertação (Mestrado em Socio-logia) - Universidade de São Paulo, 2007

BÓGUS, Lúcia M.M.; TASCHNER, Suzana P. A Cidadedos anéis. Cadernos de Pesquisa do LAP, São Paulo, FAU/USP n.28, 1998.

CALDEIRA, Tereza Pires. Cidades de muros. Crime, segre-gação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/EDUSP,2000.

CALDERÓN, Adolfo C.; CHAIA, Vera (Org.) Gestão Mu-nicipal: descentralização e participação popular. São Pau-lo: Cortez Ed. 2002.

CARLOS, Ana F.; OLIVEIRA, Ariovaldo U. (Org.) Geogra-fias de São Paulo. A metrópole do século XXI. São Paulo:Contexto, 2004. v.2.

COMIN, Alvaro. Dinâmica econômica e transformaçõesterritoriais da Cidade de São Paulo. São Paulo: CEBRAP,2008.

CONFERÊNCIA DAS CIDADES. Carta de Convocação eDocumento Final. São Paulo: 2001.

DAGNINO, E.; OLVERA, A .J.; PANFICHI, A. (Org.) Adisputa pela construção democrática na América Latina.São Paulo/Campinas: Paz e Terra; Unicamp, 2006.

IBGE. Censo de 2000. Rio de Janeiro: 2002.

INSTITUTO FLORESTAN FERNANDES. São Paulo: di-nâmicas e transformações.São Paulo: 2001. 1CD

FIPE. Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Cor-tiços na cidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1994.

FIX, Mariana. A ‘fórmula mágica’ da ‘parceria: operaçõesurbanas em São Paulo. Cadernos de Urbanismo. Rio deJaneiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, v.1, n.3, 2000.

FÓRUM Nacional de Participação Popular nas Adminis-trações Municipais.Poder local, participação popular econstrução da cidadania. São Paulo: Ed. Instituto Cajamar/Instituto Polis/FASE/IBASE, 1995

FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. Estatutoda cidade. São Paulo: [s.d.].

GOHN, Maria da Glória. Reivindicações populares urba-nas. São Paulo: Cortez , 1982.

______. Teoria dos movimentos sociais. 8.ed. São Paulo:Edições Loyola, 2008.

______. Conselhos gestores e participação sociopolítica.3.ed. São Paulo: Cortez, 2007.

______. Movimentos e lutas sociais na História do Brasil.4.ed. São Paulo: Loyola. 2008.

______. Sem-terra, ONGs e cidadania. 3.ed. São Paulo:Cortez. 2003

______. Movimentos sociais e educação. 7.ed.São Paulo:Cortez, 2009.

______. (Org.). Movimentos sociais no século XXI. 3.ed.Petrópolis: Vozes, 2004.

______. O protagonismo da sociedade civil: movimentos so-ciais, ONGS e redes solidárias. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

______. Os movimentos sociais em São Paulo. In: BÓGUS,Lúcia M.M.; TASCHNER, Suzana.(Org.). Como anda SãoPaulo. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles/LetraCapital, 2009. Cap. 8, p.231-250.

MARQUES, Eduardo C. Projeto redes sociais, sociabilida-de e pobreza. São Paulo: Cebrap, 2008.

MIAGUSKI, Edson. Os movimentos de moradia de SãoPaulo nos anos 90: entre a experiência democrática e o

encapsulamento privado. 2008. Tese (Doutorado em So-ciologia) - Universidade de São Paulo, 2008.

POCHMANN, Márcio; AMORIN, Ricardo (Org.). Atlas daexclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003.

RICCI, Rudá. Associativismo paulistano e culturaambivalente. In: AVRITZER, Leonardo (Org.). A partici-pação em São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

SANTOS, Boaventura S. (Org) Democratizar a democra-cia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 2002

SOUZA, Maria Adélia. A identidade da metrópole.Verticalização em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1999.

TASCHNER, Suzana P. Desenhando os espaços da pobre-za. Cadernos de Pesquisa LAP. São Paulo, FAU/USP, n.39,2004.

TEIXEIRA, Elenaldo. O local e o global-limites e desafiosda participação cidadã. São Paulo: Cortez, 2001.

TOURAINE, A. Podremos vivir juntos? Buenos Aires:Fondo de Cultura Econômica, 1997.

NOTA:

Aprovado em Agosto de 2002 pela Câmara Mu-nicipal de São Paulo, e sancionado em setembrodo mesmo ano, o Plano Diretor estabeleceu umcronograma de trabalho, dividido em três etapas,para que as 31 subprefeituras elaborassem seusplanos regionais. e constituiu-se numa oportuni-dade para a reativação do papel das SociedadesAmigos de Bairros, Associações de Moradores,Associações de Favelas, etc. e para o surgimentode novos movimentos sociais, na área da Segu-rança e Cidadania; e para a legitimação - pela mídiaescrita, de alguns movimentos que já existiam masnão eram tão conhecidos pela a opinião pública,a exemplo do “Defenda São Paulo”, “Viva Cen-tro”, “Paulista Viva”etc. assim como resgatou opapel do profissional do urbanismo como atorrelevante - elaborando propostas ou criticando-as/comentando-as na mídia. A participação dasentidades se fez predominantemente nas etapas 1e 2 pois elas objetivam, segundo o então Secretá-rio de Planejamento Urbano, Jorge Wilheim cap-tar “respostas locais àquilo que é o objetivo doplano regional, onde se pode melhorar o ambien-te, a habitação, o que há para preservar e quais oscentros de bairro a serem dinamizados” (Folha deSão Paulo, 16/10/2002, C1).O Plano voltou a serrediscutido em 2008 e deverá sofrer novas modi-ficações em 2009-2010.

CA

DER

NO C

RH

, Sal

vado

r, v.

23,

n. 5

9, p

. 267

-281

, Mai

o/A

go. 2

010

281

Maria da Glória Gohn

MORUMBI: le quartier-région contradictoire deSao Paulo

Maria da Glória Gohn

Il s’agit d’une étude concernant le processusd’urbanisation dans l’un des quartiers les pluscontradictoires de la ville de Sao Paulo : le Morumbi.Actuellement, la région du Morumbi abrite ladeuxième plus grande favela de Sao Paulo, Paraisópolis,qui occupe le cinquième rang des favelas au Brésil etle quatrième en Amérique Latine. Vu la complexitédu quartier-région en termes socio-économiques,politiques, culturels et environne-mentaux, les donnéessont analysées en fonction de deux mouvementsarticulés. Le premier, plus général, décrit le scénariode ses paysages, les changements qui ont eu lieu aucours des 30 dernières années autant en ce quiconcerne la “verticalisation” des habitations pour lesclasses moyennes et les classes supérieures que lacréation de pôles de consommation de luxe et laconstruction de tours modernes de bureaux. Ledeuxième mouvement reflète l’expansion et lacroissance de ses favelas et analyse la sociabilité quiexiste au sein des associations d’habitants deParaisopolis et les principaux projets sociaux qui y sontimplantés.

MOTS-CLÉS: associativisme civil, requalification urbainemétropolitaine, projets sociaux en zones pauvres,Morumbi et Favela Paraisópolis, Sao Paulo.

MORUMBI: the contradictory region-neighborhoodof São Paulo

Maria da Glória Gohn

This paper presents a study on the urbanizationprocess in São Paulo on one of its more contradictorydistricts: Morumbi. Currently, the Morumbi region hasthe second largest slum in Sao Paulo, Paraisópolis, thefifth in Brazil and fourth in Latin America. Given thecomplexity of region-neighborhood in socioeconomic,political, cultural and environmental terms, in thispaper, data are analyzed according to two articulatedmovements. The first, more general, depicts the sceneof its landscapes, the changes over the past 30 years,regarding both the verticalzation of housing for theupper and middle layers of the population, and thecreation of points of luxury consumption and modernoffice towers. The second movement depicts theexpansion and growth of its slums, analyzing existingsociability in residents’ associations of Paraisóplolisand major social projects that are developed there.

KEYWORDS: civil associativism, metropolitan urbanrequalification, social projects in poor areas,Paraisópolis Slum and Morumbi, São Paulo.

Maria da Glória Gohn – Doutora em Ciência Política. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação daFaculdade de Educação da Unicamp e do Programa de Pós Graduação da Universidade Nove de Julho e deComitês Acadêmicos e de Assessoramento da ISA e do CNPq.Vice-Presidente do Comite “Social Movementsand Social Classes” da ISA-International Sociological Association. Tem experiência na área de Sociologia,com ênfase em Sociologia Urbana e Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas:movimentos sociais, participação social, educação não-formal, associativismo, cidadania e políticas sociais.Entre as suas publicações mais recentes estão os livros Novas Teorias dos Movimentos Sociais (2 a. ed. SãoPaulo: Edições Loyola, 2009), Movimentos Sociais e Educação (7 a. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009),Movimentos Sociais no Início do Século XXI (4 a. ed. Petrópolis: Vozes, 2010), Educação Não Formal e oEducador Social- Atuação no desenvolvimento de projetos sociais (São Paulo: Cortez, 2010), MovimentosSociais e Redes de Mobilizações no Brasil Contemporâneo (Petrópolis: Vozes, 2010).