MARCOS HENRIQUE SILVA - sapili.org · A HISTÓRIA NO ENTRE-ESPAÇO: REALISMO E VANGUARDA NA PINTURA...

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1 MARCOS HENRIQUE SILVA A HISTÓRIA NO ENTRE-ESPAÇO: REALISMO E VANGUARDA NA PINTURA RUSSA DOS SÉCULOS XIX E XX Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História da Universidade Federal de Uberlândia como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Orientação do Prof. Dr. Alcides Freire Ramos. Uberlândia, Fevereiro de 2002.

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MARCOS HENRIQUE SILVA

A HISTÓRIA NO ENTRE-ESPAÇO: REALISMO E VANGUARDA NA PINTURA RUSSA DOS SÉCULOS XIX E XX

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História da Universidade Federal de Uberlândia como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Orientação do Prof. Dr. Alcides Freire Ramos.

Uberlândia, Fevereiro de 2002.

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________ Prof. Dr. Alcides Freire Ramos (Orientador)

__________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento

________________________________ Profª Dra Rosângela Patriota Ramos

Uberlândia, Fevereiro de 2002.

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DEDICATÓRIA

À Ana Maria, minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos pela competente orientação. Sua erudição no

campo da história e da arte foi extremamente importante nesta árdua tarefa de analisar

uma poética visual um tanto quanto complexa. Obrigado pelas sugestões sempre

inteligentes que contribuíram para a conclusão do trabalho

À Profª Dra. Rosângela Patriota Ramos, que foi a primeira pessoa a quem

apresentei minhas incipientes idéias para o mestrado e que se mostrou recpetiva para

com um projeto ainda pouco estruturado. Sua erudição e inteligência me auxiliaram na

percepção das possibilidades de pesquisa dos meus escritos iniciais.

À Prof. Drª Maria Clara Tomaz Machado pelas valiosas contribuições no exame

de qualificação.

À Regina Ribeiro Gonçalves e à Dilene Ferreira Silva pela amizade e imenso

apoio.

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Noite trevosa Medo de morrer em Moscou

Os círculos hipnóticos E os quadrados cortam

A alma do homem que estranha e cisma

Vejo a alva via Onde meus pés se desenham

E deixam as pistas do que não pude ver

Ampla face de Exter Assombra os sonhos nas noites mínimas

Me faz pensar em imponderáveis relações

Ai que sinto longas flâmulas! Línguas carmesins

Lambem meus olhos E padeço de vertigens

Vejo minaretes, torres, cidades glaciais Lagos quadriláteros súbito se abrindo em vórtices

E eu imergindo, Para logo sentir o calor O golpe da luz iniciática

Não há saída!

É preciso despertar Longe de Moscou.

M. H. S.

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SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................................................ 7

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8

CAPÍTULO I : A HISTÓRIA CONSTRUÍDA: REALISMOS

PICTÓRICOS NO SÉCULO XIX E INÍCIO DO

SÉCULO XX...................................................................................... 20

CAPÍTULO II: AS VANGUARDAS E O ESFACELAMENTO

DA HISTÓRIA ................................................................................. 56

CAPÍTULO III: REALISMO NO SÉCULO XX: A CONSTRUÇÃO DA

REALIDADE PROLETÁRIA ....................................................... 98

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 138

IMAGENS .................................................................................................................. 143

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................170

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RESUMO

Esta dissertação tem por tema a pintura russa porduzida na 2ª metade do século XIX e

nas três primeiras décadas do século XX. Estrutura-se em três eixos temáticos distintos,

porém inter-relacionados: o realismo de gênero oitocentista, que surge como proposta

alternativa e contrária aos cânones acadêmicos; as experiências vanguardistas afloradas

no início do século XX, como projetos envolvidos nos expedientes revolucionários e o

realismo de teor “socialista” e “proletário” que emerge nos anos 1920, retomando temas

e métodos caros aos pintores de gênero do século XIX, um realismo precariamente

fundamentado na noção de cultura proletária que preconizava a tarefa de registrar a

realidade soviética. Essas três fases da arte pictórica russa inserem-se num período

marcado por inúmeros conflitos, quando os modelos sociais e culturais foram debatidos

e questionados. É o momento em que diferentes concepções de história e cultura

colidem, quando se procura reabilitar realidades e culturas camponesas, populares, por

séculos desprezadas pelo Estado Czarista. Neste contexto, convicções políticas e

culturais podem ser claramente identificadas e a arte coloca-se como veículo

comunicador de visões de mundo, ou como representações atreladas a grupos

específicos, interessados em expressar sentidos peculiares sobre o real, ou mesmo

instituir a sociedade por eles visada. Por este motivo, acreditamos que a arte produzida

neste período constitui importante objeto de investigação histórica que, ao possibilitar

um estudo profícuo dos desenvolvimentos culturais, ilumina o contexto mais amplo em

que estes aconteceram, proporcionando, assim, uma melhor compreensão da história do

país. O objetivo central do trabalho é discutir a dimensão significante da obra pictórica,

vista aqui como um sistema de signos que o homem utiliza para materializar os

pensamentos por ele elaborados em seus embates cotidianos com a realidade. Neste

sentido, a pintura não é apenas um código estético convencional que simplesmente

ilustre os fatos históricos; ela própria é uma fato histórico e, como tal, gesta-se

cotidianamente, influindo na tessitura do contexto. É, portanto, uma linguagem, uma

forma de pensar o mundo, tão relevante para o entendimento da história do país quanto

qualquer documento escrito ou oficial

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INTRODUÇÃO

O trabalho de pesquisa em arte é algo relativamente recente na historiografia

mundial, que até o séculos XIX, concentrava-se exclusivamente em temas de natureza

política. A ascensão da História Cultural como novo campo investigativo fez-se

acompanhar de uma ampliação das possibilidades temáticas e, com isso, uma série de

questões, outrora consideradas irrelevantes para o historiador, foram incorporadas ao

debate historiográfico, o que possibilitou a compreensão de inúmeros aspectos de ordem

cultural, afetiva, sexual, estética, que até então não eram contemplados pelos estudos

puramente políticos ou econômicos realizados por historiadores tradicionais.

No campo das artes, numerosas pesquisas tem revelado que as complexas

sociedades de hoje e de ontem não se ajustam aos esquemas unidimensionais e

historicizantes de uma historiografia que insiste em traduzí- las por um único viés, e

que, assim, põe a perder outras dimensões, lúdicas, poéticas, míticas, que são

componentes seminais da vida coletiva e que influem na constituição do processo

histórico. Algumas destas manifestações artísticas, como o Teatro, o cinema e a

literatura, já foram, em certo sentido, resgatadas do esquecimento, e tem recebido

tratamento historiográfico na obra de vários pesquisadores. A área de artes plásticas,

porém, ainda não logrou despertar o interesse do historiador de ofício, que talvez se

sinta pouco familiarizado com o código imagético, dada a sua peculiaridade e

distanciamento em relação aos documentos escritos que, desde tempos imemoriais, são

consideradas as únicas fontes “confiáveis” para a construção de uma história.

Em muitos textos históricos, versando sobre os mais diversos assuntos, a obra

pictórica aparece como mera ilustração, cumprindo a função pedagógica de

complementar a informação ou torná- la mais compreensível para o leitor, tanto que

sequer é discutida no corpo do texto. Por estas e outras razões, o trabalho aqui

apresentado pode ser considerado experimental e até mesmo temerário, já que nosso

ambicioso propósito era revisitar o contexto histórico russo num período de grandes

tranformações e tentar estabelecer um percurso, uma narrativa, em que a obra pictórica

é não só a condutora, como também a força motriz de uma série de fatos.

Não obstante a escassez de obras fundamentadas em documentos visuais, as

artes da imagem sempre dialogaram com a história e, neste sent ido, é possível afirmar

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que o componente histórico é intrínseco à obra. Não importa qual seja o gênero de

pintura – narrativa, abstrata, figurativa – ela sempre trará indícios da visão de mundo do

artista, de suas convicções, de sua leitura plástica dos fa tos. Algumas vezes este

conteúdo é ostensivo e habita o interior mesmo da composição; em outras ele apenas a

tangencia e só se deixa decifrar mediante um confronto da imagem não referencial com

o contexto em que esta foi criada. Se tivermos em mente que a inserção da obra na

história é um fato inelutável, concluiremos que o artista jamais será um ser insular,

mesmo que assim o queira, pois, em tal caso, a sua própria vontade de isolamento, sua

contumácia e recusa em participar, poderão ser interpretadas como reações contra uma

determinada ordem social, que naquele dado momento lhe parecera iníqua ou hostil às

suas idéias. Neste sentido, a historicidade afirma-se como alguma coisa movediça que

corre por frestas, habita as ausências, impondo novas buscas, novas leituras e reflexões

ao historiador que procura desvendar o modo como se deu a sua inclusão na história.

Para Argan, desde o século XV o pintor ou escultor elabora concepções de

história através de sua arte. Com o declínio das concepções artísticas medievais, a arte

deixou de ser um atividade transcendental, orientada para o etéreo e adquiriu conotações

seculares e, portanto, históricas. A partir de então, a produção plástica passa a

incorporar uma noção de tempo e, em decorrência, surge uma tradição humanista que

coloca o artista em contato com o passado do homem e com suas realizações no campo

das artes e das ciências. No que diz respeito às artes plásticas, a Renascença foi, sem

dúvida, o ápice, o grande momento de revivescência do pensamento histórico na arte,

pois o Renascimento como um todo é, essencialmente, um voltar-se para o passado, a

Antiguidade Clássica. No seiscentos o processo criativo incluia um trabalho de pesquisa

arqueológica, por meio do qual o artista vasculhava o sítio da história à procura de

motivos pictóricos, escultóricos, padrões arquitetônicos; estudando a anatomia,

panejamentos, investigando todos os detalhes formais que poderiam lhe proporcionar o

conhecimento daquela arte antiga, e que lhe possibilitassem construir novas

representações deste ideal de beleza e talento humanos. Segundo Argan, a concepção de

história, própria do artista, reside justamente nesta abordagem renascentista do antigo e

se traduz imageticamente na forma peculiar em que este sujeito criador se apropria dos

signos da Antiguidade Clássica. Analisando duas obras sobre um mesmo tema, o autor

conclui que o elemento diferenciador naqueles exemplos é da ordem do histórico: “a

história como pesquisa das fontes, como dissolução de tudo o que não é importante

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para trazer à tona a mecânica das causas e dos efeitos. A história como recusa da

tradição, para encontrar uma autenticidade profunda.”1

Este texto nos coloca em sintonia com uma questão essencial e por muito tempo

negligenciada pela historiografia: o fato de que arte não é apenas o reflexo das idéias e

fatos de seu tempo; ela é sobretudo um meio através do qual os artistas expressam

concepções especificamente estéticas sobre o real. Pensando nisso, iniciamos nosso

estudo da arte pictórica russa partindo do princípio de que os artistas não construíram

obras gratuitas, pois sempre tinham algo a dizer com suas imagens, as quais, embora

fossem primordialmente poéticas, constituíram também instrumentos de luta política e

formas de engajamento, corporificando respostas, utopias, projetos. Elegemos este

percurso porque acreditamos que, no que reporta à história, a arte russa é

particularmente instigante, sobretudo neste intervalo de 60 anos que vai de 1870 a 1930,

época em que artistas e intelectuais estavam às voltas com a problemática da identidade,

do nacionalismo e da herança cultural eslava.

Assombrados por uma idéia de imperialismo cultural que fazia da Rússia uma

espécie de apêndice da Europa Ocidental, alguns artistas, inspirados por teóricos

revolucionários como Chernysehvski, rebelaram-se contra o cosmopolitismo vigente

desde Pedro o Grande; seu desejo era recuperar antigas tradições camponesas e eslavas

que eles criam ser a verdadeira arte do país2. Neste trabalho evidenciavam-se duas

tendência principais: Por um lado, havia uma perspectiva aqueológica, um regresso às

fontes da milenar arte eslava, que movia a ética preservacionista de comunidades como

Abramtsevo, interessadas em restaurar ícones e igrejas medievais e reabilitar ofícios

arcaicos. Por outro lado, surge o interesse pela vida cotidiana dos camponeses, o que

resultaria na elaboração de crônicas visuais do presente por parte dos Itinerantes. Neste

dois exemplos a história comparece como mola propulsora do ato criativo. Cada uma a

seu modo, ambas as estéticas se opunham ao projeto ocidentalizante através da

proposição de concepções históricas marginais que se afirmavam como alternativas à

grandiloquente história conduzida por uma elite que, subrepticiamente, tentava

inscrever o país no universo das nações européias por meio da imitação de padrões

1 ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel . São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. Na concepção do autor, a história como pesquisa das fontes seria aquela em que o artista da Renascença preservava certos elementos da tradição gótica que lhe antecedia, fazendo apenas citações que sugerissem uma idéia da arte daquele período. Já na história como recusa da tradição, o artista realizava uma representação extremante detalhista da Antiguidade Clássica, o que implicava em romper com todas as realizações dos seus predecessores góticos. 2 HAUSER, Arnold. História social da Arte e da Literatura . São Paulo: Martins Fontes, p. 1020-21.

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estrangeiros, num processo em que parte de um legado cultural popular era

simplesmente desconsiderado. Traduzindo o desejo do artista em conhecer sua própria

história, e materializando respostas à dominação, a pintura russa constitui um valioso

documento, onde é possível reconhecer tanto o diálogo com os fatos históricos e com

influências estrangeiras, quanto a proposição de novos vocabulários plásticos, e novos

modos de vida cultural.

Estando cientes da existência de tais posicionamentos, restava-nos o grande

desafio de rastrear a historicidade perdida entre uma infinidade de artistas e grupos

igualmente importantes, porém muito pouco estudados ao longo do século XX, tendo

permanecido por décadas na obscuridade imposta pela sociedade global midiática, que é

pródiga em estudos dedicados às grandes e célebres personalidades, mas indiferente e

defectiva em relação a estas artes periféricas, por vezes consideradas como simples

exotismos. Some-se a isso o fato de que o “exotismo” russo esteve por décadas

confinado entre as mulhares do “colosso de aço” e longe dos olhos dos ocidentais.

Tais circunstâncias geraram um primeiro problema: como extrair a história

representada, simbolizada pelas imagens, se não dispúnhamos de suficentes dados

sobre seus criadores, se sabíamos muito pouco sobre as circunstâncias efetivas da

criação? Afinal, uma pintura, no contexto russo, era apenas mais uma imagem entre

tantas outras, e o artista, mais um nome complicado entre uma grande classe de

pintores. Com exceção do período vanguardista, quando uma notável plêiade conquistou

reconhecimento mundial com seus arrojados movimentos, no intervalo compreendido

por esta pesquisa não há personalidades excepcionais, cuja biografia esteja acessíve l e

permita um estudo em profundidade, concentrado em poucas obras. Em nossas

primeiras tentativas constatamos que entre os realistas só existiam “anônimos”, pessoas

com uma extensa obra, porém muito pouco documentada no Brasil, e que, portanto, não

forneciam dados suficentes para elaboração de uma narrativa histórica de maior

envergadura. Diante disso, a solução encontrada foi a ampliar o universo de pesquisa e

analisar a obra de vários pintores atuantes neste período de 60 anos, na esperança de que

a representação artística da história escapasse por entre o correr das décadas, fazendo

surgir as diferenças entre os grandes movimentos.

Esta opção por uma abordagem panorâmica implicou num certo desvio dos

métodos especificamente historiográficos de investigar a historicidade do objeto

artístico. No geral, a história social da arte que vem sendo produzida no universo

acadêmico brasileiro caracteriza-se pela delimitação do campo da análise, tendo-se

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histórias sobre um único filme, uma única peça teatral ou a biografia de um determinado

músico. Este talvez seja um método mais profícuo, na medida em que possibilita

explorar as experiências singulares que são, em si, muito representativas das relações

sociais como um todo. Entretanto, conforme explicamos acima, tal método nos era

inviável, tendo em vista os limites impostos pela pesquisa. Acreditamos, porém, que a

forma de abordagem escolhida não prejudicou a qualidade do trabalho no que reporta ao

conteúdo. Ao invés disso, a metodologia fez ressaltar uma peculiaridade da arte russa,

qual seja, a de se constituir como fazer extremamente democrático e difundido entre

indivíduos comuns, que vivenciavam um contexto cultural onde o mais importante era o

conjunto dos fatos culturais e não as realizações individuais.

O problema das fontes é uma questão intimamente vinculada à metodologia e

foi, em certo sentido, determinado por essa série de fatores apontados acima. A

documentação que utilizamos é inteiramente bibliográfica e, portanto, secundária, fato

que, em última instância, foi também uma consequência das limitações a que nos

referimos. Evidentemente, os documentos primários, como artigos de jornais e revistas

conservados em instituições russas, estavam fora de alcance nas atuais circunstâncias,

razão pela qual tivemos que nos ater aos livros de arte que, embora também limitados,

podem informar sobre alguns fatos que circundam o processo criativo. Além destas

fontes escritas há as várias imagens que são aqui, consideradas como fontes históricas

peculiares. Ainda que a aná lise histórica de uma obra pictórica só se torne possível

mediante um conhecimento prévio dos fatos culturais e políticos que lhe são coevos,

julgamos que tal obra tem, em si, um potencial heurístico justamente por ser atividade

humana que se engendra no cotidiano de sujeitos concretos que, enquanto criam, estão

constantemente refletindo sobre o seu tempo. Na sua condição de objeto cultural, a

pintura não apenas registra os desenvolvimentos históricos, mas também, e

principalmente, cria seus próprios meandros, produz inflexões específicas no curso dos

acontecimentos, alterando assim a história de um país, a partir da inserção de certos

desdobramentos que de outra forma não existiriam.

Nesta perspectiva, a pintura afirma-se como documento. Todavia, suas

possibilidades documentais ultrapassam em muito os limites impostos por uma

disciplina histórica pretensamente científica, que por muito tempo restringira seu campo

de pesquisa aos arquivos oficiais e aos papéis validados pelo Estado. Contrariamente, a

noção de documento, quando aplicada à arte, não pode ser entendida à luz de antigos

conceitos como “autenticidade” e “validação”, visto que o objeto artístico figurado ou

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escrito, não é unívoco e, portanto, jamais poderia ser o guardião de uma “verdade”

única e universal. Por este motivo, acreditamos que o conceito de representação segue

sendo o mais adequado para abordar as relações recíprocas entre arte e história.

Elaborado por Roger Chartier, este conceito coloca em pauta a questão da

multidimensionalidade dos “discursos” produzidos acerca da realidade. Numa tal

aproximação não existiria um único real, desde que múltiplas seriam as representações

construídas pelos diferentes grupos que participam da vida social, os quais vivenciam,

compreendem e traduzem o contexto de forma particular, segundo suas próprias

referências.

Quando consideramos uma pintura como representação da história, percebemos

que ela nunca poderia ser uma criação solipisista, pois representar esteticamente o

mundo significa estar em permanente contato com a realidade. Através de uma operação

cognitiva, o artista se apropria das formas reais e, ao submetê- las às leis estéticas,

tranforma-as nos elementos essenciais de sua mensagem figurada., na qual vão

expressas não apenas seus postulados estéticos, mas também as concepções de mundo

que ele, sujeito histórico, logrou elaborar ao longo de sua existência no interior de uma

sociedade. Isto fica bastante claro nas considerações tecidas por Chartier. Para ele, a

noção de representação “permite articular três modalidades da relação com o mundo

social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e delimitação que produz as

configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é

contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; segundamente, as práticas que

visam reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no

mundo, significar simbolicamente um estado ou uma posição; por fim, as formas

institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias

coletivas ou pessoas singulares), marcam de forma visível e perpetuada a existência do

grupo, da classe ou da comunidade.”3

Todas as questões apontadas por Chartier são bastante visíveis na arte

concernente aos três grandes blocos que constituem esta dissertação. Verificamos que

tanto na pintura de gênero do século XIX, quanto nas Vanguardas, e mesmo no realismo

do século XX, a arte russa se afirma como expressão das visões de mundo de segmentos

sociais muito específicos. Sempre há um elo entre a forma artística de uma pintura –

seja abstrata ou figurativa – e os posicionamentos de artistas ou grupos de artistas frente

3 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel / Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 23.

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aos problemas econômicos, culturais e políticos. Enquanto que na pintura de gênero

subjazem os ideais dos sujeitos interessados em fustigar a cultura cosmopolita e

europeizada e promover a cultura camponesa, a herança cultural eslava, as formas não

referenciais da vanguarda revelam a atitude iconoclasta e niilista de jovens pintores

partidários da revolução comunista. Por fim, o realismo do século XX é o discurso de

grupos de artistas profundamente sintonizados com o Estado burocrático e pragmático,

já interessado em consolidar um modelo de nação socialista e “proletário”,

completamente divorciado dos ideais revolucionários.

A idéia de se considerar a pintura como representação da história, revelou-se

bastante promissora quando a confrontamos com a noção de pensamento plástico de

Francastel. Este conceito representa um grande avanço no estudo das fontes imagéticas,

pois, para construí- lo o autor expõe uma série de erros e equívocos que geraram a

defasagem que hoje se verifica entre as artes plásticas e a disciplina histórica. Um dos

principais problemas levantandos pelo autor refere-se à abordagem do objeto estético.

Ele denuncia que as artes da imagem são comumente subestimadas quanto ao seu

potencial heurístico, sendo tratadas não como fontes históricas mas como ilustrações de

uma narrativa previamente construída, cuja estrutura de enredo é baseada numa

sequências de fatos de natureza não artística. Assim, a imagem de uma pintura é vista

como um espelho/reflexo do real, e seu conteúdo histórico, como a materialização

plástica dos fatos. Para Francastel a função da arte na história não se resume a esta

tarefa secundária de refletir o que existe independentemente dela, pois criar e fruir

imagens são ações determinantes do processo histórico. A arte como pensamento

plástico é uma linguagem específica através da qual “o homem informa o universo” 4; é

uma forma de reflexão imagética, não suscetível à tradução para o código verbal, pois

revela certos aspectos de uma sociedade que jamais seriam contemplados por um texto.

Acreditando nesta dimensão intelectiva da imagem, procuramos desfazer a clivagem

arte e história, buscando apreender as obras analisadas como fontes históricas, sem

perder de vista esta especificidade que as tornam valiosos documentos.

Representação e pensamento plástico são conceitos que, inevitavelmente, atraem

o debate sobre o caráter fictício de toda obra de arte. A partir do momento em que

elegemos uma pintura como objeto de pesquisa histórica somos forçados a enfrentar o

problema de que a obra é sobretudo uma construção poética que traz, ao lado de

elementos considerados reais ou verídicos, outros que poderiam ser definidos como

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fictícios ou imaginários. Neste sentido, o que interessa numa pintura é a maneira como

são arranjadas as representações por determinados grupos, e como são revelados os

aspectos fictícios das mesmas quando são cotejadas com as versões da história

existentes. Este é um caminho árduo e extremamente instigante e atual, tendo em vista

os recentes estudos de Hayden White sobre a ficção inerente ao texto histórico. Se

aceitarmos a tese de White de que a fição se insere no momento do fazer histórico,

então devemos avançar um pouco mais e ponderar que, se existe fição na história, sua

gênese – quando tratamos de fontes artísticas – está na própria fonte, ou seja, no objeto

de investigação que deu origem à narrativa.

A história da pintura russa é pródiga de exemplos onde podemos vislumbrar a

invenção de realidades ou visões de mundo. Como pretendemos demonstrar ao longo

dos capítulos, na Rússia, a criação estética esteve sempre permeada por atitudes

reavaliativas diante da história: seja na pintura de gênero, quando o realismo se impôs

como alternativa para resgatar o cotidiano da vida camponesa, seja no espírito niilista

que conduz a Vanguarda que, na sua afinidade com a revolução negava a história da

sociedade dividida em classes e propunha o vazio como condição primeira para a

criação do novo, ou até mesmo no realismo novecentista, onde a história de um país

proletário era deliberadamente forjada com altas doses de ficção. Em nenhum destes

casos poderíamos identificar testemunhos fiéis, já que a história que se insinua através

das imagens era construída mediante uma relativa manipulação dos fatos, com a

finalidade de legitimar um projeto cultural específico. Neste aspecto, as palavras de

White sobre o texto histórico são também válidas para a arte: “nenhum dado conjunto

de acontecimentos históricos, casualmente registrados pode, por si só, constituir uma

estória (...) os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou

subordinação de alguns deles e pelo realce de outros.” 5

Pode-se dizer que esta qualidade atribuída por White à operação historiográfica,

orientou a atitude dos pintores russos em suas aproximações com a história. Nos três

períodos estudados percebemos sempre o gesto diligente e voluntário de um sujeito que

procura delimitar áreas de interesse do seu trabalho, seja por meio da explícita eleição

de um tema como a indústria ou o campesinato, ou da ruptura com a tradição narrativa e

mimética. Em ambos os casos a poética materializa-se mediante a definição de

4 FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. (verificar) 5 WHITE, Hayden. O Texto Histórico como Artefato Literário. In: Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura . São Paulo: Edusp, 1994, p. 100.

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conteúdos ideais que melhor representam os desígnios de seus propositores; exercícios

de escolha que se desdobram em atos de inclusão ou exclusão desta ou aquela tradição

cultural como forma de reabilitar algo que no passado estivera alijado do temário

pictórico - como o legado cultural eslavo/camponês - ou como forma de inaugurar um

novo movimento artístico fundado nas realizações estéticas e políticas do presente.

As diferentes posturas diante da realidade explicam a diversidade das

representações artísticas do conteúdo histórico. Assim, narrativas visuais de gênero,

típicas do século XIX, simbolizam a visão populista, democrática e anti-acadêmica dos

revolucionários dos anos 1860, desejosos que a arte revelasse faces da história do país

que por séculos permaneceram ocultas nas sombras projetadas pelo czarismo. Da

mesma forma, podemos identificar certas correspondências entre revolução e

vanguarda, já que ambos os projetos derivam de uma forte vontade de renovação, assim

como o realismo do século XX representa a exaltação do país proletário e

industrializado.

Seguindo este raciocínio compreendemos melhor a pintura russa como sendo

uma arte totalmente enredada na história e, por isso mesmo, incompreensível longe

desta abordagem contextualizada. Particularmente elucidativo deste processo de

construção na esfera da arte refere-se ao Realismo Heróico da AKRR (Associação de

Artistas da Rússia Revolucionária), um grupo que, nos anos 1920, produziu

representações do mundo proletário nas quais prevalecia uma visão otimista, positiva.

Embora se declarassem documentaristas da história, suas pinturas eram criações livres

onde a realidade não era simplesmente reproduzida, mas inventada, e o que torna isso

mais evidente é a aparência heróica que eles se esforçavam por imprimir às suas

composições, quando o tema, em si, não tinha um caráter “épico”. Isto nos faz lembrar a

concepção tropológica de White, para quem “as situações históricas não são

inerentemente trágicas, cômicas ou românticas. Podem ser todas inerentemente

irônicas, porém, não precisam ser urdidas desta forma. Tudo o que o historiador

ncecessita fazer para transformar uma situação trágica numa cômica é alterar o seu

ponto de vista ou mudar o escopo de suas percepções. Em todo o caso, só pensamos nas

situações como trágicas ou cômicas, porque tais conceitos fazem parte de nossa

herança cultural em geral e literária em particular”6

Fazendo a transposição deste pensamento para o âmbito das artes plásticas,

entendemos que as imagens realistas, conquanto fossem leituras plásticas da história

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contemporânea, não eram registros objetivos do que estava acontecendo, mas sim,

representações que respondiam aos determinantes culturais de seu tempo e aos

propósitos de grupos sociais com concepções de história e realidade muito bem

definidas.

Diante disso, procuramos localizar o fazer pictural dentro de uma relação

dialética, da qual o artista participa como sujeito criador que oscila entre o real e o

imaginário. Embora por vezes trabalhe com temas históricos e sociais, ele se apropria

livremente destes temas, poetizando-os e introduzindo na composição realidades de

ordem estética que transformam a obra em objeto relativamente autônomo. E se

dizemos “realtivamente autônomo”, é porque a pintura, apesar de ser primordialmente

uma criação estética, nasce de uma relação de enfrentamento entre artista e real. Esta

posição do artista russo frente ao processo histórico torna-se bastante visível quando

analisamos o problema do realismo pictórico dos anos 20, sobretudo na obra da AKRR.

Como veremos no capítulo III, este grupo anunciava que seu trabalho era construir uma

história figurada da Rússia soviética. Ciente de que não se pode exigir que a arte seja

uma reprodução do universo, reiteramos, nos capítulos I e III a natureza criadora e

produtora de ficção de que se reveste a atitude do pintor realista. Dentro deste contexto,

a própria noção de história deve ser mediatizada, pois a história, quando vista pela a

ótica da arte adquire configurações inéditas e transita por caminhos difusos, traçados

tanto pelo olhar estético quanto pelos desenvolvimentos sociais e políticos que estão

imbricados. Nesta operação, a arte transforma a história sem perder os vínculos com o

real. Peter Gay, numa asserção de certa forma oposta ao pensamento de White, diz algo

que resume esta relação entre história e fição:

“Por mais que possamos apreciar as histórias de fição pelas verdades que revelam, apreciamo-las muito mais pelas mentiras que nos contam (...) Mas o que não se requer da arte é o que se requer da história: descobrir, por mais chocante que seja a descoberta, como era o velho universo, ao invés de inventar um novo. A diferença é simplesmente decisiva”7 Por estas e outras razões, tivemos o cuidado de não identificar o realismo com as

situações históricas concretas. Ao contrário, nossa estratégia foi evidenciar as

contradições, as defasagens das pinturas realistas em relação aos fatos para trazer à tona

a iventividade daquele mesmo artista que se julgava um documentarista. A idéia era

esclarecer que sempre existia uma noção de realidade subjacente a qualquer obra,

6 WHITE, Hayden. Op. Cit., p. 102. 7 GAY, Peter. O Estilo na História. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.175.

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mesmo as composições abstratas que alguns julgavam metafísicas, como o

Suprematismo.

Percebendo que a influência do realismo na arte russa se alastra por um tempo

superior a 50 anos, decidimos dilatar o corte cronológico e inciar o percurso na pintura

do século XIX, passando pelo interlúdio vanguardista e terminando no realismo

novecentista. Acreditando, como Bowlt, que neste longo perído gesta-se a modernidade

no campo das artes visuais no país, concluímos não ser possível compreender estes três

grandes projetos sem levar em conta as interconcexões que os tornam movimentos

cruciais e decisivos de um mesmo processo modernizante onde as lutas identitárias e

os valores culturais como “eslavo”, “camponês”, “proletário”, ocupam grande parte do

debate intelectual, instigando artistas a tomarem partido e assumirem posições através

de sua arte, vista como instrumento de reflexão estética e política.

Tendo em vista a extensão do corte cronológico e todos os problemas heurísticos

discutidos acima, elaboramos uma dissertação estruturada em três capítulos

panorâmicos onde são analisados conjuntos de tendências que, nos três momentos

seminais da história, compartilharam certas idéias sobre a realidade. No primeiro

capítulo, intiulado “A História Construída: Realismos pictóricos no séuclo XIX e início

do século XX”, discutimos a pintura de gênero como um movimento conduzido por

pintores inspirados pelos ideais revolucionários de 1850 e que elegeram a realidade

social camponesa como seu grande tema. Opondo-se ao estilo neoclássico da Academia

Imperial, estes artistas defendiam o abandono dos padrões europeus e uma maior

atenção à cultura nativa, à arte folclórica e às raízes eslavas. Neste capítulo, nosso

propósito é investigar como esta arte realista, ancorada em temas sociais, se inscreve

dentro de um amplo contexto de recuperação de identidades e de combate à hegemonia

czarista e ao modo de vida cortez.

No capítulo II, “As Vanguardas e o esfacelamento da história”, analisamos a

formação dos movimentos vanguardistas em meio a um contexto de declínio da

produção realista, algo que se insinuava desde a última década do século XIX. Aqui, o

objetivo é expor a trajetória destes movimentos que, tendo nascido do diálogo entre

russos e europeus, se desdobraram em correntes independentes, cuja originalidade

repercutiu em todo o mundo ocidental. Se na sua origem as vanguardas eram

experiências estetizantes, desprovidas de orientação política, mais tarde surgiram

projetos, como o suprematismo, que, devido à sua grande radicalidade e ousadia,

acabaram convergindo com o processo revolucionário deflagrado em 1905. Neste

19

sentido, a idéia essencial é demonstrar as afinidades entre vanguarda e revolução, como

dois movimentos de ruptura que, de diferentes formas, contribuíram para o

sepultamento da velha ordem e pela projeção de novos mundos.

No terceiro capítulo, “Realismo no século XX: a construção da realidade

proletária”, abordamos a revivescência do realismo pictórico num momento em que os

construtivistas já haviam declarado a morte da pintura de cavalete. Procuramos mostrar

que o desejo de consolidação de um Estado comunista levou ao abandono dos ideais

revolucionários, o que, por seu turno, criou o terreno propício para o regresso de uma

concepção de arte tradicional. Intimamente vinculados à burocracia, os grupos realistas

do século XX surgiram como paladinos desta “realidade” proletária e criaram imagens

sobre temas como a indústria e o Exército Vermelho, onde podemos vislumbrar as

representações construídas por artistas ligados ao poder político e que acabaram se

convertendo em propagadores da ideologia. Nestas obras também percebemos o estágio

embrionário de um novo contexto artístico, totalmente controlado pelo Estado.

20

CAPÍTULO I: A HISTÓRIA CONSTRUÍDA: REALISMOS PICTÓRICOS NO

SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX

Até o surgimento das Vanguardas, no início do século XX, o debate estético

relativo à arte pictórica russa concentrou-se essencialmente em torno de questões

temáticas. Atitudes experimentais e transgressoras no que se refere ao aspecto formal só

viriam a se concretizar a partir da emergência dos chamados movimentos modernos, os

quais, embora não estivessem desvinculados da realidade social, como uma análise

superficial e puramente estética poderia sugerir a princípio, abandonaram preocupações

representacionais e insistiram na necessidade de realizar experimentos formalísticos,

rompendo com o ilusionismo que por séculos dominara o mundo da arte, e,

consequentemente, esfacelando um dos principais paradígmas que sustentaram e

garantiram a longevidade deste estado de coisas, qual seja, a exigência de se fazer uma

representação pictórica fiel de objetos reconhecíveis, fossem estes de natureza mítica,

ou supostamente traduzidos de uma realidade.

Movimentos modernos como Raionismo, Suprematismo, Construtivismo e Cubo

Futurismo são os representantes russos de uma série de projetos artísticos radicais que,

desenvolvendo-se primeiramente no Ocidente, a exemplo do Cubismo francês e do

Futurismo italiano, transpuseram fronteiras e inspiraram realizações similares em países

da Europa Oriental e principalmente na Rússia. Propositores de transformações

inusitadas, tais movimentos não podem ser vistos como meras e repentinas insurgências

estetizantes a navegar indiferentes e isoladas num mar de conservadorismo, pois não só

traduziram a dinâmica social do seu tempo como também engendraram transformações

no tecido social a partir dos sentidos que criaram. Por esta razão, quando se pensa em

Vanguardas russas, é necessário ter em mente algumas tendências realistas que, ainda

que tenham sido gestadas no século XX, não estiveram circunscritas àquele período, já

que na virada do século, e posteriormente no século XX, envolveram-se em

enfrentamentos com abordagens vanguardistas.

No que reporta ao século XIX, é relevante discutir os antagonismos entre duas

tendências pictóricas que, embora compartilhassem um certo caráter realístico, nutriram

21

divergências no que diz respeito à temática: a pintura histórica e a pintura de gênero8.

Todavia, torna-se importante ressaltar que nosso interesse recai sobretudo na pintura de

gênero, e, portanto, nossas análises concentrar-se-ão em autores e obras relacionados a

esta tendência; referências à pintura acadêmica (histórica) serão feitas esporadicamente,

quando necessário, para explicitar a natureza da oposição e a forma como esta se

desdobrou em diferentes ideários acerca do conceito de arte e da função do artista na

sociedade.

Segundo Bown9, as discussões sobre a relevância de temas para a pintura russa

teriam iniciado na primeira metade do século XIX, quando um grupo de artistas

acadêmicos fora enviado à Itália para estudar a arte da Renascença.10 Em Roma, artistas

como Karl Bryullov e Alexander Ivanov, produziram grandes pinturas de caráter

acadêmico, nas quais pode-se observar uma evidente adoção de temáticas renascentistas

como mitos, lendas clássicas e episódios cristãos, temas que compunham o repertório

essencial dos grandes mestres renascentistas.

A obra “O Último Dia de Pompéia” (fig. 1) de Bryullov é um exemplo

espetacular desta mentalidade clássica então prevalescente na Academia. Retratando a

legendária erupção do Vesúvio e a consequente ruína da cidade de Pompéia, a imagem

apresenta composição não propriamente renascentista, mas, poderíamos dizer, um tanto

8 O Termo pintura histórica, em sentido lato, aplica-se a toda obra pictórica cuja temática são os grandes fatos consagrados por uma tradição historiográfica, que não preserva os aspectos corriqueiros da experiência, mas antes, acentua a dimensão épica das situações, insuflando-lhes grandiosidade, mistério e alçando-lhes à condição de entidades quase mitológicas. No caso específico da Rússia, a expressão designa as obras construídas sobre grandes temas genéricos da história universal ou nacional, frequentemente aliando representação histórica e mitos e lendas provenientes da tradição greco-romana. O conceito ‘pintura de gênero’, designa as realizações pictóricas que abordam a temática do cotidiano das populações camponesas. Segundo Gombrich, o interesse em retratar aspectos do cotidiano é uma consequência de um sentimento iconoclasta inaugurado pela Reforma Protestante, que suprimiu toda e qualquer representação imagética nos domínios da Igreja, arruinando, assim, um dos principais campos de trabalho dos pintores que, a partir de então, voltaram-se para estes temas de natureza secular e popular. O holandês Peter Bruegel, é um dos principais pintores de gênero da Resnascença e, em várias obras, retratou de forma primorosa e peculiar traços marcantes das festividades cmaponesas. Na Rússia, esta tendência alcançou maior expressão na obra do grupo Os Itinerantes, que, na Segunda metade do século XIX, empreendia viagens pelo interior do país com o objetivo de registrar plasticamente a existência camponesa nas pequenas aldeias espalhadas pelo território. 9 BOWN, Matthew Cullerne. Socialist Realist Painting. New Haven/London: Yale University Press, 1998, p.5. 10 Este interesse pela cultura ocidental, que muitas vezes se converteu em verdadeira adoração, tem suas origens no ambicioso projeto ocidentalizante, iniciado ainda no reinado de Pedro o Grande, no século XVIII, quando um conjunto de medidas foram implementadas, visando romper o isolamento político, econômico e cultural a que o país estivera sujeito durante séculos, e promover a integração do mesmo no mundo moderno europeu. Entre tais medidas figurava a criação de uma Academia de Artes e Ciências nos moldes ocidentais, que foi instituída em 1756, já no reinado da imperatriz Elizaveta Petrovna. Não consideramos relevante registar aqui maiores detalhes sobre estes fatos. Para aprofundar a discussão ver o livro de Bown supra-citado e a obra “The Russian Experiment in Art” de Camilla Gray (London: Thames and Hudson, 1990).

22

quanto maneirista, o que se evidencia no dramático claro-escuro que dilui o limite dos

corpos, atenuando a linearidade da forma e fundindo as figuras humanas em dois grupos

de pessoas meio indistintas, cujas estruturas corporais são quase que mutiladas pela luz

fragmentária. Estes são recursos formais não são muito comuns na arte renascentista,

onde a luz é uma entidade totalizadora que preenche todo o espaço pictórico, revelando

detalhes das formas representadas e acentuando a distinção figura/fundo, o que não

acontece na obra de Bryullov, onde a luz incide quase que exclusivamente na região

central, espalhando pequenos estilhaços luminosos nas áreas laterais, sendo que a

simetria clássica, conquanto exista, é brutalmente rompida pela trajetória diagonal da

luz e pelo movimento convulsivo das personagens.

No entanto, para além de quaisquer considerações a respeito das possíveis

referências e vinculações estilísticas desta ou de qualquer outra obra acadêmica russa

produzida no século XIX, é simplesmente errôneo julgá- las segundo conceitos ou

classificações periodicizantes, já que a obra, tendo sido produzida em outro contexto,

implica certamente em reelaboração de técnicas e recursos estilísticos apreendidos

através da cópia de imagens renascentistas, não sendo, portanto, uma mera apropriação

acrítica de paradígmas estéticos pré estabelecidos. Além disso, é preciso acrescentar que

esta pintura, na sua condição de elemento cultural de um tempo, incorpora à sua poética

as questões prementes de sua época e responde aos imperativos postos pelos grupos

sociais que vivenciam esta realidade cultural. Sendo o contexto histórico inerente à

forma e ao estilo, concluímos que toda obra propõe algo novo, mesmo que esteja

povoada de citações.

Em apoio a esta hipótese podemos mencionar a própria recepção da obra na

Rússia e a reação que a mesma suscitou na intelectualidade. Sobre ela Gogol escreveu:

“...na concepção, pertence absolutamente ao nosso século (...) pois escolhe como tema

as poderosas crises sentidas por toda a massa.”11 Uma outra apreciação sobre esta obra,

realizada pelo escritor revolucionário Aleksandr Gertsen, corrobora nossa reflexão

acerca da especificidade da obra. Segundo Bown, Gertsen considerou que “O Último

Dia de Pompéia” era “... o produto de uma consciência revolucionária embrionária,

inspirada pela supressão da Revolta dos Dezembristas de 1825”12, argumentação que o

11 Gogol. Apud: Bown, Matthew Cullerne. Socialist Realist Painting. New Haven / London: Yale University Press, 1998, p. 5. 12 Idem, p.5.

23

próprio Bown refutou, ponderando que “ a interpretação de Gertsen fia-se numa

amorfa identificação de romantismo e espírito revolucionário.”13

Todavia, é possível que a observação de Gertsen tenha algum fundamento. Se

analisarmos a imagem na perspectiva da alegoria, poderemos supor que talvez Bryullov

tenha de fato se inspirado nos acontecimentos recentes de São Petersburgo, e buscado

associar um tema clássico (a queda de Pompéia) à Revolta dos Dezembristas14, através

de um conjunto de metáforas visuais. Certamente seria temerário identificar nesta obra a

alegoria de um fato histórico específico como a Revolta, já que o estudo iconográfico

exige pesquisas muito rigorosas, baseadas não somente na história, mas também em

tratados de iconologia que estabelecem critérios para a criação de símbolos. No entanto

consideramos relevante fazer esta alusão à iconografia, até mesmo para advertir quanto

a possíveis análises equivocadas de seu conteúdo, e também para compreender as

significações metafóricas percebidas por Gertsen, um crítico de arte revolucionário

atuante no mesmo período em que a obra foi concluída.

Para avaliarmos melhor a questão dos significados em uma obra pictórica,

convém insistir um pouco mais no quesito iconografia e apresentar o pensamento de

Jorge Colli sobre este assunto. Analisando a obra “A Liberdade Guiando o Povo”(fig.

2), o autor faz importantes reflexões que podem auxiliar a compreensão do significado

na pintura. Ele afirma, por exemplo, que na alegoria revolucionária não existe apenas

uma “dissolução da linguagem ‘erudita’ na ‘popular’, mas um diálogo entre ambas.

Desse modo, a grande pintura não ficará indiferente às novas questões do discurso

visual.”15 Nesta perspectiva, podemos concluir que a alegoria comporta aspectos sociais

e políticos, visto que compreende uma discussão, uma leitura plástica do real, por meio

da articulação de elementos simbólicos ou míticos e excertos da realidade em processo,

13 Idem. 14 A Revolta dos Dezembristas ocorreu em 14 de Dezembro de 1825 e foi promovida por um grupo de oficiais da Guarnição de São Petersburgo, todos eles integrantes das chamadas sociedades secretas, organizações . paramilitares surgidas em toda a Rússia ao fim dos conflitos Napoleônicos. Com a morte do Czar Nicolau I, o trono seria herdado por Constantino, o próximo na linha de sucessão. Porém, Constantino, que havia contraído matrimônio morgadio, abdicou em favor de Alexandre. Este, numa demonstração de extremo respeito às tradições nobiliárquicas, manteve uma situação provisória, ordenando que as tropas oficiais prestassem homenagem a Constantino até que o documento de renúncia fosse obtido. Aproveitanto-se desta situação confusa, os oficiais insuretos conseguiram persuadir seus soldados de que Alexandre estava dando um golpe de Estado, fomentando, assim, a prematura sublevação, facilmente dominada, devido à sua precária organização e à inexistência de vínculos com a população camponesa. A trágica experiência dezembrista teve graves consequências para os oficiais – degredos, execuções, prisões perpétuas - e permaneceu como o símbolo da barbárie czarista a inspirar sucessivas inssureições até 1917. (ULAM, Adam B. Os Bolcheviques) 15 COLLI, Jorge. A Alegoria da Liberdade. In: Os sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p.384.

24

gerando um discurso visual que não é um registro ou reflexo literal e objetivo, mas antes

uma sequência de metáforas, cuja significação política inerente é muitas vezes implícita,

e exige, como na obra de Delacroix, uma decifração de códigos já existentes na tradição

pictórica.

Considerando todo este debate que a análise iconográfica nos sugere, julgamos

precipitado negar uma dimensão política ao quadro de Bryullov. Por outro lado, não é

possível conferir- lhe o status de alegoria sem esgarçar a intrincada trama que o sustenta,

e sem reconstituir sua trajetória iconográfica, pois, a alegoria não é uma atividade

plenamente espiritual, uma vez que, na sua construção, ocorre um diálogo entre o artista

e o real, e, como sugere Colli, “é nesse terreno de encontro criado por um fazer pictural

específico que a alegoria desce do seu empíreo e que os homens ascendem a uma

universalidade...”16

Seja como for, não se pode negar que, como demonstra Klein “as vezes os

diferentes temas de uma obra se sobrepõem em camadas”,17 sendo que os diversos

temas são percebidos diferentemente, dependendo do contexto cultural onde se efetiva a

recepção da obra. Segundo Klein, existem temas subjacentes à imagem literal que

apenas alguns indivíduos familiarizados com aquela questão específica estarão aptos a

compreender. Desta forma, Gertsen, como integrante de uma facção revolucionária,

estaria propenso a atribuir sentidos revolucionários a uma obra que, aparentemente,

representa a queda de Pompéia, mesmo que o próprio autor não houvesse pretendido

expressá- los. Não é plausível, portanto, definir o conteúdo social de uma obra ou

aquilatar o grau do engajamento que lhe é inerente baseando-se em uma hermenêutica

simplista que negligencie os sentidos figurados, mesmo porque, sempre que o artista

procede a uma leitura do real, o faz a partir de parâmetros estéticos.

Entretanto, o que é importante apontar aqui não é a perícia ou o virtuosismo do

artista, ou sua habilidade em imitar padrões artísticos estrangeiros, mas sim esclarecer

como essa escolha de abordagens e temáticas clássicas traduzem algo mais amplo, qual

seja, o propósito – fomentado pelas reformas ocidentalizantes de Pedro o Grande – de se

erigir uma civilização e uma cultura que se equiparasse às suas contrapartidas européias.

Uma das formas de traduzir esta ocidentalidade era através do estudo rigoroso e intenso

das obras dos grandes mestres renascentistas, algo que Bryullov certamente fez, pois,

16 Idem, p.403. 17 KLEIN, Robert. A Forma e o Inteligível. São Paulo: Edusp

25

como nos informa Bown18, o artista executou “O Último Dia de Pompéia”, durante o

período em que esteve em Roma realizando cópias da “Escola de Atenas” de Rafael, em

1822, o que sugere que os artistas acadêmicos deste tempo foram, de fato, influenciados

por este culto ao Ocidente, e talvez tenham nutrido a convicção de que era preciso

espelhar-se na realidade das nações européias para construir uma sociedade e uma

cultura superiores na Rússia e, embora a obra de Bryullov não possa ser julgada como

um simulacro de pinturas européias, é razoável inferir que, ao voltar-se para temas

clássicos, e ao executá- los em estilo neoclássico – como Bown salienta – o artista estava

negando, concomitantemente, todo um universo cultural propriamente russo que, não

obstante estivesse ainda vicejante, era desprezado pela aristocracia, que o considerava

símbolo de atraso cultural, pois, como se constituía de hábitos e práticas eminentemente

camponesas – A Rússia neste período ainda era um país essencialmente agrário –

contrapunha-se à cultura urbana, moderna e industrializada, própria das regiões mais

desenvolvidas da Europa.

O resgate desta realidade cultural ignorada pela Academia e pelo establishment

czarista como um todo, só seria empreendido na segunda metade do século XIX, por

algumas sociedades artísticas independentes partidárias da pintura de gênero, as quais,

rompendo com o modelo acadêmico, propuseram novos temas e estimularam a

emergência de novos pensamentos e atitudes artísticas, colocando em pauta questões

como eslavismo, identidade nacional e a função da arte na sociedade. A discussão

destes temas é de crucial importância para a compreensão da arte russa em geral, e

particularmente das tendências realistas, pois, a partir do surgimento da pintura de

gênero no século XIX, todas as realizações no campo da pintura mantiveram vínculos

indeléveis com o real. Mesmo a pintura abstrata, muitas vezes julgada como experiência

alienada, formalista, gratuita, era na verdade, um movimento politizado porque

propositor de transformações, numa época em que estas eram não só necessárias como

irrevogáveis.

Segundo Bown, a gênese desta pintura voltada para temas contemporâneos,

remonta aos anos de 1820, na obra de Aleksei Venetsianov,(fig.3) um pintor da

província que, embora tivesse experimentado a instrução acadêmica, postulava a

necessidade de se abordar a realidade contemporânea na esfera da arte. Em sua pintura,

Venetsianov empenhou-se por representar a vida rural fielmente, e, para tanto, valia-se

de um método híbrido, conciliando o estudo minucioso de célebres obras pictóricas do

18 BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit. P. 5.

26

passado com a atenção aos pequenos gestos e ações que constituíam a vida dos

camponeses, isolados em longínquos povoados do vasto país. A atitude de Venetsinaov

revela uma certa ambiguidade, visto que, ao mesmo tempo em que recomendava o

estudo dos grandes mestres, expressou a necessidade, que ele próprio sentiu, de

“Abandonar regras e hábitos adquiridos nos doze anos em que passou copiando obras

do acervo do Hermitage e seguir a direção apontada pela realidade.”19 Bown

reconhece um conflito nesta incipiente pintura de gênero praticada por Venetsianov e,

sobre sua obra, afirma:

“O resultado desta adaptação de um treinamento acadêmico, baseado na cópia de grandes mestres à tarefa de representar o cotidiano rural, constitui-se de imagens nas quais os gestos parecem congelados, quase como se o mundo tivesse sido estudado como uma natureza morta”20

Por esta citação podemos perceber que houve neste período uma tensão entre duas

realidades e entre duas perspectivas em relação à arte. Esta tímida e ambivalente reação

aos princípios acadêmicos era um indício de que algo estava ruindo no establishment

czarista. Cumpre acrescentar que as realizações Venetsianov representam o despertar da

consciência de que os paradígmas acadêmicos não eram mais adequados à arte e à

realidade russas e, na sua condição de signos contestadores, tais pinturas integram uma

conjuntura em que todo um estado de coisas estava sendo questionado.

Para se compreender as imbricações entre esta pintura de gênero praticada nos

anos de 1820 e as transformações ocorridas no seio da sociedade, basta mencionar que

a arte contrária aos princípios acadêmicos foi realizada principalmente por pintores

servos; indivíduos privados de sua liberdade e direitos básicos, e que, por esta razão,

estavam mais expostos à tirania e opressão de um estado autocrático; um Estado que,

segundo Elliot, era “burocrático, desgovernado, virtualmente medieval, cujo atraso era

justificado pela autoridade divina do Tzar. Até meados do último século (XIX), a

Rússia fora uma servidão, dominada pela anacrônica crença de que a desigualdade

social tinha sido ordenada por Deus.”21 Em um tal Estado anacrônico, fundamentado

na propagação de doutrinas alienantes, conformistas, era natural que se gestassem

mentalidades rebeldes entre aqueles que estavam submetidos às regras imperiais, e que

sustentavam a frágil estrutura que garantia privilégios nobiliárquicos.

19 Idem , p.7. 20 Idem.

27

No que diz respeito à arte, a tendência mais provável neste processo era que

aqueles pintores servos resistissem à perpetuação das normas difundidas pela

Academia, instituição profundamente enraizada no Projeto Ocidentalizante do país e

que não estava interessada em retratar realidades camponesas, mas sim em concentrar-

se em temas clássicos que não revelassem uma Rússia arcaica mas, ao contrário

contribuíssem, em seu estilo neoclássico de construção, para a invenção de um país e de

um Estado moderno e europeizado. Quanto às realidades camponesas, a julgar pela

idéia de desigualdade social como obra divina, podemos inferir que o ideal era que

permanecessem imutáveis e veladas.

Ao voltarem-se para a realidade camponesa, os primeiros pintores de gênero

estavam preparando o terreno para ulteriores sublevações no campo da arte, as quais

culminaram na famigerada revolta contra a Academia em 1863, que deu origem ao

grupo “Os Itinerantes”. Segundo Bown, esta conscientização acerca da realidade russa,

teria sido um catalisador no processo de gestação da arte engajada; sobre os fatos aqui

relatados ele diz: “a consciência do conflito social terá uma profunda influência no

ulterior desenvolvimento da pintura russa, em grande parte devido à resposta que

suscitou nos críticos , que crescentemente exigiam uma arte socialmente engajada.”22

Em meados do século XIX, a difusão de ideais liberais entre a intlectualidade

russa favoreceu a emergência de diversas teorias sobre a relevância da arte para a

sociedade. Vislumbradas hoje como os símbolos de uma consciência revolucionária

embrionária, tais teorias pautavam-se na crítica ao método e ao sistema promovidos

pela Academia, e reivindicavam uma arte participante, que abandonasse o universo

erudito cultuado pelas instituições oficiais e se imiscuísse no mundo contemporâneo,

tornando-se instrumento de registro histórico e crítica social. Nikolai Chernyshevski foi

um dos principais teóricos a fazer a apologia desta nova arte no anos de 1860. Em sua

obra “Relações Estética ente Arte e Realidade”, este autor exalta a vida real e proclama

sua superioridade relativamente à arte, a qual seria neste aspecto apenas um artifício,

não muito eficiente, para glorificar o fenômeno da vida:

“A realidade não é apenas mais viva que a arte, é também mais bela. As formas da fantasia são apenas o pálido, e quase sempre infleliz, reflexo da realidade”23

21 ELLIOT, David. New Worlds: Russian Art & Society – 1900 – 1937 . London: Thames and Hudson, 1986, p.7. 22 BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit. p. 9. 23 CHERNYSHEVSKI, Nikolai. Apud: Bown. Op. Cit. p.10.

28

Ancorado nesta convicção de que a realidade era uma instância absolutamente

superior, Chernyshevski julgava que o artista não devia negligenciar o ambiente em

que estava inserido, e que a principal tarefa de um indivíduo produtor de arte era

proceder ao julgmamento destes fenômenos inerentemente belos. Neste

empreendimento, as questões formais eram tidas como preocupações secundárias, já

que a razão de ser de uma obra era o seu conteúdo e, cabe acrescentar que, na visão de

Chernyshevski, a noção de conteúdo não incluía elementos formais e compositivos

como acreditamos hoje, mas restringia-se a esta glorificada realidade, como podemos

constatar nas palavras do autor: “O conteúdo da arte é a vida em seus aspectos

sociais.”24

As conclusões de Chernyshevski, assim como o amplo espectro de

transformações ocorridas no campo das artes plásticas neste período não eram meras

insurgências estéticas buscando suplantar uma fenecida arte acadêmica, pois todos estes

fatos vinculavam-se, como sugere Bown, a um contexto de crescente insatisfação com

o sistema social aristocrático, responsável pela transformaçção da arte russa naquilo

que os revolucionários denominavam como espúrios simulacros da arte ocidental.

Assim, ao lado de um interesse em resgatar a cultura eslava, a cultura camponesa,

subsistia o ideal de transformar a vida em sociedade, não apenas no âmbito das

elevadas questões de estética, mas também nos aspectos corriqueiros e prosaicos

relativos à existência cotidiana nos povoados e aldeias que compunham o país de

dimensões continentais, habitado por uma miríade de etnias.

Este debruçar-se sobre a realidade em seus aspectos primeiros e elementares

conduziu a um questionamento do primado da estética na arte e de sua condição de

entidade absoluta, não suscetível à ação transformadora do real. Tal atitude pode ser

interpretada como o nascimento do materialismo na esfera da arte, sitema filosófico que

viria dominar tanto a cultura quanto a sociedade a partir da revolução de 1905,

particularmente no que diz respeito ao Realismo Socialista. Sobre isto, Bown diz:

“O ponto de vista de Chernyshevski pode ser melhor compreendido como um expressão de desgosto com o sistema social vigente, o qual estava produzindo muita arte artificial e estéril (...). Era também o resultado de um consciente materialismo filosófico, inspirado por suas leituras de Feurbach (...) O materialismo de Chernyshevski, em sua aplicação à arte, significava a rejeição do idealismo, da

24 Idem.

29

fantasia e mesmo da própria arte como categoria autonônoma, em favor das reivindiçações da vida e da realidade”25

O pensamento de Chernyshevski propôs alguns problemas fundamentais para a

estética realista, os quais terão importância crucial na constituição do ideário artístico

inerente à pintura de gênero pós-1860, como também das novas tendências realistas de

teor proletário e socialista gestadas logo após a Revolução de Outubro de 1917. Uma

destas questões refere-se à acessibilidade da nova arte ao público camponês, para quem

estes artistas não-acadêmicos estavam agora se dirigindo. Uma asserção de

Chernyshevski, presente em seu romance intitulado “O que Deve ser Feito: Contos do

Novo Homem”, remete exatamente à esta questão: “A primeira exigência para o artista

consiste nisto: representar objetos que o leitor possa conceber como realmente são.”26

Aqui, podemos constatar que Chernyshevski define uma nova categoria de

público, expresso já no subtítulo de seu romance: o “novo povo”. Esta expressão refere-

se, certamente, ao campesinato, uma imensa parcela da população que por séculos

estivera alheia ao mundo da arte acadêmica, não apenas porque estivesse isolada em

localidades distantes dos centros culturais – São Petersburgo e Moscou – mas também

porque a própria Academia não considerava que a arte pudesse interessar a estes

indivíduos “incultos”.

Implícita nesta frase reside uma crítica à arte produzida sob os auspícios da

instituição acadêmica, uma arte que, como já mencionamos, trabalhava com temas

clássicos, mitos e lendas herdados da tradição greco-romana e absorvidos pelos artistas

russos durante seus estudos nos museus ocidentais. Na concepção destes teóricos

revolucionários dos anos de 1860, este novo público, resgatado do limbo a que fora

lançado em consequência do projeto modernizador, não se reconhecia na arte

acadêmica, razão pela qual não se identificava com a mesma. Neste sentido, os

intelectuais engajados exigiam a criação de uma nova arte que, abordando o cotidiano

dos camponeses, pudesse, concomitantemente, conscientizá-los de sua condição de

oprimidos; tal arte tornou-se conhecida como pintura de gênero, ou gênero da vida

social.

Outros pensadores do período discorreram sobre a questão do papel social da arte.

Um destes merece ser mencionado, ainda que seus tratados de estética refiram-se à

25 Idem, p.10. 26 CHERNYSHEVSKI, Nikolai. Apud: Bown. Op.Cit., p. 10

30

literatura e não às artes plásticas: Nikolai Dobrolyubov27 alude ao problema da

identificação entre público e arte já discutido por Chernyshevski. Para ele, esta

identificação poderia ocorrer através de um personificação de pessoas reais por parte

dos personagens fictícios, ou seja, ao corporificarem seres concretos, ao representarem-

nos imageticamente num modo realista, tais figuras imaginárias despertariam a empatia

e o reconhecimento no expectador, e gerariam um fenômeno em que seres fictícios são

vistos como reais.

Bown afirma que esta estratégia de análise teve um alcance muito amplo,

influenciando ulteriores discussões envolvendo o Realismo Socialista. O autor

acrescenta que mesmo em recentes produções da T.V. americana ocorre um processo

de fruição semelhante, onde os atores dos seriados de TV - as chamadas soap operas –

são, com frequência, identificados publicamente pelos papéis que desempenham na

trama.28 Esta reflexão nos sugere que o pensamento que norteava a construção da nova

arte incluía a necessidade de se erodir as fronteiras entre arte e vida e promover uma

simbiose entre estes dois universos.

Este período, caracterizado por uma inusitada onda de protestos contra o czarismo

e pelo desenvolvimento das teorias revolucionárias esboçadas acima, marcou o

surgimento de um novo paradígma estético; a idéia de que a arte deveria assumir um

compromisso com a realidade. Neste contexto conviviam duas visões de mundo

antagônicas e duas noções de história e realidade. No momento em que os teóricos

revolucionários decidiram destruir a supremacia acadêmica e aristocrática nas artes;

quando conclamaram ao abandono dos velhos temas clássicos e da velha tradição

ocidental tomada de empréstimo, estavam visando algo mais amplo: a dissolução do

antigo sistema social, o esfacelamento do modelo de história constituído e oficial e a

construção de uma nova história, cujos sujeitos eram esses novos homens e mulheres

mencionados nos escritos de Chernyshevski. Elliot apresenta, de maneira suscinta,

porém esclarecedora, esta conjuntura em que as transformações ocorridas na esfera

social podem também ser percebidas nas artes:

27 Ver. BOWN. Op. Cit. P.10. 28 É importante esclarecer que as obras destes teóricos oitocentistas, como Chernyshevski, Dobrolyubov e Pisarev, não estão disponíveis em qualquer idioma ocidental, e, portanto, para analisarmos suas contribuições ao tema tivemos que recorrer ao livro de Bown, “Socialist Realist Painting”, que é um dos raros, senão único texto a discutir a pintura russa do século XIX em profundidade. Outras obras, como o livro “The Russian Experiment in Art” de Camilla Gray, discutem a obra de grupos como “Os

31

“Lentamente, a onda de ideais liberais e nacionalistas que tinham engolfado o resto da Europa começaram a se fazer sentir: Em março de 1861, o Czar Alexandre II libertou 21 milhões de servos e fez deles cidadãos livres com direito à própria terra. Tais concessões, contudo, chegaram tarde e não foram consistentemente mantidas. O resultado foi que, antes de atenuarem a necessidade e a exigência por uma transformação na sociedade estas foram ainda mais incentivadas. Os primeiros cracks no gelo do absolutismo tinham começado a se mostrar: todo o aparato da autocracia tzarista seria em breve varrido em um violento e incontido fluxo”29

Acompanhando esta inquietação , os artistas partidários da pintura de gênero

começaram a produzir imagens de crítica social. Entre estas destaca-se “Uma Procissão

Reliogiosa para o Leste” (fig.4), de Vasili G. Perov, censurada em sua época por

retratar um clérigo embriagado. Nesta obra, deve-se dizer, a mudança temática e o teor

crítico não implicam em inovação formal. È evidente que ao eleger um tema cotidiano

e ao satirizar os assuntos religiosos o autor rompe com os padrões acadêmicos,

entretanto, traduz estes temas numa estrutura plástica eminentemente convencional: A

luz, por exemplo, é distribuída por toda a superfície através de uma claro-escuro

extremamente fiel ao esquema neoclássico, definindo o volume dos corpos, acentuando

a linearidade e o contorno. A perspectiva também é empregada na forma tradicional,

produzindo uma sucessão de planos nitidamente identificáveis, que partem do plano

frontal, onde os personagens são individualizados, e onde pequenos detalhes, como as

poças d’água ao chão e panejamentos, são trabalhados de forma ilusionística; passando

por um plano intermédio no qual as imagens das pessoas são convertidas em silhuetas

semi-diluídas na escuridão; indo terminar no último plano, um fragmento de horizonte

que surge do rígido contraste ente o céu crepuscular e a terra escura. Todos estes

artifícios geram a profundidade que confere um caráter realístico à cena representada.

A constatação de que o elemento diferenciador da experiência da pintura de

gênero resume-se à escolha temática corrobora nossa hipótese de que a arte, neste

período passou a ser vista como instrumento legimtimador da história, o que significa

que uma linguagem, seja verbal ou não-verbal, era um elemento capaz de construir

visões de mundo e comunicar sentidos acerca da realidade. Ainda que a forma

permaneça inalterada, ela é agora usada para um outro propósito, qual seja, a

transformação da sociedade e a instauração de um novo modelo social, conduzido por

novos agentes. Vista como veículo comunicador, a obra pictórica passa a incorporar a

noção de pensamento plástico. Este conceito, elaborado por Francastel em sua obra “A

Itinerantes” e o círculo de Mammontov, mas, no que se refere aos escritores revolucionários, são bastante superficiais.

32

Realidade Figurativa”, consiste na idéia de que as artes visuais não possuem caráter

meramente ilustrativo, mas, ao contrário, constituem uma forma de pensar por imagens,

um sistema de signos por meio do qual é possível elaborar narrativas visuais e

conceitos inerentemente plásticos, e que não precisam ser traduzidos para o código

verbal para que se tornem inteligíveis, já que a arte “não é unicamente uma

especulação e um sonho, é também uma das vias do conhecimento”30

Esta noção é, em certo sentido, coerente com o projeto popularizador

empreendido por artistas e críticos a partir dos anos de 1860, pois a meta de se produzir

arte acessível a um amplo público semi- letrado, equivale a um reconhecimento do

poder da imagem como instrumento de conscientização. A própria razão de ser desta

arte seria o constituir-se enquanto resposta a esse público camponês não apto a ler

romances e destituído da erudição necessária para fruir uma arte enraízada na tradição

estrangeira. Novamente, citamos o texto de Francastel, o qual ilumina a compreensão

do pensamento plástico e seus desdobramentos sociais:

“Nossa época, que pretende resolver todos os problemas de conduta em termos de linguagem, perdeu de vista que a maior parte das civilizações foram fundadas sobre uma cultura da vista e do ouvido.”31

Todos esses ideais socializadores começaram a se concretizar nas atividades de

artistas independentes, a partir dos anos de 1860. Um acontecimento notável, e de certa

forma determinante de futuras ações, refere-se à famosa rebelião de estudantes

acadêmicos ocorrida em 1863.32 Nesta ocasião os alunos protestaram contra a

delimitação de temas para a competição à Medalha de Ouro da Academia. Como suas

reivindicações não foram atendidas, tais artistas desligaram-se da instituição e

fundaram a “Cooperativa de Artistas Livres”, cuja liderança coube a Ivan Kramskói.

Desse grupo de dissidentes, alguns artistas como Perov, Yakobi, Grigor Myasoyedov,

Nikolai Gee o pintor de paisagens Shyshkin, abandonaram a Cooperativa em 1870,

fundando o gurpo “Os Itinerantes”, que assim se auto-denominou em função de sua

atividade errante, que consistia em levar a arte a todos os cantos do país através de

exposições temporárias que circulavam de cidade em cidade, atividade que pode ser

vista como uma oposição declarada ao conceito de exposição acadêmico, segundo o

29 ELLIOT, David. Op. Cit. P.7; 30 FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 70. 31 Idem. P.81. 32 Ver: Bown. Op. Cit., p.12.

33

qual obras de arte devem ser exibidas em espaços institucionalizados e consagrados,

como museus e galerias.

Os Itinerantes constituíram a organização artística mais importante a surgir na

segunda metade do século XIX, e, provavelmente, sua oposição à arte acadêmica foi

um fator decisivo no insólito processo de mudanças que conduziria à instauração de um

novo contexto cultural. Bown traça, em linhas gerais, o programa proposto pelo grupo:

“A abordagem dos “Itinerantes” pode ser distinguida da de seus predecessores acadêmicos, por seu compromisso com o drama psicológico indiv idual, aparente na retratística e nas composições temáticas; por sua preferência – no campo da pintura histórica – por cenas da história russa às lenda da Grécia e Roma clássicas e por seu interesse na vida contemporânea. Seu trabalho como um todo, compreende uma plena aceitação da própria Rússia – sua história, seus habitantes, suas crises, sua paisagem – uma Rússia que os pintores acadêmicos tinham tratado seletivamente, ou simplesmente desprezado.”33

Julgamos ser relevante reiterar aqui a questão da construção de uma nova história

na esfera da arte. O texto citado nos esclarece que aquilo que se estava propondo não

era um novo estilo, mas sobretudo uma representação do real; buscava-se suplantar a

arte oficial e o mundo aristocrático por meio do resgate da nacionalidade russa e de

uma parcela dos cidadãos russos que por tanto tempo fora simplesmente desprezada.

Na visão do grupo, estes elementos nacionais deveriam, a aprtir de então, fornecer as

diretrizes para a criação artística, já que a vida, o povo, o real, eram considerados os

supremos conteúdos para a arte. Entretanto, urge ponderar que este conceito de real não

pode ser entendido como algo absoluto e totalizante; deve, ao contrário, ser

relativizado, pois, nestas circunstâncias coexistiam diversas realidades, às quais se

vinculavam sujeitos distintos e possuidores de convicções, talvez não excludentes, mas

divergentes.

Assim, o embate entre duas estéticas rivais – a pintura de gênero e a pintura

acadêmica – traduz artisticamente o enfrentamento entre ideários construídos em torno

da noção de história, e não exatamente uma luta de classes, já que eram estudantes de

arte e não camponeses os sujeitos que estavam promovendo este resgate. Seja como for,

não se pode negar que existiam neste confronto aquilo que Chartier define como “lutas

de representações”34, as quais, segundo ele “...têm tanta importância como as lutas

econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

33 BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit., p. 13. 34 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel / Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17.

34

impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus e o seu domínio.”35

Apropriando- nos deste conceito e remetendo-o ao campo das manifestações artísticas,

podemos entender a pintura dos Itinerantes como representações do mundo social que

eles procuravam promover. Neste sentido, a obra pictórica é também um meio para

comunicação de valores caros ao grupo a que estes artistas pertenciam: um grupo de

pintores acadêmicos, rivais da Academia e do Czarismo. O texto de Gray permite

esclarecer melhor a natureza desta tarefa de construir uma nova história, tal como foi

assumida pelos Itinerantes:

“... Eles procuravam, portanto, representar o camponês como o novo herói e sua inocência e a austeridade de sua vida como o tema mais importante. Esta missão dos Itinerantes de despertar compaixão e simpatia pelo homem comum, era algo sem precedentes na arte russa, pois, desde a europeização do país promovida por Pedro o Grande, tudo o que era de origem russa fora rejeitado como bárbaro e grosseiro, e o termo cultura tinha adquirido um significado essencialmente estrangeiro”36

Este fragmento expõe algumas idéias essenciais ao entendimento da construção

desta nova história: a definição de um novo sujeito – o camponês -; o desejo de se

estabelecer a identidade nacional e o repúdio ao modelo hegemônico e europeizado que

até então se colocara como “história” e “realidade” oficiais. Torna-se evidente que no

bojo desta dualidade subsistia um conflito de interesses. Por este motivo, a pintura de

gênero produzida pelos Itinerantes, não obstante sua pretensão realística, não pode ser

considerada como simples registro histórico, mas antes como uma das representações

naquele momento elaboradas. A veracidade, a fidelidade ao real, não são atributos

destas representações, pois, como são instrumentos comunicadores de convicções

particulares a determinados grupos, não são absolutamente neutras ou objetivas, pois,

como afirma Chartier, “ As representações do mundo social (...) embora aspirem a um

diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos

que as forjam (...), produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma

autoridade à custa de outros por elas desprezados, a legitimar um projeto reformador,

ou a justificar para os próprios indivíduos as suas escolhas e condutas.”37 Assim como

pintores acadêmicos procuravam legitimar a visão de uma Rússia europeizada e

moderna e inscrevê- la na história das grandes nações ocidentais através da criação de

35 Idem. 36 GRAY, Camilla. The Russian Experiment in Art – 1863 – 1922 . London: Thames And Hudson, 1990, p.10. 37 CHARTIER. Roger. Op. Cit. P.17.

35

imagens referenciadas no repertório clássico, os Itinerantes, por seu turno, visavam à

afirmação da história de uma Rússia agrária, eslava e camponesa, trazendo à tona esses

pequenos fragmentos da vida rural.

O legado artístico dos Itinerantes compõe-se basicamente de pinturas ilustrando

a vida contemporânea, ainda que existam exemplos de pinturas sobre temas religiosos.

Tal preponderância reflete uma mudança de perspectivas, caracterizada pela recusa às

instituições e aos seus temas elevados, em favor do “não- institucionalizado”, isto é, dos

fenômenos que aconteciam à margem do sistema. Rompendo seus laços com a

Academia, os artistas de gênero não estavam rejeitando apenas a arte acadêmica, mas

também todo o aparato institucional (museus, escolas de arte), que lhe dava

sustentação. Assim, estes pintores independentes promoviam a atitude libertária

expressa em sua atuação peregrina, nômade; em sua arte socialmente interessada e não

estabelecida em órgãos públicos específicos - embora seja necessário argumentar que

esta situação mudaria substancialmente nos anos de 1890, quando vários membros do

grupo serão admitidos como professores da Academia. Contudo, é suficiente, por ora,

considerar que, por quase três décadas, a arte dos Itinerantes e de outros grupos

atuantes no mesmo período, manterá um caráter não oficial e de certa forma

contestador; tanto que, mesmo ao tratarem de temas religiosos, procuram situá- los no

universo cotidiano. É o caso, por exemplo, da obra “Cristo no Deserto” de Kramskói,

onde, segundo Bown, “o artista tenta lidar como Cristo como uma pessoa

historicamente concreta.”38

Certamente, a obra mais representativa desta abordagem fundamentada no

gênero é “Eles não o Esperavam”(1884) (fig.5), de Ilya Repin; uma pintura que, já em

seu título – semelhante a um excerto de história – revela a opção por um modo

narrativo de representar e a preocupação em registrar ilusionisticamente um instante do

cotidiano do homem comum. Nesta imagem, que retrata o retorno inesperado de um

exilado político, podemos observar que a composição é construída à maneira de uma

fotografia, como se as figuras humanas tivessem sido surpreendidas em algum

momento de suas ações. Aqui, diversos elementos contribuem para a simulação de um

acontecimento: Por um lado, a distribuição dos personagens pelo espaço pictórico – em

que o direcionamento dos olhares e as configurações corpóreas sugerem o despertar da

atenção pela presença súbita de um adventício – mostra-nos características próprias do

registro, a obra sendo a materialização de um instante “real”. Esta sensação é

36

intensificada pelo movimento conferido às duas figuras que dominam a cena, e que se

entreolham ao longo de um eixo diagonal: a rigidez de seus gestos as torna

relativamente inertes e faz com que se assemelhem a imagens capturadas por uma lente

fotográfica imobilizadora. Não se percebe aqui o lirismo e a graciosidade que dão

fluídez ao gesto da imagem pictórica, o que talvez seja um recurso para comunicar a

austeridade da vida deste homem comum.

Por outro lado, o recurso à perspectiva clássica possibilita a representação de

um espaço real, onde tanto as figuras humanas quanto os objetos são situados numa

sequência de planos em que é possível imaginar a tridimensionalidade do local onde se

passa o acontecimento. A luz, distribuída de forma homogênea pelo recinto, a

parcimônia de contrastes cromáticos, contribuem para expressar a sobriedade daquela

habitação e daquele modo de vida. Todavia, não se pode alegar que o artista tenha

pretendido isolar o acontecimento ou resgatá- lo à temporalidade. Pelo contrário, o uso

de uma composição atectônica39 (forma aberta), na qual os limites da tela interceptam

alguns objetos, como cadeiras e mesas, omitindo partes dos mesmos, sugere uma certa

continuidade, ainda que toda e qualquer representação violente a natureza variegada e

fragmentária do real.

Quanto a esta obra, ainda é relevante tecer alguns comentários acerca da

concepção de realidade a ela inerente. Como mencionamos anteriormente, a definição

de novas temáticas e de novas formas de abordagem levada a efeito por pintores de

gênero como os Itinerantes, corresponde à legitimação de novos sujeitos históricos.

Aqui, o protagonista da cena, sendo um exilado político, um revolucionário e, portanto,

inimigo da aristocracia, deve corporificar os ideais e a utopia transformadora daqueles

artistas e intelectuais que resistiram à hegemonia czarista. Esclarecedora a este respeito,

é a análise realizada por Briony Fer sobre esta obra. Ela considera que Repin constrói

de fato uma narrativa onde o prisioneiro é uma figura emblemática:

“Um exemplo bastante ilustrativo é a tela “Eles não o Esperavam”, que foi pintada de maneira ilusionista – contava uma história enfocando um momento carregado emocionalmente ( quando o exilado político retorna à família) e cuja força dependia do reconhecimento da figura heróica, porém extenuada do revolucionário . De fato,

38 BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit, p.13. 39 Esta noção é definida por Heinrich Wöllflyn em sua obra “Conceitos Fundamentais da História da Arte”, onde o autor procura fazer uma análise comparada entre Renascença e Barroco, a aprtir de uma série de pares de conceitos contrários que permitem compreender a diferenças estilísticas existentes entre as obras relativas a esses dois períodos. Os conceitos são: Linear-pictórico, plano-profundidade, tectônico-atectônico (forma fechada-forma aberta), clareza-obscuridade.

37

era tão importante para Repin que as pessoas identificassem a narrativa e o conteúdo emocional e político da pintura, que ele repintou a face do exilado vária vezes, com o intuito de expressar a quantia exata de sofrimento, mas não a tal ponto que as facções de direita pudessem interpretar o revolucionário como um criminoso político enlouquecido”40

A análise de Fer corrobora nossas inferências quanto ao status de representação da obra

pictórica. A preocupação em representar o personagem como símbolo de uma idéia

específica de realidade; como consistente representante, não suscetível às críticas do

grupo rival, inscreve esta imagem na categoria das representações e não dos

testemunhos históricos. Embora o artista tenha – como ressaltamos na análise formal –

pretendido apresentar um retrato fiel da realidade na forma ilusionística e narrativa em

que construiu a cena, provavelmente, o que ele expressou de forma mais consistente foi

a concepção de real e de história peculiares ao grupo ao qual pertenc ia.

Porém, a despeito desta atenção ao julgamento de grupos rivais, que Fer alega

ser uma característica da obra, é preciso colocar que nem todos os segmentos do mundo

da arte avaliavam uma pintura por meio de critérios políticos ou históricos. Houve

crít icos que reprovaram esta mesma imagem justamente por seu engajamento, por sua

filiação a assuntos políticos. Para tais críticos, a forma deveria ser uma estrutura

autônoma e não sujeita à determinações e convicções de ordem política. Isto é o que se

pode compreender da análise de um crítico da época, S. Yaremich, que afirma:

“Após o estilo propaganda dos homens dos 60, surge um movimento de nacionalismo intelectual, que valoriza uma pintura por sua idéia geral e pelo “estilo-cartaz” de expressão. Mesmo o grande talento de Repin foi diluído nesta atmosfera morta; a falta de intensidade artística deu à sua obra uma forma descaracterizada.”41

É provável que esta opinião não seja simplesmente um julgamento neutro, mas

uma das tantas representações que pretendem dissolver outras, tidas como ultrapassadas

ou simplesmente ilegítimas. Nesta perspectiva, toda crítica está atrelada a um interesse

de classe.

Urge introduzir aqui um novo dado acerca da arte dos Itinerantes: suas

influências estrangeiras. Conquanto estivessem voltados para a realidade de seu país,

estes artistas não estavam alheios à últimas tendências da arte européia; pintores

visitavam Paris regularmente e tinham acesso às coleções de arte ocidental, como a de

Kushlev Bezborodko de São Petersburgo e a coleção de arte francesa de Sergei

40 FER, Briony. A Linguagem da Construção. In: Realismo, Racionalismo, Construtivismo: A arte no entre guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p.119.

38

Tretyakov em Moscou.42 Em alguns excertos da correspondência de Kramskói,

compilados por Bown, é possível ter um idéia geral sobre a reação dos artistas russos à

arte francesa. É importante discorrer sobre isso, pois a questão da influência estrangeira

sempre permeou o debate em torno da arte russa, razão pela qual deve ser minimamente

discutida, para que estas raízes, que sabemos ter existido, não sejam simplesmente

desdenhadas em nome de conceitos nacionalistas.

O que se evidencia nas cartas de Kramskói remetidas para a Rússia quando de

sua estadia em Paris, é que sua recepção às obras de arte francesas não se resumem a

um deslumbramento. Numa carta, endereçada a Pavel Tretyakov, por exemplo,

Kramskói expôs sua crença na superioridade do conteúdo em relação à forma, ao dizer:

“... Não estou certo de que o pensamento possa, sozinho, criar a técnica e elevá-la. Se

o conteúdo torna-se estéril a qualidade da execução sofre”43 O artista via as

experimentações formais realizadas naquele período pelos franceses como algo

incompatível com a realidade russa, ainda que considerasse importante, do ponto de

vista estético, esta renovação formal. Segundo Bown, nesta carta Kramskói “declara

explicitamente seu compromisso com uma arte narrativa e conteudística, e sugere que

a entusiástica perseguição de qualidades formais pode ser incompatível com tal

arte.”44 Era preciso assumir a identidade e a cultura russa que, a partir de então, deveria

ter desenvolvimento peculiar, não subordinado aos movimentos da arte européia. Este

sentimento nacional, que era um componente essencial da nova arte russa, kramskói

exprime a Repin em resposta a crítica mordaz deste em relação à cidade de São

Petersburgo, quando comparada à Paris; nela o pintor diz: “...para melhor ou para

pior, nós não somos franceses. Isto nunca deve ser esquecido.”45

A mesma atitude crítica em relação à arte francesa pode ser observada nos

comentários de Kramkói sobre o Impressionismo. Em uma correspondência endereçada

a Stasov ele afirma: “Eu não estou brincando quando digo que em todas essas coisas

há profundidade, poesia e talento, mas, você sabe, para nós isso é um pouco

avançado.”46 Assim, compreendemos que a arte e a cultura ocidental como um todo

não eram assimiladas como dogmas, pelo menos não por esse grupo específico. Pode-se

dizer que, minimamente, havia o desejo de não sucumbir ao encantamento da

41 YAREMICH, S. Apud: GRAY, Camilla. Op. Cit., p. 15. 42 Ver: BOWN. Op. Cit.,p.p. 15/16. 43 KRAMSKÓI. Apud: BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit. P.16 44 BOWN. Op. Cit., p. 16. 45 Idem.

39

modernidade francesa, e a consciência de que preservar a tradição narrativa, o realismo

e os temas relacionados ao cotid iano rural era um dever do artista comprometido com a

restauração da cultura de seu país, uma nação que, como Kramskói observou, não

estava preparada para fruir inovações artísticas próprias de países modernos como a

França.

Entretanto, Bown menciona um outro artista, de origem espanhola e atuante na

França, que teria sido a principal influência ao trabalho dos Itinerantes. Seu nome era

Mariano Fortuny, um artista participante dos salões de pintores acadêmicos da época.

Os russos eram unânimes na exaltação da obra de Fortuny, sendo que Kramskói foi o

único a não aquiescer a esta glorificação de uma obra que ele julgava eminentemente

burguesa.

Nos anos de 1890, os Itinerantes já estavam consolidados enquanto organização

artística, tanto que a Academia deixou de fazer oposição aos seus membros e terminou

por integrá- los ao seu sistema. Muitos daqueles pintores que haviam rompido com a

Academia ao adotar os temas sociais, agora estavam convertendo-se em docentes

daquela mesma instituição, como o próprio Ilya Repin, por exemplo, que fora nomeado

chefe do Departamento de Pintura Histórica. Este processo de lentas transformações em

que um movimento surgido como oposição adquire status de arte oficial, refletiu-se na

própria temática dos Itinerantes, que, a partir de então, passaram a produzir pinturas

históricas, sobre temas oficiais. Paralelamente, a emergência de um movimento

eslavófilo viria instigar as aspirações patrióticas nestes artistas, gerando um processo

crescente de oficialização e institucionalização, que vilolava os princípios libertários

que estavam na gênese do grupo. O mais forte indício a confirmar este processo é

exatamente essa integração ao establyshment; um fato em todos os aspectos contrário à

rebelião que dera origem ao grupo em 1863.47

Esta significativa inflexão na trajetória artística dos Itinerantes, instiga-nos a

reavaliar seu projeto pictórico e imaginar que mudanças poderiam advir da

institucionalização de seus fazeres, outrora tidos como transgressores e suas obras

como veículos de transformação artístico cultural e eles próprios como representantes

da nova cultura e do novo sujeito histórico. É preciso indagar se a Academia Imperial

de Belas Artes, comprometida como estava com o modelo sociocultural caro à

aristocracia, fomentaria a continuidade do movimento de representação de realidades

46 KRAMSKÓI. Apud: BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit., p.16. 47 Sobre este processo Ver: BOWN. Op. Cit, p.19.

40

provincianas, rurais, plebéias? A julgar pelas considerações feitas acima acerca das

pinturas de caráter patriótico, produzidas por itinerantes recém convertidos à Academia,

podemos supor que estes temas cotidianos, a vida do homem comum, já não

constituíam o interesse principal, ou seja, retratar cenas patrióticas, como a cena de

guerra presente na pintura “Cossacos Zaporozhe Escrevendo uma Carta ao Sultão

Turco” (1891) (fig.6), de Ilya Repin, não era um gesto coerente com a utopia

fragmentária daqueles que desejavam desmantelar uma ordem estabelecida e que, por

esta razão, transferiram o foco da atenção das figuras centrais para as periféricas e

anônimas. Tal gesto corresponde antes ao ideal de consolidação de uma idéia de nação

unificada e estável que, no contexto russo, significava um ideal francamente contra-

revolucionário. Representar a nação em seus esforços de guerra era uma forma de

promover o estado autocrático que a sustenta, pois, o conceito de nação não pode

sequer existir para grupos ou sujeitos engajados na transformação, já que, uma vez que

a luta se dirige contra tal estado constituído, qualquer representação que vise ao

reconhecimento de uma unidade geo-política será, na verdade, uma aceitação do

sistema adversário. Desta forma, a representação de temas patrióticos traduz o

abandono das velhas perspectivas.

Neste sentido, é importante reiterar que toda obra de arte dialoga com a história,

razão pela qual não é possível discutir se um determinado artista representa a realidade

mais fielmente do que outro. A interlocução entre arte e história acontece de várias

maneiras, podendo oscilar de uma exaltação deliberada do estado de coisas existente a

uma radical desconstrução da idéia que se tem de história, passando por proposições

utópicas, cujas imagens correspondem a uma devir, a uma civilização a ser construída.

Todas essas formas de elaboração de sentidos artísticos estiveram presentes na história

da arte russa, e os atos que conduziram à formação e dissolução de grupos e à criação

de filosofias, estão intimamente vinculados aos acontecimentos históricos, o que não

quer dizer que a pintura histórica fosse um mero reflexo do real, como crê Lukács, 48já

que a obra, como elemento de cultura, influi na tessitura do contexto.

Segundo o conceito semiótico de cultura, criado por Geertz, o homem é um

“animal amarrado a teias de significados”49, o que implica em dizer que suas ações são

significantes e integram um sistema em que o sentido concernente ao todo depende da

relação e da comunicação entre as partes. Assim, podemos entender o desvio ocorrido

48 LUKÁCS, Georg. Introdução a uma Estética Marxista . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 49 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p.15.

41

na atividade artística dos Itinerantes como uma consequência natural da alteração do

equilíbrio de tensões que sustentava a sociedade: uma vez que os rivais da Academia

tornaram-se demasiadamente poderosos a instituição decidiu assimilá-los aos seus

quadros e, por outro lado, os Itinerantes, como não eram mais artistas independentes,

autônomos, mas sim servidores engajados num órgão oficial, se viram compelidos a

mudar temas e abordagens para responder às novas exigências, e, nesta operação, as

antigas realidades camponesas se perderam e outras apareceram como seus sucedâneos,

permeadas pela idéia unificadora de nação.

Isto nos leva a discutir a noção de realismo esboçada por Fischer em seu livro

“A Necessidade da Arte”. A perspectiva dualista deste autor estabelece uma dicotomia

ente a arte capitalista e arte socialista, onde a primeira seria uma arte discontente,

contrária ao modelo social vigente, e a segunda, aquela que se harmoniza com o mundo

circundante. Fischer resume em poucas palavras esta sua concepção:

“ O realismo crítico e, mais amplamente, a literatura e arte burguesa em seu conjunto (quer dizer, a literatura e a grande arte burguesas) implicam uma crítica à realidade social circundante. O realismo socialista, e mais amplamente, a arte socialist como um todo, implicam uma concordância fundamental com os objetivos da classe trabalhadora e com o mundo socialista que está surgindo.”50

Ainda que este texto refira-se a um outro período – que será discutido no 3º capítulo

desta dissertação – julgamos relevante inserir este fragmento de texto, apenas para

apontar as deficiências de uma tal definição, tendo em vista as complexidades aqui

ressaltadas. Acreditamos que o realismo não pode ser conceituado de forma tão

simples. No entanto cabe enfatizar o que este pensamento de tem de procedente, pois

aqui, o autor esclarece que, embora “artista socialista” e “artista capitalista” possam ser

ambos realistas, suas atitudes diante do real são distintas e, nesta perspectiva, elas

aproximam-se do conceito de representação aludido anteriormente.

Contudo, ao mencionarmos este conceito de cultura como teia de significados,

não estamos pretendendo dizer que houvesse na Rússia uma cultura homogênea, onde

tudo convergisse para um núcleo central; o que queremos é esclarecer que estas

facções, conquanto fossem antagônicas, por vezes colidiam, e deste choque surgiam

novos fatos e novos fenômenos materializados em obras e movimentos.

Neste momento em que apontamos a complexidade do contexto artístico-

cultural da Rússia oitocentista e a não objetividade de seus realismos, cumpre

42

introduzir uma nova questão: o nascimento do mecenato privado. Este fenômeno,

ocorrido no final do século XIX, representou um forte impulso para a formação de

grupos artísticos independentes, e sua importância ultrapassa o âmbito mercadológico,

pois foi através do apoio e patrocínio de alguns ricos homens de negócio que os artistas

puderam consolidar uma arte independente, vencer o domínio acadêmico e, o mais

importante, desconstruir o tradicionalismo e impor mudanças à própria arte. Todavia, o

papel do mecenato no desenvolvimento da arte russa deve ser analisado com cautela,

pois apresenta aspectos contraditórios: ao mesmo tempo em que esteve associado a um

interesse pela cultura popular, como no caso colônia de Abramtsevo, representou uma

oportunidade para a penetração de novos padrões culturais ocidentais, a exemplo do

que aconteceu com o grupo “Mundo da Arte”, que também foi financiado pela

iniciativa privada e manteve vínculos com as tendências de vanguarda européias.

O exemplo mais notável deste processo diz respeito à Colônia de Abramtsevo,

fundada nos anos de 1870 por Savva Mammontov, um empresário do ramo de estradas

de ferro. A colônia, não consistia especificamente de um grupo, como os Itinerantes ou

o “Mundo da Arte”; tratava-se na verdade de um lugar, uma propriedade nos arrabaldes

de Moscou, onde artistas, compositores, poetas, literatos e dramaturgos se reuníam para

debates, apresentações e oficinas. Segundo Gray, esta colônia “constituiu o primeiro

desafio à toda poderosa Academia de Arte de São Petersburgo, cujo sistema meio-

cortês, meio-burocrático tinha controlado inteiramente a vida artística do país desde

sua fundação pela Imperatriz Elizabeth em 1757.”51 As palavras de Gray ilustram

aquele processo de institucionalização da arte que, reiteradamente mencionamos no

decorrer deste texto, e talvez por isso seja conveniente dizer que, devido ao seu caráter

não-burocrático e não-oficial, a colônia se consolidou como o epaço ideal para o

florescimento de novas idéias.

O princípio norteador dos trabalhos de Abramtsevo era o desejo de restaurar a

cultura popular russa e a arte medieval, o que significava, de certa forma, criar uma

nova cultura, já que, na esfera das artes eruditas, o folclore praticamente não existia. Os

diversos empreendimentos ali realizados visavam não somente ao estudo, mas também

à viabilização de um espaço e de uma estrutura para que antigas tradições fossem

revividas na prática, ou seja, a ação dos Mammontov não se restringia à discussão de

conceitos de cultura; tratava-se de uma visão pragmática.Tomemos como exemplo a

50 FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977,p. 125. 51 GRAY, Camilla. Op. Cit. P.9.

43

oficina de escultura destinada a artistas e artífices, que Gray nos diz ter sido fundada

em Abramtsevo:

“Era uma oficina tanto para artesãos habilitados em artes tradicionais, quanto para artistas da colônia que estivessem interessados neste revival prático de antigas tradições artísticas, campo em que Abramtsevo emerge como força pioneira.”52

O principal artista a atuar na colônia foi, certamente, Vassily Polenov, um pintor

de origem rural que passou grande parte de sua vida em Abramtsevo e cujos interesses

em arqueologia harmonizavam-se totalmente com a morosa tarefa de restaurar

elementos visuais de uma cultura arcaica, esquecidos durante um longo período.

Polenov envolveu-se apaixonadamente na construção de uma igreja em estilo medieval

de Novgorod (uma cidade histórica), que o círculo de Mammontov decidira construir

na propriedade53. Gray relata que Polenov teria elaborado uma série de esboços para

esta igreja, baseando-se em documentos arqueológicos herdados de seu pai.

Como podemos notar, em Abramtsevo a atenção estava voltada principalmente

para o passado, no que diferenciava-se do trabalho desenvolvido pelos Itinerantes, que

privilegiavam os temas contemporâneos. Entretanto, o movimento da pintura de gênero

não esteve dissociado do círculo de Mammontov, já que os principais artistas a aderir à

colônia eram oriundos daquele grupo: em Abramtsevo Repin teria, segundo Gray54,

concluído sua célebre pintura “Eles não o Esperavam” de 1884.

Devido à empatia pela cultura medieval, o Círculo passou a cultuar a pintura

icônica e pintura parietal – principalmente afrescos – uma tradição pouco conhecida na

Rússia de então, um país onde antigas imagens de ícones foram ocultadas por

sobreposições de camadas de tintas, aplicadas durante séculos num período em que não

se tinha consciência da necessidade de se preservar estes monumentos do passado.

Neste aspecto, a colônia mostrou-se pioneira, inaugurando uma prática restauradora,

realizando excursões às igrejas onde havia remanescentes da hierática arte medieval,e,

principalmente, procedendo à aplicação efetiva de seus princípios na construção da

igreja de Abramtsevo, cujos afrescos foram realizados por Repin, Polenov, Mikhail

Nesterov e Apollinarius Venetsianov.

Sob a influência desta restauração da pintura icônica e parietal alguns artistas

incorporaram em suas obras não somente a temática, mas também elementos formais e

52 Idem, p.14. 53 O projeto arquitetônico desta igreja foi elaborado por Viktor Vasnetsov (Ver: GRAY. Op. Cit.)

44

compositivos e efeitos cromáticos próprios das tradições renascentista e bizantina,

períodos em que ocorre a florescimento dos afrescos, com suas monumentais figuras

ilustrando episódios bíblicos. Porém, ao definirmos as matrizes da arte parietal russa,

não devemos esquecer a distinção fundamental existente entre Renascença e Bizâncio

no que reporta à composição e à construção do espaço, pois estes fatores informam-nos

sobre concepções de arte formuladas naqueles períodos, e que estarão, de certa forma

norteando as escolhas formais e estilísticas dos artistas russos.

Segundo Gombrich55, a arte sacra bizantina, embora fosse uma grande arte,

estava solidamente enredada no ideário medieval, razão pela qual pode ser vista como

um produto daquele contexto em que os primeiros cristãos não eram muito afeitos à

presença de imagens em igrejas, pelo simples motivo de que estas evocavam deuses

pagãos. Neste contexto iconoclasta por excelência, a estatuária foi completamente

proibida e arte parietal – expressa principalmente no gênero mosaico – deveria ser

simples e exortativa, para cumprir adequadamente sua função pedagógica de informar

aos iletrados acerca dos ritos e episódios cristãos e, ao mesmo tempo, fazê- los

compreender a doutrina fundamentada no monoteísmo. Como forma de responder a tais

exigências, os artistas anônimos de Bizâncio criaram painéis essenciais, nos quais a

imagem não tem pretensão naturalística e onde a ausência de perspectiva não permite

situar a cena num espaço real, resgatando-a à temporalidade e conservando sua natureza

etérea.

Já a tradição pré-renascentista, iniciada por Giotto no século XIV, introduziu

rudimentos de perspectiva e, com isto, conferiu um certo teor realístico aos episódios

bíblicos representados em seus afrescos. A perspectiva cria a ilusão de profundiade e

transforma as imagens em narrativas visuais, permitindo ao expectador uma fruição

completamente distinta daquela que era possível em Bizâncio: agora, o lhar acompanha

o desenrolar de um processo, percebe as etapas de um evento histórico. Gombrich diz

que Giotto “mudou toda a concepção de pintura. Em vez de usar os métodos de escrita

pictórica, ele criou a ilusão de que a história sagrada estava acontecendo diante de

nossos olhos.”56

Quanto à arte russa produzida em Abramtsevo, vale dizer que apresenta

características que a aproximam mais da arte renascentista, ainda que no aspecto

54 Idem, pp. 14/15. 55 GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1993. 56 Idem, p. 150.

45

cromático deva muito ao primitivismo de Bizâncio. Analisando a obra “A Boyarina

Morozova” (1881 –7), (fig. 7) de Vassily Surikov, percebemos aquela mesma

narratividade, aquele mesmo modo de verter acontecimentos religiosos (no caso, a

perseguição dos velhos crentes pelo patriarca Nikon)57 para a forma figurada que

encontramos na obra de Giotto. Aqui, a perspectiva clássica permite revelar uma

panorama realístico da Moscou medieval. A imagem esmaecida de edificações

distantes, obtida graças à perspectivação e a consequente profundidade, criam uma

ilusão de espacialidade concreta, uma falsa concretude, que faz da cena pintada um

fragmento de um real pretérito, e não uma imagem estilizada destinada a ilustrar

verdades cristãs. A própria respresentação de um aglomerado – que Gombrich

reconhece como um dos recursos a insuflar realismo numa construção pictórica –

contribui para fomentar a dinâmica e a dramaticidade que vinculam esta obra a

Tintoretto, Michelângelo, Veronese, que, segundo Gray, são as principais referências

de Surikov neste período.

É preciso esclarecer que a obra em questão não é uma pintura mural. Entretanto,

sua composição revela, como assinalamos, uma apropriação de recursos estilísticos

próprios da arte parietal e da arte renascentista como um todo, o que pode ser

interpretado como um artifício que os russos lançaram mão para atingir seu objetivo

maior, qual seja, a restauração da arte medieval. Recorrendo a estas invenções de

outrora, os pintores de Abramtsevo acreditavam estar aproximando-se de uma realidade

negligenciada pela Academia. Evidentemente, todos estes elementos do repertório

ocidental eram reelaborados e adaptados à realidade russa, pois a intenção não era criar

simulacros de Renascença ou Bizâncio, mas simplesmente restituir o espaço de uma

cultura medieval russa que estava se perdendo.

No que diz respeito a Abramtsevo, uma outra questão deve ser apreciada; diz

respeito ao teatro, uma arte que, na Colônia, provou ser extremamente híbrida, já que

sua realização se dava por meio de uma inter-relação de diferentes linguagens: pintura,

música, escultura, cenografia. Diversos autores como Ripellino, Gray, destacam a

57 Ver: GRAY, Camilla. Op. Cit., p. 22. Segundo Bowlt, “o título ‘velhos crentes’ refere-se àqueles membros da Igreja russa que discordavam das reformas eclesiásticas instituídas pelo patriarca Nikon em meados do século XVII. Entre os primeiros a condenar a preferência de Nikon pela ortodoxia grega e, por extensão, pela concepção mais ocidental de cristianismo, estava o famoso Petrovich Avrakum, tradicionalmente conhecido como o fundador da ordem dos velhos crentes. A política geral dos Velhos Crentes, os quais provinham de todas as classes sociais, era manter – a despeito da forte oposição que recebiam – as ricas tradições da Igreja Bizantina, o que se refletia consideravelmente na aparência de sua indumentária, nos ícones, no lubok, etc.”(BOWLT, J. E. Nota ao texto “Neprimitivismo: Teoria, potencialidades, realizações” de Alexander Sevchenko. In. Russian Art of The Avant-Garde, p. 301.

46

simbiose entre teatro e pintura como um dos fenômenos notáveis da história da arte

russa, que atinge o apogeu com as realizações da Vanguarda Futurista. No entanto,

Bown afirma que a teatralidade é um aspecto inerente à pintura russa e pode ser notado

já nas primeiras pinturas de gênero produzidas no século XIX. Nestas imagens picturais

oitocentistas, a teatralidade, aliada ao método realista, inaugura o modo narrativo, que

irá permear todo o trabalho dos Itinerantes e, posteriormente, dos realistas do século

XX.

As produções de Savva Mammontov em Abramtsevo foram experiências

pioneiras na interlocução de linguagens, pois aqui, neste ambiente comunal, todos os

indivíduos eram chamados contribuir na execução dos trabalhos de montagem de peças

teatrais amadoras: um esforço conjunto concorria para que as idéias se concretizassem.

Viktor Vasnetsov, por exemplo, foi um dos primeiros artistas a trabalhar com pintura

de cenários, uma atividade que até então era realizada somente por artífices. Ao

promover esse hibridismo, esta associação de especialidades dinstintas – pintura, teatro,

cenografia – Mammontov cria uma nova tendência, especificamente russa, a qual irá se

difundir largamente na Europa Ocidental como os ballets de Diaghilev.58

É preciso dizer que, no caso dos ballets, esta associação de linguagens não se

resumia ao emparelhamento de duas formas de expressão; consistia, na verdade, de

uma síntese entre cenários, luzes e coreografias ou cenas, gerando uma totalidade

compósita onde todas as partes se integram; os ballets russos não eram simplesmente

coreografias apresentadas sobre um fundo concebido como entidade independente ou

como mero suporte para a ação; eram performances singulares onde motivos plásticos

se imiscuíam aos movimentos do corpo, produzindo algo semelhante a uma pintura

cinética: “ o que antes era apenas um fundo para a ação tornou-se parte integrante da

produção, e isto, por seu turno, revolucionou a idéia de teatro. A produção passou a

ser vista como um todo, e o ator tinha que subordinar sua performance aos outros

elementos: cenário, figurino, gestos, música, linguagem. Assim, uma síntese emergia,

uma unidade dramática.”59

Não obstante tenha havido um certo intercâmbio entre o Círculo de

Mammontov e os Itinerantes, observa-se que em Abramtsevo o interesse pela arte e

cultura medieval sobrepujou o interesse por temas contemporâneos. A consequência

direta de uma tal atitude foi uma espécie de desengajamento na arte pictórica, traduzida

58 GRAY, Camilla. Op. Cit., p. 23. 59 Idem. P.p. 23/24.

47

no abandono de antigas preocupações sociais, que deixaram de ter a primazia na

definição da temática de uma obra. Embora a restauração da arte medieval fosse um

meio de reabilitar raízes russas, deve-se admitir que a produção pictórica secular que

estava vinculada às atividades do Círculo constituía, sem dúvida, um projeto mais

assimilável pela instituição acadêmica, já que privilegiava temas históricos e não as

questões prementes da realidade camponesa contemporânea. Um fato que corrobora

essa nossa inferência é costume da corte czarista em usar indumentárias ornadas em

estilo “Boyar”60, de raízes eslavas, uma tema que Surikov já havia abordado em sua

célebre pintura “A Boyarina Morozova”.

Distanciando-se desta realidade em construção, os artistas renunciavam, por

conseguinte, à utopia transformadora e à meta de construir uma nova história conduzida

por novos sujeitos, para concentrar-se em pesquisas técnico-formais, ou estilísticas.

Semelhante atitude pode ser observada num fragmento da correspondência de Vrubel,

citada por Gray: “A obsessão de dizer algo novo sempre não me deixa (...), apenas uma

coisa é clara para mim, que minhas pesquisas estão exclusivamente no campo

técnico.”61

Em outra correspondência, este mesmo artista contesta a legitimidade da arte

engajada promovida pelos Itinerantes: “o artista não deve tornar-se escravo do

público: ele próprio é o melhor juiz de sua obra, à qual ele deve respeitar e não

reduzir sua significância a uma mera publicidade.(...). Confundir o prazer que

distingue uma fruição espiritual de uma obra de arte com aquilo que se sente ao olhar

uma página impressa, pode levar à uma atrofia da exigência por tais prazeres, o que

significa privar o homem da melhor parte de sua vida.”62 Nesta crítica de Vrubel

encontramos os primeiros indícios de uma ideário modernizante e vanguardista que irá

se fortalecer nos primeiros anos do século XX, um pensamento em que o conteúdo

social será considerado elemento de importância secundária, e as questões formais

emergirão como a essência mesma da arte. Por sua obra e suas ações Vrubel é julgado

como a maior inspiração para os pintores da Vanguarda Russa.

No fim do século XIX, uma onda de crescimento econômico provocou um

influxo de idéias estrangeiras no país e fomentou o desenvolvimento de inúmeros

grupos, gestados a partir do contato dos russos com a estética progressista francesa.

60 Sobre isto Ver: ELLIOT, David. Op. Cit., p.28; 61 Vrubel. Apud: Gray, p. 62 Idem, p. 34.

48

Neste contexto de abertura a novas experiências, o apoio de alguns indivíduos ricos

possibilitou aos artistas russos manterem-se informados acerca da últimas tendências da

arte européia, criando o campo favorável para a difusão de idéias estéticas

vanguardistas que viriam ruir o cânone realista. Elliot relata que os movimentos da arte

ocidental penetraram na Rússia de forma avassaladora, como uma súbita e imensa

torrente onde “Impressionismo, Simbolismo, Pós Impressionismo, Fauvismo e

Cubismo, movimentos que no Ocidente estavam separados por gerações, foram

absorvidos em pouco mais de uma década.”63 A consequência imediata de uma invasão

de tão grandes proporções foi a súbita mudança de pontos de vista no diz respeito às

questões consideradas importantes para a arte, ou seja, houve neste período uma

rejeição àquela idéia – sustentada pelos Itinerantes – de que a temática era o elemento

essencial de uma obra, fato este que reflete a reação de Vrubel à pintura de gênero,

indicada no parágrafo anterior.

A força motriz desses novos desenvolvimentos foi o grupo “Mundo Da Arte”,

uma livre associação de artistas surgida em 1898 sob a liderança de Sergei Diaghilev e

cuja primeira exposição aconteceu em 1899. Esta exposição constituiu-se como um

marco histórico no processo de internacionalização da arte na Rússia, pois criou as

condições para que obras de pintores russos fossem expostas lado-a-lado com trabalhos

de celebridades da arte francesa como Degas, Monet, e Renoir, um fato inédito na

história da arte russa.

O objetivo maior dos integrantes do grupo “Mundo da Arte” era diametralmente

oposto àquele fixado pelos Itinerantes e pelas correntes eslavófilas, pois não pretendiam

restaurar um passado genuinamente russo e muito menos concentrar-se na realidade

camponesa de seu tempo. O que buscavam era instituir uma cultura russa, porém

cosmopolita. Sobre isto Gray afirma:

“Esta cultura internacional era uma característica básica dos membros do ‘Mundo da Arte’, que sentiam que sua missão era restituir à Rússia a cultura que tinha sido perdida durante o reinado dos Itinerantes. Mas eles não visavam ao retorno de uma cultura russa dominada pela européia. Pelo contrário, acreditavam que a Rússia não deveria regressar à condição de autoposto provinciano da Europa Ocidental e nem permanecer como a fortaleza de uma tradição nacional isolada. Seu objetivo era criar no país um centro cultural essencialmente internacional, que, pela primeira vez, contribuiria para o ‘mainstream’ da cultura ocidental.”64

63 ELLIOT, David. Op. Cit., p.9. 64 GRAY, Camilla. Op. Cit.,p.39.

49

Um fato que ilustra magistralmente esse desejo de internacionalização refere-se

à publicação de uma série de artigos por Benois – um dos membros do grupo – onde se

exaltava a cidade de São Petersburgo pela comunicação que esta sempre mantivera

como o Ocidente. Devemos observar que que São Petersburgo é uma cidade que, desde

sua fundação, na era de Pedro o Grande, esteve associada a ambições cosmopolistas,

tanto que sua própria criação, sua arquitetura, seu traçado urbano, integram um

conjunto de medidas adotadas pelo imperador visando à modernização do país e à sua

inserção no mundo ocidental. Desta forma, a cidade reflete o projeto de

internacionalização da cultura, e é significativo que tenha inspirado os artistas desse

novo grupo, movidos pelas mesmas aspirações cosmopolitas. Nesta perspectiva, até

mesmo o conceito de patrimônio nacional foi substancialmente transformado, já que

aquilo que o grupo definia como herança não se restringia às raízes medievais que o

Círculo de Mammontov havia procurado resgatar, mas incluía, sobretudo “a arte

produzida sob Pedro e Catarina, que fora completamente rejeitada pelos Itinerantes

como algo estrangeiro.”65

Considerando as metas traçadas pelo grupo “Mundo da Arte”, pode-se dizer que

seu empreendimento mais profícuo foi a criação de uma revista homônima, uma

publicação que se transformou em primoroso veículo editorial onde idéias ocidentais

puderam ser difundidas entre um restrito público russo, forjando as bases para que a

almejada cultura internacional pudesse ser erigida. Elliott diz que “para muitos artistas

russos, essa revista foi a a única fonte de informação disponível sobre os

desenvolvimentos do Ocidente.”66 Porém, este caráter abrangente da revista só se

tornou possível graças à influência de Diaghilev e ao seu prestígio junto à

intelectualidade ocidental, o que lhe possibilitou publicar, já no primeiro volume

(lançado em 1898), obras de importantes poetas franceses como: Baudelaire, Verlaine e

Mallarmé.67 Seguindo a tendência de projetos híbridos – como as produções teatrais de

Mammontov e os próprios ballets de Diaghilev – que então predominavam na Rússia, a

revista primou por sua diversidade de linguagens. Esta primeira edição, além de

poesias, incluiu ensaios sobre música e artes visuais: Artigos de artistas do Art

Nouveau como Beardsley e Burne Jones; sobre a arquitetura e design de interiores de

65 Ver: GRAY, Camilla. Op. Cit, p.39. 66 ELLIOT, David. Op. Cit., p.9. 67 Ver: GRAY, C. Op.Cit.

50

Mackintosh, Van de Velde e Josef Olbrich e sobre pinturas de artistas franceses como

Puvis de Chavannes, Monet e Degas.68

Gradualmente, novos artistas foram sendo introduzidos nas próximas edições da

revista - que sobreviveu até 1904 – de forma que a publicação foi se convertendo em

poderoso instrumento na luta dos integrantes do grupo pela consecução das metas

propostas em seu projeto inicial. Todavia, mesmo após o encerramento das atividades

editoriais o grupo continuou a cortejar os movimentos ocidentais e assimilar algumas

de suas proposições. Assim, a partir de 1904, o grupo interessa-se pela obra dos pós

impressionistas franceses, do grupo sessesionista de Viena e da Escola de Munique;

dialoga com as escolas francesas que promoveram a redescoberta de elementos da arte

folclórica e da arte africana primitiva, tendência materializada principalmente na

pintura de Pablo Picasso em sua leitura pictórica de máscaras africanas. Devemos

insitir no termo diálogo, pois, esta pesquisa de um vocabulário imagético de natureza

arcaica já estava presente nos fazeres Abramtsevo. Portanto, seria errôneo julgar este

primitivismo que aflora na pintura russa como mera apropriação de uma invenção

cubista.

Seja qual for o grau em que as influências ocidentais foram assimiladas pelo

grupo, o fato é que as inovações estéticas daí advindas incidiram diretamente sobre o

paradígma realista, e seu efeito foi percebido como a investida da força antagônica

modernizante e quase vanguardista, por aqueles que ainda se simpatizavam com o

realismo e a narratividade. O comentário de Bown sobre a estética do “Mundo da

Arte”, expõe uma tácita reprovação a esse abandono do realismo, mas permite

esclarecer como estes novos valores inspirados na arte européia constituíram-se como

sucedâneos das antigas preocupações alimentadas pelos pintores de gênero na época em

que a consciência artística estava orientada pelo ideal de construção da história e

identidade ocidentais:

“Esta perspectiva equivale a uma rejeição dos princípios dominantes na arte russa e destilados na obra dos Itinerantes – rejeição de um tom altamente moral em favor do princípio do prazer; dos temas contemporâneos em favor da nostalgia e da fantasia; do realismo pictórico em favor da estilização gráfica; das cores terrosas em favor dos tons decorativos e artificais.”69

Esta crítica, embora tecida por um autor partidário do realismo, é esclarecedora

pois nela constatamos a crucial mudança de mentalidade e o embate entre velhas e

68 Idem.

51

novas concepções, o qual ultrapassa as fronteiras do campo estético, tendo uma série de

implicações histórico-culturais. Duas questões implícitas neste discurso merecem

destaque: a temática e o método. Quando Bown fala de uma “rejeição dos temas

contemporâneos, em favor da nostalgia e da fantasia” está observando que as realidades

anteriormente representadas não interessavam a esse novo grupo de artistas, cujas

aspirações a uma arte e cultura cosmopolitas faziam com que negassem a legitimidade

de uma cultura nacional e auto-centrada, cultuada pelo outro grupo e pela própria

Academia, desde que esta se convertera no baluarte da pintura de gênero nos anos de

1890. Podemos avançar ainda mais e inferir que, no âmago deste antagonismo subsistia

o enfrentamento entre dois projetos históricos distintos: a história em que o cidadão

comum era habilitado como sujeito e agente, e a história em que não havia realidades

genuinamente russas, onde todo nacionalismo era execrado como estratégia

isolacionista e onde o desejo maior era integrar o país numa totalidade moderna,

processo em que as peculiaridades culturais eram esfaceladas de forma semelhante ao

que ocorre na globalização dos dias atuais.

Por outro lado, o abandono do método realista corresponde a um primeiro passo

em direção à abstração dominante nos movimentos vanguardistas que viriam na

sequência. Esta opção pelos grafismos, pela estilização, ocorreu em detrimento da

mímese e da representação da realidade russa que os pintores de gênero se

empenharam em retratar. Evidentemente, esta transformação foi em grande parte

incentivada por influências estrangeiras, porém, há um pormenor que não deve ser

esquecido: a representação realista já não era compatível com os objetivos do grupo,

pois este não reconhecia a legitimidade daquilo que os Itinerantes procuraram instituir

como a verdadeira realidade russa. Uma vez que os membros do “Mundo da Arte”

aspiravam à invenção de uma cultura internacional, a inclusão de artifícios europeus em

sua arte tornava-se seu mais importante trunfo. Da mesma forma, a ausência de temas

sociais contemporâneos traduzia um desejo de suprimir os testemunhos materiais da

realidade cultural a ser suplantada.

Tensões germinadas no âmago do próprio grupo nos instigam, entretanto, a

relativizar o alcance desta concepção cosmopolita de arte, pois nos faz perceber que

esta negação do passado russo não era algo consensual. Tais conflitos surgiram durante

os trabalhos de preparação da primeira edição da revista, quando Filosofov – a quem

foram confiadas as questões de ordem técnica da produção – decidiu incluir imagens da

69 BOWN, Matthew Cullerne. Op. Cit., p.22.

52

obra Viktor Vasnetsov, o pintor que desenhou o mosaico para o piso da igreja de

Abramtsevo. Vasnetsov, como integrante do Círculo de Mammontov, estava

intimamente ligado ao movimento de restauração da cultura eslava medieval, razão pela

qual, o acolhimento de sua arte no periódico “Mundo da Arte”, feria alguns princípios

estabelecidos pelo grupo, particularmente no que se refere à noção de cultura

internacional. Assim, a escolha destas imagens suscitou uma onda de protestos e criou

uma certa polêmica entre os associados:

“Esta escolha provocou uma tempestade de protesto s entre os membros do grupo. Filosofov e Diaghilev consideravam Vasnetsov como ‘o radiante símbolo da nova Rússia, o ídolo ante o qual se deve curvar e cultuar.’ Benois, Nuvel e Nurok, protestaram, afirmando que isto era confundir padrões de valor puramente artísticos, que eles julgavam ser a essência do Mundo da Arte, com um fenômeno histórico-cultural.”70

Está claro que a divergência surgida entre os artistas do “Mundo da Arte” não

era uma simples dicotomia entre convicções nacionalistas e cosmopolitas, uma vez que

todos eles compartilhavam o mesmo ideal internacionalizante. De fato, a discussão

específica relativa à obra de Vasnetsov nos faz acreditar que a principal questão

subjacente aos desentendimentos aflorados entre setores do grupo diz respeito à relação

entre arte e realidade, pois, quando artistas como Benois, Nuvel e Nurok, censuraram a

atitude de seus colegas, considerando que exaltar a pintura de Vasnetsov era confundir

questões estéticas com valores histórico-culturais, estavam, de certa forma, sugerindo

que arte e vida deveriam estar dissociadas, já que a arte, como realização autônoma,

não era vista como fenômeno cultural e, portanto, as manifestações de cultura eram

tidas como temas irrelevantes para a arte que eles almejavam.

É importante investigar esta faceta do grupo “Mundo da Arte”, pois a noção de

arte autônoma, que aqui se apresenta em estágio embrionário, está na raíz do processo

de formação de um outro conceito, a filosofia da “arte pela arte”, a qual será aplicado

de forma indistinta e distorcida a todos os movimentos modernos, o que julgamos ser

equivocado pois, como pretendemos demonstrar no próximo capítulo, não é preciso ser

realista para estabelecer uma diálogo com o real.

É provável que o alheamento que caracterizou a abordagem artística do “Mundo

da Arte” tenha se originado no contato dos pintores com os poetas simbolistas. Nesta

comunicação os artistas certamente absorveram o misticismo cultivado por aqueles

poetas, o que os fazia crer que a arte era uma ação quase transcendental, onde o homem

70 GRAY, Camilla. Op. Cit., p.48.

53

colocava-se em sintonia com as forças elementares do cosmo e conseguia assim

exprimir, em linguagem plástico-visual, toda a beleza presente em cores e ritmos

naturais e na transitoriedade dos fenômenos que acontecem sem intervenção humana.

Nesta ação, a realidade concreta vivenciada pelos sujeitos históricos é negada e a fonte

para o pensamento criador passa a ser algo mais elevado, inconstante, vago.Tal é o que

sugere o comentário de Bakst acerca do grupo:

“O Mundo da Arte está acima das coisas terrenas, acima das estrelas; lá ele reina orgulhoso secreto e solitário como sobre um pico nevado”71

De acordo com esta concepção, o mundo da arte era um universo independente,

desvinculado do mundo das experiências cotidianas; livre, porém isolado em seu

invólucro estético, sendo que sua comunicação com a natureza não se desdobrava em

representações de fragmentos de espaço e tempo isolados, mas efetuava-se na

expressão de totalidades amplas e indefinidas. A obra de Borissov Mussatov é o

exemplo mais proeminente de tal diálogo entre pintura e poesia. Todavia, antes de

falarmos sobre sua trajetória artística é necessário informar que Mussatov não pertence

ao grupo original formado em São Petersburgo, embora tenha participado de

exposições sob a rubrica “Mundo da Arte”. Sua obra vincula-se à chamada Escola de

Moscou, classificação forjada naquele período para distinguir a arte feita em Moscou,

baseada na cor, daquela produzida em São Petersburgo, baseada na linha. Este é um

fator crucial para definir as diferenças de abordagens inerentes a estas tendências proto-

modernistas e nos propicia uma compreensão do processo que conduziu aos

experimentos vanguardistas.

Voltando a Mussatov, cumpre dizer que suas imagens pictóricas correspondem

exatamente àqueles microcosmos indefinidos a que nos referimos acima. Sobre sua

obra, Gray diz: “Sente-se que não é um momento particular da história que ele deseja

evocar (...), mas simplesmente o passado, o momento irreparavelmente ido, cuja perda

parece sempre lamentar”72 A pintura “The Reservoir” (fig.8), (1902) expressa esta

imaterialidade tipicamente simbolista: duas figuras femininas repousam em torno de

uma lago; uma delas, de pé, assemelha-se a um espectro, uma imagem vaporosa e

quase transcendente, que move-se lenta e indiferente às margens do lago; a outra,

sentada ao chão, embora pareça mais sólida, está igualmente imersa na atmosfera

71 Idem. 72 Idem, p.61.

54

onírica que domina todo o ambiente; os gestos de ambas são mínimos, tácitos e não

simbolizam ações diligentes; ao contrário, comunicam uma certa apatia, própria dos

seres estóicos, que permanecem impassíveis diante do imponderável. A vegetação e o

relevo às margens do lago são representados de forma não naturalística, reduzindo-se a

amorfas concreções e massas cromáticas fundidas num mesmo fluxo, onde as formas se

liquefazem e os limites se perdem. Um processo semelhante pode ser observado no

panejamento da figura assente, onde não há um drapeado definido e tipicamente

clássico, mas um tecido que se dissolve em espessas e orgânicas linhas, apresentando já

um certo grau de abstração. Quanto à superfície do lago, com seus reflexos difusos e

dilacerados por uma pincelada impressionista, é um outro elemento que contribui para a

expressão de um universo indefinível. A grandeza inefável do cosmo reduz a

importância dos gestos humanos, que tornam-se ínfimos quando contrapostos à

totalidade. Assim, expressar plasticamente pequenas ações corriqueiras adquire um

sentido de banalidade. Por esta razão, os sujeitos ativos e as situações concretas são

substituídos por seres inativos e as situações quase oníricas.

Não é seguro afirmar, entretanto, que estas novas experiências estivessem

dominadas pelo hedonismo ou princípio do prazer, como Bown parece sugerir em um

texto citado anteriormente. Evidentemente, na imagem que ora analisamos, não é

possível identificar temas sociais ou indícios de engajamento. È indiscutível que esta

nova geração de artistas pretendia uma arte autônoma, cujo locus não se encontrava nas

instâncias cotidianas, mas sim nas regiões elevadas do espírito. Porém, toda esta

mudança de perspectivas advém de um processo de influências em que recursos

formais e estilísticos simbolistas e impressionistas foram apropiados pelos russos, não

porque fossem belos, mas porque eram compatíveis com as aspirações sociais e

culturais desses novos grupos.

Aqui, sem tentar reduzir a obra a uma propaganda ideológica, podemos nos

remeter novamente ao conceito de representação de Chartier. Sendo elementos de

cultura a obra pictórica e o fazer pictural não habitam o reino metafísico do mero

pensar, mas o reino empírico do fazer. Pinturas são formas de estar no mundo e meios

para comunicar sentidos construídos esteticamente sobre este mesmo mundo. Os

diferentes sujeitos de uma sociedade compreendem o cosmo a partir de suas referências

pessoais (de sua profissão, sua classe social, sua religião, etc), e a forma como

expressam esta compreensão está permeada por tais referências. Neste sentido, o artista,

enquanto sujeito criador de objetos estéticos, comunicará percepções estéticas acerca

55

do real, sendo que as formas pictóricas por ele construídas, por mais que sejam líricas

abstratas, oníricas, estão sempre imbuídas dos vestígios de sua personalidade e de suas

experiências pregressas e presentes.

Renunciar à representação não significa esquecer a sua participação no mundo,

já que mesmo uma atitude errante, evasiva e renitente relativamente a questões

políticas, provém de um pensamento formulado previamente sobre o estado de coisas,

onde o sujeito pode ter experimentado algum tipo de aversão ao mundo e talvez por

isso não queira pensá-lo plasticamente. Todavia, as lacunas, os vazios, deixados por

este ato de aparente recusa, podem ser interpretados com os não-ditos definidos por

Certeau.73 E, já que estamos falando de concepções de história na arte, podemos sugerir

que todo aquele real ausente do discurso pictórico destes artistas de influência

simbolista informa sobre suas concepções histórico-políticas. Procurando inaugurar

uma nova cultura, estes indivíduos porcederam à exclusão de elementos da realidade

nacional que se contrapunham ao seu projeto. Mas, mesmo excluídos, estes elementos

são paradoxalmente visíveis, pois, como diz Certeau, tudo aquilo que foi excluído,

“retorna, nas franjas do discruso ou nas suas falhas: ‘resistências’, ‘sobrevivências’,

ou ‘atrasos’ perturbam, discretamente, a perfeita ordenação de um ‘progresso’ ou de

um sistema de interpretação. São lapsos na sintaxe construída pela lei de um lugar.

Representam aí o retorno do recalcado, quer dizer, daquilo que num momento dado se

tornou impensável para que uma identidade nova se tornasse possível.”74

Da mesma forma, mesmo não sendo figurações óbvias e francamente

propagandísticas, estas pinturas constituem representações implícitas, pois revelam as

escolhas daqueles que as construíram, escolhas estas que talvez não tenham nenhum

sentido político, mas que, ainda assim, são elementos históricos participantes da teia de

significados que é o contexto cultural. Desde que vistas como poéticas visuais inseridas

na história, as obras de arte serão sempre fontes relevantes para o historiador, qualquer

que seja a sua natureza formal ou o valor artístico a elas atribuído. Mesmo o que não é

representado (as ausências) são vazios significantes, pois constituem-se nos

insterstícios entre duas práticas culturais, entre duas formas de pensar, que mantiveram-

se separadas por razões culturais, econômicas, políticas, e, sendo assim, podem

informar sobre aquilo que permaneceu oculto na passagem de um sistema para outro.

73 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 74 Idem, p.16.

56

CAPÍTULO II: AS VANGUARDAS E O ESFACELAMENTO DA HISTÓRIA

A realidade cosmopolita inaugurada pelo grupo “Mundo da Arte” parece ter se

enraizado na Rússia da primeira década do século XX. O intercâmbio de idéias e

projetos com os países europeus adquiriu novas proporções e maior significância a

partir do incremento da produção industrial e da consequente inserção do país na

economia de mercado ocidental. O fortalecimento da economia, para além de seus

resultados mais imediatos, trouxe consequências importantes para a área cultural, o que

se refletiu de forma mais visível no desenvolvimento do mercado editorial, na ascensão

de uma classe média interessada em adquirir arte e na constituição de coleções

particulares que reuniam obras dos principais representantes da vanguarda francesa e

alemã.

Esses três fatores são cruciais para o entendimento do processo de

internacionalização no campo das artes visuais, e é relevante que sejam mencionados,

pois, embora este seja um período em que os russos receberam inúmeras influências

estrangeiras, é também o momento em que as matrizes plástico-visuais e referências

estilísticas de origem européia serão discutidas e experimentadas em novas pesquisas

empreendidas por diversos grupos e artistas individuais, os quais gestaram os

movimentos e tendências especificamente russos. Tais movimentos, não obstante

sejam, em certo sentido, tributários da vanguarda ocidental, e, a princípio apresentem-

se híbridos - incorporando elementos de projetos distintos (cubismo, futurismo) - são,

no entanto, proposições independentes e compõem a chamada vanguarda russa, um

movimento complexo e muito peculiar, contemporâneo da revolução, e que talvez por

isso irá promover uma radical e inigualável experimentação e renovação da linguagem

A Revista “Golden Fleece”, lançada em 1906, surge como principal veículo

editorial divulgador da vanguarda ocidental na Rússia, assumindo a função outrora

desempenhada pela revista “Mundo da Arte”. Entretanto, os objetivos deste periódico

não se resumiriam à publicação de obras de arte européia, já que a principal meta do

audacioso empreendimento era apresentar a recente produção russa ao público europeu.

Considerando que alguns grupos e sociedades movimentavam-se no sentido da

revolução da linguagem visual, julgava-se necessário publicizar estas ações e dar a

conhecer seus resultdados a um público mais amplo. Para tanto, o primeiro número foi

lançado em edição bilíngue (russo e francês), evidenciando a preocupação de seus

organizadores em fomentar a troca de experiências entre Rússia e Ocidente, e prover o

57

espaço em que a arte russa pudesse ser exposta e recebida, não como mera releitura de

esquemas preconcebidos no exterior, mas como arte independente e universal, não

tributária do cânone realista. Um pequeno trecho do editorial revela o anelo de se lançar

as experiências da moderna arte russa no circuito efervescente da vanguarda européia:

“Pretendemos propagar a arte russa para além de seu país de origem e representá-la

na Europa em seu sistema definido e integrado no processo de seu próprio

desenvolvimento”75

É interessante observar que o selo “Gonden Fleece”, à semelhança do que

ocorreu com o Mundo da Arte, constituía também um órgão promotor de exposições.

Este segmento de sua atividade esteve atrelado ao grupo Blue Rose, uma organização

de inspiração simbolista, cuja obra será discutida oportunamente. Neste momento é

suficiente expor uma caracterização sucinta destas exposições (foram realizadas três

exposições, sendo que a primeira ocorreu em 1908, em Moscou) apenas para apontar o

cosmopolitismo como elemento essencial destas sociedades pictóricas novecentistas,

em cujo trabalho e atuação reside a gênese da vanguarda russa. Este elemento não

poderá ser negligenciado , tendo em vista os laços indeléveis, constantemente tecidos

entre Rússia e Ocidente, fazendo com que o cosmopolitismo passe a constituir o

próprio arcabouço dos movimentos russos, ainda que seja triturado e dissolvido à

maneira de uma antropofagia.

A própria curadoria das mostras realizadas é um indicador das intenções e das

razões de ser deste projeto cultural, visto que, além de obras de artistas russos, foram

selecionadas obras de pintores franceses, já expostas em espaços notoriamente

modernizantes como o “Sallon D’Autonne” e “Sallon des Independent”, entre as quais

estavam as primeiras telas fauvistas. Semelhantes eventos plurinacionais, não apenas

criavam possibilidades de visualização e conhecimento ao público russo, como também

engendravam o contexto ideal para introdução do debate acerca das questões formais,

algo que estivera praticamente ausente durante o período de triunfo da pintura realista

no século XIX. Este pensamento está implícito numa declaração dos organizadores,

publicada na revista Golden Fleece:

“Ao convidar artistas franceses para participar das exposições, o grupo estava perseguindo dois objetivos: por um lado, justapor experimentos russos e ocidentais e mostrar mais claramente as peculiaridades no desenvolvimento da jovem pintura russa e seus problemas; por outro lado, enfatizar as características que são comuns à pintura russa e à ocidental, pois, 75 RYABUSHINSKY, Nikolai. Apud: GRAY, Camilla. Op. Cit. P.80

58

a despeito das diferentes psicologias nacionais (os franceses são mais sensuais, os russos mais espirituais), os novos experimentos dos jovens pintores tem certo fundamento psicológico comum”76 As exposições “Golden Fleece” provaram ser o campo favorável à percepção

das diferenças ente a pintura russa e a pintura ocidental e à constatação do peculiar

itinerário russo rumo à abstração não-objetiva que florescerá no período posterior a

1910. Segundo Gray, nestas mostras coletivas é possível estabelecer análises

comparativas que nos levem a identificar elementos plásticos de raíz essencialmente

oriental, coexistindo harmonicamente com heranças cromáticas fauvistas e cubistas,

fato que nos impele a relativizar a dimensão da ascendência francesa relativamente à

vanguarda russa. Em telas como “Os Garotos brincando” (fig.9) de Petrov-Vodkin

(1911), percebemos que a influência de Matisse, conquanto seja visível na forma e no

tratamento místico dado ao tema, é atenuada pela maneira bizantina de trabalhar a cor.

Em outra obra desse artista, “Dia Santo”, há elementos que remetem à xilogravura

camponesa (lubok). Isto demonstra que a gestação da pintura moderna na Rússia

envolveu uma síntese de imagéticas provenientes de lugares histórica e socialmente

distintos, não sendo, portanto, uma mera absorção de invenções francesas. Trata-se de

um processo de elaboração gradual que conduz ao neoprimitivismo, um movimento já

totalmente voltado para o universo cultural camponês, cujos maiores expoentes são

Natália Goncharova e Mikhail Larionov.

Quanto aos dois outros fatores apontados como catalisadores na formação de

novos movimentos pictóricos no país, pode-se dizer que estavam imbricados. O

fortalecimento da classe média como segmento social economicamente importante

proveu os indivíduos ricos e potenciais compradores da produção artística. Neste

contexto marcado pelo efetivo diálogo entre intelctuais e artistas russos e estrangeiros,

o conceito de cultura revela novos matizes e novos valores são agregados ao padrão

social outrora tido como elegante e adequado. Assim, “ter cultura e colecionar

pinturas, tornou-se um complemento essencial do cidadão rico e respeitável”77 Dentre

tais cidadãos, os comerciantes Ivan Morozov e Sergei Shchuckin, constituem,

certamente, os exemplos mais proeminentes desta nova categoria social que mudaria o

curso dos desenvolvimentos na arte pictórica russa: os colecionadores de arte. Ambos

constituíram magníficos acervos de pinturas impressionistas, pós- impressionistas,

76 GRAY, Camilla. Op. Cit. P. 82 77 Ibidem, p.67

59

fauvistas e cubistas, que foram disponibilizadas ao público, contribuindo assim no

processo de formação do gosto e na educação estética dos jovens artistas de Moscou.

Embora seja necessário ponderar que esta influência foi apenas parcial e que a

atividade criadora esteve sempre permeada por outras tradições pictóricas não

ocidentais, seria errôneo não aquilatar a importância que estas coleções tiveram na

genealogia da arte russa, tendo em vista o caráter revolucionário e inspirador inerente

às poéticas transformadoras. Temos que considerar que nos anos que antecederam a 1ª

guerra os movimentos eram propostos como rupturas radicais realtivamente ao

academicismo anteriormente praticado, e que seus programas formais propagavam-se

de forma avassaladora, conquistando adeptos em diversos países e instigando artistas a

promoverem revoluções semelhantes sem sua própria arte.

Tendo em vista a inquietação social que se segue à revolução de 1905, é

possível que os pintores russos tenham sido inspirados pelo espírito revolucionário e

libertador inerente a todos estes movimentos de vanguarda, mesmo que a revolução por

eles comunicada seja de natureza meramente formal. Seja como for, é inegável que,

agora que tais artefatos pictóricos lograram penetrar em território russo, o legado

modernista fora definitivamente apropriado pelos artistas, e o espírito transformador

presente em toda poética vanguardista segue tendo uma importância seminal em todas

as realizações pictóricas daí em diante.

A consequência direta da difusão de novas tendências modernistas entre os

russos foi o surgimento de diversas sociedades expositoras, que congregavam artistas

de diversas origens e constituíam, geralmente, os únicos canais para a divulgação da

nova produção pictórica. O grupo “Blue Rose”, fundado em 1906, foi uma destas

sociedades, mas, a princípio não constituía um grupo propriamente dito, já que não se

filiava a orientações estilísticas particulares. Entretanto, com o tempo foi adquirindo

um caráter acentuadamente simbolista. Sobre este grupo, Gray alude a uma certa

abordagem panteística como a característica principal de obras como “A Fonte Azul”

(fig.11) de Pavel Kusnetsov. Aqui, identifica-se uma leitura plástica esotérica do

mundo material, como se todas as coisas vulgares, cada simples fragmento do cosmo

estivesse impregnado de eflúvios místicos, que os alçasse à condição de partículas de

uma divindade holística, totalizante. Segundo a autora, isto deriva em parte da própria

formação deste pintor, enfática nos estudos ao ar livre. Em tais estudos, o método

inaugurado pelos impressionistas pôde ser exercitado à exaustão: a captação dos efeitos

transitórios do tempo e da virtual transfiguração assim operada nos elementos plásticos

60

– cores, formas, luz – traz à tona a dimensão imponderável que todos os objetos

possuem quando vistos como coisas fortuitas imersas na temporalidade, que

eternamente esfacela sua existência concreta.

No entanto, a abordagem claramente simbolista não significa alheamento puro e

simples: Gray afirma que os temas eleitos pelos artistas do Blue Rose, tendo sido

extraídos da própria natureza vicejante, estão vinculados à vida, e, portanto, não

traduzem o estranhamento do sujeito frente ao cosmo indômito, antes indicam uma

comunhão, estabelecida entre o homem e os elementos. As palavras da autora

expressam melhor a natureza deste novo simbolismo plástico:

“Em contraste com Mussatov, Kusnetsov e os outros artistas do grupo Blue Rose, não eram assombrados pela idéia de destino, pelo pessimismo ou pela sensação de que o mundo era um ambiente estranho. Morte, decadência e doença tinham sido os temas favoritos do primeiro movimento simbolista, mas o Blue Rose, que representa a segunda geração, pintava temas essencialmente conectados à vida. ‘Amor fraternal’, ‘Manhã’, ‘Nascimento’, são títulos típicos das obras de Kusnetsov, nas quais as figuras emergem como se estivessem ainda sonolentas, depois de despertadas de um sono profundo. A tranquilidade as circunda; não a tranquilidade quase morte de Mussatov, mas antes o silêncio reverente ante o mistério da vida. Como em Mussatov, há um espírito de unidade panteística com os elementos, mas, desta vez, predomina uma alegre visão do homem como íntima parte da natureza e não como uma criatura engolfada por uma força mais poderosa que ela” 78

Conquanto promovesse um fazer pictural de teor atmosférico, que se traduzia na

total ausência de volume e perspectiva geométrica, na dissolução dos limites e na forma

essencialmente fluída, o grupo “Blue Rose” reivindicava a interação entre arte e vida.

Tendo rompido com a tradição realista, estes artistas acreditavam que a via para

alcançar a aspirada integração entre a realidade e o universo artístico não poderia ser

traçada através da representação imagética reconhecível dos fatos, já que tal método,

frequentemente convertia-se em idealização do mundo e distanciamento da realidade.

Para o grupo, a obra só consegue se inserir na dinâmica do cotidiano, quando é

produzida como poética visual independente, e não como mímese, ou seja, por força de

ser um simulacro a obra perde legitimidade e relevância quando confrontada ao mundo

ao qual malogrou em registrar em inteireza e plenitude. Desta forma, a arte só pode

desempenhar uma função na sociedade quando coloca-se como elemento novo e

distinto da própria vida e não como algo que a espelha ou substitui.

78 Ibidem, p. 76.

61

Isto nos leva a acreditar que, neste ponto de vista, a recepção é o momento

privilegiado para que a obra se insira no mundo e logre atingir e transformar as pessoas.

Tal suposição é, em certo sentido, corroborada pelos próprios fatos concernentes à

exposição realizada pelo grupo em 1907. Nesta mostra, grande parte das pinturas não

eram estruturadas em quadros, mas constituíam painéis; fato que ilustra o ideário

comum a vários sujeitos da época, os quais nutriam a convicção de que a tradicional

pintura de cavalete já não correspondia aos imperativos da vida moderna, visto que

agora, as circunstâncias pediam uma arte condizente com a modernidade.79

Provavelmente, a escolha do formato painel correspondia à preocupação com a

natureza desta inserção; percebendo que a consagrada pintura tradicional, com todos os

atributos que a identificavam com o academicismo, limitava as possibilidades de

fruição e diálogo, os integrantes do grupo passaram a acreditar que os painéis pictóricos

seriam mais facilmente assimilados e assim se tornariam arte integrada à vida.

Contudo, a relação que neste momento se forjava entre arte e vida era

completamente inusitada e distinta de todos os esquemas representacionais e narrativos

até então empregados, seja na pintura histórica, seja na pintura de gênero. Trata-se de

uma perspectiva transcendental e uma nova maneira de traduzir o mundo sensível,

postulada por indivíduos pouco afeitos às abordagens comprometidas ou socialmente

interessadas; sujeitos pouco propensos a aceitar a legitimidade dos princípios realistas.

Elliott julga que este radical abandono da narrativa realista, fora incentivado não só

pela experiência européia, mas também pela inquietação social instalada após a queda

da revolução de 1905, uma vez que toda tradição artística que, de alguma forma,

estivesse vinculada à agônica aristocracia, era vista, por extensão, como algo destinado

a ruir.

Porém, ainda que houvesse um desejo de mudança propriamente estética, arte e

revolução não se colocavam como correlatos, no sentido que não se aspirava à

transposição dos eventos para linguagem plástica, por mais importantes que fossem. O

texto de Elliott permite compreender esta ausência de sincronismo entre fatos coevos:

“Havia uma penetrante fome de mudança que fomentava o desejo de uma arte

experimental. A velha ordem estava ruindo, e tudo o que estava associado a ela

parecia estar desesperadamente corrompido: novas formas eram necessárias. Os

artistas começaram a explorar diferentes modos de representar a experiência. Muitos

desejavam abandonar a representação literária e narrativa e expressar a realidade

79 Ver: Gray, p.77.

62

transcendente. Então, começaram a desenvolver formas alternativas de expressão,

procurando a unidade entre as artes. A arte deixou de ser a representação da vida

percebida e passou a ser a representação da vida sentida. Enquanto o edifício social

estava desabando, muitos artistas dedicavam suas vidas a perseguir valores

espirituais.”80

Todavia, em que pese todo o empenho de grupos como o “Blue Rose”, é

necessário analisar outros matizes desta situação e investigar os processos políticos

engendrados pela revolução de 1905, e as eventuais obras pictóricas produzidas nesse

contexto. É relevante atentar para os enfrentamentos entre ideários antagônicos acerca

da função da arte na sociedade, uma vez que a questão do compromisso, a partir do

momento em que foi posta em pauta pelos Itinerantes na conturbada década de 1860,

sempre esteve presente nos debates travados no campo da arte.

Neste período vanguardista e notoriamente estetizante, a arte “socialmente

engajada” parece ter sofrido um certo declínio, embora alguns artistas isolados ainda

tentassem registrar os insólitos acontecimentos revolucionários. Bown, um historiador

de convicções realistas e notório apologista do Realismo Socialista, denuncia a

ascensão do individualismo entre os artistas atuantes na primeira década do século XX.

O autor considera que os pintores reagiram com estranha indiferença aos trágicos

eventos de 1905. Evocando o episódio do massacre do Domingo Sangrento81, em 9 de

janeiro de 1905, ele sugere que os fatos, dada a sua gravidade e importância e as

consequências que tiveram em todo o país, exigiam uma interpretação estética crítica

comparável à sua grandeza e relevância social, e termina por atribuir tal desinteresse ao

individualismo professado por grupos como “Mundo da Arte” ou “Blue Rose”.

De forma semelhante, outras sociedades artísticas surgidas no período, como

“Valete de Ouros”- composto por Larionov, Goncharova, os irmãos David e Vladimir

Burliuk, Kasimir Malevitch, Vasily Kandinsky e os Cezanistas de Moscow (Robert

Falk, Ilya Mashkov e Kuprin) - e “Rabo de Asno”, grupo nascido de uma dissidência

entre Larionov e os outros componentes do “Valete de Ouros”, dedicaram-se à

experimentações formais nas quais não é possível perceber a presença de um elemento

político ou social. O Caso de Larionov é mais ilustrativo deste fenômeno que Bown

80 ELLIOTT, D. Op. Cit, p.44 81 O Massacre do Domingo Sangrento constitui um dos mais trágicos eventos da insurreição de 1905. Em 09 de janeiro, um grupo de pacíficos camponeses que marchava em direção a São Petersburgo, com o objetivo de entregar uma petição ao Czar, foi barbaramente fuzilado em frente ao Palácio de Inverno,

63

define como “desengajamento”, pois este artista viria a ser o mentor do raionismo, o

primeiro movimento de pintura abstrata a surgir na Rússia, e que será analisado neste

capítulo.

É preciso ressaltar aqui que não estamos negligenciando dimensão política da

pintura abstrata, mas, tão somente, procurando registrar que a crítica em geral, e Bown

em particular, vincula a apreciação do teor político e do engajamento de uma imagem

pictórica ao seu grau de realismo e narratividade, quando a história da pintura russa e

de suas eventuais confluências com o movimento revolucionário nos revela que a arte

abstrata usou de outros métodos e artifícios, que não os realistas, para forjar o contato

com o processo social e participou proficuamente das ações transformadoras.

O fato de tantos grupos modernizantes e não-realistas terem sido gestados num

contexto povoado de greves, motins e insubordinações nas fileiras do exército,

conflitos, barricadas, desapropriações de terras e barbárie geral, é apenas um indício de

que Vanguarda e revolução não são sinônimos, ou seja, embora estes dois fenômenos

tenham se harmonizado durante a sublevação de 1917 e enquanto durou a guerra civil,

eles tiveram percursos diversos e nem sempre coincidentes. A própria natureza dos

fatos políticos e culturais impede que eles tenham desenvolvimentos sincronizados:

enquanto que os primeiros podem ser concebidos em termos de unidade evolutiva que

conduz à um arremate, os segundos não admitem uma tal aproximação, dada a sua

natureza paradoxal, simultaneamente temporal e atemporal e a sua não objetividade.

Neste sentido, assinalamos o desencontro inicial entre Vanguarda e revolução para

tornar mais compreensível a urdidura do tecido social onde a pintura abstrata surge

como fenômeno puramente estético para, em seguida, desenvolver afinidades com o

processo revolucionário.

Abortada a revolução de 1905, a arte russa continuou desenvolvendo-se e

ramificando-se numa profusão de escolas e estilos. Por volta de 1910, era

impressionante o número de grupos ativos no circuito russo, caracterizado por uma

pluralidade até então inédita no país. Além da ação dos vários representantes nacionais,

houve também um incremento da penetração da arte estrangeira, algo proporcionado

pelo aprimoramento da imprensa especializada, responsável pela divulgação de

exposições e reprodução de obras, e pela atividade mercadológica exercida pelo

número crescente de galerias privadas. A complexidade decorrente deste vertiginoso e

desencadeando uma série de movimentos sociais que constituiram a chamada revolução de 1905. Sobre isto, consultar o livro “Os Bolcheviques, de Adam B. Ulam.

64

caleidoscópico crescimento trouxe, segundo Bown, “um conflito entre tradicionalistas

e conservadores” 82 , fato que iria marcar definitivamente a clivagem entre a proposta

realista interessada em preservar a tradição narrativa ainda sustentada pelos – agora

acadêmicos – Itinerantes, e a proposta vanguardista, destinada a promover uma

constante ruptura e experimentalismo formal. Tal polarização é, sem dúvida, o ponto

mais intrigante da aventura vanguardista russa pois, embora no ulterior discurso

soviético as representações políticas no domínio da arte tenham sido imputadas ao

realismo socialista, constata-se que nem sempre a vanguarda estivera alheia do mundo

político, e que, portanto, a polarização não tinha razão de ser.

O Neoprimitivismo de Natália Goncharova e Mikhail Larionov foi um dos

primeiros projetos modernos de maior consistência e unidade conceitual. Este

movimento pautava-se no resgate de elementos visuais da cultura eslava, aliado à

incorporação de recentes estudos formais realizados no Ocidente, o que apressaria o

fim da narratividade professada pela facção conservadora. Sobre isto Gray diz:

“Desde os anos de 1890, o elemento literário fora predominante na pintura russa, mas já por volta de 1907, começa a ceder lugar para novos valores puristas. (...) Durante os próximos três anos, um movimento primitivista surgido na própria Rússia, torna-se um estilo consolidado, que baseava-se no culto à arte folclórica e na síntese de movimentos europeus.”83

Com o desenvolvimento do mercado de arte Moscou tornara-se o locus para

onde convergiam vários dos arrojados movimentos e idéias que então germinavam na

Europa Ocidental. As experimentações formais e conceitos promovidos por cubistas,

futuristas e expressionistas aportaram na cidade russa através das constantes exposições

internacionais realizadas por emergentes curadores russos, de forma que arte européia,

outrora distante, fazia-se presente e se dava a conhecer a toda uma geração de artistas

audaciosos e ávidos por realizar as mudanças que julgavam imprescindíveis à arte

russa. Não se pode negar que estes movimentos tenham influenciado o processo

criativo de indivíduos que, desde a última década do século anterior, haviam dialogado

com as sucessivas rupturas operadas no campo das artes visuais francesas, porém, é

preciso dizer que foi neste período de intensas trocas - e não apenas recepções – que a

vanguarda russa começou a se definir como projeto peculiar.

82 Bown, M.C. Op. Cit, p.26. 83 GRAY, C. Op. Cit. P.93.

65

Se na obra de pintores modernizantes como aqueles filiados ao “Mundo da

Arte” parece haver uma mera assimilação de artifícios formais impressionistas, no

trabalho levado a efeito por neoprimitivistas como Larionov e Goncharova, a

assimilação transmuta-se em síntese e o vocabulário plástico de raiz européia é

transfigurado pela inclusão de um elemento novo, a arte folclórica. Os neoprimitivistas

empreenderam um inédito trabalho de pesquisa imagética, voltando-se para fontes até

então desprezadas, como, bordados da Sibéria, brinquedos de madeira, fiação, lubok

(xilogravura camponesa) e pintura icônica.84 Os padrões formais pinçados dessas

manifestações artísticas essencialmente populares eram assim apropriados e submetidos

à lógica moderna, pois a idéia não era produzir simulacros de luboks e nem propor uma

ética preservacionista, já que o desejo maior era identificar as raízes de uma tradição

plástico-visual propriamente russa, não para mantê- la isolada e imutável como um

dogma, mas para convertê- la em ingrediente primevo de um projeto vanguardista, que

se destacaria posteriormente, como a grande contribuição russa à arte mundial.

Para compreendermos melhor o movimento neoprimitivista é útil nos determos

na obra de alguns de seus maiores expoentes. Natália Goncharova nasceu em 1881 na

província de Tula, sudoeste de Moscou. Procedente de uma família nobre, em cuja

genealogia figuram pessoas ilustres como Pushkin, Goncharova contrastava com os

outros cubo-futuristas, que em grande parte eram de origem camponesa, ou descendiam

da classe dos pequenos comerciantes. Enquanto esteve envolvida com pesquisas

relacionadas à arte folclórica, ela se notabilizou como a principal autoridade na

chamada pintura icônica, uma tradição pictórica que remonta à Idade Média, e que

prima pela representação de personagens e episódios bíblicos. Segundo Gray, a

principal característica das primeiras obras produzidas segundo esta orientação é “o

rico ornamento e forte rítmo linear, que a artista tão brilhantemente explorou em seus

posteriores desenhos teatrais.’85

Na obra “Fuga Para o Egito”(fig.12), de 1908-09, todos os aspectos

mencionados acima como próprios do neoprimitivismo, aparecem com nitidez:

Primeiramente, a forma conferida à figura humana, em sua espectral singeleza, remete

à hierática arte de bizâncio; neste regresso às antigas representações dos personagens

sacros, a artista abandonou definitivamente a abordagem mimética ou naturalista e

mergulhou nas distorções e simplificações típicas de uma época iconoclasta, logrando,

84 Ver: Gray, C. p. 97. 85 Ibidem, p. 100.

66

assim, traduzir não uma narrativa realista à maneira de Gioto86, e sim uma quase

epifania, onde o que importa é a simbologia implícita no ato bíblico e nas figuras nele

envolvidas. A ausência de profundidade contribui para eliminar qualquer traço de

realismo, da mesma forma que a violação das regras de perspectiva gera uma

verdadeira planificação que vincula a obra à sua matriz bizantina. Contudo, esta

imagem não é uma mera reprodução da pintura icônica do passado, já que o elemento

moderno naturalmente se impõe. Os artifícios formais assimilados a partir da fruição da

arte francesa – notadamente o cubismo – são bastante evidentes, principalmente no que

reporta à linha; a construção do drapeado da vestimenta de Maria, como um conjunto

de linhas espessas e angulares, cria áreas cromáticas semelhantes às facetas cubistas,

embora não sejam matizadas; a articulação destas linhas oblíquas numa espécie de

cadeia canhestra e ritmada gera o emaranhado caleidoscópico, também tributário ao

cubismo. Porém, a obra se distingue de qualquer aproximação cubista por sua flagrante

unidimensionalidade, nao incoporando assim uma das maiores revoluções do

movimento francês, qual seja, a tentativa de se alcançar a Quarta dimensão nos

domínios da estrutura bidimensional.87

Na pintura de Goncharova aparecem, em estágio embrionário, aqueles aspectos

diferenciadores que fazem da vanguarda russa um projeto independente e influencial,

mesmo no contexto amplo, complexo e revolucionário da moderna arte européia. Ao

retomar as experiências eslavófilas de Abramtsevo (ver cap.I) em uma perspectiva

moderna, os neoprimitivistas iniciaram a construção de seu peculiar ideário e

inscreveram a arte russa na categoria dos eventos capitais, que estariam no limiar de um

universo artístico para sempre e irreversivelmente transformado. O texto de Gray,

embora simples e parcimonioso, expõe o passo inicial da insólita trajetória russa rumo à

abstração:

“Assim, pode-se distinguir dois cursos distintos na obra de Goncharova: sua vigorosa e independente pesquisa das tradições nacionais e suas interpretações mais tímidas e acadêmicas dos estilos europeus”88

86 Giotto foi um dos primeiros pintores da fase pré-renascentista a trabalhar com a perspectiva clássica, um recurso formal que conferia um teor realista e narrativo aos episódios bíblicos representados em seus afrescos que, assim construídos, adquirem uma aparência secular. Sua arte representou uma ruptura com a tradição medieval que, procurando preservar o espírito místico da história cristã, não admitia o método narrativo. 87 O processo de fragmentação formal cubista consiste na exposição das diferentes faces de um objeto num mesmo plano. Neste processo, a imagem adquire uma “quarta dimensão”, resultante da unificação dos lados opostos dentro de uma estrutura bidimensional. 88 GRAY, Op. Cit., p. 103.

67

Um outro grande representante da tendência primitivista é Mikhail Larionov,

um pintor nascido em Teraspol, na Ucrânia, em 1881. As primeiras obras de

maturidade deste artista foram produzidas em estilo declaradamente impressionista,

tanto que ele próprio os definiu como “os mais belos impressionistas russos”. Tendo

experimentado por quatro anos os recursos formais apreendidos a partir da

visualização de obras impressionistas, o artista ensaia uma ruptura com este

movimento, sendo que a primeira mudança é de natureza cromática: os tons pastéis,

outrora predominantes foram substituídos por gradações de amarelo e vermelho mais

vívidas. Entretanto, segundo Gray, a inclinação para a cor forte e quase selvagem dos

primitivistas não seria uma realidade no trabalho de Larionov: “Diferentemente de

Goncharova e Malevitch, Larionov, raramente adotaria o programa cromático da arte

folclórica – mesmo em sua arte primitivista – mas permaneceria fiel à sua palheta

abafada, na qual os pálidos azuis, suaves verdes e brandos amarelos são

predominantes”89

Embora tenham trabalhado juntos numa espécie de simbiose artística, Larionov

e Goncharova revelam-se muito distintos no que reporta a suas obras. A pintura de

Larionov apresenta um caráter insinuativo e uma parcimônia de meios que,

nitidamente, contrasta com a exuberância impactante, eclética, de Goncharova. Por

força desta peculiaridade a obra neoprimitivista de Larionov constitui uma leitura

extremamente pessoal dos princípios que estão no cerne do movimento. Suas

aproximações do imaginário popular concentram-se em pequenas cenas do cotidiano,

que são pintadas como entidades isoladas do seu contexto, não com propósitos

narrativos, mas tão somente como pretexto para materializar as pesquisas formais.

A obra “Soldado ao Cabeleireiro” (fig.13), de 1909, traz uma imagem que

aparentemente refere-se a um fazer diário, porém, uma análise mais atenta indica que o

objetivo ali não é, absolutamente, o registro, fato que se evidencia não só pelo

desrespeito às regras da pintura clássica, como a perspectiva e o escorço, mas sobretudo

pelo manifesto ludismo conferido às personagens, as quais assemelham-se a brinquedos

de madeira do artesanato camponês. Os gestos de ambos exibem a rigidez própria das

ingênuas miniaturas fabricadas por artífices das mais distantes aldeias; a desproporção

de seus instrumentos – espada, tesoura – relativamente a seus corpos os torna cômicos.

O volume é drasticamente atenuado pelo método moderno de trabalhar a luz e as

89 Ibidem, p.103.

68

massas cromáticas, método este herdado principalmente do fauvismo de Matisse.

Constata-se, portanto, que Larionov construiu uma imagem híbrida, na qual,

simultaneamente, aplicou as inovações apreendidas do ocidente e imprimiu um novo

vocabulário, diretamente resgatado do universo popular.

Para além deste aspecto lúdico, a obra de Larionov possui uma série de

características que influenciaram a poesia futurista produzida nos anos de 1912-14.

Segundo Gray, a aspereza e a distorção formal presente na série “Soldados”, iniciada

em 1908, e o ataque às convenções são recursos formais que, posteriormente, serão

incorporados pelos poetas futuristas90. Esta interlocução entre poetas e pintores cria as

bases para o desenvolvimento do Cubo-futurismo, um movimento híbrido, onde a

tendência à interagir linguagens, típica da pintura russa desde os tempos de

Abramtsevo, será exercitada de forma intensa e profícua.

O Cubo-futurismo não é um movimento cuja história possa ser traçada

linearmente. É, melhor dizendo, uma tendência sincrética, que começa a se impor em

1910 e que não pode ser definida enquanto negação ou ruptura relativamente a qualquer

outra realização contemporânea, mesmo porque, neste intervalo compreendido entre

1905 e 1920, a vida cultural russa estava em polvorosa, e várias propostas coexistiram

de maneira caótica, porém não necessariamente antagônica. Assim, muitos artistas que

em certo estágio de suas carreiras produziram pinturas cubo-futuristas, foram também

propositores de estéticas peculiares, idiossincráticas, ainda que não totalmente

estranhas às investigações estéticas cubo-futuristas. Este é o caso, por exemplo de

Malevitch, mentor do Suprematismo e Larionov e Goncharova, criadores do

Raionismo. Seria errôneo, portanto, interpretar um dado atributo artístico-cultural como

estrutura unívoca, pois este pode ter sido objeto de fusão com outros elementos, em que

suas características originais são transformadas em outras, detentoras de novos

sentidos. Tal é o que ocorre com os valores primitivistas, os quais são incorporados à

estética cubo-futurista, e permanecem visíveis até que as abordagens não objetivas

(Raionismo, Suprematismo) e construtivas (Construtivismo), instauram a definitiva

revolução na linguagem visual.

90 Segundo Ripellino “os cubo-futuristas construíram as próprias líricas como empastos cromáticos e relações de volumes. Pela rudeza arrojada do verso, pela superposição de planos semânticos opostos, pela consistência tangível dos objetos, que parecem furar com pontas agudas o tecido verbal, as páginas destes poetas derivam inteiramente da nova pintura.” (RIPELLINO, A.M. Maiakovski e o Teatro de Vanguarda. São Paulo: perspectiva, 1971, p. 32-33.

69

No estágio que ora abordamos, a pintura russa ainda não se apresentava

fragmentada em estilos e tendências claramente definidos. Havia apenas uma

inclinação geral para o elemento visual primitivo e um fascínio pelas novas

possibilidades de criação pictórica naturalmente engendradas a partir da recusa em

repetir a forma e a composição realista e da consciente decisão em reavaliar a herança

oriental, confrontando-a à tradição européia. Porém, mesmo neste período de

incipientes e não-sistemáticas tentativas de promover um fazer pictural vanguardista e

russo, as pioneiras ousadias no campo da linguagem – entre as quais, estava a

incorporação de elementos literários no espaço pictórico, algo já ensaiado pelos

cubistas franceses, mas que na Rússia teve conotações específicas - estavam já

manifestas.

Vale dizer que esta fusão de elementos verbais e imagéticos criou um fenômeno

até então inédito, mesmo no Ocidente, qual seja, a influência da pintura sobre a poesia.

Gray afirma que no contexto russo a pintura futurista antecede a poesia e se transforma

em fonte de inspiração para os poetas, muitos dos quais vivenciaram experiências

pictóricas antes de se dedicarem à poesia. Vários poetas se apropriaram de recursos

formais empregados por Larionov neste tempo como, “o uso de associações

irreverente-irrelevante, a imitação da arte infantil e a adaptação do imaginário e dos

motivos da arte folclórica” 91 Este processo não se resume à simples aposição de letras

ou palavras em uma composição pictórica, visto que esta contínua simbiose

corresponde ao trabalho de cooperação que origina uma tendência propriamente russa

de fazer arte, a qual será exerctiada de forma bem sucedida no design tipográfico

construtivista.

Sobre o neoprimitivismo, cumpre ainda destacar a obra dos irmãos David e

Vladimir Burliuk. Estes artistas, que organizaram a exposição “O Vínculo”, em São

Petesburgo, somente em 1908 seriam atraídos pelas tradições da arte folclórica.

Segundo Gray, a obra de David Burliuk “è sobretudo literária em sua abordagem.”92

Tal informação, a primeira vista incongruente, adquire sentido quando visualizamos a

obra “Meu Ancestral Cossaco” (fig.14). Neste quadro, embora o tema tradicional tenha

sido submetido a um esquema formal e compositivo moderno, percebe-se que o modo

de apresentá-lo traduz uma certa linearidade, uma certa lógica espacial e temporal que

imprimem a tácita narrattividade à cena. A perspectiva, conquanto seja atenuada pela

91 Gray, C,. Op. Cit. P. 107. 92 Ibidem, p. 113.

70

ausência de profundidade, não foi completamente eliminada, algo que imediatamente se

constata na imagem da minúscula habitação existente na área esquerda superior do

quadro.

Embora não represente nenhum grande movimento revolucionário ou

vanguardista no campo das artes plásticas, David Burliuk deve ser lembrado neste

momento, pois, foi justamente por sua perspectiva “literária”, que ele identificou-se

posteriormente com a poesia futurista, campo para o qual migrou em 1911, juntamente

com Vladimir Maiakovsky, o grande poeta revolucionário. Fazendo poesia ou peças

teatrais, estes dois artistas consolidaram-se como os maiores tradutores dos

acontecimentos de Outubro; em sua obra poética, toda a visualidade anteriormente

experimentada será transmutada em signos verbais de notável apelo revolucionário.93

Por volta de 1910, a intensa atividade pictórica estava, por assim dizer,

concentrada nas mãos de dois grupos: “Valete de Ouros”, de Moscou, e “União da

juventude”, de São Petersburgo. É relevante discutir minimamente esses grupos, já que

foi nas mostras por eles organizadas que as imagens neoprimitivistas foram

apresentadas ao público. Criado em 1910, o grupo “Valete de Ouros” reunia os

principais representantes do movimento neoprimitivista, Larionov e Goncharova, e

ainda Petr Konchalovski, Aristarkh Lentulov, Robert Falk e Ilya Maskov, estes últimos

conhecidos como “Cezanistas de Moscou”. Sua primeira exposição, realizada em 1910,

pode ser considerada o mais abrangente e inclusivo evento deste gênero já organizado

no país, pois, além de trabalhos dos já referidos integrantes, incluiu obras de pequenos

grupos de Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev, e de pintores franceses e alemães.

Bown relata que nesta mostra o elemento primitivo é preponderante, estando presente

na maioria das trelas expostas, fato que sugere que o interesse na arte folclórica e na

imagética camponesa chegara então ao paroxismo. De fato, por esta época os mais

diferentes grupos estavam procurando estreitar o contato com a arte dos pintores naïf e

com a arte infantil, tanto que algumas imagens desta natureza foram incluídas na

exposição.

Este trabalho de divulgação da arte não profissional prosseguiria até 1913,

quando esta integraria sucessivas exposições. A consequência direta de tudo isto foi a

crescente valorização da estética julgada inocente e não “corrompida” pelos vícios das

93 Sobre a obra de Maiakovski, consultar: RIPELLINO, A.M. Maiakovski e o Teatro de Vanguarda . Op. cit.; PATRIOTA, Rosângela. Dilemas Estéticos e Políticos de Vladimir Maiakovski. Revista História. São Paulo: UNESP, v. 13, 1994, p.p. 185-196 e RIBEIRO, Juscelino Batista. Estética e Política na Dramaturgia de Vladimir Maiakovski. Uberlândia: UFU, 2001 (dissertação de mestrado);

71

sociedades modernas, culminando na formação de coleções e mostras exclusivamente

dedicadas ao tema, em 1916, quando grande parte dos artistas já estava envolvida com

pesquisas concernentes à pintura abstrata e não objetiva.

Em 1911, Larionov rompeu com o “Valete de Ouros” e, em parceria com

Goncharova, Malevitch e Tatlin, fundou o grupo “Rabo de Asno”, cuja primeira

aparição pública se deu por ocasião da 3ª Exposição “União da Juventude”, em 1912.

Segundo Gray, esta dissidência deveu-se ao desentendimento de Larionov com os

Cezanistas e David Burliuk, aos quais acusava de conservadorismo, subserviência às

idéias de Munique e ecletismo.

Também em 1910 deu-se a criação do grupo União da Juventude, uma

sociedade expositora pluralista, que reunia artistas de diversas tendências, em

exposições que se realizavam duas vezes ao ano. Não era, portanto, um núcleo fechado

ou orientado por uma filosofia monolítica, mas antes um espaço destinado a congregar

os representantes da vanguarda pictórica, entre os quais estavam indivíduos recém

chegados ao mundo da arte, como Olga Rosanova e Pavel Filonov, além de artistas já

atuantes em outros grupos. Estes eventos semestrais estão, seguramente, entre os mais

extraordinários acontecimentos relacionados à vanguarda russa, pois aqui, além das

exposições formais, ocorriam discussões estéticas, performances, improvisações, enfim,

toda uma gama de manifestações artísticas experimentais, onde os artistas tinham a

oportunidade de exteriorizar sua dimensão irreverente e transgressora, tão necessária à

qualquer projeto que se queira vanguardista. Também será o campo ideal para o

exercício daquela interlocução entre linguagens plásticas e poéticas, a que aludimos

anteriormente. Para transmitir uma vaga noção do que foram estas fantásticas

experiências, transcrevemos o texto de Gray:

“Numa tentativa de romper com as convenções vigentes, os artistas conduziram sua batalha de todos os modos concebíveis. Era comum ver membros deste pequeno mundo – Larionov, Goncharova, Mayakovski, ou os irmãos Burliuk – caminhando por uma das ruas principais de Moscou com flores nas mãos, com signos algébricos ou raionistas pintados em suas faces (...) Em 1913, eles fizeram juntos o filme intitulado ‘Drama no Cabaré nº 13’(fig.14), que consistia simplesmente, do registro de seu comportamento diário; de suas andanças por lojas e restaurantes, trajando coletes de cores brilhantes; os homens usando brincos e portando rabanetes ou colheres em suas botoeiras”94 Julgamos que a mostra “União da Juventude” marcou o ponto de inflexão na

trajetória vanguardista. Foi o instante em que os artistas tentaram uma primeira

94 Gray, C. Op. Cit. P.115-16.

72

aproximação com o cotidiano citadino; e nestas irreverentes e controvertidas

performances, conseguiram lançar a vanguarda pictórica no interior do turbilhonante

contexto de lutas, expectativas e utopias revolucionárias. A partir deste momento, a arte

que até então fizera um percurso paralelo aos acontecimentos sociais, começa a se

imiscuir neste vórtice que antecede Outubro e que segue triturando os últimos

escombros do estabelecimento czarista. Entretanto, este intercurso entre estética e

política não se fez de forma explícita ou direta, e nem seria plausível procurar uma

expressão literal da revolução em imagens que primam pela abstração. A verdade é

que, ao transpor a tênue barreira que a separava do mundo o artista pôde compartilhar

dos ideais transformadores inerentes à revolução, e assim contribuir na construção do

socialismo. Gray afirma que, neste contexto, há mesmo uma espécie de congraçamento

entre arte e sociedade. Referindo-se à crítica estética anti-simbolista ela diz:

“Ao trazer a linguagem dos criadores da ‘torre de marfim’ para a realidade – para a rua, para a vida diária, para o cidadão comum – estes artistas procuravam, com as únicas armas que possuíam, promover a reconciliação da arte com a sociedade, que era a maior responsável pelo isolamento da arte nesta ‘torre de marfim’. Em suas excentricidades e palhaçadas públicas pode-se distinguir uma inocente e intuitiva tentativa de devolver ao artista seu lugar no cotidiano, e conceder-lhe a chance de tornar-se um cidadão ativo.” 95

Concluído o que julgamos ser um intróito ao tema da vanguarda, impõe-se a

necessidade de avaliar os diálogos possíveis entre pintura e história. Considerando que

no período que se estende de 1912 a 1921 foram gestadas as chamadas tendências não

objetivas e construtivas; e tendo em vista que neste período ocorreram revolução e

guerra civil, torna-se uma exigência investigar quais os sentidos da comunicação

efetivamente estabelecida, pois agora já não é possível dizer que arte realize narrativas

visuais a partir da realidade contemporânea, e por conseguinte, disto se infere que a

relação arte/real que neste momento se cria já não é a mesma que existira com respeito

à arte dos Itinerantes.

Esta alusão à história nos impele a procurar uma relativização da idéia de

individualismo que Bown aplica à Vanguarda emergente. Opondo a arte produzida

pelos novos grupos ao realismo de gênero oitocentista, o autor termina por concluir que

os pintores modernos teriam perdido o interesse pelo conteúdo social e pelo espírito

coletivista do qual estariam investidos os pintores de gênero. Mesmo que concordemos

95 Ibidem, p.116.

73

que os artistas de vanguarda trilharam a vereda do individualismo, teremos, ainda

assim, que admitir que o lugar social da pintura não fora absolutamente dissolvido,

visto que os artistas em geral propuseram novas formas de construir representações96

que não fossem necessariamente narrativas ou realistas.

O caso de Goncharova é extremamente elucidativo deste aspecto aqui referido.

No catálogo de sua exposição individual de 1913, ela expõe suas convicções acerca do

primitivismo, e relata como se conscientizou do valor da arte e da cultura russas e como

percebeu que a condição de origem de todas as vanguardas é um apanágio do oriente:

“No início aprendi muito com meus contemporâneos franceses. Eles estimularam minha consciência e eu percebi o valor e o significado da arte do meu país, e, através desta, o grande valor da arte oriental. Até aqui, eu havia estudado tudo o que o Ocidente me proporcionou; agora removo a poeira dos meus pés e abandono o Ocidente, e meu caminho segue em direção à fonte de todas as artes: o Oriente. A arte do meu país é incomparavelmente mais profunda e importante que tudo o que conheci no Ocidente. (...) Mais uma vez, estou me abrindo para o Oriente, e estou certa que muitos me seguirão nesta caminhada. É verdade que aprendemos muito com os artistas ocidentais, mas onde mais os ocidentais se inspiraram senão no Oriente? Nós não aprendemos o mais importante: não fazer imitações estúpidas e não procurar nossa individualidade, mas criar e, principalmente, compreender que a fonte a que o Ocidente recorre é o Oriente, e a nós”97

No texto de Goncharova identificamos uma evidente atitude valorativa em

relação ao legado oriental, que ela julgava ser a matriz de todos os modernismos

franceses. Isto significa que, na visão da artista, a pintura não havia se desmembrado e

se transformado em criação solipsista, posto que ainda dispunha de recursos para

inserir-se socialmente e promover ideais de arte e cultura. A diferença é que, neste

momento, tal promoção não se dava mediante o registro de “realidades” camponesas,

mas através de uma reflexão sobre a própria ato criador, ou seja, as possibilidades de

“engajamento” transferiram-se da obra para o fazer artístico. É por meio da

conscientização acerca da tradição nacional que o indivíduo consegue restaurar o seu

locus no contexto internacional e divulgar sua arte como sendo uma extensão do seu eu

e de seu país.

Neste sentido, podemos pensar a arte moderna em termos de representação,

mesmo que este fazer pictórico vanguardista implique em uma certa dose de

individualismo, pois, segundo Chartier98 , a noção de representação coletiva traz

96 Refiro -me aqui ao conceito de representação de Chartier. 97 GONCHAROVA, Natálya. Prefácio ao Catálogo da Exposição Indiviudal de 1913. In: BOWLT, John E. (Ed.). Russian Art of the Avant Garde. London: Tahames and Hudson, 1976, pp.54-57. 98 Chartier, R. Op. Cit. P. 18/19.

74

implícitas todas as ações individuais que concorreram para o engendramento de um

dado grupo e de seus valores culturais mais genéricos. Ao elegermos o processo criador

e a carga conceitual inerente à obra como as novas vias para a comunicação de idéias e

como armas para fomentar a consciência e inspirar atitudes transformadoras, criamos o

campo para uma possível abordagem histórica da arte de vanguarda em tempos de

revolução. Como ressaltamos, as controvertidas performances públicas realizadas

durante as mostras da “União da Juventude” constituem o portal que nos coloca no

limiar de novo contexto, em que história e arte se reencontram como entidades novas,

transformadas ambas pela força inédita e avassaladora da revolução.

Neste ambiente vanguardista inaugural várias exposições estavam acontecendo.

Porém, como são casos isolados e precariamente documentados é aconselhável preterí-

las para nos concentrarmos nos fatos associados ao raionismo. Desde que rompera com

o grupo Valete de Ouros, Larionov não tivera oportunidade de exercitar seu talento para

a curadoria, até que, em 1912, organizou uma mostra intitulada “Rabo de Asno”, da

qual participaram, além do próprio organizador, três das mais célebres autoridades do

mundo da arte moderna naquele momento: Tatlin, Malevitch e Goncharova. As obras

expostas estavam intimamente vinculadas aos princípios do neoprimitivismo; veja-se

por exemplo a pintura “Camponeses colhendo maçãs” (fig.10) de 1911, onde estão

presentes os temas agrícolas e camponeses, transfigurados pela geometrização de

raízes cubistas. Nesta imagem, a forma esquemática e distorcida de se trabalhar o

corpo, em que pouca atenção é dada à proporção, ao escorço e à anatomia, é

provavelmente resultado de uma releitura dos moldes de madeira camponeses. Gray

afirma que todos estes elementos, acompanhados de um interesse geral pela arte

folclórica, eram compartilhados pelo Grupo alemão Blaue Reiter, que estava expondo

em Munique no mesmo período. Mesmo a tendência de Larionov ao esotérico revela

uma afinidade deste com o expressionismo. Assim, não obstante a animosidade de

Larionov para com a escola de Munique, percebe-se que a sua estética e de seus colegas

ainda mantinha certos vínculos com as vanguardas européias.

Em 1913, Larionov organizou a exposição “O Alvo”, onde exibiu suas

primeiras telas raionistas. Segundo sua própria definição, expressa no manifesto

publicado durante a mostra, uma pintura raionista "consiste de formas espaciais obtidas

através do cruzamento de raios provenientes de vários objetos, formas estas que são

75

isoladas pelo artista”99. O conceito de raionismo parece ter sido criado em 1912, e,

provavelmente, deve sua existência ao interesse científico manifestado por Larionov

desde os tempos escolares, o que o teria incentivado a desenvolver uma concepção

óptica de arte.

De acordo com Bowlt, por volta de 1912/1913, houve na Rússia uma intensa

curiosidade em torno das técnicas fotográficas e cinematrográficas e os artistas, de um

modo geral fascinados por estas tecnologias e pelos novos meios de produzir e

conceber imagens, eram impelidos ao estudo das propriedades da luz e da cor. As

pesquisas levadas a efeito pelo fotógrafo A. Trapani neste campo eram extremamente

sedutoras; sua técnica do raio gama tornava possível a produção de texturas radiais

ilusórias, criando formas fantásticas que além de convidarem à transcendência,

despertavam o interesse pelas dimensões propriamente científicas do fenômeno da

luz.100

Não é possível avaliar até que ponto Larionov foi influenciado por estas

técnicas, porém, é indiscutível que as perspectivas abertas pela fotografia e pelo cinema

alteraram significativamente todas as idéias sobre luz, cor, forma, sombra e

composição, na medida em que conduziram a uma compreensão ampliada do

mecanismo da percepção, explicitando, concomitantemente, as até então insuspeitadas

deficiências do olho humano. A consequência desta reavaliação foi um geral ceticismo

com respeito a legitimidade de uma pintura ilusionística.

O movimento raionista está completamente permeado por esta concepção óptica

de pintura. Em seu texto de 1913, intitulado “Pintura Raionista”, o artista explica sua

teoria. Uma de suas premissas diz que não podemos reproduzir a forma de um objeto

confiando apenas em nossa visão, visto que a percepção deste mesmo objeto não resulta

simplesmente de uma captura da imagem pelo olho e da comunicação desta ao cérebro,

considerando que os outros sentidos também contribuem para uma correta elaboração

mental da imagem. Nesta perspectiva, não existe representação ilusionística, pois a

visualização seria insuficiente para transmitir a imagem real do objeto, ou, usando a

expressão do artista, “não percebemos o objeto como tal. Percebemos uma soma de

raios provenientes de uma fonte de luz qualquer; estes raios refletem no objeto e

penetram nosso campo de visão.”101

99 GRAY, C. Op. Cit. P.139. 100 Bowlt. J. E. Op. Cit. P. 93. 101 LARIONOV, Mikhail. Rayonist Painting. In: Bowlt, J. E. Op. Cit. P.98.

76

Fundamentando-se nestas reflexões, Larionov construiu sua definição de pintura

raionista, a qual consiste no transporte para a tela das formas criadas pelo cruzamento

de raios de luz. Considerando que um artefato, quando exposto a qualquer fonte de luz

reflete os raios daí procedentes, estes raios, por sua vez, interceptam outros raios

refletidos por outros objetos circundantes, gerando uma infinidade de intersecções,

interstícios, formas geométricas que são transpostas para a tela. Ele descreve seu

método do seguinte modo: “A soma dos raios de um objeto A cortam a soma dos raios

de um objeto B; no espaço entre elas aparecem certas formas que são arbitrariamente

isoladas pelo artista.”102

Larionov sustentava que, procedendo desta forma, estava lidando com leis

exclusivamente pictóricas pois, embora se voltasse para coisas do mundo material,

enquanto criador procurava se desvencilhar das relações de dominação que no passado

condenavam o artista a ser um mero produtor de simulacros de coisas. Ao elucidar o

processo de percepção e denunciar a impossibilidade da reprodução da imagem por

meios pictóricos, o artista sugere que o sentido da criação plástica não reside na

representação de aspectos da natureza, mas sim na elaboração de imagens a partir do

material visual fornecido por esta mesma natureza. As formas assim criadas são

inerentemente artísticas; o que as define não é o grau de semelhança ou fidelidade às

formas do mundo real, mas a maneira como materializam propósitos e leis puramente

estéticas. O exaltado desfecho do manifesto permite compreender esse desejo de

independência:

“Aqui começa a criação de novas formas, cujos significados e expressões dependem inteiramente do grau de saturação de um tom cromático e da posição que este ocupa em relação aos outros tons. (...) a pintura como entidade independente, com suas próprias formas, cores e timbres. Aqui inauguramos um modo de pintar que consiste unicamente em seguir as leis específicas da cor e de sua aplicação sobre a tela.”103 Saindo da dimensão teórica e partindo para uma apreciação das obras

propriamente ditas, encontramos duas abordagens distintas de raionismo. Segundo

Argan, o tema órfico104 é predominante no trabalho de Larionov, o que se deve às

102 Ibidem, p. 99. 103 GRAY, C. p. 140. 104 Segundo Virgínia Spate, o designativo “cubismo órfico” foi criado pelo poeta francês Guillaume Apollinaire para conceituar um tipo de pintura abstrata ou pura que estava em voga na Paris dos 1911-14. Esta tendência, cujo maior expoente foi Robert Delaunay, consistia numa relação de analogia entre harmonias cromáticas e musicais, resultanto em pinturas completamente não-referenciais, “uma arte que dispensaria o objeto reconhecível e confiaria na forma e na cor para comunicar significado e emoção (tal

77

analogias que o artista estabelece entre a harmonia raionista e as leis da criação

musical. Já em Goncharova, o elemento futurista domina toda a composição. Na obra

“O Ciclista” (fig.16) (1912-13), de a síntese entre cubismo e futurismo que, segundo o

manifesto, traduz o movimento, é bastante perceptível. A aplicação dos princípios

raionistas não é tão efetiva quanto em Larionov, o que talvez se deva ao apego da

artista ao ideário futurista. Ao tentar uma aproximação com a temática fabril, louvada

pelos futuristas, ela mantém um certo grau de figuração, evitando que o tema se dilua

numa trama excessiva de raios. Apesar de existirem sequências de linhas sugerindo a

transfiguração da imagem sob o impacto da velocidade – tema caro aos futuristas – o

movimento é paradoxalmente negado pela pista irregular sobre a qual o ciclista trafega,

indicando a observância dos fundamentos raionistas no que diz respeito à

impossibilidade de reproduzir plasticamente objetos ou situações.

De qualquer forma, a preservação do tema ou da imagem reconhecível não é

absolutamente uma incongruência conceitual, pois o próprio Larionov, em texto já

citado, alude a um raionismo realista, no qual os objetos ainda são importantes para a

composição, mas apenas enquanto ponto de partida, razão pela qual não faria sentido se

desaparecessem completamente. O artifício cubista da fragmentação ou geometrização

é também empregado com sobriedade, visando talvez à manutenção de um parâmetro

figurativo para orientar as variações formais , preocupação esta compartilhada pelos

cubistas que segundo, Rosemary Lambert “não podiam realmente abandonar o tema,

pois, do contrário toda a intenção em desmantelar essas garrafas, copos de vinhos e

até pessoas e voltar a juntá-las ter-se-ia perdido.”105

Já em “Raionismo Azul” (1912) (fig.17), de Larionov, percebemos o ápice do

método e da teroria raionista. Nesta obra nem há mesmo um tema vinculado ao mundo

dos objetos e do qual se pudesse acompanhar um processo de abstração. Como o

próprio título sugere, aqui o tema são os elementos plástico-visuais: linha, cor, e o

próprio método, o gesto e a concepção estética que, articulados, resultaram em imagem

plástica. Os raios, representados pelas linhas que vertiginosamente cruzam o espaço

pictórico, e as formas intersticiais voluntariamente demarcadas, expressam com

brilhantismo aquele tema órfico referido acima. O paralelo traçado pelo artista entre

composição plástica e harmonia musical, apontam o caminho da abstração como sendo

como Orfeu tinha feito através das formas puras da música.” (SPATE, Virgínia. Orfismo. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.63. 105 LAMBERT, Rosemary. A Arte do Século XX. São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 8.

78

ideal para alcançar efeitos puramente estéticos, pois o modelo musical, com tudo o que

representa de não referencialidade e purismo, traduz com perfeição a natureza do objeto

artístico criado mediante a manipulação de signos auto-referentes. Na música, como na

pintura raionista, estes signos podem ser dispostos em séries, combinações, arranjos,

gerando efeitos visuais nem sempre vinculados ao mundo das coisas e, por outro lado,

não necessariamente abstratos.

Na imagem analisada, o caráter abstrato da composição não advém de um

exercício de variação ou fragmentação da forma, visto não existir um tema referencial

(objetos, situações) que anteceda, e se coloque com deflagrador do ato criativo. Embora

a teoria raionista explique que os raios geradores do arcabouço linear da pintura são

refletidos a partir de objetos concretos, constata-se aqui que esses objetos, se é que

existem, são irrelevantes para a composição, pela simples razão de serem meramente

pontos de partida, sendo que a imagem final resulta de um gesto arbitrário do artista e

de sua vontade e decisão em isolar determinadas áreas interpoladas entre raios

cruzados, e transformá-las em planos cromáticos. Nesta operação, os elementos que se

impõem são cor e linha e suas variações, de modo que até poderíamos, dentro da lógica

raionista, flagrar vestígios de objetos em meio a trama de raios, mas estes

permaneceriam apenas como sobreviventes de uma “verdade” órfica, que embora se

origine neles (os objetos), logo os abandona como materiais secundários.

O raionismo foi um movimento breve, porém extremamente importante para a

compreensão da vanguarda russa, não apenas por ser algo elaborado e professado pelos

próprios russos, mas, sobretudo, por representar o fundamentado sistêmico ao qual se

reportam as tendências propostas no país a partir de então. No âmbito do discurso o

movimento comporta ainda um sentido emancipatório quando postula a ruptura com o

Ocidente, criticando a atitude tipicamente moderna representada pela busca incessante

por novidade, e condenando a estetização do primitivo na obra de artistas franceses

como Picasso e Gaughin.106

Cumpre ressaltar que, na Rússia, a atenção à estética primitiva perdeu muito de

sua antiga conotação, isto é, na interpretação raionista o elemento primitivo apenas

106 Ver: Bowlt, J.E.. Manifesto Raionista, p. 90. Nas primeiras décadas do século XX, Paul Gauguin fixou residência na polinésia francesa, onde desenvolveu uma poética extremamente sintonizada como os elementos visuais da exótica cultura tailandesa. Estudando os hábitos culturais, a arte e os padrões estéticos dos insulares, Gauguin iniciou suas pesquisas sobre cor e espaço pictórico, propondo soluções inusitadas no contexto da hermética pintura francesa do início do século XX. Em sua fase inicial, Pablo Picasso investigou a plasticidade das máscaras africanas e empregou o vocabulário primitivo em pinturas como “Le Demoiselles D’Avignon”. Sobre isto ver: GOLDING, John. Cubismo . In STANGOS, N.)

79

tangencia a criação e, portanto, não se adere às composições plásticas, sendo que sua

função neste novo projeto consiste em delinear a condição autônoma do legado

oriental, depois que este havia sido quase confundido com a vanguarda francesa.

Conscientizando-se do fato de que as raízes da arte moderna eram na verdade orientais,

Larionov e Goncharova, reavaliaram suas convicções e seguiram se apropriando de

todas as inovações formais cubistas e futuristas, em si tributárias da arte do leste, e

procederam à construção de um novo sistema compositivo independente.

Para além de qualquer sentimento nacionalista, é preciso dizer que, por

promover uma poética do não objeto, os raionistas inscrevem-se na categoria dos

artistas em sintonia com o seu tempo. O período compreendido entre a fracassada

revolução de 1905 e a insurreição de outubro de 1917 é, certamente, uma fase de

latência nos movimentos revolucionários e também uma fase marcada por indefinições

no campo político. Os partidos encontravam-se retalhados em facções rivais e as

opiniões estavam bastante divididas; havia divergências, por exemplo, quanto à

condução do processo revolucionário. Com o recrudescimento da crise política, os

ativistas mais radicais mostravam-se impacientes com o sistema metódico proposto por

Lênin. O advento da 1ª Guerra Mundial levou a uma fragmentação ainda maior no

sistema partidário, pois, dentre os revolucionários, alguns consideravam que o país

deveria defender-se dos ataques à sua soberania, mesmo que isto implicasse em

enfraquecimento do já precário poder bélico, fato que inviabilizaria quaisquer ulteriores

ações militares em prol do socialismo; outros pensavam que o país devia priorizar o

Revolução comunista, julgando que uma derrota na guerra seria preferível à perda da

revolução.107

Neste contexto conturbado, caracterizado por vários revezes na luta

revolucionária, o desejo de mudança era a atitude predominante e isto, provavelmente

instigava intelectuais e artistas a propor novas formas de arte em sintonia como os

novos tempos. Todavia, esta comunicação entre arte e mundo concreto já não podia se

fazer pela vias tradicionais, até porque todas as estruturas do antigo regime estavam em

estado de iminente dissolução, como se já não fosse possível existirem coisas como

campesinato e aristocracia, e como se todo este mecanismo absolutista estivesse no

limiar da destruição inevitável. Assim, nada mais natural que a pintura se apresentasse

como arte iconoclasta, tendo em vista que seria uma incoerência que o pintor se

prestasse à representar uma tradição da qual já se previa o fenecimento. As

80

circunstâncias exigiam renovação de métodos, técnicas e conceitos, pois, se o mundo

que se esperava erigir era algo sem precedentes na história mundial, o artista em

consonância com os ideais utópicos de criação desta nova sociedade não poderia se

interessar por quaisquer conteúdos sociais, e sua única alternativa seria voltar-se para

seus próprios conteúdos, para uma reflexão sobre os elementos propriamente pictóricos.

Desta forma, o raionismo, ainda que aparentemente revele um certo esoterismo,

é na verdade uma forma de pensar plasticamente a realidade, um pensar que prescinde

de métodos realistas, visto nascer de um confronto com a própria dissolução do mundo,

de forma que narrar, registrar, seriam ações desprovidas de sentido. Nesta pesrspectiva,

ainda é possível vislumbrar a imagem pictórica abstrata como uma forma de

pensamento plástico ou concepção de história e cultura. Enquanto que no século XIX,

esta leitura da história se realizava mediante narrativas visuais ancoradas na realidade

camponesa e eslava que se procurava exaltar, nas vanguardas não-objetivas do século

XX, tal representação converte-se numa recusa em registrar aspectos de um “real” tido

como algo fadado à destruição, pois o que resta na mente dos artistas é a noção de

transitoriedade que antecede a definitiva mudança. E se não há razão para traduzir

realisticamente este contexto transitório, o pensamento plástico segue sendo a

expressão do espírito de mudança que impele os homens ao seu destino revolucionário.

Nesta trajetória em direção à arte não objetiva, a obra de Kasimir Malevitch,

representa uma das mais importantes realizações, não apenas por constituir o ápice da

abstração, mas, sobretudo, por traduzir aquele espírito desmantelador que habita os

anos anteriores à revolução de outubro. Em sua totalidade, a experiência pictórica de

Malevitch é bastante emblemática, pois compreende todos os estágios vivenciados

pelos russos em suas proposições vanguardistas. Depois de trilhar as sendas abertas por

Bonard e fazer experimentos com a pincelada rítmica e com a construção pictórica,

Malevitch interessou-se pelo primitivo e pela arte folclórica de um modo geral,

produzindo imagens em que as influências de Matisse, Cézanne, Larionov, Goncharova

são visíveis. Na Obra “O Banhista”(fig.18), por exemplo, vemos uma figura humana

configurada por um esquema linear muito simples, composto de espessas linhas curvas

que num movimento resoluto se articulam e geram a imagem de um humano, cuja

aparente ancestralidade e singeleza, revelam a assimilação de recursos formais próprios

dos primitivistas russos. Entretanto, a qualidade essencialmente demarcatória da linha e

107 FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 22,23.

81

o método quase bárbaro de distribuir a cor, tornam explícitas as referências

matisseanas.

Superada esta fase de releituras, o artista engajou-se no movimento cubo-

futrista, em 1910-11, iniciando um trabalho de pesquisa formal onde os artifícios

cubistas serão explorados à exaustão. Neste período os temas camponeses ainda estão

presentes, mas são, contudo, submetidos ao deliberado fracionamento, onde as formas

volumétricas começam a ser individualizadas, e, gradativamente, emergem como

entidades independentes já completamente desagregadas do tema que subsiste sob a

profusão de cubos e cilindros. Em “Cabeça de Garota Camponesa”(fig.19), a forma

perde completamente o referencial e o título torna-se mera sugestão interpretativa ou

componente conceitual que explica o fazer pictural e escarnece de sua raíz figurativa.

Todo o espaço é preenchido por formas laconicamente delimitadas, não por linhas, mas

por um sutil claro-escuro que cria delgadas áreas de luz nas extremidades e sugere

fornteiras pelo contraste, o que demonstra uma adoção de métodos e técnicas mais

propriamente pictóricas e o consequente abandono da construção linear, típica do

desenho e da gravura. É interessante salientar esta inflexão operada na forma, pois a

transfiguração da imagem em uma série de unidades geométricas justapostas conduz

aos planos absolutos da fase suprematista.

Paralelamente, o artista produziu, entre 1913, 1914, uma série de imagens

nitidamente referenciadas no cubismo sintético de Picasso e Braque. Em pinturas como

“Um Inglês em Moscou” (fig.20), de 1914, a composição racional e a forma

deliberadamente clivada em planos individualizados (fig.21) dos cubo futuristas foram

substituídas pela forma variegada e plural, obtida através da inclusão pouco criteriosa

de objetos os mais variados e fragmentos de palavras; sendo estes materiais díspares –

igreja, peixe, espada – dispostos aleatoriamente sobre a tela, com pouca ou nenhuma

observância à “logica” espacial, como se o objetivo maior fosse comunicar o absurdo e

a incoerência da representação de coisas. Seja qual for o significado desta composição,

não poderíamos definí- la como simples repercussão das experiências cubistas

sintéticas, pois na data em que foi produzida (1914), o artista já havia iniciado sua

incursão pelo suprematismo, o que indica que ele já desenvolvera suas idéias acerca das

propriedades simbólicas da forma elementar, embora não as tivesse formalizado em

manifesto, algo que só viria a acontecer em 1915.

Segundo Gray, a origem do suprematismo localiza-se nos desenhos que

Malevitch realizou para a ópera futurista “Vitória Sobre o Sol” (fig.22), de

82

Kruchenickh, apresentada em 1913108, cujo tema transitava pelas utopias radicais de

aniquilamento da velha ordem, que então ocupavam as mentes das pessoas mais

propensas a uma conduta revolucionária. A história é essencialmente metafórica e

desenvolve-se em torno da figura do sol e de sua derrota, simbolizada por um quadrado

preto. A vitória, segundo Matiushin, que compôs a música, consiste “numa vitória

sobre o velho e aceito conceito de beleza do sol (...) sobre o romantismo e a

verbosidade vazia”109 . Elliott informa que a imagem deste quadrado, além de figurar

na indumentária do personagem humano, percorre o palco durante toda a apresentação,

que termina com o sepultamento do sol em um buraco negro, uma referência simbólica

à superação do antigo regime, o qual cede lugar ao novo mundo, racional e dominado

pelo homem, imagem esta sugerida pelo imenso pano de fundo que, num instante de

clímax, preenche todo o palco.

Neste mesmo ano Malevitch começou a produzir suas primeiras imagens

suprematistas. Incialmente, realizou composições muito simples do ponto de vista

formal. Resumindo-se à mera sobreposição de formas elementares, como quadrados e

círculos, sobre fundos brancos, estas obras iniciais exibem uma drástica redução das

estruturas formais, como se o espaço pictórico tivesse sido purgado de todos os seus

atributos redundantes, e houvesse conservado apenas os signos mínimos e necessários a

sua existência enquanto forma. Em obras como “Quadrado Preto” e “Círculo

Preto”(fig.23,24) (1913), o uso de um programa cromático parcimonioso, reduzido a

duas cores contrastantes, elimina os últimos resquícios da representação que ainda

sobreviviam no período cubo-futurista. Em consequência, o trabalho compositivo é

simplificado ao extremo, sendo que sua importância na feitura e na inteligibilidade da

imagem, é também atenuada, pois já não há planos a distinguir ou proporções e

equilíbrios a considerar, e tampouco claros-escuros a decifrar. Há apenas formas planas

flutuando em espaços vazios.

Na sequência, o artista introduziu novas cores e novos formatos, e verificam-se

novas relações entre as unidades geométricas, como sobreposições, repetições, artifício

que confere um novo ritmo à imagem, que, assim, distancia-se das proposições iniciais,

cujas formas precisas e solitárias, transmitem uma sensação de inércia. Em

“Composição Suprematista” (1916-17) (fig.25) trabalha com variações sobre a forma

do retângulo, criando uma infinidade de delgados segmentos cromáticos, que se

108 GRAY, C. p. 158. 109 MATIUSHIN. Apud: ELLIOTT, David. Op. Cit. P.15.

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aglomeram longitudinalmente em torno de um eixo diagonal, como limalhas de ferro

que se aderem a um campo magnético. Neste campo, onde a forma retangular é

hegemônica, minúsculas células intrusas, como triângulos e semi-círculos, se esgueiram

e ousam penetrar. Entretanto, esta inclusão de novas formas não implica

necessariamente num retorno à composição sólida, pois em trabalhos subsequentes,

embora apareçam formas oblongas e circulares, estas são preenchidas com matizes

muito débeis e, por este motivo, esmorecem, perdem nitidez, numa espécie de imersão

na palidez dominante ao fundo.(fig.26)

Na série Branco Sobre Branco, que marca o término do movimento, a distinção

figura/fundo é praticamente eliminada, os contornos ou limites são atenuados e as

estruturas geométricas, precariamente individualizadas na totalidade monocromática,

emergem como espectros flutuantes e quase invisíveis quando contrapostos ao

imponderável cosmo, que Malevitch define como “mar branco”. Esta noção de arte que

gravita em direção ao esvaecimento vai expressa na própria frase de Malevtich: “Os

objetos desapareceram como fumaça. Para criar a nova cultura artística, a arte

avança em direção à criação como um fim em si mesmo e para a dominação sobre as

formas da natureza.”110

Nesta imagética do não-objeto, que Malevitch considera ser o único meio de

alcançar a nova cultura, Argan indentifica um pensamento revolucionário imaterial,

alcançado não através da explicitação dos horrores da realidade a ser desmantelada,

mas através da abstração extrema, o que implica na negação do próprio objeto, uma vez

que este, como estrutura material pertencente ao mundo, devia, necessariamente se

desintegrar, posto que o próprio mundo até então existente precisava ser destruído e não

simplesmente transformado. Na análise tecida por Argan, esta questão é colocada

explicitamente:

“O que Malevitch propõe, também de acordo com a revolução social e política em andamento, (embora seus componentes se declarem realistas e combatam o abstracionismo) é uma transformação radical, sem dúvida, porém, não ideologicamente finalizada. A verdadeira revolução não é a substituição de um mundo decadente por uma nova concepção; é um mundo destituído de objetos, noções, passado, futuro, uma transformação em que o objeto e o sujeito são igualmente reduzidos ao grau zero.”111 O estudo do Suprematismo exige um pensar sobre os significados velados que

habitam o lugar virtual existente entre o fazer plástico-poético e os produtos dados ao

110 MALEVITCH, Kasimir. Do Cubismo e Futurismo ao Construtivismo: o novo realismo pictórico. In: Bowlt, J.E. Op. Cit. P.119.

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público na forma de pinturas abstratas. As formas geométricas, aparentemente vazias,

não são meramente as pistas deixadas por uma ausência; elas expressam escolhas e,

conquanto não representem narrações ou reproduções dos acontecimentos, podem

perfeitamente simbolizar certas atitudes do sujeito criador inserido num contexto de

mudanças, isto desde que interpretadas como linguagem e como estratégias

especificamente estéticas para responder às questões colocadas pela vida em sociedade.

Assim, num clima revolucionário, em que se dabatia a extinção do Estado autocrático e

a instauração de um regime socialista, a arte de Malevitch emerge como concepção de

mundo; como forma de pensar que traz implícitos os germes da transformação das

estruturas e do despertar da nova consciência. Neste sentido, concordamos com Argan

em que o suprematismo comporta um sentido político e revolucionário que reside

exatamente no pensamento plástico112 que consiste em negar o mundo material como

condição necessária à implantação do novo. Um trecho de Argan esclarece este

raciocínio:

“Malevitch é um teórico; não se ocupa da exaltação e da propaganda dos ideais revolucionários, mas da rigorosa formação intelectual das gerações que irão construir o socialismo. A concepção de um mundo sem objetos é, para ele, uma concepção proletária, porque implica a não propriedade das coisas e noções.”113 Nesta perspectiva, o suprematismo, como qualquer outra corrente de vanguarda,

só adquire sentido quando visto como resposta às inquietações vivenciadas pelo artista

enquanto sujeito histórico. Scharf expõe a dimensão histórico-cultural deste

movimento, afirmando que “a intenção de Malevitch era expressar ‘a cultura metálica

do nosso tempo, não por imitação, mas por criação (...) Suas formas elementares

pretendem anular as respostas condicionadas do artista ao seu meio ambiente e criar

novas realidades não menos significativas que as realidades da própria natureza.114.

Aqui, torna-se claro que a arte de Malevitch, na sua condição de signo concebido num

ambiente revolucionário, nega não somente os meios de expressão convencionais e as

formas de representar o mundo, nega, sobretudo, o próprio mundo, de forma que o

espelhar-se na natureza para criar, segue sendo uma ação completamente absurda.

A pintura suprematista, não obstante seja diferente das propostas construtivas,

pode ser vista como a base indispensável à elaboração do ideário construtivista, o qual

111 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p.324. 112 Francastel, Pierre. Op. Cit. 113 ARGAN, G. C. Op. Cit. P.325.

85

fundamentava-se na crença de que um novo mundo devia ser erigido para ocupar a

lacuna que, inevitavelmente, resultaria do efeito liquidador da revolução. O texto de

Malevitch, expõe este ideário de forma espetacular:

“Na arte do suprematismo as formas viverão como todas as formas vivas da natureza. Tais formas anunciam que o homem superou o nível da razão simples e alcançou o nível da razão dupla (razão utilitária e razão intuitiva). O novo realismo pictórico é pictórico justamente porque não é realismo de montanhas, céu, água ....Nossa arte tornou-se nova, não objetiva, pura.”115 Na exposição de 10 de Dezembro de 1915, Malevitch expôs uma série de

pinturas abstratas/geométricas e divulgou pela primeira vez seu sistema suprematista.

Desta forma todo o pensamento concernente a esta arte não objetiva começou a se fazer

presente no debate cultural em torno da criação pictórica. Uma das principais questões

que vieram à tona nesta acalorada discussão refere-se à dicotomia entre criação e

representação. Desde o início do século XX a abordagem representacional vinha sendo

continuamente combatida nos sucessivos movimentos modernos que, gradualmente,

estavam propondo novas atitudes, novos métodos, novos recursos formais, e

questionando a legitimidade da tradição realista.

Entretanto, o estágio da abstração absoluta alcançado pelo suprematismo teve

conotações muito específicas, pois, a partir deste momento, as perspectivas do trabalho

artístico foram transformadas, e criaram-se parâmetros de avaliação e pontos de partida

até então inimagináveis, pois, apesar de terem promovido distorções, fragmentações

das formas de objetos concretos, os precursores do modernismo, como primitivistas e

raionistas, ainda se reportavam ao mundo visível, mesmo que fosse para negá- lo

completamente em suas composições abstratas. Já o suprematismo, ao preconizar o

desaparecimento de todos os artefatos, de todas as estruturas e o triunfo das formas

elementares e racionais, procura desvencilhar a pintura da subalterna tarefa de narrar os

acontecimentos; as formas geométricas, segundo Malevitch, significam a ascensão do

homem sobre a natureza caótica e o fim da subserviência da arte pictórica aos temas

realistas. Tendo sido plasmadas através deste processo de liquefação de todas as coisas,

as formas suprematistas impõem-se como criações independentes, destituídas de

qualquer parentesco direto com a realidade sócio-cultural, pois representam o novo e o

próprio vazio que antecede a criação de algo inédito.

114 SCHARF, Aaron.Op. Cit. P. 115 MALEVITCH, Ksimir. Op. Cit. , p.133.

86

Neste contexto, intensificou-se o debate acerca da criação não objetiva, uma

forma de cirar não referenciada nos objetos e que não implica a síntese de outros estilos

e tendências – como acontecia no raionismo – gravitando mais em direção à análise do

próprio fazer artístico e ao estudo dos materiais aí envolvidos. A definição de Varvara

Stepanova, permite avaliar o sentido dado a esta noção no curso dos movimentos

modernos:

“O estágio posterior ao cubo-futurismo foi revelado pela criação não objetiva; esta não deve ser considerada simplesmente como uma nova tendência pictórica, mas como um visão de mundo que compreende todos os aspectos da arte e da própria vida”116

O reconhecimento da criação não objetiva como visão de mundo representou

uma significativa reconfiguração do mundo da arte. Como ressalta Stepanova, o criar

agora deixara de ser um mero lançamento de inovações estéticas ou especulações

formais e passou a constituir uma nova forma de refletir esteticamente sobre o mundo.

A pintura, então, passou por processo de declínio e acabou perdendo seu antigo status

de principal meio de expressão de inquietações modernas, pois, especulava-se na época

que a pintura não seria um veículo adequado para empreender o trabalho de construção

que a nascente sociedade socialista estava exigindo e, por este motivo, estava

condenada a perecer ou, se continuasse existindo, seria inevitavelmente uma arte

irrelevante.

O suprematismo havia rompido todas as fronteiras da cor e da forma e, com a

série branco sobre branco, o fazer pictural conhecera uma fase de quase inexistência,

chegando assim a uma situação impassível, pois parecia não haver caminhos pelos

quais trilhar quando toda a busca por novas respostas para a arte bidimensional

revelava-se infrutífera. Tudo isto mostrava-se como um implacável vaticínio: a morte

do plano e, por conseguinte, a morte da pintura. Num gesto sintomático do estado

agônico em que estava sucumbindo a arte pictórica, Malevitch abandonou a pintura em

1918 e passou a trabalhar em projetos arquitetônicos em três dimensões, nos quais

aplicava os princípios suprematistas. El Lissitzky, um artista gráfico construtivista, mas

que se identificava com as idéias de Malevitch, também voltou-se para a arquitetura,

dedicando-se à elaboração dos chamados prouns, projetos para o estabelecimento do

novo. Segundo Bowlt, estas atitudes dos sup rematistas, assim como uma série de

116 STEPANOVA, Varvara. Criação não objetiva. In: BOWLT, J. E. Op. Cit., p.141.

87

projetos desenvolvidos por outros artistas, constituem tentativas de transformar a arte

em atividade útil:

“Tanto para Lissitzky, quanto para Malevitch, a disciplina arquitetônica apresentou-se como um veículo evidente para a transferência dos esquemas suprematistas básicos para a vida. Neste aspecto, os chamados prouns, desenhados entre 1919 e 1924, foram de vital importância, uma vez que serviram como pontos intermediários entre as formas bi e tridimensionais (...) Em um contexto mais amplo, os gráficos espaciais de Petr Miturich, as pinturas lineares de Alexander Vesnin e as pinturas monocromáticas de Rodchenko, todas realizadas por volta de 1919, simbolizam o esforço geral para projetar a arte na vida, ou para dar à pintura uma dimensão construtiva.”117

Aqui percebemos a consolidação de uma visão construtiva no domínio da arte,

algo certamente advindo de um processo cultural engendrado pela revolução de 1917,

que abriu novos campos para a atuação do artista e lhe impôs novas exigências.

Contudo, antes de ingressarmos nas questões relativas ao construtivismo e à revolução,

é preciso retroceder às origens deste movimento, só assim será possível evitar uma

análise evolutiva que o coloque como mera derivação das idéias suprematistas, o que

não significa que estejamos negando a confluência destes dois projetos em um dado

momento.

Na verdade, as primeiras experiências de natureza construtiva foram realizadas

por Vladimir Tatlin em 1913. As chamadas pinturas-relevo, idealizadas e executadas

por ele, ainda conservam o espaço bidimensional da pintura, mas introduzem um

elemento novo: “o espaço real como elemento pictórico.”118

Na obra “A Garrafa”(fig.27), Tatlin trabalha com uma diversidade de materiais,

que são agregados ao plano através de um processo sintético, semelhante a assemblage,

estabelecendo um jogo de tensões e semantização a partir das propriedades e atributos

primeiros do material envolvido. Assim, cada estrutura acrescentada não comparece

apenas como elemento visual, já que o que realmente importa não é sua qualidade

aparente, mas a relação que esta cria com o plano; a silhueta da garrafa, por exemplo,

que se apresenta recortada em chapa de metal, não é absolutamente um signo que

remeta a um objeto real, mas antes uma metáfora visual, cuja razão de ser é comunicar

a ausência de um objetivo representacional e, simultaneamente, indicar que a conjunção

de materias é a essência da obra. O espaço real é também introduzido, não por qualquer

processo ilusionístico, mas por estas articulações entre substâncias: o cilindro intercepta

117 BOWLT, J. E, Op. Cit., p. 151/52. 118 GRAY, C. Op. Cit., p.176.

88

a superfície do suporte e também a placa de metal onde está recortado o desenho da

garrafa, gerando um conflito entre duas categorias de espaço (o espaço organizado em

duas e três dimensões) e, ao arruinar a lógica bidimensional, evidencia a independência

das matérias. A obra como um todo pode ser vista como estudo ou análise dos objetos

isoladamente com o propósito de conhecer suas características físicas, sem atentar para

a harmonia do conjunto, donde a aparência canhestra de muitas destas pinturas-relevo.

Posteriormente, o artista eliminou até mesmo o suporte bidimensional, e

começou a trabalhar nos relevos de canto e contra-relevos, estruturas objetuais atadas à

parede por meio de arame. Segundo sua apreciação, foi preciso romper com o suporte

porque este funcionava como barreira, limitando a obra no tempo e no espaço,

tornando-a semelhante a um trabalho representacional que isola um fragmento espaço

temporal e o alça à condição de entidade ideal, extra-terrena. A preocupação central de

Tatlin neste perído (1915, 16), era acabar com esta distinção entre arte e vida e, nestes

termos, uma construção desprovida de suporte estaria relativamente liberta e, portanto,

mais apta a imiscuir-se no mundo real e participar da vida em sociedade, emobra ainda

precisasse da parede para suster-se. Após ter trabalhado com estas construções, Tatlin,

procedeu ao estudo de materiais individualmente, num processo por ele denominado

“cultura de materiais”. Este conceito tem importância crucial para a análise do

construtivismo, pois, uma das principais questões investigadas pelos construtivistas, a

“fatura”, diz respeito às propriedades de superfície, e texturas próprias dos materiais, e

não produzidas pelo homem.

O pensamento construtivo, presente em estágio embrionário já nas primeiras

pinturas-relevo e contra-relevos de Tatlin, bem como na noção de cultura de materiais,

tornar-se- ia a tendência preponderante na vanguarda russa, pelo menos até o início dos

anos 1920. Com a deflagração do processo revolucionário em Fevereiro de 1917, criou-

se um imenso vácuo social e cultural e engendrou-se um estado de coisas propício ao

desenvolvimento do conceito de construção, pois, diante de um país em estado de

anarquia e convulsão social, em que todas as instituições encontravam-se em ruína,

construir tornara-se a tarefa mais urgente, e o construtivismo, neste contexto, não foi

apenas uma movimento novidadeiro, mas, ao contrário, um concepção de mundo e de

arte que, a partir da insureição, participou de uma existência simbiótica com a

ideologia comunista, justamente porque seus propositores, os artistas de vanguarda,

partilhavam das mesmas convicções alimentadas pelos bolcheviques neste período em

que todas as circunstâncias exigiam envolvimento.

89

Embora a anarquia pareça uma condição indesejável para qualquer país, é sem

dúvida um estágio indispensável quando se pretende criar o espaço onde erigir o novo

Estado e as novas instituições sociais. Assim, se quisermos compreender a função

desempenhada pelas artes plásticas durante os três primeiros anos do Estado soviético,

não podemos nos furtar a uma breve análise dos fatos relacionados à queda do czarismo

e à instauração do novo regime em bases muito precárias.

Segundo Adam B. Ulam,119 a revolução de fevereiro de 1917 ficou concentrada

no período de 7 dias, durante os quais instalou-se uma incontrolável inquietação social.

As greves tornaram-se ações generalizadas e corriqueiras em Petrogrado, o que se

expressava no número sempre crescente de trabalhadores parados: de 90.000 em 23 de

fevereiro, para 1.000.000 no dia seguinte. Tais greves, cujos principais motivos eram a

escassez de alimentos e os efeitos da inflação, inspiraram protestos de rua em outros

segmentos da sociedade, protestos estes que foram recebidos com complacência pela

guarnição de Petrogrado, cujos soldados recusaram-se a reprimir os manifestantes. Isto,

de acordo com Ulam, teria sido um catalisador da revolução, pois quando a própria

instituição militar absteve-se de impor a ordem, a revolução adquiriu força implacável,

e evoluiu para a completa destruição do Estado Czarista, tanto que em 02 de março o

Czar Nicolau II renunciou e logo se instituiu um governo provisório, comandado pelo

príncipe L’vov. A partir de então o país vive uma delicada situação política,

caracterizada pela ausência de uma autoridade central que pudesse assumir a difícil

missão de reorganizar aquilo que já não era mais um Estado, na plena acepção da

palavra, mas antes um aglomerado de pequenas células, convivendo de maneira caótica,

cometendo atos que primavam pela insubordinação e arbitrariedade:

“No sentido estrito da palavra, a Rússia deixara de ter, por oito meses, um governo central e uma forma definida de organização estatal. Em seu lugar surgiram diversas autoridades que tentaram arcar com a árdua tarefa de governar um vasto país, alguma vezes trabalhando conjuntamente, em outras com propósitos discordantes, mas perdendo a força gradativamente em face das derrotas crescentes e da anarquia, sendo finalmente absorvidas por elas.”120

Outro historiador da revolução, Marc Ferro, também destaca este inaudito

fenômeno de desobediência civil como sendo uma das reações imediatas da população

à queda da autocracia. Segundo o autor, em todas as cidades do país, e mesmo nas

119 ULAM, Adam, B. Op. Cit. P. 356 e 359. 120 ULAM, Adam, B. Op. Cit. P.356.

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aldeias, os cidadãos estavam organizando-se em sovietes, imputando a si o direito a

uma administração autônoma e revolucionária.121

Em meio a esta complexidade política, dois governos foram formalmente

instituídos: os sovietes dos representantes dos soldados, uma organização que reunia

representantes de todas as fábricas e regimentos, e a Duma, ou governo provisório,

composta por membros dos partidos políticos. Nesta condição de dualidade, o governo

provisório representava a instituição interessada em vencer a desordem social e

preservar uma certa unidade estatal, e os sovietes, a força revolucionária latente, pronta

a dar sequência à ações radicais visando à efetiva construção do socialismo. Porém,

mesmo os sovietes, conquanto fossem constantemente exortados a assumir o poder

político, acreditavam que a ocasião não era propícia, julgando que a revolução de

fevereiro era tão somente uma revolução burguesa, um passo necessário, porém não

definitivo na viagem que conduz ao comunismo.

Contudo, a 18 de abril, Miliukov divulgou uma nota em que anunciava que o

governo provisório iria honrar todos os compromissos de guerra firmados entre o

Estado czarista e os aliados europeus, prevendo mesmo a concessão de garantias e

sanções, que porventura fossem exigidas por estes. Tal decisão violava o princípio de

“paz sem anexações nem contribuições” que os sovietes julgavam ser o decisão ideal

perante assuntos de guerra. Consequentemente, a carta suscitou uma onda de protestos

entre trabalhadores e soldados, culminando na queda de Miliukov e na formação do

governo de coalizão com a participação dos sovietes. Seguiu-se um período de

sucessivas crises, marcado por violentas manifestações de operários, soldados e

marinheiros, que clamavam por “paz, terra e pão”; outra consequência foi a perseguição

e declínio do Partido Bolchevique, ao qual foi atribuída a responsabilidade pelos

acontecimentos de julho.

Diante desta situação de total anarquia, o príncipe L’vov confiou a

reorganização a Kerenski, que instaurou um governo de coalizão burguesa. Porém, o

novo governo não conseguiu arrefecer os ânimos de soldados e marinheiros, que, por

sua vez, promoviam constantes motins e, numa demonstração do espírito de rebeldia

que os animava, exigiam que os sovietes assumissem o poder de fato. Camponeses e

operários reagiram de forma semelhante: os primeiros realizando reforma agrária

autônoma, à revelia das decisões governamentais, e os segundos organizando comitês

de fábrica com amplos poderes sobre assuntos trabalhistas.

121 FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.39.

91

Neste contexto Lênin identificou o momento ideal para a tomada do poder pelos

Bolcheviques e conclamou aos seus confrades que deliberassem neste sentido; estes,

contudo, consideravam precipitada a atitude de Lênin e, a 18 de outubro, Kerenski

publicou texto informando que a luta armada só deveria acontecer após o congresso dos

sovietes. Todavia, já em 23 de outubro, o governo provisório rompeu com o P.V.R.K.,

o comitê revolucionário criado pelos bolcheviques, o qual reuniu-se no Smolny e

elaborou uma estratégia de ataque. Quando a guarda vermelha assumiu o controle sobre

as pontes a ação revolucionária iniciou-se de fato, não encontrando qualquer tipo de

resistência por parte da guarnição de Petrogrado. Assim, o governo perdeu o total

controle da situação e, em 25 de outubro a revolução foi consumada com a tomada do

Palácio de Inverno.

Devido à magnitude dos eventos de outubro, tornou-se hábito pensar a

revolução russa como fenômeno mítico, algo semelhante a um processo iniciático ou

rito de passagem a partir do qual a autocracia fenece e é abruptamente substituída pelo

regime comunista. Os fatos nos revelam, contudo, que existiu um fase transitória, em

que o país teve que lidar com uma atroz guerra civil contra os generais brancos, que

lutavam pela restauração do antigo regime. Este período que se estende até 1921 é a

chamada fase do comunismo de guerra, quando ainda sobrevivem o espírito

revolucionário e os ideais marxistas. Concluído este período de intensas lutas, as

expectativas iniciais são, por assim dizer, frustadas; o antigo projeto de se construir

uma revolução internacional fora preterida em favor de um revolução em um só país,

visto que, em 1918, o governo estabelecera um acordo com a Alemanha renunciando à

propaganda socialista nos territórios ocidentais. Outro fator importante e elucidativo

dos ulteriores desenvolvimentos diz respeito à gestão do governo: a famigerada

ditadura do proletariado transmutou-se em ditadura do Partido Comunista.

Neste contexto permeado de revolução e guerra civil, os artistas de vanguarda

simpatizaram-se com a causa revolucionária, consolidando-se assim como os primeiros

sujeitos criadores de arte que em toda a história tiveram uma participação efetiva em

questões de luta política e social. Como sugerimos anteriormente, esta participação não

se concretizou por meio de representações figuradas, reconhecíveis dos insólitos

acontecimentos, visto que o sentido iconoclasta e o desejo de ruptura com o passado era

tão intenso que não haveria sentido em representar nem mesmo as ruínas do velho

mundo. Tal é o que se pode inferir do Programa-declaração do COMFUT, que dizia:

“um regime comunista exige uma consciência comunista. Todas as formas de vida,

92

moralidade filosofia e arte, devem ser recriadas de acordo com os princípios

comunistas. Sem isso, o desenvolvimento subsequente da revolução é impossível”122

Percebemos que, mesmo no campo da arte, prevalecia uma perspectiva

cosmogônica de mundo, segundo a qual um universo inédito esperava para ser erigido,

mesmo que seus alicerces tivessem que ser plantados sobre as ruínas da Rússia

Cazrista. Fascinados pelas idéias do novo, os artistas de vanguarda empenharam-se por

ser os idealizadores da orbe comunista. Sobre isto Argan diz: “A cidade soviética, deve

ter uma estrutura e uma figura novas. A arte, que não pode mais ser representativa,

pois não há mais valores institucionalizados para representar, será informativa,

visualizará instante por instante a história em ação, estabelecerá um circuito de

comunicação intencional entre os membros da comunidade.”123

Declarando a morte do objeto e advogando a causa da dissolução do mundo

material, o Suprematismo criara os vãos, as ocacidades, onde o conceito de construção

poderia agora vicejar. De fato, em seu texto “Suprematismo em um mundo em

reconstrução”, El Lissitzky, afirma que, após terem sido realizados tantos experimentos

tornava-se “essencial aclarar o sítio para uma nova construção” 124 A tarefa de

eliminar os destroços da velha estética que atava a arte ao universo aristocrático fora

realizada pelos artistas que atingiram o ápice da abstração e conduziram a forma

pictórica ao limiar da inexistência. O próximo passo era construir e, neste aspecto, a

revolução de outubro, com sua natureza libertária, representou o trampolim para a

nova criação, na medida em que criou o campo favorável às tentativas. Inicialmente

houve um desejo de publicizar a arte e levá-la para as ruas, atitude em grande parte

instigada pela própria situação limite em que imergira a arte pictórica, situação esta que

despertou a crença na inutilidade, esgotamento e morte deste meio de expressão que, a

partir deste momento passa a ser severamente julgado como inadequado à nova

realidade. Gray explicita este pensamento que vinha sendo gestado desde 1914, mas

que nasce com a deflagração da revolução:

“Tão ansiosos estavam por se provarem úteis a esta nova sociedade (...) que assumiram a ativa reorganização da vida artística do país. Agora, eles anunciavam, não era o tempo de se dedicar à frívola pintura de quadros – um quadrado de tela (com suas odiosas associações

122 O termo COMFUT é uma aglutinação das palavras “comunista” e “futurista” e designava um programa elaborado em Petrogrado em janeiro de 1919, como um ato de oposição aos futuristas italianos, que na época estavam se associando ao fascismo. 123 ARGAN, G. C. Op. Cit., p. 329. 124 EL LISSITZKY. Suprematismo em um mundo em reconstrução. In: Bowlt. Op. Cit., p. 153.

93

com o sistema burguês) era um meio de comunicação fraco e irrelevante, quando se tinha as ruas para pintar e quando praças e pontes se ofereciam como arena de atividade. ‘Não precisamos de um mausoléu onde obras mortas são adoradas, mas sim de uma fábrica viva do espírito humano – nas ruas, nas ferrovias, nas fábricas, nas oficinas e nas casas dos trabalhadores’, Assim se pronunciou Mayakovsky numa discussão realizada no Palácio de Inverno, em Novembro de 1918”125 No clima de entusiasmo geral desencadeado pela vitória bolchevique, os artistas

abandonaram as atividades pictóricas confinadas em estúdios e promoveram grandes

eventos extra-muros. As datas comemorativas como o 1º de maio e o aniversário da

revolução, converteram-se em ocasiões festivas para onde eles canalizavam toda a sua

energia criadora, ornamentando ruas e praças com formas suprematistas ou construções

futuristas dinâmicas, e organizando peças teatrais com ampla participação popular. Um

belo exemplo destas produções é a reconstituição cênica da tomada do Palácio de

Inverno, levada a efeito por Altman, Punin, e Bogoslavskaya em 1920. Para inocular

realismo na encenação, os organizadores mobilizaram todo um batalhão e

arregimentaram milhares cidadãos de Petrogrado para atuarem como figurantes; um

arco de luz gigante projetava no céu formas abstratas desenhadas por Altman,

conferindo um aspecto futurista à representação. Também nesta peça, os artistas

exercitaram sua verve cômica, representando o exército branco com uma série de

bonecos com a efígie de kerensky. Peças menores, porém de igual importância, foram

realizadas em todo o país, com a participação de Mayakovsky, Meyerhold, Tatlin e

Anenkov. Havia ainda os trens agitacionais, como “O Cossaco Vermelho” ou “A

Estrela Vermelha, que levavam a propaganda da revolução para várias cidades e

aldeias.

Não se deve, entretanto, pensar que os artistas de esquerda, defensores da

revolução, vivessem de forma gloriosa, amena, marchando triunfantes sobre a velha

Rússia, realizando desejos e portando troféus abstratos. Na verdade, qualquer

caracterização idílica do cenário da guerra civil deteriora-se quando confrontado à

nebulosa de fome, doença, racionamento que assombra os anos heróicos. Para Bown126,

o trabalho nas ruas, normalmente preconizado como o arquétipo da arte revolucionária,

era, dentre outras coisas, um meio de subsistência, uma espécie de emprego informal

para garantir a sobrevivência, ainda que precária, num país onde inexistia o mercado de

arte. Neste ambiente hostil, a arte pública é uma das poucas fonte de renda para os

artistas. Os cartazes produzidos por Maykovsky para Agência Telegráfica Russa

125 GRAY, Op. Cit., p. 219-20.

94

(ROSTA), também incluem-se nesta categoria de arte pública, pois foram os primeiros,

e certamente, mais eficazes meios de propagação da ideologia bolchevique. Definidos

como janelas, esses cartazes eram produzidos em ritmo alucinante, em total

sincronismo com a azáfama que grassava toda o país. Talvez por terem sido concebidos

em condições tão adversas, e com tal velocidade, esses cartazes-janelas, constituam a

mais eloquente resposta à revolução:

“As janelas consistiam numa série de vinhetas alinhadas como na prancha de um contador de histórias, com dizeres lacônicos e incisivos. Era preciso pintar e versificar os acontecimentos voando; recolhendo num relampejar uma notícia do front, um decreto, uma frase de Lênin.”127 Paralelamente a este processo de lutas e agitação, começam a se impor novas

preocupações concernentes à estruturação do país sob condições comunistas. Assim,

em 1918, foi criado o IZO, departamento de artes visuais do NARKOMPROS

(Comissariado para instrução pública). Este departamento era responsável pela

organização dos fazeres artísticos em geral e, nos primeiros anos do governo soviético,

foi ocupado preponderantemente por artistas de esquerda, os mesmos que haviam

aderido à causa revolucionária.

Nesta mesma época o conceito de construção emergiu como a principal diretriz

para a criação. Segundo Briony Fer, este conceito influenciou o pensamento artístico no

entre-guerras, “porque estava associado a uma cultura racionalizada e moderna.”128 A

introdução do debate acerca do significado da construção instilou no fazer artístico

sentidos utililaristas. Assim, próprios construtivistas gravitaram em direção ao trabalho

fabril e rejeitaram o designativo artista, já que, no atual contexto, sua função deveria ser

a produção de objetos úteis à sociedade socialista e proletária. Como sugere Scharf, “o

construtivismo não pretendia ser um estilo abstrato em arte, nem mesmo uma arte per

se. Em seu âmago era, acima de tudo, a expressão de uma convicção profundamente

motivada de que o artista podia contribuir para suprir as necessidades físicas e

intelectuais da sociedade como um todo, relacionando-se diretamente com a produção

de máquinas, com a engenharia arquitetônica e com os meios gráficos e fotográficos

de comunicação.”129

126 BOWN, Op. Cit., p. 46. 127 RIPELLINO, A. M. Maiakovski e o Teatro de Vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 92,93. 128 FER, Briony. A Linguagem da Construção. In: Realismo, Racionalismo, Surrealismo : A arte do entre guerras. São Paulo: Cozac & Naify, 1998, p.88. 129 SCHARF, Aaron. Construtivismo. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna, p.116.

95

Visando ingressar neste trabalho produtivo e responder aos imperativos sociais,

os artistas de vanguarda dedicaram-se aos chamados experimentos de laboratório, que

consistiam de pesquisas de materiais com a finalidade de elaborar projetos de objetos

de uso diário, equipamentos e edificações, necessários à sustentação do Estado. Muitos

artefatos, cuja linha de pesquisa ancorava-se no conceito de cultura de materiais de

Tatlin, nunca ultrapassaram a etapa do protótipo, o que indica o caráter utópico de

muitas destas construções. Os exemplos mais notáveis destes projetos abortados são a

máquina voadora Letatlin – uma espécie de epônimo formado pela junção da palavra

voar com o próprio nome de Tatlin – e o Monumento à Terceira Internacional.(fig.29)

O trabalho de laboratório foi, desde o início, apoiado pelo governo e não

poderia ser diferente, pois, com a eliminação do mercado de arte, não existiam mais

compradores potenciais para adquirir as obras recém produzidas e garantir assim a

continuidade do trabalho. Nesta circunstâncias, o governo surge como o principal

financiador da arte, e os artistas de esquerda, em sua maioria apologistas do socialismo,

assumiram posições importantes dentro do IZO, o que lhes propiciava certos privilégios

e uma relativa liberdade para a experimentação. Com o engendramento destes novos

campos de trabalho e a fixação de objetivos produtivistas, a arte pictórica vai,

paulatinamente perdendo espaço.

Em 1920 realizou-se em Moscou a exposição OBMOKHU, onde foram

exibidos os resultados de três anos de experiências realizadas pelos alunos do

VKHUTEMAS. Aqui, segundo Fer,130 estão explícitas as ambiguidades e incoerências

que ainda permeavam esta inaudita categoria de trabalho de laboratório, pois, embora

negassem a condição artística de suas construções autoportantes, apresentavam-nas

como objetos de arte, algumas assentes em suportes terrestres, outras supensas ou

presas à parede.

Incoerências conceituais à parte, um fato inegável é que o trabalho de

laboratório em sua vertente utilitarista, continuou desenvolvendo-se em detrimento das

perspectivas puramente estéticas. Em 1921, este trabalho foi definitivamente

incorporado à indústria e alguns artistas empregaram-se de fato nas fábricas. Esse é o

caso, por exemplo, de Varvara Stepanova e Liubov Popova que, de 1922 à 1924,

trabalharam na primeira fábrica de tecidos estatal desenhando estampas. Os padrões

decorativos empregados nestas estampas eram predominantemente geométricos e

lineares e, segundo Stepanova, eram inspirados na arte popular, rica em motivos deste

96

gênero. Alexander Rodchenko também empreendeu diversos projetos utilitários,

incluindo, desenho de uniformes para operários, design de móveis, roupas, produção de

cartazes, além de projetar uma lareira, que fornecia o máximo de calor, consumindo

uma mínimo de combustível.

A ascensão da perspectiva da arte produção causou uma série de

desentendimentos no interior do INKHUK – Instituto de Cultura Artística – que então

ramificou-se em duas facções antagônicas. De um lado, estavam aqueles que, como

Malevitch, Kandinsky e os irmão Pevsner, sustentavam que a arte era uma atividade

essencialmente espiritual , e que, portanto, não devia servir a propósitos utilitários, nem

tampouco diluir-se na atmosfera pragmática do cotidiano fabril; de outro lado, estavam

os defensores da arte-produção, Tatlin, Rodchenko, que concediam primazia ao

trabalho industrial e postulavam o desaparecimento da arte e dos artistas, já que na

sociedade comunista em construção, a arte deveria ser substituída pelo trabalho útil

prestado ao proletariado, e o artista, metamorfosear-se em engenheiro, o profissional

que julgavam ser o mais útil ao país neste período. A partir desta dissidência, os

contumazes apologistas da arte abandonaram o instituto e o país: Kandinsky ingressou

na Bauhaus, a escola de arquitetura e design alemão fundada por Walter Gropius, e os

irmãos Pevsner partiram para a América.

Neste contexto, o simples ato de desenhar livremente com o lápis era julgado

como gesto inferior ao desenho técnico feito por instrumentos. A consequência

imediata deste processo foi a negação final da pintura por parte de ideólogos

construtivistas como Alexei Gan que, em 1922, escreveu: “E quanto mais distintamente

as formas motrizes da realidade social confrontam nossa consciência, quanto mais

definidas se tornam suas formas sócio-políticas, mais os mestres do labor artístico são

confrontados com a tarefa de romper com sua atividade especulativa (de arte) e

encontrar o caminho da ação concreta, empregando seu conhecimento e habilidade

pela causa do trabalho vivo e útil,”131

Ao assumir uma orientação basicamente materialista, os partidários da arte-

produção harmonizaram-se com o comunismo e com o ideário marxista. Porém, com a

implantação da NEP (Nova Política Econômica), em 1921, os bolcheviques permitiram

a inclusão de uma série de práticas capitalistas, que supostamente visavam ao

desenvolvimento das forças produtivas, algo então visto como crucial à consolidação de

130 FER, B. Op. Cit. P. 96. 131 GAN, Alexei. Constructivism (Extracts). In: BOWLT, J. E. Op. Cit., p. 223.

97

um socialismo sustentável. Esta política, por muitos julgada como pérfida manobra

bolchevique que violava os compromissos firmados com o povo e com a revolução,

contribuiu para o declínio do construtivismo e da vanguarda em geral, pois, diante dos

desafios prementes lançados pela intrusa economia capitalista, não havia espaço para

utopias .

Para ocupar as lacunas deixadas pelos declinantes vanguardistas, tendências

realistas emergem no início dos anos 20, inaugurando um novo e longo ciclo na arte

russa, quando as pesquisas formais são definitivamente arquivadas em favor de

abordagens acadêmicas e propagandísticas. Neste teatro a declaração da revista LEF

(1923) sobrevive como o último e agônico grito de um projeto vanguardista conduzido

por sujeitos que, por força de seu radicalismo, negaram a própria arte, mas não

souberam responder às invectivas do realismo:

“Não foi por acaso que escolhemos o 1º de Maio como o dia do nosso chamado: Só podemos ver a aurora da arte futura em conjunção com a Revolução dos trabalhadores. Nós, que por cinco anos trabalhamos em uma terra de revoluções, sabemos que somente Outubro nos deu novas e tremendas idéias que estão agora exigindo nova organização artística; sabemos que a Revolução de Outubro, que libertou a arte da escravidão burguesa, concedeu a verdadeira liberdade à arte. Abaixo as fronteiras de países e estúdios! Abaixo os monges da arte direitista! Longa vida à frente dos esquerdistas! Longa vida à arte da Revolução Proletária !”132

132 LEF – Declaracion. Comrades. Organizers of Life. In: Bowlt, p. 202

98

CAPÍTULO III: REALISMO NO SÉCULO XX – A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE PROLETÁRIA

Com o fim da guerra civil, em 1921, os bolcheviques reavaliaram seus

posicionamentos sobre a questão do socialismo. Agora, diante de um vasto país em

pleno estado de convulsão social e com uma economia depauperada, a principal meta

fixada pelas lideranças do Partido era a construção de um aparelho institucional

indispensável a qualquer Estado. O problema é que esta mudança de perspectiva

implicava diretamente o abandono de princípios revolucionários, agora tidos como

meros devaneios inviáveis. No início do século XX, parece ter havido mesmo uma

dicotomia entre os ideais anárquicos, próprios de um período de lutas, e uma vontade

de organização que necessariamente se impõe à desordem e oblitera toda uma trajetória

de utopias, que embora estivessem distantes do modelo pragmático, constituíram, sem

dúvida, ações importantes dentro do projeto de gestação do novo governo.

O historiador Adam B. Ulam comenta as atitudes ambivalentes do próprio Lênin

quando apresentado às tarefas impreteríveis do governar a grande nação arruinada pela

guerra; o líder “semi anarquista” – usando uma expressão do autor – transformara-se

em entusiasta da indústria, da tecnologia e da ordem, que reprovava sua própria

conduta anterior, por ele mesmo rotulada como “aquelas tolices do período do Smolny,

a fase da euforia e do caos.”133 Para Ulam, essa exaltação das qualidades da máquina é

algo intrínseco ao pensamento leninista, uma característica que, se permanecera latente

durante o árduo período de militância política, neste momento aflorava com

impressionante nitidez. Tal perspectiva passa a ser o parâmetro para todas as ações

administrativas e é com base nela que serão traçadas as diretrizes para a atividade do

Partido, que a partir de então passa a ser concebido como máquina.

Este “desvio de atitude” experimentado pelo líder bolchevique teve

consequências muito amplas, que ultrapassam o campo das divergências partidárias. O

que aconteceu de fato foi um recrudescimento do processo de burocratização, levando à

adoção de medidas coercitivas e intolerantes em relação a qualquer suposto adversário

político. E o fato de que tudo isto tenha ocorrido em um ambiente teoricamente

pacífico, apenas revela o caráter paradoxal do recém-criado governo soviético, um

governo que, em tempos críticos e conflituosos demonstrou relativa liberalidade

complacência para com mencheviques e socialistas revolucionários, ao passo que num

99

período de paz que seguiu à guerra civil, intensificou a opressão, encarcerando vários

integrantes dos partidos oposicionistas.

O problema da participação do operariado no governo foi tratado com

intransigência semelhante. O tão propalado discurso democrático acerca da ditadura do

proletariado revela-se falacioso quando analisado à luz das novas diretivas do Partido

relativas à questão. Em 1921, Lênin foi categórico ao afirmar que, na sua opinião, os

trabalhadores não estavam qualificados para as tarefas administrativas e julgou

fantasiosas as convicções daqueles que – como ele no passado – faziam apologia de

um governo proletário.

Está claro que tais medidas não irromperam subitamente; na verdade elas

respondem a um desejo de centralização do poder, que vinha se insinuando no interior

do Partido desde 1918 e cujas manifestações mais evidentes encontra-se nas teses de

Trotsky sobre a disciplina fabril e a militarização do trabalho. Em seus

pronunciamentos sobre os deveres da classe trabalhadora Trotsky exibe uma

compleição assustadoramente tirânica, ao tratar o trabalho como atividade compulsória

e mesmo punitiva, dizendo que “as massas trabalhadoras (...) não podem vaguear

através da Rússia. Devem ser enviadas para aqui e para ali, nomeadas, comandadas,

exatamente como soldados. O trabalho obrigatório deve atingir sua maior intensidade

durante a transição do capitalismo para o socialismo. É preciso formar patrulhas

punitivas e por em campos de concentração os que desertam do trabalho”134

Esta opinião de Trotsky, proferida logo no início do período heróico, tem certas

analogias com aquele sentimento de descrença e animosidade em relação ao operário e

ao camponês, manifestado por alguns membros influentes do Partido um ano após a

revolução. Muitos políticos e até mesmo intelectuais, como Gorki, censuravam o

trabalhador por sua inércia e anarquia, supostamente atávicas, que faziam dele um

indivíduo sempre propenso à insubordinação e à violência e, portanto, não muito

compatível com as funções de governo. Gorki chegou ao ponto de dizer que o homem

comum, às vezes comportava-se como um facínora, capaz de uma crueldade ímpar e

inaceitável até mesmo para os padrões bolcheviques.135

É exatamente neste ambiente hostil à classe operária que começam a se

desenvolver tendências pictóricas de teor prolerário. Quando todas as argumentações

133 LÊNIN. Apud: ULAM, A. B. Op. Cit. P.526. 134 TROTSKY. Citado em nota histórica elaborada para a tradução brasileira de “A Oposição Operária” de Alexandra Kollontai. São Paulo: Global Editora, 1980. 135 ULAM, P. 517.

100

pioneiras em prol da ditadura do proletariado volatilizavam-se sob o impacto da

burocratização, e todos os antigos discursos pareciam converter-se em anacrônicos

sofismas, grupos como OST (Sociedade de Pintores de Cavalete) e AKRR (Associação

de Artistas da Rússia Revolucionária), conquistaram grande prestígio junto ao Estado,

realizando grandes exposições temáticas; uma produção em grande parte adquirida

pelos órgãos governamentais.

O fato de que estes artistas tenham se auto- intitulado realistas e tenham feito

incursões à fábricas para, supostamente, captar a realidade fabril e, ainda assim, tenham

produzido obras que agradassem os dirigentes do partido, revela, uma daquelas

contradições tão características da arte soviética. O que se poderia supor, a priori, é que

o termo realismo era impróprio para definir sua obra, porquanto, se tivessem vertido

para a tela a realidade das fábricas, certamente teriam colidido com a determinações

disciplinarizantes dos bolcheviques, pois o ambiente na indústria estava prenhe de

insatisfação e conflitos de toda ordem e, em hipótese alguma, apresentava a atmosfera

positiva e ordeira que frequentemente domina as telas destes realistas. Sabemos que

neste período os bolcheviques sepultaram o “comunismo em ação” – expressão

cunhada por Ulam – e inciaram o trabalho de consolidação do socialismo sobre bases

capitalistas, instituindo a gestão individual, aplicando o sistema taylorista de gerência

científica e introduzindo práticas capitalistas com a NEP. Isto despertou a ira da

oposição operária, que denunciou a usurpação do poder ao povo, as precárias condições

de trabalho e a insignificância salarial. Por estes atos, os mentores intelectuais da

Oposição, Alexandra Kollontai e Shlyapnikov, foram considerados indivíduos

perniciosos e inimigos do comunismo.

Todos estes acontecimentos, que parecem ser uma série de aberrações para um

país socialista, provavelmente criaram um campo explosivo no interior da indústria que

não corresponde à visões idealizadas presentes nas pinturas da AKRR. Por esta razão,

somos impelidos num primeiro momento a rotular tais pinturas como propaganda

ideológica destituída de valor artístico. Porém, urge salientar que qualquer apreciação

do realismo soviético, exige a discussão de uma questão nevrálgica, qual seja, a

distinção existente entre realismo e realidade. Assim, antes de iniciarmos a análise das

obras é necessário regressar à origens da concepção proletária e investigar certos

aspectos cruciais da mesma como o conceito de “novo homem” socialista que, segundo

Bown, é um arquétipo de toda a arte figurativa soviética produzida a partir dos anos 20.

101

Na Rússia pós revolucionária as noções de arte e cultura proletária apresentaram

uma natureza elástica e indefinida pois, frequentemente foram apropriadas por grupos

tão díspares como realistas e futuristas que, de diferentes maneiras, consideravam-se os

representantes do povo ou materializadores da vontade coletiva. Por um lado, os artistas

de esquerda, vanguardistas de um modo geral e construtivistas em particular,

reivindicavam um parentesco, uma ligação congênita de sua arte com o marximo e com

o sistema socialista implantado pelos bolcheviques. Eles reiteravam em suas

declarações e manifestos que toda a pesquisa estética da esquerda, vulgarmente

definida como formalismo, era, na verdade, um sistema indelevelmente sintonizado

com os princípios materialistas, já que a arte assim produzida harmonizava-se com o

preceito marxista segundo o qual “o meio determina a consciência”. A forma, afirmava

Punin, “é um dado concreto, não susceptível à revolução individual e anárquica (...); a

forma é apenas o fator objetivo da época.” 136

Os futuristas acreditavam que adotando uma tal postura diante do fenômeno

estético estavam inscrevendo a pintura abstrata que realizavam na categoria de arte

coletiva, tanto que Punin a definiu como “materialismo pictórico”, e Altman, tecendo

uma analogia ainda mais enfática entre a construção pictórica e a estrutura social,

postulou que a pintura vanguardista era essencialmente coletiva em sua composição.

Numa explanação metafórica deste raciocínio, Altman diz: “Se você retirar qualquer

parte de uma pintura futurista, este fragmento, visto isoladamente, não terá

significado, pois, toda e qualquer parte de uma pintura futurista só é significativa

devido à sua existência compartilhada com todas as outras partes; somente juntas elas

adquirem sentido (...) Uma obra futurista vive uma existência coletiva, sustentada pelo

mesmo princípio que regula a criatividade do proletriado” 137

Por outro lado, os realistas portavam-se como verdadeiros antropólogos

urbanos, cumprindo o nobre trabalho social de registrar o cotidiano e os costumes da

classe emergente. Afirmavam que a sua era a verdadeira e única arte proletária, a única

capaz de comunicar algo ao operário, em função de sua linguagem acessível e

inteligível por uma massa de cidadãos leigos em matéria de arte e, de qualquer forma,

pouco interessados em inovações estéticas. Não é relevante discutir aqui a coerência de

tais argumentações, mas devemos atentar para o fato de que a defesa da causa proletária

136 PUNIN, Ivan. Apud: Bown, p. 49. 137 ALTMAN. Apud: Bown, p. 48.

102

não era o apanágio de qualquer destas tendências principais, já que ambas creditavam-

se qualidades proletárias, embora usando métodos distintos.

Para além de toda esta polêmica germinada entre futuristas e realistas e das

intermináveis discussões que emergem das respectivas e conflitantes apropriações do

epíteto “proletário”, é preciso dizer que a gênese do conceito encontra-se num período

bem anterior a este contexto extremamente contraditório que nasce com os anos 20. A

primeira definição, formulada por Bogdanov no início do século XIX, consistia

basicamente de dois princípios: a independência da cultura e da arte produzidas pelo

proletário e a função organizadora da arte.138 Bogdanov acreditava que a arte proletária

devia ser uma criação espontânea, ou seja, devia realizar-se sem qualquer intervenção

do Estado ou da inteligência; os operários, os novos agentes sociais, precisavam estar

libertos de qualquer controle ou coerção para que pudessem desenvolver o seu

potencial criativo, expressar as inquietações próprias de sua classe e construir formas

de arte compatíveis com sua realidade.

Uma vez materializada, esta arte genuinamente proletária teria o poder de

organizar os pensamentos de cada integrante do grupo social, preservando os laços

culturais, a solidariedade e mantendo vivo o espírito coletivo que, nesta concepção

utópica, era indispensável a manutenção do país em bases socialistas. A teoria de

Bogdanov foi refutada pela maioria dos marxistas ortodoxos – inclusive Lênin e

Plekhanov – que consideravam-na uma postura desviante em relação aos fundamentos

estritamente materialistas apregoados pelos partidários do marxismo vulgar. É

significativo que esta idéia de um proletariado soberano e independente tenha sido

questionada, mesmo antes da revolução. Isto indica que a ditadura do proletariado

talvez nunca tenha sido amplamente aceita.

Já a questão da imagem do novo homem soviético estava ancorada no sistema

filosófico denominado empíreo-criticismo, promovido por Ernst Mach e Richard

Avenarius. Segundo esta filosofia, o mundo era “um complexo de sensações

interconectadas”139, e o corpo humano, concebido como máquina, funcionava a partir

de um princípio biomecânico, onde o fator essencial na determinação do bom ou mal

desempenho reside na economia de energia. Lunacharski, influenciado por estas idéias

empíreo-criticistas e pela filosofia nietzscheana acerca do super-homem, desenvolveu

sua reflexão sobre a natureza biomecânica do homem como sendo a essência da

138 Ver: Bown, p.p. 33-5. 139 Ibidem, p. 29.

103

estética. Este indivíduo ideal, que seria moldado por hábitos salutares como o trabalho

e a prática desportiva, teria o corpo são e esteticamente perfeito, pois estas atividades

físicas, desde que praticadas com disciplina e persistência, teriam o poder de produzir

“afecções” positivas no corpo do próprio homem e daquele que o visualiza, uma vez

que qualquer efeito plástico ou orgânico era uma resultante dos processos físicos aos

quais o corpo é submetido.

Nesta perspectiva higienista e positiva está embutida a estetização do corpo

humano e a fixação de padrões de força e beleza que povoam o imaginário de artistas e

estetas neste período paradoxalmente materialista e idealista. Uma semelhante

estetização de tipos humanos teve conotações muito peculiares na Alemanha nazista,

onde o propósito de se isolar uma raça supostamente “pura” foi usado como a espúria

justificativa para limpeza étnica promovida por Hitler. Na Rússia soviética as

implicações desta idealização do homem foram sobretudo de ordem estética, e o novo

indivíduo soviético – ou, para ser mais exato, sua projeção – é uma constante presença

arquetípica, constituindo a matéria básica de composições realistas produzidas a partir

dos anos de 1920.

Apesar de Lênin ter contestado as teorias de Bogdanov e Lunacharski, estas

tiveram repercussão favorável no início do governo bolchevique. Prova disso é o fato

de que no início da década de 1920, os proletkults, organizações de cultura proletária

idealizadas por estes intelectuais, estavam em pleno desenvolvimento, com unidaddes

espalhadas pelas mais longínquas aldeias da Rússia. Quantias vultuosas eram

repassadas a estas instituições que, em pouco tempo, conquistaram enorme prestígio e

alcance social, de forma que Lênin, embora ainda refutasse a tese da independência dos

proletkults, foi compelido a aquiescer e tolerar um projeto que, pelos menos

teoricamente, estava fomentando uma cultura proletária em bases marxistas.

Em pouco tempo, porém, toda esta conjuntura foi alterada, pois a questão da

independência, tão reiteradamente sustentada por Bogdanov, começara a colidir com a

política do Partido, o qual, estando em processo de crescente burocratização, procurava

centralizar todas as decisões. O resultado foi que o proletkult acabou por ser submetido

à autoridade do Narkompros, que determinava que qualquer movimento visando à

promoção de arte e cultura devia necessariamente abandonar a almejada independência

e adequar-se à hierarquia.140

140 Ibidem, pp. 50-3.

104

Também na década de 20, alguns críticos começaram a impugnar a “ditadura”

de esquerda nas artes. Enquanto Punin qualificava publicamente os realistas como

pessoas desprovidas de qualquer talento, Aleksei Fidorov, Abram Efros e Dimitri

Melnikov associavam a pintura abstrata à cultura burguesa, acusando a total ausência

de criatividade das imagens geométricas de Malevitch que, segundo Efros, eram

simplesmente “ilustrações de teorias desprovidas de sentido.”141

Bown afirma que esta nova linha de pensamento professada pelos críticos de

tendência realista conseguiu harmonizar-se melhor com a ideologia bolchevique do que

as teorias formalistas da esquerda. Em apoio a esta sua inferência, o autor faz uma

asserção a nosso ver improcedente: “Está claro que os teóricos da própria esquerda

percebiam que a pintura abstrata não era o estilo ideal para desenvolver a arte do

comunismo; não somente pelo fato de que a pintura abstrata antecedia a revolução,

mas também porque a relação entre abstração e comunismo não era específica ou

orgânica o suficiente.” 142 Cremos que o fato de o movimento de pintura abstrata ter

surgido numa fase pré-revolucionária não invalida o compromisso de seus adeptos com

o comunismo, até porque, conforme afirmamos no capítulo II, as atitudes

vanguardistas, com tudo o que tinham de transgressor e visionário, eram as belas e

eloquentes expressões da vontade revolucionária e, por extensão, de um projeto

comunista. Além disso, devemos reconhecer que a relação arte/comunismo na Rússia

pós-revolucionária é assaz complicada e que, para avaliá- la, é preciso considerar os

problemas específicos do conceito de comunismo quando aplicado ao país.

Em 1918, foi instituído o plano de propaganda monumental, o qual representa

todo o esforço bolchevique em propagar sua ideologia. Em sua vertente estética esse

plano simbolizou a eterna paixão dos russos pela grandiosidade, pelas enormes

edificações e monumentos e esculturas descomunais, uma característica que tornar-se-

ia muito proeminente nos governos totalitários instaurados nos anos 30 na Rússia e na

Alemanha. A ideía era que as cidades soviéticas fossem reconfiguradas a partir da

substituição de toda a estatuária pública e de todos os templos antigos por novas e

extraordinárias estruturas monumentais. O crítico de arte Frich143, discorrendo sobre a

questão da propaganda, afirma que espalhar obras gigantescas e primorosas pelos

logradouros públicos era um excelente expediente para estetizar a cidade e, ao mesmo

141 EFROS. Apud: Bown, p.53. 142 BOWN, P. 143 Ibidem, p.54.

105

tempo, inscrever a arte na pauta dos assuntos cotidianos. Para fundamentar sua asserção

ele arrola como paradígmas de elevada beleza a cidade grega e a cidade medieval: a

primeira, por seus magníficos templos e estátuas, cuja espantosa proporção e perfeita

anatomia, aproximavam-se de uma idéia de sublime; a segunda, por suas catedrais

ornadas com pinturas parietais e vitrais em motivos sacros. Em ambos os casos o crítico

identifica situações ideais, em que a arte constituía uma fazer intrínseco e indispensável

à vida urbana.

A julgar pelos exemplos escolhidos, constatamos uma tendência à exaltação das

construções sólidas, duradouras, algo que permanecesse e marcasse a triunfante era

comunista. Tal perspectiva estava em perfeita antítese com a visão iconoclasta

professada pelos futuristas, que balizaram sua participação na “construção” do

socialismo com obras efêmeras e imprecisas quanto a sua natureza social, como

efêmera era a revolução, a chama fugidia que os levava à terra dos experimentos

sempre novos.

Ainda que nos seu primórdios o plano não tenha estabelecido normas

específicas para a criação artística, ele parece ter alertado as lideranças partidárias para

as potencialidades propagandísticas da arte, visto que, em 1919, durante o 8º Congresso

do Partido, os conferencistas expuseram uma visão de arte extremamente normativa,

exigindo uma estética figurativa que se adequasse aos seus propósitos. Num fragmento

de discurso proferido na ocasião verificamos como era explícito esse aliciamento de

artistas para o trabalho de propaganda:

“O cinema, o teatro, os concertos, as exposições e todas as formas de arte, na maneira como estão penetrando o interior do país – e todo esforço deve se feito neste sentido – devem ser usadas para a propaganda comunista (...) tanto por seu conteúdo, quanto pela associação deste com aulas e reuniões”144

Tavez por esta determinação dos bolcheviques em converter a arte em veículo

disseminador de ideologia, os pronunciamentos de vários intelectuais tenham sido tão

enfáticos em ressaltar a primazia do conteúdo sobre a forma. Este esquema simplista,

que está na base do programa político que instituiu o realismo socialista, vulgarizou-se

de uma tal forma que passou a figurar em todos os discursos relacionados à política das

artes no estado soviético. Este estado de coisas mostrava-se deveras convidativo à arte

realista e, respondendo aos apelos dos líderes políticos, pintores tradicionais

144 Ibidem, p.54.

106

começaram a produzir todo tipo de pintura figurativa, desde cenas da guerra civil a

retratos de Lênin. É claro que tudo isto era constantemente fomentado pelo próprio

governo, que chegou a organizar um concurso sobre o tema “Lênin e demonstração de

Brodski”.145

As primeiras obras realistas surgiram como resposta a estes apelos

propagandistas. Por um lado, havia uma crescente demanda por imagens promocionais,

isto é, por pinturas figurativas enaltecendo os heróis da revolução. Por outro lado, havia

artistas que procuravam representar a carnificina e os fatos terrificantes inerentes aos

sucessos bélicos. Não existia nesta época nenhuma concepção formulada de realismo;

as obras que estavam surgindo eram fruto de ações isoladas, empreendidas num

contexto variegado onde ainda se incentivava uma certa pluralidade de tendências e

onde a arte realista não estava presa a uma concepção monolítica e consensual como

viria a acontecer pouco tempo depois.

Contudo, se as pinturas efetivamente produzidas no início dos anos 20 não

trazem muitos indícios de uma orientação política ou de uma preocupação ideológica, o

mesmo não se pode dizer das teorias promovidas pelos críticos simpatizantes da pintura

figurativa. Adeptos da perspectiva bogadanoviana segundo a qual a arte tem como

função organizar a consciência coletiva, esses teóricos exaltavam as potencialidades

propagandísticas das imagens referenciadas no mundo real, evidenciando o poder de

persuasão próprio de tais imagens. Numa fala de Sidorov, transparece a crença um

pouco tendenciosa de que a arte figurativa constituía um poderoso mecanismo através

do qual inocular novos valores na mente das pessoas comuns e realizar uma espécie de

doutrinação:

“Na arte há um enorme poder que não foi usado anteriormente: o poder de influenciar nossa vontade (...) Ela age diretamente sobre nós (...) Na arte somos apresentados diretamente a uma imagem viva, capaz de incitar nossa consciência. Enquanto a ciência prova, apelando à razão, a arte ‘mostra’ suas verdades, agindo sobre nossos sentidos. Este é o princípio do poder organizador da arte, que somente agora começamos discutir de forma decisiva e consciente.”146 Inferimos que, a partir do delineamento deste obejtivos francamente

propagandísticos, começa a tomar vulto aquela propalada alegação de que a arte

vanguardista era incompreensível para as massas “incultas”. Dentro desta lógica

estreita, que confere um poder quase exortativo à imagem, a forma abstrata nada mais

145 Ibidem, p. 56. 146 SIDOROV. Apud: Bown, M.C. Op. Cit. P.60;

107

era que um signo anódino, totalmente inadequado para transmitir qualquer mensagem,

dada a sua semântica peculiar, que não admite relações de correspondência entre as

formas pictóricas e as formas do mundo concreto. Somente por esta via podemos

entender os anátemas desferidos contra a arte de vanguarda, pois, a argumentação de

que a pintura abstrato-geométrica era incompreensível é facilmente refutável, posto que

insuficiente para elucidar as causas de uma hipotética rejeição popular a tais pinturas,

tendo em vista que a fruição de uma obra de arte é um processo primeiramente estético

e que, só posteriormente poderá ter implicações sociais. Neste sentido, apenas quando

se atrela a criação a propósitos propagandísticos, é que a pintura realista pode ter maior

relevância social do que o teria a pintura abstrata.

Esta polarização entre estéticas vanguardistas e tradicionais, que se

engalfinhavam em torno da figura central do proletariado é, de fato, um dos

componentes essenciais da ascensão do realismo no século XX. Por esta razão, o

entendimento do lugar social do realismo pictórico novecentista, requer uma análise

ponderada dos interesses de ambas as facções, pois sabemos que neste desejo de auto-

identificação com a vida proletária subsistem uma série de questões políticas que, por

seu caráter intrincado, invalidam toda análise unilateral que busque promover o

realismo como arte genuinamente proletária em detrimento de outras correntes de

vanguarda que reivindicavam o mesmo qualificativo. O ensaio de Melnikov acerca de

uma crítica ao Monumento à Terceira Internacional, de Tatlin, demonstra como nessa

época a rivalidade imediata entre as duas vertentes principais da crítica de arte, se

sobrepunha ao exame propriamente artístico das contribuições de cada uma delas à

construção de uma cultura proletária, obliterando as razões estéticas que os levaram a

defender seus pontos de vista:

“O proletariado precisa de um monumento que apresente uma imagem real e que tenha um poder organizador direto sobre as grandes massas, sendo, deste modo, compreensível por estas (...) Este projeto apenas revela o quanto o cubista Tatlin entende a Terceira Internacional, e que não se deve permitir que os cubistas assumam tarefas tão grandiosas. Eles (os cubistas) e o proletariado falam idiomas diferentes,” 147 Assim, percebemos que o terreno onde estavam nascendo as novas concepções

de realismo era ainda movediço, irregular. Na verdade, definir arte realista no período

pós revolucionário tornou-se uma tarefa muito difícil, pois, diante de tantas

transformações estéticas perpetradas num passado recente, a pintura realista, construída

147 Melnikov. Apud: Bown, p.60.

108

à maneira clássica, parecia ser tão somente uma alienígena ou, quando muito, uma

espécie refratária que lograra resistir aos anos niilistas e que agora tentava ocupar as

lacunas que começavam a surgir no panteão esquerdista. Reconhecemos, porém, a

impropriedade deste pensamento, e acreditamos que o problema da conceituação não

ponde ser simplesmente evitado, principalmente se levarmos em conta o escopo desta

pesquisa, onde, desde o início, temos investigado como são construídas as

representações da história no âmbito da arte. Assim, antes de proceder ao estudo dos

principais grupos realistas criados nos anos 20, é preciso abrir um parêntese e expor

sucintamente o debate suscitado pelo realismo, para que seja possível situar as

tendências figurativas russas no interior do seu próprio contexto cultural e resgatar a

complexidade frequentemente negligenciadas.

No caso da Rússia pós revolucionária, a relação entre estética e história é

especialmente problemática, visto ser forjada através de um jogo de tensões e

incongruências que turvam a visão e não permitem discernir os elos que ligam ambos

os universos. O primeiro complicador está alojado na própria noção de Estado

proletário. Sabendo que a ditadura do proletariado foi apenas uma utopia, fustigada no

devido tempo pela força descomunal da burocracia, concluiríamos a priori que toda e

qualquer arte que representasse a vida na fábrica como algo positivo e, ainda assim, se

declarasse realista, estaria na verdade produzindo ficção e desviando-se, por

conseguinte dos seus próprios princípios. Porém, tal raciocínio só seria procedente se

circunscrevêssemos o conceito de realismo ao critério da fidelidade da forma artística

ao real, o que não é o objetivo deste trabalho, considerando que nos capítulos anteriores

reiteramos nossa crença na pluralidade de visões estéticas sobre o mundo. Paul Wood,

após rejeitar a definição de realismo como mera reprodução “fiel” de aspectos da

realidade, invalida a oposição entre arte realista e abstrata e avança uma concepção

mais flexível:

“O próprio termo ‘realismo’ parece sugerir uma orientação para a realidade ou, mais exatamente, uma conexão direta com a realidade. Na verdade, estão aqui em jogo definições rivais de realidade. Em um mundo em que a realidade é percebida de forma bastante diferente por grupos com interesse diferentes, onde há um processo de constante luta contra as definições hegemônicas acerca do que seja o mundo, o realismo sempre irá reverberar uma concepção vazia de estilos de arte”148

148 WOOD, Paul. Realismo e Realidades. In: Realismo Racionalismo, Surrealismo: a arte no entre-guerras. São Paulo: Cozac & Naif, 1998, p.254.

109

O texto de Wood corrobora as colocações que fizemos no primeiro capítulo

acerca das concepções de arte, cultura e história, materializadas em obras pictóricas.

Segundo esta orientação, a arte figurativa soviética poderia ser caracterizada

genericamente como uma arte que, na melhor das hipóteses, se reporta ao real e

constrói cenas que, no aspecto formal, na sua estrutura aparente, guarda uma certa

semelhança com as formas da natureza, mas que, de maneira alguma constitui registros

ou reportagens objetivas com base nesta mesma realidade. O grande problema é que

certo grupos, como a AKRR, nunca recusaram esta função de “historiar” plasticamente

os fatos, ao contrário, declaravam abertamente em seus textos a meta que perseguiam,

qual seja, a produção de cenas artístico-documentárias do eventos relacionados à

revolução, ao Exército Vermelho e ao cotidiano proletário. A determinação de um tal

escopo, aliada à precariedade formal observada em muitos casos, foi um dos principais

argumentos da crítica especializada para explicar sua própria indiferença relativamente

ao realismo soviético. É preciso salientar que, como afirma Wood, “a simples

representação de corpos reconhecíveis, fazendo coisas reconhecíveis, não foi o que

tornou determinada arte realista”149 e, neste sentido, a pintura realista soviética segue

sendo algo quase insustentável do ponto de vista estético, dada a insistência de seus

adeptos em considerarem-se apanhadores da realidade.

Outro fator que instila complicações no estudo do realismo russo refere-se ao

uso e apropriação do vocábulo por parte de diferentes grupos. Enquanto os pintores

tradicionais aclamavam sua arte narrativa e figurativa como a representante por

excelência de uma concepção realista, os artistas de esquerda também recorriam ao

termo para conceituar suas composições abstratas. É o caso dos irmãos Pevsner, cujo

“Manifesto Realista” referia-se a esculturas e objetos completamente não-figurativos,

elaborados sob a ótica do construtivismo. Kazimir Malevitch também celebrizou-se por

propor uma abordagem alternativa do conceito de realismo, referindo-se às suas

pinturas suprematistas como exemplos de um “novo realismo pictórico”,

consubstanciado na idéia de unidade e identidade entre arte e realidade, onde as formas

geométricas elementares adquirem status de realistas especificamente por serem

“autônomas” e não estarem vinculadas a um objetivo representacional. Como

salientamos no capítulo precedente, a realidade a que a vanguarda se referia era um

devir, algo a ser construído sobre as ruínas da velha e devastada ordem, por esta razão,

seria absurdo se encontrássemos um mínimo simulacro sequer de um mundo

149 Ibidem.

110

reconhecível. Nestes casos, a aplicação do conceito revela-se bastante inusitada e, no

entanto, compreensível, desde que atentemos para estas diferenças de perspectiva sobre

o “real”.

Nesta trama intrincada todas as teorias mostram-se conspurcadas por

contradições e falhas que tornam duvidosas quaisquer explanações nelas baseadas. Por

este motivo, nossa meta não é fazer uma história das inúmeras conceituações

elaboradas para justificar a opção por uma arte realista num mundo dominado pela

vanguarda – um empreendimento sem dúvida infrutífero, se levarmos em conta o

estilhaçamento da tradição a partir da eclosão do processo revoulucionário e a

fragilidade de todas as concepções formuladas no intuito de promover a arte da nação

proletária. A idéia é examinar a posição de grupos e artistas perante a emergência de

um novo projeto político, que se mostrou crescentemente centralizador, pragmático,

distanciando-se com incrível rapidez da política agitacional dos anos heróicos.

Simultaneamente ao surgimento do pragmatismo da NEP, aparecem indícios da

consolidação de uma atitude tolerante das lideranças partidárias para com o legado

artístico burguês. Isto significa que a tese da autonomia proletáira e da ruptura com a

tradição já não era aceita pelo Partido. Tanto Trotsky quanto Bukharin postulavam que,

no estado de atraso cultural em que se encontrava o povo russo, era praticamente

inviável a concretização de uma cultura proletária independente. Segundo eles, a

edificação do Estado socialista só seria possível se fossem utilizadas as bases já

estabelecidas pelo capitalismo burguês ocidental e, para Bown, isto implica num

“retorno às formas tradicionais de arte.”150 Esta situação, por si só, já seria um

estímulo aos artistas conservadores , cujas pinturas figurativas aproximavam-se cada

vez mais das expectativas do Partido em relação à arte.

Além disso, temos ainda que observar que, com a introdução da NEP, renasceu

o mercado de arte e apareceram novos compradores de origem burguesa, os quais

notabilizavam-se por seu gosto conservador e não se sentiam atraídos pelos

experimentos construtivistas. Tal estado de coisas era extremamente convidativo para

aqueles artistas interessados em retornar aos esquemas pré-revolucionários. Não

obstante apoiasse, ao nível do discurso, a “pluralidade de formas artísticas’, é notório

que o regresso à economia capitalista alavancou o desenvolvimento das tendências

realistas referenciadas na pintura de gênero oitocentista, as quais estavam prestes a

150 BOWN, M.C. Op. Cit.

111

constituir um monopólio, o que ocorria em detrimento das propostas vanguardistas.

Sobre isto, vejamos o texto de Bown:

“A política da NEP também desempenhou um papel no retorno à tradição, pois, embora tenha existido uma ‘ration’ acadêmica concedida pelo NARKOMPROS a uns poucos eleitos, não houve amplo apoio estatal aos artistas. Era um tempo de empreendimentos, quando – segundo colocação de um jornal da época – o artista tinha que ser capaz de criar um novo consumidor e ser digno dele. Essa pressão econômica estimulou a inclinação para a arte figurativa, visto que os potenciais patrocinadores só se interessariam por obras tradicionais.”151 Dentre os grupos realistas então criados, a AKRR (Associação de Artistas da

Rússia Revolucionária), foi, sem dúvida, o mais importante e também o que teve maior

longevidade. Instituída em 1922 por Pavel Radiniov, Evgeni Katzman e Alekandr

Grigorev, a associação nasceu de um debate sobre o tema do realismo, travado por

ocasião da 47ª exposição dos Itinerantes, que nesta época estavam tentando uma

revivescência da pintura de gênero de 1870. Em geral, todas as investidas no campo do

realismo pictórico eram fustigados pela mordacidade e intrasigência da crítica de

esquerda, mas os integrantes da AKRR, parecem ter sido perspicazes o suficente para

perceber que no interior do Partido estavam se processando mudanças decisivas quanto

à política das artes, tanto que enviaram uma carta ao comitê central solicitando

orientações, ao que receberam a seguinte resposta: “Vão até as massas trabalhadoras,

estudem-nas, retratem-nas; elas lhes indicarão o caminho. Vão às fábricas!”152 Esta

missiva, a um só tempo estimulante e imperativa, foi a senha que permitiu a inserção da

AKRR no lugar restrito reservado para a arte dentro da política extremamente

normativa do Partido Comunista. Todavia, não se pode afirmar com precisão se isto foi

uma manobra oportunista, ou o resultado de uma intersecção eventual de projetos, o

que é pouco provável.

Para além de qualquer controvérsia, o fato é que estes artistas aceitaram as

sugestões do Partido e obtiveram credenciais para visitar duas fábricas de Moscou,

onde permaneceram por um certo período, realizando pinturas e desenhos inspirados

nesta realidade fabril. A produção resultante deste trabalho de campo foi apresentada

numa mostra intitulada “Exposição de Artistas de Tendência Realista em Auxílio aos

Famintos”, que foi inaugurada no 1º de Maio de 1922. Esta exposição, da qual

participaram cerca de 60 artistas, foi um fracasso retumbante, tanto em termos de

crítica, quanto de vendas, mas não significou um revés significativo no

151 BOWN, M. C. Op. Cit, p.69. 152 Apud: Bown, p. 71.

112

desenvolvimento do grupo, pois as redes do acordo tácito com Estado estavam sendo

tecidas persistentemente em várias frentes. Além do mais, conquanto não fossem

grandes virtuoses da pintura figurativa, estes artistas souberam como criar uma situação

de favorecimento ao proporem uma arte em consonância com as mais recentes

determinações do Partido, e não resta dúvida de que a subserviência, a adequação ao

sistema, era o que realmente poderia garantir o êxito de qualquer empreendimento

cultural naquele contexto. Segundo Bown, o trabalho destes artistas equivalia a um

quase engajamento, uma espécie de emprego oficial:

“Em sua procura pelo que se tornou conhecido como trabalho social, eles voltaram-se para os centros do poder burocrático, os novos e maciçamente consolidados feudos soviéticos. Como Katzman afirmou em 1925, a AKRR, ‘nasceu na era do patronato vermelho’”153 Para realizar sua 2ª mostra, o grupo recorreu ao próprio Trotsky. Eles

pretendiam organizar uma exposição temática dedicada ao Exército Vermelho e, para

tanto, pediram autorização diretamente ao chefe e idealizador daquela corporação, que,

imediatamente, aprovou a petição, sendo que o SOVNARKOM, destinou uma verba de

7000 rublos para o financiamento dos trabalhos que, em sua maioria, constituíam

retratos de líderes políticos como Lênin, Lunacharski e o próprio Trotsky.

Mesmo desfrutando de prerrogativas junto às instâncias do poder burocrático,

estes artistas se autopromoveram fiéis “historiadores” da realidade soviética,

documentando com objetividade todos os aspectos da vida no novo Estado. Em sua

declaração, publicada em 1922, eles afirmaram: “Nós representaremos a atualidade, a

vida do Exército Vermelho, os trabalhadores, os camponeses, os revolucionários, os

heróis do trabalho. Forneceremos um retrato verdadeiro dos fatos, e não invenções

abstratas que desacreditem nossa revolução aos olhos do proletariado

internacional.”154 Desnecessário dizer que esta “documentação” só ocorria ao nível do

discurso, pois estes falastrões, preocupados como estavam em angariar apoio oficial,

não pretendiam mesmo registrar – na medida em que isso é possível – a “real” situação

dos operários soviéticos que neste período sofriam todo tipo de pressões e controles,

além de terem de conviver com um quadro de baixa salarial e supressão de autonomia.

Na verdade, o próprio texto da declaração trai o componente fictício deste projeto

quando demonstra preocupação com a imagem da revolução, ou seja, era preciso

153 Ibidem, p. 72. 154 AKRR – Declaration of the Associacion of Artists of Revolucionary Rússia – 1922. In: Bowlt, p. 266.

113

construir a imagem certa, a propaganda de um governo proletário que só existia no

âmbito da idéia.

A questão era exatamente esta: a nação proletária era meramente uma

construção. Embora não se pretendesse implantá- la, era conveniente preservar sua

aparência, sua exterioridade, pois isto harmonizava-se mais perfeitamente com a

ideologia racionalizante dos líderes e com sua aspiração em solidificar a administração,

do que uma proposta estética que escancarasse as deficiências e a corrupção do sistema

burocrático.

Nesta associação com o Estado, os artistas da AKRR terminaram por recorrer às

poucas alternativas existentes para transformar sua arte em algo relevante neste

momento em que todas as ações sociais, culturais e políticas deveriam cirucular na

órbita projetada pela autoridade central. Os críticos em geral julgavam que, ao seguirem

este caminho, os artistas estavam aquiescendo ao aviltamento de sua pratica e

contribuindo com a demagogia reinante na esfera política, fato que teria como

consequência maior a degenerescência da arte pictórica. Acreditamos, entretanto, que

esta hipótese é assaz radical e não permite avanços no trabalho de análise histórico-

artísitico da obra, pois se negássemos o caráter artístico da pintura realizada por estes

artistas a pesquisa não teria razão de ser, visto que, assim, o único canal para

estabelecer a interface entre arte e história estaria suprimido.

Neste sentido, devemos analisar a real situação em que se encontravam estes

pintores realistas neste período de crescente institucionalização da área cultural.

Embora seja difícil resgatar a complexidade deste estado de coisas devido à escassez de

fontes documentais, a discussão realizada por Paul Wood, pode auxiliar a compreensão:

“Essas atitudes funcionavam em conjunto com uma disposição para ‘servir’, orientar a arte (representada por eles próprios) para executar suas tarefas sociais legítimas naquele processo revolucionário em desenvolvimento. Tal disposição – bastante correta em seus próprios termos, deve-se dizer – não teve escrúpulos em realizar manobras conjuntas com os círculos do poder. (...) A questão, na verdade, é que os políticos tendem a valorizar a arte pelo que ela pode realizar em termos plíticos e socias, e os novos grupos desejavam permitir que seu trabalho fosse limitado por esta instrumentalidade disfarçada em necessidade social genuína, em vez de se arriscar à impopularidade por tratar problemas técnicos que derivam do reconhecimento da arte como um meio” 155 Ao lermos o texto acima, compreendemos que a atitude da AKRR, embora

pareça inaceitável para aqueles orientados por parâmetros vanguardistas, era

perfeitamente explicável à luz do contexto histórico dos anos 20. Como sugere o autor,

155 WOOD, Paul. Op. Cit.p. 277-78.

114

os políticos delegavam tarefas políticas ao artista, isto porque, num Estado em que o

organizmo partidário torna-se deveras presente e constante em todos os aspectos da

vida social, todos os empreendimentos terminam por ser canalizados para a

propagação da ideologia. Ainda que consideremos isto uma aberração, uma heresia que

violenta nossos princípios, é preciso ponderar que os artefatos pictóricos assim

elaborados são inteligíveis dentro da situação- limite que os engendrou.

Perseguindo suas metas claramente definidas, os artistas da AKRR, continuaram

realizando exposições, que geralmente davam retorno financeiro, graças à sua perícia

em articular as negociações de venda junto aos órgãos governamentais. Na exposição

“A vida e o tempo dos trabalhadores”, por exemplo, eles conseguiram vender grande

parte das telas para a Adminstração da União do Comércio. Das obras representadas

nestas três primeiras exposições não existe uma única reprodução em livros de arte e

nem sequer referências a títulos, razão pela qual não será possível discorrer sobre os

primórdios da estética realista nos limites desta pesquisa.

A 5ª mostra, realizada em 1923 e inteiramente dedicada ao 5º aniversário do

Exército Vermelho, é bastante representativa do processo de oficialização do fazer

artístico que tem lugar nos anos 20. Além de promover uma homenagem a uma

instituição, a mostra apresentava um acervo constituído essencialmete de retratos de

líderes políticos, antecipando a prática do culto à personalidade, que seria muito

comum durante o período dominado pelo Realismo socialista. Uma das poucas imagens

disponíveis foi pintada por Yuri P. Anenkov (fig.30) e traz uma gigantesca imagem de

Trotsky de pé, em posição clássica, o braço erguido e os olhos contemplando paragens

distantes. A figura do líder é soberana e hiperbólica e, para ressaltar sua

monumentalidade, o artista a situou num campo povoado de signos futuristas e

tecnológicos como aeroplanos, torres, arranha-céus, pintados em escala reduzida. No

aspecto formal a obra foge aos esquemas clássicos que seriam utilizados por grande

parte dos pintores do grupo. Apesar de existirem essas estruturas e fragmentos

reconhecíveis, percebemos que a narrativa dá lugar a uma finalidade mais simbólica,

alegórica, em que todos os elementos concorrerm para evidenciar as virtudes do grande

homem. Os motivos cubistas aplicados tanto na figura quanto no fundo, criam uma

qualidade onírica, que, no entanto, não impede que presenciemos a apoteose da

personagem.

Além destes retratos, havia algumas pinturas representando as façanhas do

Exército Vermelho. Na obra “A Entrada dos Vermelhos em Krasnoyarski”(fig.31) de

115

Nikolai N. Nikonov, notamos a sobrevivência de alguns vestígios da técnica

modernista. A imagem ilustra a triunfante e heróica entrada dos militares no local

mencionado, porém, constatamos que o artista não confere um tratamento naturalístico

à figura humana e aos animais que constituem a temática central. Embora

reconhecíveis, estes personagens estão muito distantes de um padrão ilusionístico e da

tipicidade que se tornaria um atributo permanente de ulteriores trabalhos do grupo. Isto

se deve em parte ao uso da pincelada ritmica, que confere uma textura heterogênea e

estriada ao plano, diluindo a referencialidade de todas as formas; o processo de

fragmentação da luz pelo espaço atenua a aparência de solidez e concretude e introduz

o movimento. Bown relata que esta exposição representou uma porta de entrada para o

reconhecimento oficial do trabalho do grupo, prova disto é que foi coroada com a

presença de Trotsky, que a teria aprovado, embora seu comentário no livro de visitantes

tenha sido, segundo consta, aforístico e irônico: “Bom! Mas eu os proíbo de desenhar

generais por uns cinco anos”156

O efeito direto destas exposições laudatórias foi o crescimento da influência da

associação junto aos círculos do poder. No início de 1924, alguns de seus membros

foram convidados a comparecer na “Casa da União” para retratar a agonia de Lênin.

Tal solicitação revela o quanto a arte do Estado soviético estava enredando-se nas redes

do poder político e transformando-se rapidamente em assunto oficial, uma situação que

se intensificaria a partir de 1925, quando membros da AKRR receberam credenciais

que lhes permitiam livre acesso ao Kremlim; privilégio que suscitou uma polêmica

quanto ao suposto envolvimento destes artistas com a polícia secreta, Cheka.

Quando atentamos para estes pequenos fatos, percebemos o quanto é difícil

fazer uma análise histórico-artística destas pinturas sem sucumbir à indiferença ou à

simples depreciação de sua dimensão estética, uma senda frequentemente trilhada pela

historiografia ocidental, talvez porque seja mais conveniente esquivar-se à empreitada

de estudar uma arte realista que mais parecia ser uma intrusa no contexto em que, desde

o nascimento das vanguardas, as pessoas estavam obcecadas pela idéia de ruptura e

revolução formal. Para a crítica que aprendera a se orientar a partir de critérios como

“novidade”, “ineditismo”, não era interessante incursionar pelos meandros do realismo

surgido neste período de revivescência. Porém, se realmente pretendemos compreender

o realismo soviético a primeira coisa a fazer é resguardar sua natureza estética, mesmo

que suas deficiências formais sejam bastante pronunciadas. Para tanto, devemos

156 Bown, p. 72.

116

primeiramente nos lembrar que a preservação da tradição, a volta às formas clássicas de

arte está no campo das possibilidades postas pela teoria marxista. De acordo com este

raciocínio, a sobrevivência da forma realista em pleno século XX seria algo explicável

à luz da estética marxista, embora o fato de ser realista não garanta, por si só, a

fidelidade do sujeito criador às idéias de Marx.

Em segundo lugar, devemos frisar que neste período a arte russa ainda não

estava aprisionada pela política normativa e monolítica do realismo socialista dos anos

30. Mesmo tendo lisonjeado os altos comandos com seus retratos e cenas épicas, os

integrantes da AKRR desfrutavam de relativa liberdade e, como tentamos demonstrar, a

adoção de uma estética realista foi uma escolha e não uma imposição de instâncias

superiores. Disto decorre que as afinidades que sabemos ter existido entre o grupo e a

ideologia bolchevique não podem ser interpretadas como identificação com esta mesma

ideologia. Este é um ponto importante a considerar, pois, se o perdermos de vista,

invalidamos todas as tentativas de explicar a arte enquanto elemento his tórico-cultural.

Vejamos um texto de Vazquez em que esta questão é abordada de forma bastante

elucidativa:

“A tese marxista de que o artista se acha condicionado histórica e socialmente, e de que suas posições ideológicas desempenham certo do papel – ao qual, em alguns casos, não é alheio o destino artístico de sua criação – não implica, de modo algum, na necessidade de reduzir a obra aos seus ingredientes ideológicos” 157 Diante disso, é aconselhável que nos reportemos aos fatos, pois, mesmo que no final

constatássemos que esta é uma estética datada, ela ainda seria uma estética.

Na revivescência da antiga prática do mecenato estatal e da encomenda de obras

de arte, a Rússia parecia estar regressando aos tempos absolutistas quando tais práticas

eram comuns. Fascinados por essa incrível capacidade de inserção social que a AKRR

exibia – algo praticamente inexistente desde desde o final do século XIX – muitos

artistas uniram-se ao grupo, tornando-o bastante inflado. Diante desta situação os

pioneiros realizaram um expurgo em suas fileiras, reduzindo o corpo de expositores

para 38 associados. No ano seguinte, 1925, quando foi inaugurada sua 7ª exposição, o

grupo passou a produzir obras rigidamente arraigadas nos critérios de tipicidade e do

heroísmo, uma atitude que em essência correspondia ao propósito – compartilhado pelo

Partido – de se forjar uma imagem cada vez mais convincente do novo homem

157 VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. As Idéias Estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 27.

117

soviético, do cidadão que com sua austeridade e firmeza de caráter coduziria o grande

país ao seu destino vitorioso.

É interessante notar que, na tradição revolucionária, esta noção de tipicidade era

geralmente associada à noção de realismo. Wood observa que, tanto Chernyshevsky

quanto Engels, tomavam a obra realista como o resultado da convergência de

veracidade e elementos típicos. Contudo, como o próprio autor indica, existe um

paradoxo nesta associação, pois veracidade implica em fidelidade aos fatos que, por

natureza são fortuitos e atípicos, enquanto que a fixação de tipos humanos ou sociais

leva à generalização, ou seja, ao isolamento de um padrão que passa assim a representar

uma sociedade variegada e estilhaçada por antagonismos e conflitos de toda ordem. Ao

povoar sua obras com tais elementos típicos, estes artistas distanciavam-se daquele

objetivo documental que figura em sua declaração. Na verdade o que estavam

promovendo era algo semelhante ao que fizera o intinerante Ilya Repin no século XIX

ao esforçar-se por criar a imagem ideal do revolucionário, exilado político (Ver cap. I).

Entretanto, não se pode esquecer que a situação privilegiada em que se encontravam os

membros da AKRR, era muito diferente daquela vivenciada pelos Itinerantes que, pelo

menos no início de suas carreiras artísticas, eram sujeitos eminentemente marginais,

exercendo oposição a uma conceituada instituição acadêmica e a todo o modelo social

aristocrático.

Uma pintura característica do sistema defendido pela AKRR é “Reunião de um

Comitê do Partido em uma aldeia” (1924) (fig.32) de Efim Cheptsov. Esta obra, em

vários aspectos, corrobora as reflexões feitas acima. Visualizamos a representação de

um comitê do partido realizando uma reunião numa localidade qualquer. Primeiramente

identificamos uma explícita preocupação com a narrativa coerente e com a

“reprodução” de minúcias: pequenos e secundários objetos, como o lampião, por

exemplo, são pintados com incrível naturalismo; o uso de um claro-escuro tradicional

confere nítido volume à base circular e estratificada do lampião e às botas dos

trabalhadores que aparecem no primeiro plano. Além disso, a distribuição das áreas de

luz e sombra pela superfície das diferentes unidades imagéticas e os diversos contrastes

daí advindos, é uma maneira de traduzir diferenças de matérias – borracha, tecido – e

de sugerir propriedades físicas como brilhante, fosco. Prosseguindo nesta rigidez

formal, o artista enquadra todo o grupo em um arcabouço composicional clássico; o

palco onde a reunião está acontecendo traz as linhas demarcatórias (piso, teto e parede

lateral) verticais e horizontais que se cruzam perpendicularmente delimitando a área de

118

ação e talvez apontando para a solidez daquele modo de vida camponês. A busca

extremada por um alto grau de figuração e o desejo de imprimir uma imagem austera

aos sujeitos, parece ter eliminado de vez o movimento, e as figuras humanas, com seus

gestos angulares e sua inércia, adquirem uma aparência taxidérmica, como se

pertencessem ao mundo dos objetos.

Por apresentar esta evidente fragilidade formal, esta pintura, como outras

expostas na 7ª mostra da AKRR, foram lançadas ao limbo do universo pictórico e

rotuladas como os mais sintomáticos casos de degenerescência da arte na Rússia

soviética. De fato, é quase impossível não notar os problemas resultantes de uma

obsessão em produzir uma exterioridade naturalística nas figuras humanas. Tal

deficiência não deriva de uma técnica insatisfatória, mas, precisamente, de uma

inadaptação do método realista, de um conflito entre os objetivos artísticos e a forma

de abordagem do conteúdo social, pois o excessivo interesse em alcançar objetivos

documentais e criar uma imagem que sustentasse o status de “verdade” histórica,

acabou por desviar o espírito do artista das questões propriamente estéticas e, neste

percurso, o desejado registro histórico dos acontecimentos perde forças e a “cena

verídica” ou “fragmento de realidade” consegue ser no máximo um canhestro

simulacro.

Ao fazermos estas reflexões não pretendemos, em hipótese alguma, dar a

entender que existiu alguma obra que em algum período tenha conseguido repoduzir

fielmente a realidade ou que fosse um testemunho histórico figurado dos fatos. Ao

contrário, queremos tão somente salientar a impossibilidade de uma tal realização e, por

isso, apontamos o descompasso entre a intencionalidade documental que levou o artista

a tratar temas sociais no modo figurativo e a artificialidade do trabalho concluído, um

descompasso que se reflete exatamente na forma. Não é preciso ser um especialista em

arte para perceber que estas figuras de rigidez pétrea não são anímicas, elas não

transmitem vida ao olhar; evocam estátuas de cera ocupando posições em um cenário

pré-determinado para recebê- las. Esta imobilidade não é, por si só, um atributo que

compromete a dimensão estética da imagem, até porque, sabemos que toda arte é uma

ficção, e seja qual for o gênero de figuração que a obra apresente, ela jamais deve ser

avaliada a partir do grau de semelhança com objetos ou pessoas do mundo concreto. O

problema estético concernente a esta e outras imagens do período emerge quando nos

lembramos que os artistas da AKRR, conquanto conscientes da ficção que produziam,

se declarassem documentaristas da história. Talvez seja por essa discrepância que o

119

espírito realista não sobreviva, e talvez isto explique a sensação de artificialidade que

experimentamos ao visua lizar a imagem.

A análise desta obra nos remete novamente ao problema do realismo, um

conceito que, na pintura soviética dos anos 20, não foi assimilado de forma idêntica por

todos os grupos. Ao observarmos as figuras humanas imóveis ali apresentadas como

trabalhadores reais, o que constatamos é uma espécie de coisificação do humano, o

homem transmutado em objeto. Este ponto é discutido exaustivamente por Vazquez na

obra “As Idéias Estéticas de Marx”, onde, ao abordar o pensamento estético de Marx, o

autor afirma que o sentido do realismo não reside na mímese de coisas e pessoas, mas

no sucesso do sujeito criador em instilar humanidade nestas formas genéricas de

pessoas, casas, objetos, árvores, fazendo com que estas ultrapassem o nível da mera

reprodução e sejam formas humanizadas pela relação que estabelecem com homens

concretos vivendo em sociedades concretas. Neste sentido, o ilusionismo perde

completamente a relevância, pois, como afirma o autor, “o verdadeiro realismo começa

quando estas formas e figuras visíveis são transformadas para se fazer delas uma

chave do mundo que se quer refletir e expressar. Devemos dizer por isso que o

realismo necessita superar a barreira da figuração, numa superação dialética que

reabsorva as figuras e formas reais para elevar-se a uma síntese superior. A figura

real, exterior, é um obstáculo que tem de ser superado para que o realismo não seja

simplesmente, propriamente, figuração, mas transfiguração. Transfigurar é colocar a

figura em estado humano.”158

Diante desta definição, somos instigados a indagar qual seria o sentido da arte

realista no contexto soviético. Já refutamos a possibilidade de a arte ser um registro ou

documentário dos fatos como alegavam os membros da AKRR em suas declarações;

tampouco podemos abordá-la como mera propaganda política, embora a proximidade e

harmonia com a burocracia estatal indique algo neste sentido; não obstante tenha

componentes propagandísticos, estes não resumem a sua existência enquanto arte. O

que podemos dizer é que esta obra representa uma época de transição, em que começa a

ser erigido o grande bloco onde será confinada toda a arte dos anos 30, a qual será

produzida sob o jugo da política doutrinária e homogeneizadora do Realismo Socialista.

Não se deve esquecer que, apesar de ter fornecido o alicerce para o programa

instituído em 1934, a pintura soviética dos anos 20 não representa um caso de realismo

socialista, na forma como este qualificativo veio a ser conhecido no Ocidente, ou seja,

120

como designativo de arte de países totalitários. A arte da AKRR está situada no limiar

de um novo universo cultural; ela gravita em direção ao Estado, mas ainda não foi

completamente absorvida por ele, e talvez por isso, ainda revele certas contradições

como as que dicutimos acima. É significativo que em sua declaração de 1924, o grupo

tenha afirmado que sua arte “revolucionária, terá a honra de formar e organizar a

psicologia das gerações vindouras”159 Aqui percebemos que o realismo, embora

“documentário”, não era objetivo, visto que a ideologia se acrescentava e se sobrepunha

ao registro.

Anteriormente ressaltamos a heterogeneidade do realismo neste período pré

stalinista, por isto não podemos restringir o estudo do trabalho desenvolvido pela

AKRR a análise de uma só obra. Todavia, não é muito fácil perceber estas diferenças,

pois a pesquisa em arte russa no Brasil é terrivelmente limitada pela escassez de uma

bibliografia específica que pudesse nos aproximar deste estranho país chamado Rússia,

cuja arte peculiar parece sempre muito distante de nós brasileiros, dada a distância

geográfica, a diferença de idiomas e outras barreiras quase intransponíveis que se

interpõem entre os dois países. Por força destes problemas de acesso, muitas vezes

perdemos de vista os matizes, as nuanças que compõem o cenário cultural russo e

estamos sempre correndo o risco de englobar toda a produção pictórica, todas as

concepções de arte num bolco homogêneo. Desta forma, antes de nos voltarmos para a

análise de outros exemplos, tentaremos atenuar a deficiência heurística resgatando os

relatos de viagem elaborados por Walter Benjamim durante sua estadia na Rússia,

reunidos na obra “Diário de Moscou”.

Benjamim esteve na capital russa de Dezembro de 1926 a Fevereiro de 1927,

um período de importância crucial para o desenvolvimento da arte aqui analisada,

justamente por ser o momento em que grupos como a AKRR estão se consolidando e

em que a estética realista e a ética e ideologia bolchevique começam a substituir todo

traço cultural esquerdista ou revolucionário ainda sobrevivente. Em suas andanças pela

cidade russa em pleno período NEP, Benjamim esboça uma espécie de filosofia

peripatética, um conjunto de reflexões informais elaboradas enquanto passeia e se perde

por entre ruas nevadas de uma “metrópole” que parece ter sido purgada de todos os

seus antigos componentes, mas que ainda não pudera processar as novas configurações,

158 Ibidem, p. 43. 159 The Imediate Tasks of AKRR: A Circular to All Branches of AKRR – An Appeal to All the Artists of the URSS, 1924. In: BOWLT. Op. Cit., p.270.

121

as novas estruturas que lhe foram inoculadas pelo novo Estado e que, por esta razão,

encontrava-se em estado de aparente desordem. Ele ressalta a condição ímpar e

problemática da cidade apontando a desproporção entre o contingente populacional e o

traçado urbano:

“Observou-se que as pessoas aqui andam em zigue-zague. Isto é simplesmente o resultado do excesso de transeuntes nas calçadas estreitas (...) Elas dão a Moscou um ar provinciano, ou melhor, o caráter de uma metrópole improvisada, que adquiriu tal condição da noite para o dias”160 Outra questão que o autor destaca brilhantemente refere-se à transformação dos

espaços de convivência, quando um modelo social vai rapidamente se colocando como

sucedâneo de outro e as velhas instituições sociais são banidas, sendo que as

edificações que as abrigavam adquirem novas aplicações. Quando menciona a Catedral

de São Basílio, ele diz: “O interior da Catedral foi não apenas esvaziado, mas

estripado como uma caça abatida e transformado em atraente museu a serviço da

educação popular.”161 Isto demonstra que a idéia de se construir uma “nova história” e

de se promover a nova imagem era efetivamente perseguida, e o interessante é que isto

era realizado pela via da negação deliberada do processo histórico, como se fosse

possível obliterar um passado czarista e um interlúdio vanguardista para inaugurar a

nova história proletária, que, a partir de então, reinaria absoluta, dissociada do passado,

mesmo que isto exigisse uma constante doutrinação que levasse o povo a assimilar esse

novo modelo. No período stalinista esta estratégia seria levada às últimas

consequências, com Stalin reescrevendo a história, suprimindo nomes e eventos. Para o

contexto que ora analisamos o texto de Benjamim, pode esclarecer de forma concisa a

complexidade e amplitude deste processo:

“Em sua política externa, governo visa à paz, afim de estabelecer acordos comerciais com Estados imperia listas; internamente, porém, e sobretudo, procura deter o comunismo militante, introduzir uma período livre de conflitos de classe, despolitizar tanto quanto possível a vida dos seus cidadãos. Por outro lado a juventude passa por uma educação revolucionária do Komsomol. Isto significa que o revolucionário lhes chega não como experiência, mas apenas como discurso. Existe a tentativa de deter a dinâmica do processo revolucionário na vida do Estado”162

160 BENJAMIM, Walter. Diário de Moscou. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.41. 161 Ibidem, p. 35. 162 Ibidem, p.94.

122

De particular importância para este trabalho são as breves referências à questão

da imagem, as quais estão dispersas por todo o texto. Observando as placas

informativas afixadas em estabelecimentos comerciais, Benjamim infere que o povo

russo, em geral, se orientava no interior do espaço urbano através de imagens de

objetos pertencentes ao mundo real e não por signos abstratos: “Aqui, como em Riga, os

letreiros das lojas ostentam uma bonita pintura primitiva: sapatos caindo de um cesto,

um lulu fugindo com uma sandália na boca. Em frente a um restaurante turco há duas

placas suspensas mostrando homens com barretes enfeitados de meias-luas, sentados a

uma mesa posta.”163

A existência de uma imaginária assim tão ingênua indica que a forma figurativa

estava de fato presente no cotidiano popular, o que não siginifica dizer que a pintura

realista que estava sendo produzida tivesse a mesma penetração e a mesma aceitação

pelas massas. Imagens como estas descritas por Benjamim são parte de uma tradição

popular bastante remota, que antecede a revolução, e certamente não foram criadas

especificamente para suprir as necessidades do proletário ou do camponês. Além disso,

o realismo heróico da AKRR, por seu objetivo “documental” pautava-se na

padronização, na fixação de tipos humanos condizentes com a imagem da recém criada

sociedade comunista; para este fim os motivos plásticos pertencentes ao universo

popular são irrelevantes. Por outro lado, a pintura realista, apesar de seus defensores a

considerarem um registro dos fatos, não desempenhava a função informativa

desempenhada pelos desenhos ingênuos dos letreiros das lojas.

Para Benjamim, o que era mais fascinante para o proletariado russo naqueles

dias era a “pintura de costumes”, ou pintura de gênero como dizemos aqui. Observando

os grupos de operários que visitavam uma exposição de pintura narrativa, o autor relata

como eles se identificavam e fruíam com naturalidade a arte que visualizavam. É

interessante notar que Benjamim afirma que era extamente o caráter “burguês” dos

temas que despertava a atenção do proletariado, já que aí “ele reconhece temas de sua

própria história: ‘a governanta que chega à casa do comerciante rico’, ‘um

conspirador surpreendido pela polícia’, e o fato de que cenas dessa natureza são

apresentadas bem no espírito da pintura burguesa, não só não as prejudica, mas, pelo

contrário, torna-as muito mais acessíveis a ele” 164

163 Ibidem, p. 29. 164 Ibidem, p. 94

123

Não é possível saber a quais obras específicas o autor se refere quanto faz estes

comentários, mas, pelo que lemos nesse trecho, podemos inferir que as cenas de

fábrica, os retratos de líderes políticos eram coisas muito recentes, introduzidas há

menos de uma década e que, por tal condição, não habitavam o imaginário popular de

forma tão arraigada como as cenas de costumes burgueses presentes na artes. Cabe

perguntar se esta pintura figurativa soviética tinha qualidades realmente proletárias, se

acrescentava algo à vida dos trabalhadores.

Independentemente das respostas dadas a esta questão, o texto de Benjamim nos

informa sobre a posição ocupada pela pintura figurativa no contexto soviético. O autor

levanta certas questões acerca da recpção das artes plásticas pelo poletariado que nos

impelem a investigar novos exemplos, novas abordagens realistas dentro da própria

AKRR. Na arte Evgeni Katzman, um outro integrante do grupo, não há um problema

formal que prejudique a expressividade e a qualidade estética da imagem. Em

“Rendeiras de Kaliazin” (1928) (fig.33), um aspecto marcante é o extremo

figurativismo em que a cena é construída. Percebe-se que o artista dedicou grande

atenção aos detalhes minuciosos das figuras, como se pretendesse alcançar uma

semelhança quase fotográfica com uma cena “real”. O desenho destas pessoas e

objetos, aparentemente resgatados à própria dinâmica social, são realizados com

impressionante virtuosismo: o primoroso claro-escuro espalha-se por todo o espaço,

plasmando os corpos das mulheres rendeiras, conferindo- lhes volume extremamente

suave e uma superfície matizada, o que dá um tom de naturalidade; a luz, proveniente

de um vão à esquerda, incide sobre o conjunto, interpolando-se sutilmente entre as

figuras humanas, delimitando contornos, silhuetas, destacando graciosos panejamentos

e sugerindo até mesmo uma condição atmosférica, um estado temporal.

Entretanto, devemos frisar que o mais importante aqui não é a perícia do artista

ou sua técnica excepcional, mas o êxito que ele obtém ao combinar realismo e

expressão convincente de um tipo social e, ao mesmo tempo, imprimir diferentes

expressões fisionômicas a cada uma das personagens, que, embora pertençam a uma

mesma classe e compartilhem o mesmo o ofício, ainda são indivíduos. Tais tipos

humanos não apresentam aquela fixidez e artificialismo que encontramos em muitas

obras realistas soviéticas; pelo contrário, as figuras não são apenas semelhantes à

pessoas reais, elas são investidas de um eflúvio, de uma qualidade essencialmente

humana que as aproxima dos sujeitos concretos do seu tempo. Outro ponto importante é

a idéia de coletividade inerente à obra. Nesta imagem, identificamos aquele mesmo

124

esquema estético defendido pela AKRR, porém materializado numa técnica mais

elaborada. O heroísmo da mulher trabalhadora é apenas sugerido e não ostensivamente

apresentado como frequentemente acontecia. A aparência heróica, a austeridade do

caráter, o amor ao trabalho comunal parecem aflorar do interior dos corpos destas

mulheres trajadas com indumentárias rústicas, tipicamente camponesas. Isto indica que,

para glorificar a imagem da trabalhora, o artista não lançou mão de nenhum artifício

especial, nenhum signo alusivo à grandiosidade do Estado soviético, tendo enfatizado

exatamente as qualidades humanas que o próprio corpo é capaz de sugerir.

O fato de Katzman ter sido mais bem sucedido que Cheptsov, não significa que

sua obra seja mais “verídica”. Conquanto a cena seja bastante convincente, ela

apresenta um estado de harmonia social, não havendo qualquer representação de

conflitos ou problemas. Os tipos sociais, embora pareçam incrivelmente reais são, em

certo sentido, idealizados, até poque, este indivíduo enérgico, saudável, comumente

identificado com o novo homem soviético, é apenas uma projeção, uma idéia que se

tem do humano e que se deseja promover. Devemos reconhecer que esta placidez e

organização que circunda o trabalho das rendeiras é também uma condição ideal, que

estava longe de se concretizar na Rússia deste tempo. Contudo, sendo a arte uma

criação, não pode jamais ser julgada segundo o critério de fidelidade aos fatos

históricos e, portanto, a exclusão ou omissão de fatos hipoteticamente reais, não é algo

que desqualifique a obra do ponto de vista estético, visto que, como reiteramos várias

vezes neste texto, o artista não produz testemunhos históricos, produz representações –

conceito elaborado por Chartier – estéticas da história, as quais não traduzem a

plenitude dos eventos sociais mas os pontos de vista de grupos específicos.

O lado complexo destas obras realistas se revela quando confrontamos as

produções pictóricas às declarações publicadas pelos grupos. O complicador reside

nesta discrepância entre o escopo documental e o caráter fictício das composições

propriamente ditas. Tal incongruência é um dado que confere ainda maior relevância

histórica à arte da AKRR, pois é justamente por seu caráter contraditório que ela é

capaz de expressar brilhantemente as contradições que caracterizam a história do país

neste período pleno de “construções”, quando todo esforço era envidado para erigir um

país e um sistema de governo sem precedentes em toda a história da humanidade.

Como as circunstâncias nem sempre contribuíram para o sucesso desta empreitada era

necessário dissimular as falhas, preencher as lacunas, esmagar as resistências, esmagar

todo o rebotalho do antigo regime, para que se pudesse concluir a nova construção. Em

125

semelhante contexto, os tipos sociais, a padronização, a invenção de situações ideais,

talvez não corresponda à realidade dos fatos, mas, com toda certeza, corresponde à

vontade política bolchevique que de uma forma ou de outra acabou por se converter na

própria realidade.

Já no final dos anos 20, o pintor Isaac Brodsky, membro da AKRR, elegeu uma

temática bem diferente daquela adotada por Katzman. Voltando-se para temas

essencialmente políticos, Brodsky, tornar-se-ia um dos principais especialistas num tipo

de pintura exaltação, onde os líderes bolcheviques são postos em evidência e

deificados. Por sua peculiaridade, a obra de Brodski, constitui, por assim dizer, o elo

entre a pintura figurativa dos anos 20 e o realismo socialista, que representa a definitiva

redução da arte à ideologia. Na obra “Discurso de Lênin no Encontro dos

Trabalhadores da Fábrica Putilov em Maio de 1917” (1929) (fig.34), não há aquela

individuação dos seres humanos que encontramos nas Rendeiras de Kalyazin de

Katzman. Aqui, o trabalhador aparece apenas como coletividade; ele integra uma

multidão homogênea na qual nenhuma idiossincrasia é sugerida, pois o que importa, do

ponto de vista simbólico, não são as expressões individuais, mas sim o efeito produzido

no expectador por este aglomerado humano numericamente significativo. É exatamente

a multidão anônima que cumpre a função propagandística, pois a figura de Lênin é

extremamente diminuta – tem as mesmas dimensões das figuras dos trabalhadores – e

quase não é notado à primeira vista; um primeiro plano muito denso tem o poder de

atrair o olhar, que só num momento ulterior irá encontrar a imagem do protagonista.

Porém, quando a figura do líder revolucionário é visualizada, a apoteose é

imdediatamente consumada, pois o grupo de trabalhadores, que até então era percebido

como uma simples população, transforma-se em atento auditório a ouvir o discurso

inflamado do ativista político; a atenção dispensada pelos ouvintes completa o processo

de divinização. Vale destacar que, embora o evento retratado aconteça numa época

revolucionária (1917), não se percebe nenhum sinal de sublevação. Podemos mesmo

dizer que reina uma enigmática placidez naquele amplo sítio industrial; os poucos

perfis que é possível entrever revelam expressões pacíficas e absortas; não há gestos

largos que indiquem um estado de agitação. Toda esta aparente discrepância tem uma

razão de ser: era preciso apresentar os Bolcheviques como a facção carismática e

amplamente aceita pelas massas desde os tempos revolucionários, e isto exigia a

supressão dos aspectos conflituosos da revolução. Neste processo, o artista inventa a

126

imagem harmônica e positiva do comunismo, uma imagem que o próprio Estado

desejava propagar.

Uma outra obra de Brodsky revela preocupações similares, porém, o método

utilizado é diferente. “Lênin no Smolny” (1905) (fig.35) também refere-se ao contexto

revolucionário, contudo a composição não traz qualquer indício de luta ou anarquia. Ao

contemplarmos a obra somos confrontados com uma imagem de serenidade, brandura.

Lênin está sentado em uma poltrona envolta em tecido, onde tranquilamente faz leituras

e anotações. De acordo com Wood, o Smolny era um monastério abandonado, que fora

invadido pelos bolcheviques durante a revolução de outubro de 1917. O edifício era

utilizado como quartel general, onde eram traçadas as estratégias de combate. Por

concentrar atividades cruciais para a ação revolucionária, o Smolny permanecia em

constante estado de polvorosa, com ativistas trabalhando ininterruptamente, em ritmo

alucinante. Neste sentido, poder-se- ia dizer que esta imagem de tranquilidade presente

na obra de Brodsky não corresponde à candente situação daquele espaço em tempos de

guerra. O fato é que, mais uma vez, prevalece a lógica propagandística e a glorificação

da pessoa do líder, que ali emerge como “o trabalhador fazendo a revolução dos

trabalhadores, a quintessência da calma no centro da tempestade. Esses dez dias

podem ter abalado o mundo, mas a implicação é que não abalaram Lênin: a revolução

estava em boas mãos” 165

Este fragmento de texto nos dá a dimensão e o caráter das mudanças definitivas

que estavam se processando no trabalho da AKRR neste final de década. As reuniões

de comitês de partido e as cenas coletivas, pretensamente documentais, representando

expedientes de trabalho foram substituídas pela deliberada manipulação plástico-visual

de eventos e locais históricos, com o intuito de produzir imagens convincentes do

modelo social que se procurava impor a qualquer custo. Wood, referindo-se a esta

mesma obra, diz: “o trabalho organizativo da pintura de Brodsky é arregimentar o

prestígio de Lênin e da Revolução de Outubro de 1917, para a sustentação de Stalin e

do poder estatal emergente.”166

No geral a crítica soviética era sempre mordaz e detratora em relação à arte da

AKRR. Uma questão recorrente nos comentários da época era a precariedade da forma

das obras produzidas. Um jornal afirmava, por exemplo, que o pretenso realismo destas

165 WOOD, Paul. Op. Cit. P. 283-84. 166 Ibidem, p. 284.

127

pinturas não era nada além de “um brando naturalismo, esboço da natureza.” 167

Comentando a 8ª exposição do grupo, os críticos, em sua maioria, julgaram que os

trabalhos apresentados estavam muito aquém daquele ideal de realismo heróico que

figura nas declarações; faltava-lhes rigor formal, dramaticidade, quando comparados à

arte da Revolução Francesa – David, Delacroix, Daumier, Courbet – que neste

momento era vista como o mais eleoquente e primoroso modelo de pintura realista e

revolucionária já produzida, e o grande parâmetro para a avaliação da nova pintura

soviética.

A tentativa de esclarecer o lugar desta arte no contexto cultural do período,

suscitou um debate em torno da questão da qualidade. Por um lado, críticos como

Tugendkold168, especulavam que a deficiência formal observada em grande parte das

obras derivava da ausência de uma tradição e de uma instrução adequada e necessária à

realização de pinturas a partir da observação da natureza, ou seja, na opinião do crítico,

os artistas soviéticos dos anos de 1920 não dominavam o método com que estavam

lidando, e isto se dava não por falta de destreza manual, mas pela inexistência de uma

tradição, já que desde o advento dos movimentos modernos no início do século XX,

este método não era mais empregado, tendo sucumbido a um estado de total

obsolescência por volta de 1920. Desta forma, não conhecendo os minuciosos

procedimentos técnicos indispensáveis a este trabalho e que davam grandiosidade à

imagem final, estes artistas soviéticos terminavam por produzir cenas totalmente

desprovidas daquele espírito épico inerente a toda arte que se queira realista e

“heróica”.

Por outro lado, Fedorov-Davidov, não procurava justificativas para os fracassos

estéticos, por considerá-los de importância secundária naquele momento específico.

Partindo do princípio que esta arte “proletária” visava um público “inculto”, destituído

de “critérios estéticos”, ele julgava que os eventuais problemas estéticos não eram

muito importantes e nem mesmo seriam notados, visto que o fruidor mediano, o

trabalhador a quem estas imagens eram destinadas, não estava apto para fazer uma

apreciação crítica das mesmas. Neste estado de coisas, o crítico vislumbrava uma

situação de coerência, onde a arte pictórica realista, não obstante a sua “má qualidade”,

seguia sendo adequada e útil ao seu “natural” fruidor:

167 BOWN, M. C. Op. Cit., p. 89. 168 Ibidem, p. 89.

128

“A nova massa de consumidores não possui critérios estéticos, e nós não podemos exigir-lhes tais critérios. Evidentemente, pão sem farinha é um contra-senso; e um inglês que todos os dias olha para um pão branco sobre sua mesa, tem o direito de rejeitar indignado a substituição deste ingrediente por outro de pior qualidade, mas, e nós, que temos comido pão quase sem farinha, temos esse direito?”169 Esta visão quase depreciativa do homem comum, tavez seja a que mais se aproxime da

real situação sócio-econômico-cultural da Rússia soviética. Ela apenas nos revela que o

modelo social glorioso que a AKRR, tentou, sem sucesso, promover através de sua arte,

era algo ainda muito distante.

Apesar de tudo, e independente da questão formal e dos problemas concernentes

ao realismo, ainda continua sendo válida aquela asserção de que a arte da AKRR e de

outros interessados em temas sociais, eram também meios de expressão visual que estes

artistas – vinculados como estavam ao Estado – se valiam para construir uma nova

concepção de história do país. Prova disto era o próprio formato e a dimensão desta 8ª

mostra. Vejamos os comentários de Bown sobre isto:

“Os vários temas das exposições da AKRR - a vida do Exército Vermelho, a vida e o tempo dos trabalhadores, revolução vida e trabalho – revelam a ambição de se produzir uma imagem do país que se aproximasse, no todo, ao efeito de uma crônica fílmica. Essa era a impressão causada pela oitava exposição, “A Vida e os Caminhos dos Povos da URSS”, na qual foram mostradas aproximadamente 2000 pinturas, que compunham uma espécie de história ilustrada em todo o vasto território da União.” 170 Mesmo considerando a longevidade e influência da AKRR e sua preponderância

no cenário artístico dos anos de 1920, não faríamos justiça ao realismo soviético se o

reduzíssemos às realizações de umúnico grupo, cuja noção de realismo estava

fundamentada na exploração documental da temática contemporânea - um grupo que

não se notabilizou por grandes contribuições no aspecto formal. Uma outra sociedade

expositora extremamente importante na história da arte russa denominava-se OST

(Sociedade de Pintores de Cavalete), um grupo que, não obstante a sonoridade

acadêmcia e conservadora de seu nome, foi o principal propositor de inovações formais

no campo do realismo pictórico na segunda metade da década. Em sua obra, que alia

temas sociais e experimentalismo estético, encontramos os últimos vestígios do

vocabulário vanguardista que desaparecerá por completo com a instituição do realismo

socialista.

169 FEDOROV-DAVIDOV. Apud: BOWN, M. C. p. 88 170 BOWN, M. C. Op. Cit., p. 88.

129

A gênese deste grupo está na “Primeira Exposição Discussional da Associação

de Arte Revolucionária Ativa”, realizada na Rua Tverskaya, em Maio de 1924. O

evento consistia de um fórum de debates, coordenado por sete grupos interessados em

propor novos caminhos para a atividade pictórica e em promover uma arte que “sem

sacrificar sua modernidade, fosse ao encontro das exigências sociais da atualidade”171

Além dos debates, na ocasião também aconteceu a lª mostra dos alunos da

Vkutemas (Estúdios Técnico-Artístico Superiores), uma escola superior de arte que

disponibilizava estúdios para seus alunos e que, desde a sua fundação, em 1920, tivera

um corpo docente e um programa de ensino preponderantemente esquerdista, fato que

suscitava constantes embates entre vanguardistas e tradicionalistas; estes últimos

queixando-se das prerrogativas concedidas aos artistas de esquerda no que dizia

respeito à concessão de estúdios. Grande parte do que foi exposto constituía

composições “geométricas” ou “mecanicistas”, “modelos, desenhos técnicos e

diagramas”172, alguma coisa bem ao estilo da vanguarda. Porém, em meio a estas obras

abstratas havia algumas composições temáticas enviadas pela tríade que na época se

autodenominava “Associação dos Três” – Alexander Deineka, Yuri Pimenov e Andrei

Goncharov. Tais obras foram bastante elogiadas pelo crítico marxista Fedorov-

Davidov, que destacou a importância do trabalho do grupo em “combinar experimento

formal e empenho pelo realismo”173

Estimulados pela recepção favorável que seu trabalho tivera, os três artistas

uniram-se a outros participantes da Exposição Discussional e fundaram a OST em

1925. Enquanto grupo, a OST teve uma existência breve se comparada à AKRR;

realizou apenas quatro exposições, sendo a primeira em 1925 e a última em 1928. Em

sua plataforma artística publicada em 1929, os membros do grupo foram enfáticos ao

afirmar sua oposição à perspectiva do realismo temático advogado pelos Itinerantes no

século XIX e revisitado pela AKRR no século XX. Na verdade esta plataforma é um

texto muito sucinto e não muito representativo da trajetória do grupo, pois prima mais

pela negação de projetos estéticos julgados deficientes do que pela proposição de novos

postulados para o fazer pictural. Entretanto, o texto esclarece parcialmente quais eram

as metas perseguidas por estes artistas, pois nele são arrolados como exigências para a

nova arte “a contemporaneidade revolucionária e clareza na escolha do tema (...) a

171 Ibidem, p. 80. 172 Ibidem. 173 Ibidem, p. 81.

130

busca da maestria técnica absoluta no campo da pintura de cavalete, com vistas a

transformar a pintura em artigo bem acabado”174

Nestes apontamentos podemos perceber que o tema estava longe de ser

abandonado, pois a busca de uma clareza temática era uma resposta aos imperativos da

realidade “revolucionária”, e apresentar fragmentos reconhecíveis da “realidade”

soviética industrial era visto como a uma forma legítima de contribuir para a construção

do país. Neste contexto, ser revolucionário já não era lutar pela dissolução de toda

ordem social; o ser revolucionário, deixara de ser uma prática e convertera-se em tema

para uma pintura que, em última instância, não visava à transformação do que quer que

fosse, mas sim à construção de sólidas imagens do socialismo triunfante.

“Na era da construção socialista, as forças ativas na arte devem ser partícipes nesta construção. Além disso, devem atuar como um dos fatores da revolução cultural a influir na reconstrução e desenho do nosso novo modo de vida e na criação da nova cultura socialista”175 É certo que os artistas da OST investiram mais intensamente nos exercícios

formais, porém , isto não significa que suas criações fossem mais libertárias que as da

AKRR. Mesmo tendo dialogado com a modernidade e, com isso, tenham conseguido

restaurar a importância da forma na composição pictórica, estes artistas, em nenhum

momento, pretenderam renunciar aos grandes temas, até porque, os objetivos

sociológicos que eles estableciam para a arte eram praticamente os mesmos que aqueles

fixados pelo outro gurpo em 1922. O pequeno fragmento que citamos acima nos faz

perceber que os integrantes da OST eram animados pelo mesmo espírito ufanista e

coletivo que permeia toda a arte realista russa, mesmo aquela posterior aos anos 20.

Uma outra questão sucitada por este textorefere-se ao manifesto de se produzir uma

arte influente na configuração do tecido social, uma arte que, promovendo certos

valores positivos, atuasse diretamente no processo de reconstrução do país, segundo

critérios estabelecidos pelo Partido.

Para sintonizar sua prática artística com este ideário, os pintores da OST

elegeram a indústria como seu tema principal. Esta era, sem dúvida, a mais eficiente

estratégia para criar vínculos com o Estado comunista, pois, neste período, a

industrialização era glorificada como uma suprema benesse, como o trabalho mais

relevante e urgente a se fazer. Todo esforço era feito no sentido de criar grandes e

174 OST (Society of Easel Artists). Plataform, 1929. In: BOWLT, J. E. Op. Cit. P.281. 175 Ibidem.

131

modernas fábricas equiparáveis às ocidentais. Nesta perspectiva, a modernidade da

forma, incluíndo aí um certo grau de abstração e geometrização, não era um simples

desvio ou profanação do cânone realista, visto que, abstrair e geometrizar eram

sobretudo recursos formais utilizados para traduzir a modernidade que era inerente à

indústria. Bown diz que nessas cenas industriais “os formatos das máquinas e dos

objetos de produção de massa, as estrutras da arquitetura industrial, sugeriram o

estilo limpo e as formas geométricas a partir das quais a pintura podia ser construída.

A estética da OST era mais uma adaptação da estética industrial para o meio pictórico

do que uma ilustração direta de fábricas, máquinas e trabalhadores.”176

O grande representante desta vertente industrial foi o pintor Alexander Deineka.

De todos os artistas da OST, ele foi o que esteve mais intimamente envolvido com a

questão da fábrica. Uma de suas obras mais conhecidas, “Construindo Novas Fábricas”

(fig.36), reúne alguns atributos estéticos concernentes ao método compositivo

empregado por estes artistas em várias de suas obras – uma combinação de realismo e

modernidade. Compreendemos imediatamente que a realidade fabril é tão somente uma

sugestão, posto que não há uma estrutura narrativa enquadrando e organizando as

imagens. Desta forma, podemos inferir que o artista não desejava que sua imagem fosse

uma reprodução de um fragmento do contexto da fábrica, já que a razão de ser da obra

habita o reino do simbólico. Os arcabouços metálicos e a via férrea que aparecem ao

fundo, embora representados fragmentariamente, conseguem evocar um gigantesco

pavilhão industrial. As duas mulheres robustas que surgem em primeiro e segundo

plano parecem estar completamente deslocadas do fundo ao qual deveriam pertencer

enquanto personagens de um acontecimento industrial; suas figuras musculosas e

rígidas flutuam num espaço independente, não existindo uma articulação, uma área

transicional entre elas e o pavilhão que, de resto, mostra-se muito distante. Tudo isso

indica que a lógica narrativa é sacrificada em favor de uma aproximação simbólica do

tema.

Não obstante, o quadro provê uma representação convincente do ideal de

industria e de trabalhador. Visualizando-o é possível apreender um modelo, um

símbolo positivo da nova mulher soviética, uma mulher jovem, forte e feliz com sua

condição de operária da nação comunista industrializada; podemos imaginar a

magnitude do projeto tecnológico russo, pois a imagem feérica das estruturas metálicas

projetando-se ao longo de um eixo diagonal em direção ao fundo e inflectindo-se na

176 BOWN, M.C. Op. Cit. P. 92.

132

lateral esquerda, transmite uma idéia de infinitude, de futuro crescimento. Um fator

instigante a respeito desta imagem é que a mensagem é construída através de poucos

elementos, ou seja, mesmo não havendo uma profusão de detalhes ou a reprodução de

pequenos pormenores, o tema da indústria e, sobretudo, a concepção de realidade fabril,

emergem com veemência. Isto se deve à força simbólica subjacente ao método sintético

empregado por Deineka. Tal método, derivado da indústria gráfica177, prima pelo

trabalho composicional preciso, pela intensidade dos contrastes e cores pouco

matizadas, fatores estes que contribuem para a nitidez da mensagem visual.

É interessante acrescentar que o ano em que esta pintura foi concluída (1926)

foi um período de intensos debates acerca da implementação e fortalecimento da

indústria de base, que então se configurava como a meta primordial. Tamanha era a

obstinação dos russos em ultrapassar os sucessos tecnológicos americanos que, dois

anos mais tarde, foi instituído o Primeiro Plano Quinquenal, um programa de

coletivização forçada da agricultura e desenvolvimento da indústria pesada que iria

transformar radicalmente as relações sociais no país. Segundo Elliott, “todas as

energias, ideológicas ou culturais, teriam que estar subordinadas a este objetivo;

divergência significava traição.” 178

Uma vez conscientizados desta conjuntura, compreendemos a relevância da

obra ora analisada para o contexto sócio-cultural dos anos 20; em sua condição de

imagem estilizada e sintética, semelhante a um material gráfico para campanhas

publicitárias e por seu conteúdo extremamente atual, ela se insere no interior do sistema

de marketing engendrado pelo governo no intuituo de promover mudanças radicais na

economia. O caráter altamente simbólico esclarecee uma questão que na arte da AKRR

permanece indistinta: a “cena” apresentada não é absolutamente um retrato do

cotidiano fabril, ou seja, ela não constitui um reflexo de qualquer realidade particular;

pelo contrário, ela é uma projeção, onde o conteúdo, embora não seja imaginário, não é

absorvido diretamente de uma dinâmica social, posto que antecede a prática, que,

afinal, poderá não acontecer nos moldes ali figurados. Como sugere Wood, estas cenas

industriais “destinavam-se menos a permanecer como retratos de uma outra fábrica do

que como metonímias do Plano Quinquenal”179, o que significa que tais figurações

eram versões reduzidas do grande plano, exemplos ideais criados com o objetivo de

177 Deineka estudou artes graficas na Vkutemas 178 ELLIOTT, D. Op. Cit., p. 118. 179 WOOD, P. Op. Cit., p. 312.

133

propagar a sociedade e as relações de trabalho que resultariam do desenvolvimento

industrial.

A obra de Deineka não contempla apenas estes temas industriais. Ele também

produziu imagens relacionadas à guerra civil, como a obra “A Defesa de Petrogrado”

(1927) (fig.37), que foi exposta na 10ª Exposição da AKRR, ocorrida em 28 de

Fevereiro de 1928. Nesta pintura Deineka revisita os motivos ritmicos presentes na

Teoria Biomecância de Lunacharski, a qual versava sobre a natureza mecânica do

corpo humano e a forma como isto se refletia no fazer artístico. Neste caso específico, o

ritmo é sugerido pelos movimentos dos soldados, que em seu deslocamento regular e

organizado - qualidades inerentes à marcha militar – traduzem esta disposição ritmica.

Mais uma vez, verificamos uma composição pouco densa, com imensas áreas vazias ao

fundo, o que faz ressaltar as figuras dos soldados, acentuando o caráter ritmico. Os

interesses de Deineka na Teoria biomecância o levaram a trabalhar em parceria com o

dramaturgo Vsevolod Meyerhold na peça “A Terra em Tumulto”, apresentada em 24 de

Março de 1923.

O fato de a indústria ser um tema comum a vários pintores da OST, não faz

desta uma organização homogênea. Para compreendermos isto basta atentarmos para a

obra de Yuri Pimenov, outro importante componenete do grupo. Conquanto tenha

pintado algumas telas sobre a temática industrial, Pimenov também se destacou por

suas lúgubres representações da guerra civil, elaboradas em estilo nitidamente

expressionista. Uma destas telas, intitulada “Inválidos da Guerra” (1926) (fig.38), teve

uma recepeção tensa, provocando um verdadeiro alvoroço no mundo da crítica

especializada, que se mostrou perplexa diante desta imagem a um só tempo patética e

feia. No centro da enorme pintura estão dois indivíduos andrajosos, de aparência

disforme; as faces trágicas transfiguradas pelos horrores da guerra parecem estar

fitando o expectador, embora a visão ali só apareça enquanto perda, pois dos olhos de

um deles só restam as esbranquiçadas órbitas indicando a ausência dos globos oculares

há muito removidos por algum gesto atroz. Eles apenas se arrastam como zumbis pela

planície obscura, estéril, onde todas as obras humanas foram aniquiladas,

permanecendo apenas umas pequenas ruínas de construções, meros rebotalhos de uma

aldeia ou cidade pretérita.

Esta obra está em nítido contraste com as edificantes cenas industriais pintadas

por Deineka. Poderíamos dizer que ela se distancia de um padrão fixado na época, e

talvez a razão disto seja a atitude extremamente idiossincrática do autor ao produzí- la,

134

uma atitude inspirada pelo expressionismo alemão, que valorizava a subjetividade, a

exteriorização catártica dos sentimentos mais íntimos. A obra não revela grande apego

ao realismo figurativo. De fato, as coisas são apresentadas em sua dimensão essencial,

apenas para comunicar simbolicamente os grandes problemas resultantes da guerra:

destruição, mutilação, devastação; as casas, por exemplo, são desenhadas em escala

diminuta, como se fossem brinquedos, e a concentração da luz em suas superfícies as

tornam um tanto quanto irreais, como elementos alógenos naquele solo apátrida, pois

na guerra todos são estrangeiros, já que as identidades são destruídas pelo ódio que

envolve a todos. Para traduzir a guerra, o autor não recorreu a lugares-comuns como

incêndios, multidões de corpos dilacerados ou cidades caóticas; os elementos mínimos

da mensagem são metáforas dos elementos reais.

Por sua marcante singularidade a tela provocou reações de estranhamento e

desconfiança em alguns críticos. Aranovich afirmou que ali não havia qualquer sinal de

sinceridade, pois o artista estava simplesmente reproduzindo padrões expressionistas

por ele assimilados numa exposição de arte alemã realizada no país pouco tempo antes.

Tugendkold insistiu no mesmo ponto, reprovando a obra por sua “complexidade,

refinamento e esteticismo.” 180 Tais críticas aparentemente pretendiam lançar a tese de

que o principal pecado do artista teria sido o de perder-se em elucubrações formais

frívolas. Porém, o mais provável é que a imagem fosse repudiada porque transmitia

uma visão extremamente mórbida da guerra civil e de seus combatentes, uma visão que

se chocava com as representações positivas da indústria, do trabalhador e dos próprios

eventos bélicos, que eram então predominantes.

Como assinalamos anteriormente, o arquétipo do novo indivíduo soviético,

pinçado diretamente da teoria biomecânica de Lunacharski, era presença indefectível

no realismo pictórico novecentista. Este ser humano ideal, forte, desportista, passa a

corporificar o modelo do operário em estado de excelência, e, assim, constituiu-se

como um padrão ao qual os críticos realistas se reportavam para avaliar a obra de arte.

Dentro desta lógica, os seres agônicos pintados por Pimenov, eram consideradas as

grotescas aberrações que só poderiam proporcionar experiências deletérias ao

expectador, já que, segundo a teoria, a visualização de coisas feias, doentias, era nociva

tanto para a mente quanto para o corpo.

Dentro desse mesmo raciocínio podemos entender a noção de tipicidade, pois, a

elaboração de uma imagem de indivíduos padronizados não só organiza a psiquê, no

135

sentido bogdanoviano, como também oblitera as diferenças, as condutas desviantes que

poderiam colocar em risco um projeto doutrinador. Neste sentido, é lícito pensar que a

pintura era julgada mais por suas implicações sociais e por sua existência objetiva a

partir da recepção do que por suas qualidades formais intrínsecas. O compromisso com

esta função socia l tornar-se-ia uma exigência e uma condição para a permanência do

artista na sociedade. Esta função consistia em criar as imagens certas pois, como afirma

Bown, “o artista que fornecesse uma visão ‘distorcida’ poderia ser acusado de

comportamento anti-social.”181

No final da década, pinturas de fundo expressionista como esta tornar-se-iam

muito raras, visto que semelhantes transgressões dificilmente seriam toleradas. As

imagens preponderantes neste período seriam aquelas últimas pinturas da AKRR que

analisamos; imagens de caráter acentuadamente político como “Lênin no Smolny”, de

Brodski. Neste momento o projeto realista atingiu uma encruzilhada, como se tivesse

alcançado os limites do comprometimento ideológico e fosse preciso optar entre as

duas vias que se estendiam adiante: arte ou propaganda política. Tratava-se de um

passo decisivo, pois a escolha poderia significar a preservação ou aniquilamento

daquela autonomia relativa da arte de que fala Marx. Devemos ressaltar, no entanto,

que a questão que se colocava não era uma relação antitética entre arte e iedologia,

pois, como lembra Vazquez, “ a arte é uma esfera autônoma, mas sua autonomia só se

dá por, em e através de seu condicionamento social.”182 Nestas condições de

existência, não há uma oposição entre arte e ideologia, nem tampouco uma

identificação entre elas, pois o que emerge poderosamente é a relação dialética entre

estes termos, que assim abandonam a relação de polaridade em que são geralmente

enquadrados e passam a ser os elementos de um mesmo e complexo trabalho criativo

em que todos os conteúdos sociais, políticos, econômicos e todas as movimentações do

mundo social são livremente apropriados e interpretados pelo artista e só então

incorporados à sua poética.

O grande problema é que esta relação dialética estava sendo gradativamente

elininada no final dos anos 20 em favor de um sistema de controle total onde a criação

perdia seu caráter espontaneísta e passava a responder às necessidades puramente

políticas, que lhe eram extrínsecas. Tal estado de coisas foi se instalando aos poucos,

180 TUGENDKOLD. Apud: Bown, M. C. Op. Cit., p. 95-7. 181 Bown, M. C. Op. Cit., p. 101. 182 VAZQUEZ, A. S. Op. Cit., p. 106.

136

primeiramente através de medidas indiretas como o incentivo à representação da

imagem de Lênin como representante do espírito coletivo, e depois, por meio de

expedientes mais incisivos como o método de Kontraktatsiya, promovido pelo IZOGIZ,

a editora de arte estatal fundada em 1929. Esta instituição encomendava pinturas e

desenhos propagandísticos, que seriam posteriormente transformados em grandes

estampas, as quais, devido à possibilidade de reprodução em larga escala, funcionavam

como vulgarizadores da ideologia stalinista, tendo uma utilização social muito ampla.

Paralelamente, foram instituídos outros departamentos para gerenciar a

atividade artística, como o VSEKOKHUDOZHNIK, que também encomendava

pinturas e organizava excursões por todo o território soviético, durante as quais os

artistas se dedicavam a “retratar” os grandes feitos do governo como fábricas e

fazendas coletivas. Tudo isso representou uma mudança fundamental na arte soviética,

mudança esta surgida dos próprios desdobramentos sócio-culturais e da ingerência do

poder soviético no campo das artes, criando uma imensa rede onde já não era possível

nem aconselhável ser uma artista insular; era preciso estar integrado:

“No período de 1929 a 1932, o VSEKOKHUDOZHNIK realizou dez exposições, enquanto que as exposições de grupos independentes foram drasticamente reduzidas. A kontraktatsiya, como um método para organizar o trabalho de uma ampla massa de pintores, permitiu um grau de controle nunca alcançado durante a NEP. Foi a pedra fundamental de um novo e diretamente gerenciado mundo artístico.” 183 Resta dizer que a Teoria Biomecância, ao conceber um corpo humano sempre

suscetível de transformações a partir de estímulos externos, forneceu os ingredientes

para a formulação deste novo pensamento instrumentalizante, segundo o qual a arte

devia agir diretamente sobre o espírito dos indivíduos. A principal preocupação dos

críticos e líderes políticos nesta época era desvendar os segredos da persuasão e

aquilatar o potencial laborativo de formas e cores quando contempladas pelas pessoas.

Isso explica a grande ênfase dada à questão cromática e à plasticidade do corpo

humano. Se no início do período revolucionário estas idéias eram apenas utopias a

fomentar o desejo de luta por um mundo melhor, nas atuais circunstâncias elas serviam

a propósitos propagandísticos e em breve seriam convertidas em um conjunto de

normas e restrições para o fazer artístico, que, a partir de então, teria que acontecer

sempre dentro de certos limites.

183 BOWN, M. C. Op. Cit., p. 111.

137

Não pretendemos isentar os intelectuais revolucionários como Chernyshevsky,

Bogadanov e o próprio Lunacharski da responsabilidade pela ascensão de um programa

normativo nas artes, tampouco queremos dizer que suas idéias foram corrompidas pelos

homens dos anos 1920. Nosso propósito sempre foi esclarecer que, dentro do processo

histórico, as tendências artísticas e concepções estéticas avançam e recuam, emergem e

desaparecem, de acordo com as eventuais configurações da trama tecida

ininterruptamente ao ritmo das relações sociais. Assim, idéias antigas, apropriadas por

seres de uma outra época, adquirem sempre novos sentidos e, portanto, não cabe a

indagação se, nesta apropriação, houve algum tipo de adulteramento do original, pois o

que realmente interessa é a natureza das novas aplicações destas teorias e as

consequências que elas trazem para o trabalho do artista. Neste sentido, a questão que

sempre se impõe não é a validação da arte realista dentro de uma tradição moderna –

visto que seu estatuto artístico é algo indiscutível, independente de sua “qualidade” -

mas a compreensão desta no interior do contexto histórico que é o seu palco, pois a

criação artística, tenha ela um caráter niilista, anáquico ou conservador, jamais se

conservará a uma distância abissal dos fatos históricos e das realções sociais que ela

própria ajuda a desenhar.

138

CONCLUSÃO

Ao longo de todo este texto insistimos na importante questão da historicidade da

arte pictórica russa, e tentamos propor um debate acerca dos elementos históricos que

pensamos ser inseparáveis de qualquer proposta artística germinada nesta época plena

de transfigurações sociais definitivas. A razão para tamanha obstinação em perseguir a

dimensão histórica da arte é a constatação de que, a partir de 1850, a Rússia conheceu

uma sucessão de grandes movimentos políticos e culturais que abalaram seriamente as

bases do estabelecimento czarista e funcionaram como catalisadores dos projetos

artísticos progressistas que já nascem sintonizados com a causa revolucionária.

Durante um período de 70 anos a idéia de uma revolução política e da

construção de uma nova e livre Rússia, gesta-se de forma gradativa e passa a habitar o

imaginário de artistas e intelectuais que, de fato, não permaneceram alheios a esse

processo de lutas. Graças ao trabalho contumaz de notáveis ativistas como Bakunin,

Herzen, Chernisheviski, Lênin e de sua perseverante defesa socialismo, a Rússia

consolidou uma tradição revolucionária que tornar-se-ia um traço distintivo de suas

realizações políticas e estéticas. Neste contexto, a poesia, o cinema, o teatro e as artes

plásticas, foram naturalmente “contaminadas” pelo desejo de transformação social, de

forma que, a politização da poética e o engajamento do artista tornaram-se não só

inevitáveis como necessárias à sobrevivência da arte.

Tal processo de politização construiu-se de forma heterogênea, em diversas

fases, com diferentes graus de unicidade e intensidade. Uma primeira e mais genérica

expressão da revolta é uma franca hostilidade à cultura ocidental e à sua tradição

clássica, um sentimento compartilhado por indivíduos de diferentes convicções. Para

Hauser o individualismo era o atributo da cultura ocidental que mais atormentava os

artistas russos que “consideravam a grande, a crucial questão européia da alienação

do indivíduo em relação à sociedade e o isolamento do homem moderno como o

verdadeiro problema da liberdade.”184 Essa reação à dissolução dos valores culturais

própria da modernidade ocidental acabou conduzindo o artista à uma reavaliação do seu

patrimônio nativo. Para combater a destruição daqueles laços comunais que garantiam a

sua existência enquanto ser social ele volta-se para as suas raízes, para o legado

autóctone olvidado durante os anos de predominância cultural européia. O regresso às

origens e aos fazeres do povo foi empreendido de forma mais sistemática e incisiva

139

pelos Itinerantes, o grupo de pintores que, tendo nascido de uma rebelião contra a

Academia Imperial, iniciou a grande viagem pelo território nacional com a finalidade

de captar o cotidiano camponês. Em outros momentos, novas modalidades de

engajamento são criadas pelos artistas, seja numa perspectiva libertária e anárquica

como as vanguardas, seja por um viés declaradamente oficializante e comprometido

com o Estado.

Em todos estes momentos importantes podemos notar a decisiva participação do

artista nos desenvolvimentos históricos. Como não poderia deixar de ser, o

envolvimento sempre existiu e esteve a influir no processo criativo, sem contudo

limitar as possibilidades de invenção e imaginação. Esse foi o motivo pelo qual

reiteramos a impossibilidade de uma arte auto-referente no contexto russo, mesmo no

que tange ao principais movimentos de vanguarda. Se na Europa a arte moderna sempre

fora vista como experiência puramente estética, formalizante e voltada para o estudo de

seus própios métodos, na Rússia, temos que admitir, o sentido das vanguardas rompe as

muralhas do reino estético e se projeta sobre a cidade em ebulição. A atitude

vanguardista sempre se definiu como um imiscuir-se no vórtice social, no torvelinho

dionisíaco da revolução. Assim ocorreu desde o movimento neoprimitivista que, como

salientamos, era extremamente simbólico do despertar da consciência política nos

artistas, o que se desdobrou numa noção de pertencimento a um país com

potencialidades para vir a ser independente em todos os sentidos. Assim também

ocorreu na fase da chamada “Arte pública”, quando os vanguardistas levaram suas

insólitas formas e performances para o meio dos estilhaços da velha sociedade.

Entretanto, nem precisaríamos nos reportar às arrojadas artes modernas para

virmos as sutis formas de engajamento que estão na raís da arte russa, pois a gênese

desta característica é bastante anterior e antecede em muitas décadas aos

acontecimentos revolucionários levados a efeito em Outubro de 1917. Na verdade

aqueles grandes feitos, geralmente tidos como ocorrências súbitas, começam a ser

preparados no século XIX, e foi também nesta época que a arte deixou de ser uma

atividade acadêmica e elegante e, acompanhando os desenvolvimentos na esfera

política, passou a assumir novas posições diante das questões primordiais. Hauser diz

que isto é “o sinal de uma revolução que conduz ao fim a cultura estética do século

184 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura, p. 1023.

140

XIX, e para o primeiro plano uma geração que considera a arte um veículo de

idéias.”185

A partir desta conscientização os artistas enfrentaram as questões mais

candentes de seu próprio país, o que não significa que se processasse algum tipo de

divórico entre eles e o mundo ocidental, pois a construção da identidade se fazia por

meio de uma relação de confronto entre o interno e o externo; entre os elementos da

tradição oriental e aqueles assimilados diretamente da Europa. Foi o conhecimento dos

fatos a nível global que alertou o olhar estético para a importância do autóctone. É lícito

dizer então que a modernidade não foi simplesmente tomada de empréstimo; ela

ingressou no universo russo por vias semelhantes àquelas por ela trilhadas no caso

brasileiro, uma espécie de antropofagia, onde o formalismo foi absorvido,

reinterpretado e transmutado em recursos plásticos para a comunicação de idéias

pertinentes à realidade russa. Neste sentido, a vanguarda, longe de ser uma mera

repetição dos movimentos franceses é, acima de tudo, um projeto independente e até

mesmo inédito naquela época, e talvez seja plausível afirmar que o que a torna sui

generis em meio a tantos radicalismos é o gesto comprometido e reflexivo que a

engendra. A consequência maior da vanguarda não foi a autonomia da arte ou o

isolamento do artista, mas sim, a redefinição dos parâmetros de engajamento e

pensamento plástico.

A maior evidência desta imbricação entre arte e história pode ser econtrada na

sucessão de fatos artísticos no período aqui estudado. A trajetória descrita pelo fazer

pictórico desde os anos de 1860 até 1930 revela como o artista estava atento à política.

O ressurgimento da forma realista, em pleno século XX, num momento que poderia ser

descrito como a fase terminal da crise pictórica, não é uma aberração, uma

degenerescência da arte causada por arbitrariedades na instância política. É notório que

nos anos 1930 um grande ditador instituíra um governo de exceção e intolerância que

instituiu a normatização de todas as formas de arte. Todavia, não podemos imputar a

este governo totalitário toda a responsabilidade pelo crescimento de um tipo de arte

que, já no início da década de 1920, conseguira se enraizar e constituir uma importante

tendência que dominaria toda a fase pós-vanguardista.

Conforme explicamos no capítulo III, havia uma boa dose de oportunismo por

trás do sucesso de grupos realistas como a AKRR, porém, esse fato isolado não explica

toda a complexa história do realismo neste século, de forma que pensamos que a

185 Ibidem, p. 1045.

141

pergunta a se fazer sobre o realismo não tem nenhuma relação com legitimidade; não

precisamos justificar a estética realista a partir destes novos critérios definidos pelo

contexto de ruptura em cujo ápice as abordagens miméticas e as composições narrativas

foram julgadas obsoletas, mesmo porque a arte não está atrelada a um processo

evolutivo onde haja sempre novos estágios impondo-se como sucedâneos de seus

antecessores fenecidos. Como manifestação cultural de um grupo de homens vivendo

na confluência de tempos presentes, pretéritos e futuros, arte está sujeita a uma série de

desvios, avanços, retrocessos; ela não percorre uma trajetória retilinear, mas sim um

emaranhado de vias que nascem dos embates do homem com a sua história e a de seu

povo. Assim, da mesma maneira que aceitamos e entendemos a atitude iconoclasta dos

artistas de esquerda e apontamos suas afinidades com a revolução, também devemos

encarar o advento do realismo como um acontecimento natural na história de um país

que na verdade nunca perdera a tradição realista.

Benjamim nos forneceu algumas pistas da importância da forma figurativa e da

própria narrativa pictórica para o proletariado russo186. Embora não concordemos com a

asserção de que a pintura vanguardista era hermética ou ininteligível para o cidadão

comum, pensamos que tradições não são esquecidas num breve período de duas

décadas. Seria mais apropriado considerar que, num país democrático, o velho e o novo

convivem sem grandes problemas, e é justamente a pluralidade de formas de agir e

pensar que garante a vitalidade de uma determinada cultura. Os artistas, assim como

todos os seres humanos, conquanto estejam sempre inquietos, intrigados diante de seus

fazeres e procurem sempre criar coisas novas para fugir da imobilidade e da letargia,

não desejam perder de vista suas raízes, simplesmente porque não poderiam renunciar à

história e à uma existência temporal.

Encontramos uma evidência deste processo na obra de um grande artista de

vanguarda como Malevitch que, no epílogo, regressou às modalidades pictóricas

tradicionais e aos temas folclóricos que lhe interessaram no início da carreira187. Este

intinerário que se incia na proposição de movimentos radicais, alcançando o paroxismo

da abstração e culmina num discreto retorno, não é um indicador de que a Vanguarda

fosse um projeto efêmero destinado a se exaurir; ele indica, tão somente, que o

processo criativo possui um fator mnemônico, e que o artista, como ser que lembra, não

186 BENJAMIM, Walter. O Diário de Moscou. Op. Cit. 187 Tal experiência não foi uma exlcusividade dos artistas russos. O espanhol Pablo Picasso, depois de inventar a revolucionária estética cubista, produziu impactantes representações da guerra civil espanhola, onde observamos esta mesma fusão de recursos modernos e tradicionais.

142

pode romper os laços que o prendem ao passado, pois se arte fosse apenas inovação,

ineditismo, poderíamos classificá-la como atividade a-histórica e, como tal, ela seria

alguma coisa inapreensível para o homem, que não teria como integrá-la à sua vida.

A vanguarda constituiu um grande fenômeno da arte pictórica russa que, ainda

hoje, sobrevive e continua a suscitar debates em todo o mundo; é uma importante

realização estética que sobreviveu ao seu próprio tempo, tendo sido incorporada ao

legado das artes visuais. Da mesma forma, o realismo novecentista, como tendência

pictórica experienciada durante quase todo o século XX naquele país, é algo que não

deve ser desprezado como mero exotismo bizarro, pois, independente de suas

qualidades formais, a pintura realista permite compreender a situação cultural da Rússia

de uma forma que nenhum outro documento possibilitaria.

Ao contrário do que muitos pensam, as artes plásticas constituem um sistema de

linguagem com seus próprios mecanismos os quais, articulados conscientemente pelo

artista, podem comunicar visões de mundo e idéias não necessariamente de cunho

político. O que torna uma obra peculiar é a maneira como o artista lida com os

elementos da linguagem, não somente para refletir os fatos históricos, mas também para

lançar indagações, propor debates, ou expressar convicções. Neste sentido, a pintura

russa, nas três fases aqui abordadas, impõe-se como imagética prenhe de significados

históricos, políticos, estéticos que partem da própria imagem e incidem sobre o tecido

social, produzindo transformações em outros meios, que não os estéticos. Queremos

dizer que a obra materializa um pensamento especificamente figurado, ou, como diz

Coli, “um pensamento que se produz enquanto imagem e não um pensamento traduzido

em imagens.”188

188 COLI, Jorge. Op. Cit., p. 383.

143

Fig. 1- Karl Bryullov. O Último Dia de Poméia. (1880-33). Óleo s/tela. (456x659). Museu

Russo. São Petersburgo.

Fig.2 - Eugene Delacroix. A Liberdade Guiando o Povo.

144

Fig. 3 - Alexei G. Venetsianov. Lavoura na Primavera. Óleo s/ tela (51x65). Galeria Tretiakov.

Fig. 4 - Vasily Perov. Uma Procissão Religiosa para o Leste (1861). Óleo s/ tela (71x89). Galeria Tretiakov, Moscou

145

Fig. 5 - Ilya Repin. Eles não o esperavam. (1884). Óleo s/ tela (71x89). Galeria Tretiakov, Moscou.

Fig. 6 - Ilya Repin. Cossacos Zaporozhe. (1880-91). Óleo s/ tela (203x358). Museu Russo. São

Petersburgo.

146

Fig. 7 - Vasily Surikov. A Boyarina Morozova, 1887. Óleo s/ tela, (304x587,5). Galeria Tretiakova, Moscou.

Fig. 8 - Viktor Burissov-Mussatov. Um Reservatório, 1902. Têmpera s/ tela, (177x216). Galeria Tretiakov, Moscou.

147

Fig. 09 - Kuzma Petrov-Vodkin. Garotos, 1911. Óleo s/ tela, (123x157), Museu Russso. São Petersburgo

Fig. 10 - Natália Goncharova. Camponeses colhendo maçãs, 1911. Óleo s/ tela, (104x97,5), Galeria Tretiakov, Moscou

148

Fig. 11 - Pavel Kusnetsov. A FonteAzul. Têmpera s/ tela, (127x131). Galeria Tretiakov, Moscou.

149

150

151

Fig. 14 - David Burliuk. Meu ancestral Cossaco, 1908. Óleo s/ tela. Localização Desc.

152

153

Fig. 16 - Natália Goncharova. O Ciclista. 1912-13. Óleo s/ tela, (78x105), Museu Russo, São Petersburgo.

Fig. 17 - Mikhail Larionov. Raionismo Azul, 1912. Óleo s/ tela, (70x65). Coleção particular.

154

Fig. 18 - Kazimir Malevitch. O Banhista, 1909-10, Guache s/ papel (105x69), Stedelijk Museum, Amsterdam.

155

Fig. 19 - Kazimir Malevitich. Cabeça de garota camponesa, 1913. Óleo s/ tela, (88x57). Stdedelijk Museum, Amsterdam.

156

Fig. 20 - Kazimir Malevitch. Um Inglês em Moscou, 1914. Óleo s/ tela (88x57), stedelijk Museum, Amsterdam.

Fig. 21 - Kazimir Malevitch. O Lenhador, 1911. Óleo s/ tela, (94x71,5), Stedelijk Museum, Amsterdam

157

Fig. 22 - Kazimir Malevitch. Desenho para pano de fundo da ópera futurista "Vitória sobre o sol", de Kruchenikh, apresentada em dezembro de 1913 no Teatro Luna Park, em São

petersburgo

158

Fig. 23 - Kazimir Malevitch. Quadrado Preto, c. 1913. Óleo s/ tela (106x106). Stedelijk Museum, Amsterdam.

159

Fig. 24 - Kazimir Malevitch. Círculo Preto, 1913. Óleo s/ tela, (106x106), Stedelijk Museum, Amsterdam.

160

Fig. 25 - Kazimir Malevitch. Composição Suprematista, 1916-17. Óleo s/ tela, (80x71,5), Museu Russo, São Petersburgo.

Fig. 26 - Kazimir Malevitch. Composição Suprematista, 1916-17. Óleo s/ tela (97,8x66,4), MoMA, New York.

161

162

Fig. 29 - Vladimir Tatlin. Monumento ä Terceira Internacional, 1919-20, madeira.

163

Fig. 30 - Yuri P. Anenkov. Trotsky, 1923. Óleo s/ tela. Localização desconhecida. Foto: Dave King Collection.

164

Fig. 31 - Nikolai N. Nikonov. A Entrada dos Vermelhos em Krasnoiarski, 1923, (95x180), Museu da Revolução, Moscou.

165

Fig. 32 - Efim Cheptsov. Reunião de um Comitê do Partido em uma aldeia, 1924. Óleo s/ tela (59x77), Galeria Tretiakov, Moscou.

Fig. 35 - Isaak Brodsky. Lênin no Smolny, 1930. Óleo s/ tela, (190x287), Galeria Tretiakov, Moscou.

166

Fig. 33 - Evgeny Katzman. As Rendeiras de Kalyazin, 1928. Pastel s/ papel, (91x142), Galeria Tretiakov, Moscou.

167

168

Fig. 36 - Alexander Deineka. Construindo Novas Fábricas, 1926. Óleo s/ tela, (209x200), Galeria Tretiakov, Moscou.

Fig. 37 - Alexander Deineka. A Defesa de Petrogrado, 1927. Óleo s/ tela.

169

Fig. 38 - Yuri Pimenov. Inválidos da Guerra, 1926. Óleo s/ tela (266x178), Museu Russo, São Petersburgo.

170

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