Marginais Evel Rocha

6
1 Meninos Sem V(e)oz. Os Marginais, de Evel Rocha No princípio era a corrupção e a corrupção era deus. A corrupção estava no princípio com deus. Todas as coisas foram feitas pela corrupção E sem ela , nada do que foi feito se fez Sérgio Pitboy em Marginais, de Evel Rocha “Um soco no estômago da sociedade, porque choca as pessoas.” 1 Assim, Evel Rocha, autor de Marginais, romance publicado em Cabo Verde em 2010, descreve sua obra em entrevista publicada na revista A Semana. A fala de Rocha é ilustrativa da sensação, misto de agonia, perplexidade e indignação que advém da leitura da obra. A bala que estoura da arma do narrador é simbólica, pois é representada através do texto, do relato perfuro-cortante de Sérgio Pitboy, que não tem outra forma de fazer- se ver no mundo senão a partir de sua própria história, invisível e inaudível desde sempre, mas tornada “real” pela voz do outro, o “autor” que possibilita a reconstrução da vida dos marginalizados da Ilha do Sal, em Cabo Verde. A bala é, sim, simbólica, mas permanece alojada no corpo do leitor, que a percebe de maneira dolorosa a cada leitura. É um soco no estômago de uma sociedade excludente, que prefere não enxergar o que lhe é estranho, mesmo com a consciência de que esse elemento a ser fagocitado é 1 cf. ROCHA, Evel. Entrevista: Evel Rocha: “Sal em todos os condimentos para se r um cenário ideal para literatura”. A Semana, 04 de Setembro de 2010. Disponível em: <http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article55969&ak=1>. Acesso em 03/06/2013

Transcript of Marginais Evel Rocha

Page 1: Marginais Evel Rocha

1

Meninos Sem V(e)oz. Os

Marginais, de Evel Rocha

No princípio era a corrupção e a corrupção era deus.

A corrupção estava no princípio com deus.

Todas as coisas foram feitas pela corrupção

E sem ela , nada do que foi feito se fez

Sérgio Pitboy em Marginais, de Evel Rocha

“Um soco no estômago da sociedade, porque choca as pessoas.” 1 Assim, Evel

Rocha, autor de Marginais, romance publicado em Cabo Verde em 2010, descreve sua

obra em entrevista publicada na revista A Semana. A fala de Rocha é ilustrativa da

sensação, misto de agonia, perplexidade e indignação que advém da leitura da obra.

A bala que estoura da arma do narrador é simbólica, pois é representada através

do texto, do relato perfuro-cortante de Sérgio Pitboy, que não tem outra forma de fazer-

se ver no mundo senão a partir de sua própria história, invisível e inaudível desde

sempre, mas tornada “real” pela voz do outro, o “autor” que possibilita a reconstrução

da vida dos marginalizados da Ilha do Sal, em Cabo Verde. A bala é, sim, simbólica,

mas permanece alojada no corpo do leitor, que a percebe de maneira dolorosa a cada

leitura. É um soco no estômago de uma sociedade excludente, que prefere não enxergar

o que lhe é estranho, mesmo com a consciência de que esse elemento a ser fagocitado é

1 cf. ROCHA, Evel. Entrevista: Evel Rocha: “Sal em todos os condimentos para se r um cenário ideal para literatura”. A Semana, 04 de Setembro de 2010. Disponível em: <http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article55969&ak=1>. Acesso em 03/06/2013

Page 2: Marginais Evel Rocha

2

real e representa o pior traço dos efeitos da exploração desmedida sobre o outro. Nas

palavras do indivíduo autor que “empresta corpo” à voz de Sérgio Pitboy, “Este livro

reflecte a psicose social, a paranóica justeza das leis que regem o nosso destino que,

paradoxalmente, só estão ao alcance de uma minoria.” (ROCHA, 2010, p. 14)

De maneira paradoxalmente semelhante à da “poética do mar”, tão cara à

geração da Revista Claridade, na narrativa de Evel Rocha a margem não é a da praia,

não é a da imensidão do oceano que oferece uma possibilidade de fuga, de sonho, mas a

margem humana daqueles que foram relegados à periferia da dignidade social, cultural,

econômica e também sexual. A margem ali representada está postulada até mesmo no

espaço geográfico sobre o qual se desenrola a narrativa. Conferindo-lhe

verossimilhança, o espaço dos marginais é o da periferia do Sal, à margem dos centros

comerciais e turísticos.

Marginais é um romance de formação que escapa ao cânone, como aponta

Mário César Lugarinho. A narrativa acompanha o desenvolvimento físico, psicológico e

social do protagonista, mas difere do gênero acima referido, pois, ao contrário do que se

pode notar na literatura do século XIX, não há orientação a partir do modelo burguês. O

universo dos marginalizados nos é apresentado a partir da periferia, “onde a inexistência

de um poder público que organize o espaço já predestina cada personagem antes de seu

nascimento.” 2

Se assim é, ousamos dizer que o espaço e o ideal burgueses surgem como o

paradigma da condenação. O indivíduo marginal definitivamente não pertence a esse

mundo “capital-burguês”, portanto - sobretudo antes do esgotamento e completa falta de

esperança do protagonista, quando Sérgio sonha em ser advogado, jogador de futebol,

2cf. LUGARINHO, Mário César. “Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e gênero.” Via Atlântica, São Paulo: FFLCH, Dezembro de 2012.

Page 3: Marginais Evel Rocha

3

cantor, enfim, algo que o tirasse da periferia e o levasse ao centro dos acontecimentos,

algo que o fizesse “existir” plenamente diante do olhar da sociedade -, pode-se inferir

que a aproximação ao modelo ideal da organização burguesa surge aí como marca de

opressão e não de identificação.

É um tanto interessante notar como estamos diante de um relato de garotos sem

voz: Sérgio, Fusco, Pianista, Mirna e todas as outras figuras - reais, porém alegóricas na

sua representatividade essencial -, marginais destacadas no romance não tem vez, nem

tampouco voz. Só conhecemos a história desses meninos emudecidos – exatamente

porque são privados da possibilidade de falar, não porque sejam fisicamente

impossibilitados3 -, através de um narrador que é identificado como pertencente a um

grupo diferente da personagem central do romance, como notamos no relato do próprio

“autor”, que supostamente recebe das mãos de Sérgio os apontamentos que constituirão

a narrativa que se seguirá:

“Há muito que desejava encontrar-me consigo para conversarmos, mas como o

senhor engenheiro é um homem muito ocupado, fui escrevendo essas anotações que

agora lhe entrego.” (ROCHA, 2010, p. 13)

Não obstante o fato de que o relato é “filtrado” pelo autor, é essa voz de

empréstimo que faz com que as vidas destes seres humilhados venham à tona e, de certa

forma, ganhem notoriedade diante do leitor e, simbolicamente, atinjam um lugar de

permanência, uma marca de suas existências constantemente negadas.

3O tema da “voz” dos marginalizados é tratado na obra de Gayatri Spivak, Can the Sublatern Speak?. É muito interessante notar que a escolha da forma verbal can, no título original em inglês, contrasta com outra possibilidade de expressar tal ideia, através da forma verbal may. Os elementos postos à margem na sociedade podem se manifestar? Tem possibilidade de fazê-lo ou lhes é negada completamente essa condição?

Page 4: Marginais Evel Rocha

4

Em Marginais a aproximação do leitor com as personagens, sobretudo com

Sérgio Pitboy, ocorre a partir de um processo de identificação inversa. Ora, Sérgio não é

modelo de herói, ao contrário, é cheio de vícios, mente à própria mãe, furta e rebela-se

constantemente – o símbolo da revolta de Sérgio é o cruel e inescrupuloso advogado

Apolinário. Nada nesse comportamento, contudo, é gratuito, Sérgio não sofre de uma

falha de caráter, antes, o que lhe acomete é a falta de possibilidades, é a maneira de

sobressair-se aos desmandos do mundo:

“Vender charros, ser moço de brigas, um Pitboy dos maus, ladrão de fruta... é

muita maldade, mas uma maldade necessária, uma maldade de sobrevivência.”

(ROCHA, 2010, p. 40)

“Cumpria-se a lei da natureza: nesta vida é matar ou morrer! Nesta selva, os

mais fortes alimentam-se dos mais fracos, a morte para uns é a sobrevivência para

outros.” (ROCHA, 2010, p. 100)

O malogrado desfecho do protagonista reflete uma espécie de realismo

naturalista, fruto de uma narrativa que corrobora o fatalismo, o determinismo de

maneira absurdamente escancarada. Nada ali é ameno, nada também é gratuito; é como

se houvesse um prenúncio da desgraça a cada relato, é como se a cada vez que esses

indivíduos fossem terrivelmente atacados, fosse também um pouco mais de sua

identidade, um pouco mais de sua voz e possibilidade de defesa diante de um estado que

não lhes percebe como cidadãos:

“Andar por aí a denunciar os polícias que violam menores é o mesmo que

assumir que <<andamos a dar polpa>>.

Desaprendi a amar.” (ROCHA, 2010, p. 109)

Page 5: Marginais Evel Rocha

5

Os sonhos que fomentaram uma fagulha de esperança na vida de Sérgio Pitboy e

os outros garotos e garotas da “gangue” esvaem-se, gradualmente, até transformarem-se

num completo descrédito diante do mundo e do outro. Esses indivíduos têm suas

identidades apagadas, não fosse o último apelo do protagonista em pedir que suas

histórias fossem contadas -“se achar que vale a pena publicá-las -, de maneira a

perpetuar suas vozes. Sem esperança, contudo, de que o ciclo vicioso da marginalização

e da anulação desses sujeitos deixasse de se repetir incessantemente:

“Gertrudes (...) irá fracassar na vida escolar, culpará os outros como Adélia e eu

fizemos no passado, trocará a escola pela vida nocturna de Espargos e Santa Maria,

prostituirá o corpo porque sente se sentirá excluída dos projectos sociais, será explorada

e pagará o preço de ser pobre e indigente.” (ROCHA, 2010, p. 219)

Citando Mário César Lugarinho, “Não haveria, assim, saídas àqueles que

transitam pela narrativa de Rocha, a não ser, possivelmente, o acesso ao discurso. A

realização de Marginais é a resposta à urgência com que o autor e o narrador

sublinharam a própria narrativa desde as suas primeiras páginas. Ao se tornar narrativa e

literatura, Sérgio pode circular livremente.” (LUGARINHO, 2012, p. 222). Para Sérgio

Pitboy, portanto, sua fala, sua vez e sua visibilidade diante do outro para além de um ser

marginal é dada a partir do condicionamento de sua história, que é alegoria de tantas

outras, em narrativa.

Page 6: Marginais Evel Rocha

6

BIBLIOGRAFIA

SPIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010 INÁCIO, Emerson da Cruz. “Marginalidade, corpo, subalternidade, Evel Rocha e Marcelino Freire: à margem da margem.” Via Atlântica, São Paulo: FFLCH, Dezembro de 2012. pp. 43-54 LUGARINHO, Mário César. “Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e gênero.” Via Atlântica, São Paulo: FFLCH, Dezembro de 2012. pp. 219-223 PEREIRA, Érica Antunes. “De ‘capitães’ e ‘pitboys’: cartografias da marginalidade nas obras Capitães da Areia, do brasileiro Jorge Amado, e Maginais, do cabo-verdiano Evel Rocha. Via Atlântica, São Paulo: FFLCH, Dezembro de 2012. pp. 55-69 ROCHA, Evel. Marginais. Praia: Gráfica da Praia, 2010.