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Marcus Weeks

Como os grandes filosófos podemajudar a resolver problemas cotidianos

O que Nietzsche faria?

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8 O que Nietzsche faria?

IntroduçãoTodo mundo precisa de um conselho de vez em quando. A vida tem o hábito de nos apresentar dilemas, alguns sérios, outros triviais, que exigem reflexão e às vezes até alguma orientação. E quando se trata de pensar nos problemas, ninguém mais habilitado do que os filósofos para fazer isso. A questão é que eles estão tão preocupados com os grandes temas – a vida, o universo e tudo o mais – que raramente nos presenteiam com sua sabedoria sobre as pequenas coisas: os dilemas do cotidiano.

Sendo assim, não podemos ter certeza sobre qual seria a resposta exata dos filósofos sobre as nossas questões do dia a dia, mas é possível ter uma ideia razoável de como cada um examinaria o problema. É disso que trata este livro. O que os grandes pensadores (não apenas Nietzsche, embora suas opiniões apareçam com frequência) aconselhariam quando confron-tados com as questões práticas dos relacionamentos, do estilo de vida, do lazer e da política no mundo moderno? O que teriam a dizer sobre os assuntos corriqueiros que você debate com seus amigos e familiares?

Ora, esses problemas não são especificamente “filosóficos”, mas, como quase tudo, podem ser abordados pelas lentes da filosofia. Você vai des-cobrir que alguns pensadores usavam perguntas simples como trampo-lins para mergulhar em águas mais profundas, explorando as implicações ocultas de um dilema, e muitos fariam a associação entre o assunto em questão e as próprias ideias e teorias.

Com frequência, não existe uma solução única para um problema, e diferentes filósofos poderiam dar conselhos conflitantes, refletindo a na-tureza muitas vezes contraditória da filosofia. Essas atitudes distintas, além de nos oferecerem alternativas na hora de tomar uma decisão, também nos dão uma visão de algumas das diferentes abordagens aos problemas filosóficos. Alguns filósofos estão mais interessados em uma área específi-ca da filosofia, como a ética ou a lógica. Como resultado, aparecem mais do que outros em algumas seções do livro. Marx, por exemplo, provavel-mente terá mais opiniões sobre política do que Kant, e Descartes estará

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9Introdução

menos interessado na estética do que Aristóteles. Existem, porém, alguns pensadores que oferecem regularmente contribuições às discussões. Os atenienses Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, costumam ter algo a dizer sobre quase tudo. Outros estarão ausentes simplesmente porque suas filosofias não são aplicáveis aos temas discutidos – e, de qualquer modo, não haveria espaço para todo mundo.

Graças a esse painel de especialistas, podemos nos beneficiar de uma variedade de opiniões e desfrutar de alguns debates acalorados. Vários filósofos saem como protagonistas nessas discussões, representando algu-mas das tendências mais importantes do pensamento filosófico. Mas este não é um tratado de filosofia nem pretende apresentar um estudo abran-gente nessa área do conhecimento. O livro se limita a expor algumas ideias por meio de sua aplicação prática aos problemas do dia a dia. Mas você vai descobrir que a filosofia envolve mais do que apenas ideias. Ao examinar os argumentos apresentados pelos diferentes pensadores, você conhecerá também um pouco da personalidade de cada um: Sócrates, o intencionalmente irritan-te; Platão, o idealista; o prosaico Aristóteles; o maldoso Maquiavel; o sisudo Kant; o rabugento Schopenhauer; o iconoclas-ta Nietzsche e muitos outros. Poderá se empolgar com alguns e sentir afinida-de por seus conselhos; outros serão me-nos atraentes. Talvez você descubra que é possível curtir diferentes pontos de vista sem necessariamente concordar com as ideias ou, ao contrário, apreciar os argumentos persuasivos dos filósofos sem se encantar com a personalidade deles. Isso é filosofia para você.

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Página 12: Minha amiga está sendo traída pelo namorado. Devo contar para ela?

Página 16: Como curar um coração partido?

Página 21: Estou travando uma guerra silenciosa com meu companheiro por causa da temperatura ideal do ar-condicionado.

Página 27: Acabo de descobrir que meu pai não é meu pai!

Relacionamentos

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Relacionamentos

Capítu lo 1

Página 32: Na tentativa de evitar um acidente de carro, atropelei o cão do meu vizinho. Devo me sentir culpado?

Página 39: Meu namorado fica o tempo todo no computador e nas redes sociais.

Página 47: Meu novo namorado parece obcecado com o aspecto físico de nosso relacionamento, mas não estou tão interessada assim. Há algo de errado comigo?

Página 53: Meu marido me deu um par de sapatos de presente de aniversário, mas eles são horrorosos.

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12 O que Nietzsche faria?

Dar a entender

Não dizer nada

Evitar o tema

Contar uma mentira

Existem graus de honestidade?

Dizer a verdade

Minha amiga está sendo traída pelo namorado. Devo contar para ela?Kant • Bentham

Você está enfrentando um grande dilema. Sua amiga ignora as traições do namorado e você não sabe se deve acabar com as ilusões dela. Mas você sente que esconder essa informação seria o mesmo que mentir. Você quer contar a verdade a ela, mas sabe a dor que causará e não tem certeza de como ela irá reagir. Parece que você se dará mal contando ou não contando – e, qualquer que seja a sua decisão, você quer que ela saiba que sua intenção foi a melhor possível.

Procurar orientação dos filósofos para essa dúvida nos leva a águas bem profundas, às questões fundamentais sobre como julgamos o que é mo-ralmente certo ou errado. Portanto, não espere respostas fáceis.

Como a maioria das pessoas, você deve ter sido educado para acre-ditar que mentir é pura e simplesmente errado. Deve-se sempre dizer

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13CAPíTULO 1: Relacionamentos

“A verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade.”Juramento feito por testemunhas que darão

seu depoimento em um tribunal

a verdade. Não poderia ser mais claro, não é? Segundo essa visão, existem regras morais que são ab-solutas – e temos o dever de cum-pri-las. Se você descumpre a regra, sua ação é errada e ponto final. O mais conhecido defensor dessa abordagem da moralidade foi Im­manuel Kant (1724-1804), que sintetizou a ideia no que chamou de “imperativo categórico”: aja somente com base em princípios que você deseja que se tornem uma lei universal. O que significa que, se você pensa que algo – mentir, por exemplo – é geralmente errado, então será sempre errado, sem exceção, aconteça o que acontecer.

Essa abordagem “preto no branco” parece bem direta, mas será que não existem áreas cinzentas? Quando sua amiga lhe pergunta, sem ro-deios, se o namorado a está traindo, você tem o dever moral de dizer a verdade. Se ela não perguntar, você não está realmente mentindo, embora não esteja dizendo a verdade. Ou talvez a lei moral afirme que é errado ocultar a verdade e que você deveria sempre dizer tudo a todos. Tudo o quê? Até coisas que são completamente irrelevantes?

Verdades e consequênciasSeguir regras morais não é necessariamente a solução mais simples para esse dilema, portanto talvez você queira examinar uma abordagem com-pletamente diferente, o consequencialismo, que julga a correção moral de

Questão filosófica básica

Temos o dever moral de sempre dizer a verdade

ou há situações em que é moralmente justificável deixar

de dizê-la, escondê-la ou mesmo contar uma mentira?

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14 O que Nietzsche faria?

“Eu não deveria jamais agir exceto de modo que pudesse também desejar que minha máxima se tornasse uma lei universal.”

Immanuel Kant

uma ação por seus resultados. É a base de grande parte da filosofia moral desde o Renascimento, em contraste com os “mandamentos” religiosos do que é certo ou errado. A ideia de Jeremy Bentham (1748-1832) de avaliar a “utilidade” de uma ação examinando a quantidade de felicida-de ou dano que ela causa aplica-se particularmente a esse problema de contar ou não contar sobre o namorado da sua amiga. No seu caso, você levaria em consideração todos os resultados possíveis de revelar ou não a verdade e basearia sua decisão na quantidade de bem ou mal que isso causará, tanto imediatamente quanto a longo prazo. Com base nisso, po-deria decidir omitir a informação ou mesmo contar uma mentirinha para proteger sua amiga, mas ainda assim estar em paz com sua consciência apesar de ter violado o livro de regras morais; ou, em vez de vê-la viven-do uma mentira, ser o portador de notícias dolorosas, só que, em última análise, pensando no bem dela.

E aqui você começará a perceber que estamos pensando não apenas em resultados, mas também nas próprias intenções e motivações das suas ações. Isso é parte da área da filosofia conhecida como ética da virtude, a qual, como o consequencialismo, considera a moralidade caso a caso, mas, em vez de se concentrar nas ações, examina a “virtude” da pessoa que as realiza. Então, em vez de dizermos que determinada ação é moralmente certa ou errada, procuramos os motivos para tomar tal decisão; ponderamos, por exemplo, se a pessoa que decide agir daquela maneira atende aos próprios interesses ou aos interesses dos outros, e isso depende de seu senso individual de moralidade. Assim, se você faz algo porque honestamente acredita ser a coisa certa a fazer naquela circunstância, está agindo moralmente, ainda que conte uma mentira

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Tome uma decisãoVocê pode pensar, como Kant, que seu dever é contar a verdade à sua amiga, ainda que seja doloroso. No entanto, você estará sendo inteiramente honesto se apenas evitar contar para ela? Bentham recomenda que você avalie as consequências prováveis de contar ou não. Talvez ela preferisse saber o que está acontecendo.

15CAPíTULO 1: Relacionamentos

e ainda que tudo dê terrivelmente errado. O mero fato de você se preocupar com o que fazer, qualquer que seja a sua decisão final, é uma marca de sua moralidade individual.

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Questão filosófica básica

Qual o sentido de sofrer? Como o sofrimento pode

ser bom para nós?

16 O que Nietzsche faria?

Como curar um coração partido?Boécio • Beauvoir • Epicuro • Zenão de Cítio • Buda • Schopenhauer • Nietzsche

Você está em maus lençóis agora. Seu companheiro deixou de fazer parte da sua vida. O mundo não acabou – mas é o que parece. Nada mais importa. Você não queria estar tão triste, mas não consegue enxergar um fim para o sofrimento nem uma maneira de superá-lo. Para ser sincero, você não consegue ver sentido em nada no momento. Como pode seguir em frente quando seu mundo foi destruído? E qual o propósito de toda a dor pela qual você está passando agora?

Bem, este é um problema grave. Não se trata de uma questão de vida ou morte, especialmente quando visto de fora, mas, para a pessoa que está passando por ela, essa é a sensação. É uma experiência universal também, portanto seria de esperar que a maioria dos filósofos tivesse algum bom conselho sobre o assunto. O pensador romano Boécio (c. 480-524) escre-veu um livro intitulado A consolação da filosofia, dando-nos a esperança de que os filósofos pudessem oferecer algumas sugestões sobre o assunto, mas ele apenas recomenda voltar a mente para coisas mais elevadas. Como em quase todos os outros temas, os filósofos têm opiniões bem divergentes sobre como lidar com um coração partido. Elas podem ser divididas em três grandes grupos: “Dê a volta por cima e siga em frente”, “Aguente es-toicamente o sofrimento” e “Isso o tornará uma pessoa melhor”.

Uma boa pessoa com quem buscar orientação, ainda mais se você é do gênero feminino, pode-ria ser a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986). Além de ser uma feminista direta e prá-tica, e uma existencialista realista,

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Epicuro

17CAPíTULO 1: Relacionamentos

ela teve muitas experiências em questões do coração – ou ao menos da alcova. Isso era incomum para uma mulher de meados do século XX, mas Beauvoir tinha aquela atitude de “Ame-os e deixe-os” mais comum entre homens machistas, e provavelmente diria a você que o mundo está cheio de gente interessante. Não que isso seja de grande ajuda quando se está chafurdando na autocomiseração, é claro. Mas ela não pararia por aí. Muito antes que o slogan “O pessoal é político” se tornasse o brado de convocação para a segunda onda do feminismo, Simone de Beauvoir vinha pregando essa mensagem e vivendo a vida. Direitos iguais, diria ela. Por que as mulheres deveriam estar presas às convenções da feminilidade?

Assim, seria melhor não esperar muita compaixão por parte dela. Beau-voir provavelmente pediria que você entendesse a situação e assumisse o controle, em vez de deixar a situação controlar você. Ela faria você pensar sobre como deixou as coisas chegarem a esse ponto. Você transformou um relacionamento romântico na principal fonte de sentido em sua vida; o que esperar, agora que ele acabou? Existem outras coisas na vida, igual-mente importantes, e sempre se pode buscá-las. No final, cabe a você construir sua felicidade ou seu sofrimento, sem depender de que outras pessoas lhe ofereçam um propósito. Em termos simples, Simone de Beau-voir lhe diria para dar a volta por cima e tentar não se machucar nova-mente. No entanto, o conselho dela equivale a trancar a porta do estábulo depois que o cavalo escapou e pode parecer um pouco duro enquanto você está lambendo as próprias feridas. Nesse momento, tudo o que você quer saber é como tratá-las.

O filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), 2 mil anos mais velho que Beauvoir, poderia, em termos gerais, concordar com ela. Seu princípio orientador foi mi-nimizar a dor (não apenas buscar o prazer, como se pensa popular-mente), portanto ele não sentiria muita compaixão por você ter atraído todo esse sofrimento. Mas, em vez de persistir nele e prolon-

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18 O que Nietzsche faria?

“Não há nada mais íntegro do que um coração partido.”Atribuído ao rabino Menachem Mendel

de Kotzk, o “Kotzker Rebbe”

gar a agonia, Epicuro recomendaria buscar formas de aliviar a dor, especial-mente para acalmar os desejos que provocaram tanto desequilíbrio. Seria o ponto de partida para começar a procurar coisas que genuinamente lhe dão prazer e aprender a evitar as que lhe trazem sofrimento.

Dar a volta por cimaPor mais bem-intencionado que possa ser, provavelmente o conselho de Epicuro não será de grande valia se o objetivo for ficar bem com sua situação atual. Caso esteja buscando formas mais práticas de enfrentá--la, um dos estoicos talvez possa ajudar. Outro grego, Zenão de Cítio (c.334-262 a.C.), o fundador da escola estoica de filosofia, acreditava ter a receita para a paz mental, então poderia ser uma boa escolha. No entan-to, ele era tão realista e virtuoso a ponto de ser considerado austero – de modo que seu conselho pode ser um pouco difícil de engolir. Ele lhe diria que a melhor maneira de viver é estando em harmonia com a na-tureza, faça chuva ou faça sol. Você não pode deixar que acontecimentos ruins o derrubem nem ficar empolgado demais com os bons. E, acima de tudo, ele diria que você ficará sempre frustrado e contrariado se tentar mudar coisas sobre as quais não tem nenhum controle.

Se o que você busca é compaixão, melhor tentar uma fonte mais es-piritual. Buda (nascido por volta dos séculos VI-IV a.C.), por exemplo. Aquele sorriso beatífico dá a ele, sem dúvida, uma aparência mais com-passiva. E, sim, ele se compadeceria. Buda sabia muito bem que o mundo está cheio de sofrimento, mas conhecia um meio de superá-lo. Ele diria a você que entende quão terrível é o seu sofrimento, porém lembraria que a dor resulta de ter desejos que não podem ser satisfeitos. Sim, você perdeu o amor de sua vida, mas, ainda que essa pessoa continuasse ao seu lado, você não estaria contente. Se quer acabar com o sofrimento, deve parar de se apegar a coisas e pessoas.

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Schopenhauer

19CAPíTULO 1: Relacionamentos

Ele então apregoaria seu “cami-nho óctuplo” – o guia budista para uma vida virtuosa –, capaz de ajudá--lo a superar os desejos insaciáveis que causam a sua angústia. Siga o programa e você talvez alcance a tranquilidade eterna.

Muito antes de se tornar moda entre os hippies do Ocidente, o filóso-fo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) ficou fascinado com a filosofia indiana, adotando elemen-tos dela para formar sua visão de mundo. Só que, a menos que você queira apenas chafurdar em seu desespe-ro, talvez ele não seja a pessoa ideal a quem recorrer. Schopenhauer foi pos-sivelmente o filósofo mais sombrio, pessimista e mal-humorado de todos os tempos. À semelhança de Buda, reconhecia que existe sofrimento por toda parte, o tempo todo, mas faria questão de lhe dizer que não há como evitá-lo. Está tentando curar um coração partido? Esqueça. O mundo está cheio de angústia, e não há nada que você possa fazer a respeito, exceto talvez se perder na filosofia ou na música. Faça o que fizer, tudo terminará em lágrimas. Acostume-se com isso – é a condição humana.

Uma experiência positivaTalvez o conselho mais otimista que você pudesse obter seria de Frie­drich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche enfrentou a horrível morte prematura de seu pai, uma crise de fé e a rejeição de sua amada, portanto sabia muito bem como é um coração partido. Mais do que isso, encon-trou um meio de transformar suas tragédias em uma filosofia positiva.

“Se você quer que um médico o ajude, precisa expor sua ferida.”Boécio

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20 O que Nietzsche faria?

“O que não me destrói me fortalece.”Friedrich Nietzsche

Enquanto muitos filósofos com convicções religiosas recorriam à fé em busca de consolo, Nietzsche se opôs à ideia de que deveríamos aceitar o sofrimento como parte de um propósito divino. Ele concordaria com Schopenhauer sobre estarmos condenados a experimentar certa angústia na vida, porém achava que devemos compreender esse sentimento como uma oportunidade, não como um revés. Ele se compadeceria de você e de seu coração partido até certo ponto, dizendo que sua dor é parte inevitável da condição humana. Porém também o aconselharia a não ape-nas superar o sofrimento, mas a achar sentido nele. Em sua experiência, Nietzsche diria, a dor é necessária e pode servir à afirmação da vida. As coisas que almejamos fazer, se valem a pena, trazem consigo o risco do fracasso, e o sofrimento inerente a tudo isso nos ajuda a reconhecer ainda mais nossas realizações. Se o abordarmos com a atitude certa, cada período de sofrimento servirá para nos tornar mais fortes, mais capazes de viver a vida que queremos. Só não leve em conta a biografia desse filósofo; se o fizer, você descobrirá que ele nunca superou o fato de ter sido abando-nado por sua amada e morreu aos 55 anos, alquebrado, louco e sifilítico.

Tome uma decisãoVocê acha que Simone de Beauvoir tem razão ao dizer que, para superar a separação, você deve simplesmente esquecê-la e seguir com a vida? Ou está mais inclinado a acreditar em Zenão, Buda e Schopenhauer quando eles dizem que, se realmente precisa se apaixonar, deve aceitar a inevitabilidade do sofrimento? E, se que tem que passar pela angústia do coração partido, acha que Nietzsche está certo sobre aprender algo com a experiência, algo que talvez o ajude no futuro e enriqueça sua vida?

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21CAPíTULO 1: Relacionamentos

Estou travando uma guerra silenciosa com meu companheiro por causa da temperatura ideal do ar-condicionado.Protágoras • Platão • Berlin

Você gosta de manter o quarto numa temperatura fresca e agradável, digamos, uns 24ºC. Mas vive constatando que, sobretudo nas noites mais quentes, o termostato é regulado para 20ºC. Embora nada seja dito, você sabe que seu parceiro está furtivamente diminuindo a temperatura quando você não está olhando. Vocês travam uma guerra constante, ainda que nenhum dos dois diga nada a respeito. Você tem certeza de que existe uma temperatura “ideal” para dormir com conforto, que não é nem quente nem fria demais – uns 24ºC, na verdade.

Este é um daqueles debates fadados a nunca terminar. No seu ponto de vista, a temperatura confortável para dormir deveria ficar em torno de 24ºC, mas seu parceiro discorda. Ele acha essa temperatura quente de-mais. Mesmo que vocês conversassem sobre o assunto, nenhum dos dois mudaria de ideia. Será possível que ambos estejam certos?

Protágoras (c. 490-420 a.C.) diria que é possível, sim. Ele afirmaria que sua opinião não passa de um ponto de vista, que é válido para você. É como você percebe as coisas, observando-as da sua perspectiva. Mas aí será preciso admitir que seu marido também tem direito a uma opinião. Da perspectiva dele, 24ºC não é frio o suficiente para ser confortável. E quem é você para dizer que ele está errado? O ponto de vista dele não é igualmente válido?

Você poderia responder que estaria disposta a aceitar o ponto de vista do seu marido se fosse uma posição coerente. Afinal, quando o verão termina e a temperatura cai para a casa dos 20 e poucos graus, ele mesmo acha ótimo.

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22 O que Nietzsche faria?

“O relativismo absoluto, que é nada mais nada menos que o ceticismo, no mais moderno sentido do termo,

é o supremo triunfo da razão raciocinante.”Miguel de Unamuno

Nenhuma afirmação é absolutamente

verdadeira!

Inclusive esta?

Platão Protágoras

Você não está entendendo a situação, Protágoras argumentaria. Não importa se a opinião dele é coerente ou não. Trata-se da percepção dele sobre o calor ou o frio, não da temperatura absoluta em graus Celsius. Protágoras poderia oferecer uma série de exemplos para deixar a questão mais clara. Digamos que você passou férias no Egito porque queria ver as pirâmides. Estava realmente quente, lembra? Um calor incômodo. Mes-mo após duas semanas, você achou difícil se adaptar. Quando voltou para casa, embora o clima estivesse ameno, lhe pareceu frio. Tudo é relativo, veja bem. Do ponto de vista da temperatura, não estava frio, mas compa-rado ao calor no Cairo, parecia frio. Da sua perspectiva.

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23CAPíTULO 1: Relacionamentos

“Um escritor que diz que não há verdades ou que toda verdade é ‘meramente relativa’, está pedindo que

você não acredite nele. Portanto, não acredite.”Roger Scruton

Outro exemplo: você está curtindo uma tarde agradável ao ar livre. Está sol e o termômetro marca 24ºC. De repente você percebe dois grupos de turistas. A família do Alasca está de short e camiseta, pro-curando uma sombra, enquanto a que veio do Iraque se encolhe em casacos e xales.

Você não pode dizer que estão errados por sentirem frio ou calor: eles simplesmente sentem. Cada um deles possui, assim como você, um ponto de vista válido. E Protágoras diria que uma série de outras coi-sas são relativas também, que não existe necessariamente uma resposta certa ou errada e que as pessoas têm direito a diferentes pontos de vista sobre questões de gosto, sentimentos e moralidade. Seu ponto de vis-ta sofre influências de seu local de origem, assim como o dos turistas na sua cidade.

Assim, embora você possa achar que comer carne de porco e ingerir álcool é totalmente normal, por exemplo, alguém de uma cultura muçul-mana ortodoxa acharia inaceitável. Ainda que você se revolte com a bar-bárie das touradas, há quem as considere uma forma de arte. Suas ideias do que é normal e aceitável – da preferência por comidas condimentadas ou insossas às suas opiniões sobre a pena de morte – dependem da cultura na qual você foi criado.

Protágoras ganhava a vida defendendo causas nos tribunais gregos anti-gos e, como todos os advogados, muitas vezes defendeu pontos de vista em que não acreditava. Assim, quando ele dizia que existem sempre dois lados em uma discussão, talvez fosse mais conveniente considerá-lo com certa desconfiança – aquilo não passava de uma dose de retórica para explicar sua visão sobre o relativismo. Existem, ele admitiria, algumas coisas que são simplesmente erradas. Ao mesmo tempo, muitos o levaram ao pé da letra,

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Questão filosófica básica

Será que um ponto de vista pode ser absolutamente

verdadeiro ou válido? Ou ele é relativo – dependendo de

nossa percepção e julgamento subjetivos? As ideias do que é certo e errado dependem de quem você é e do ambiente

em que vive?

24 O que Nietzsche faria?

e o relativismo, sobretudo o relati-vismo cultural, tornou-se o marco de uma sociedade tolerante, liberal – a ponto de a adesão entusiástica demais ao politicamente correto proibir qualquer crítica a algumas práticas bem duvidosas, como a mutilação genital feminina. Protá-goras, porém, alertaria contra assu-mir uma postura de superioridade moral e dizer que algumas coisas são evidentemente erradas, obser-vando que, até um passado vergo-nhosamente recente, as culturas norte-americana e europeia não faziam nenhuma restrição a explo-rar o tráfico de escravos e empre-gar mão de obra infantil.

Tudo é relativoFicou bem difícil argumentar contra o relativismo, e parece que você não vai vencer a batalha do termostato. Existem, porém, graus de relativismo. Protágoras apresenta um argumento convincente contra o absolutismo, a visão de que nada é relativo, de que não se trata de pontos de vista sub-jetivos e de que existe sempre uma resposta certa ou errada. No outro extremo, porém, existem relativistas fortes, radicais que insistiriam que tudo é relativo – ainda que isso signifique ter de aceitar algumas opiniões moralmente repugnantes como pontos de vista válidos.

É aqui que Platão (c.427-347 a.C.) poderia vir em seu socorro. Ele não aceitou nem um pouco os argumentos de Protágoras e os via como um artifício barato de advogado para se livrar das responsabilidades. Mas achou uma falha lógica na afirmação fundamental do relativismo. Se você afirma que todo ponto de vista é relativo e, portanto, válido, está solapan-do o próprio argumento. Seu ponto de vista de que tudo é relativo não passa de um ponto de vista que é verdadeiro para você – e meu ponto de

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25CAPíTULO 1: Relacionamentos

Os três graus

Platão Protágoras Berlin

Absolutismo Relativismo

20ºC

Dele20ºC

21ºC–24ºC

Meio-termo

Dela24ºC

vista de que nada é relativo, o qual, por sua vez, é verdadeiro para mim, é igualmente válido. Os argumentos do relativismo radical são desmascara-dos como uma contradição em si.

A maioria das pessoas, porém, aceitaria a ideia de que existem coisas que são certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, e outras que dependem de perspectiva. Mas não é fácil justificar esse tipo de meio-termo. A não ser que você seja Isaiah Berlin (1909-1997), é claro. A leitura que ele fez do problema é a do bom senso: nem o absolutismo nem o relativismo rigoroso se sustentam. Pelo contrário; ele disse que, embora não haja absolutos em questões de gosto, moralidade ou julgamento, basta olhar em volta para perceber que a maioria das pessoas, em todas as culturas, têm valores e opiniões em comum. Acreditam, por exemplo, que mentir, roubar, assassinar, etc. são condutas erradas, e que liberdade, justiça, etc. são corretas. Esses valores são universais e apenas diferem nos detalhes ou na prática.

Então a sua posição sobre o termostato é a de um absolutista: existe uma temperatura ideal, que não é uma questão de perspectiva; apenas um, você ou seu marido, tem razão. Mas a posição do seu parceiro é a de um relativista: algumas pessoas sentem mais frio que outras, não é uma

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26 O que Nietzsche faria?

Tome uma decisãoDependerá de você estar disposto a aceitar a ideia de Protágoras segundo a qual a sua opinião e a de seu parceiro são válidas. Nesse caso, vocês terão que achar um meio-termo, como recomenda Berlin. Senão, um dos dois precisará encontrar um bom argumento para convencer o outro, ou então continuarão brigando.

questão de certo e errado. Talvez vocês pudessem chegar a um meio--termo, dentro do espírito do argumento de Berlin. Embora possa haver pequenas diferenças de opinião (uma questão de poucos graus, apenas), haverá certo consenso sobre o que é uma temperatura aceitável, ou ao menos uma faixa de temperaturas aceitáveis. Viva com isso.

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