Marcos Bagno Sobre Colocacao Pronominal

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A baboseira sem fim da colocação pronominal http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=459 Marcos Bagno Revista Caros Amigos Jan/ 2009 O brasileiro é o único povo do mundo que precisa aprender uma infinidade de regras para um-dia-talvez-quem-sabe empregar “corretamente” os pronomes oblíquos. Algo que deveria ser absolutamente simples, intuitivo, natural, espontâneo, tranqüilo se transformou, por força da paranóia gramatiqueira que impera na nossa cultura, em fonte de insegurança, incerteza, receio e baixa-estima lingüística. A famigerada “colocação pronominal” vem ocupando as discussões sobre língua no Brasil há pelo menos cento e cinqüenta anos. Ela representa decerto o melhor exemplo do esforço insano dos puristas babacas em impedir o reconhecimento de uma língua caracteristicamente brasileira. Por isso, é muito mais uma questão sociocultural (e, por conseguinte, política) do que uma questão de ordem gramatical, lingüística. Saber colocar “corretamente” os pronomes virou uma marca de distinção, o conhecimento de alguma coisa “difícil” e “sofisticada” que exige algum grau de inteligência superio r, necessário para separar os que merecem ocupar os postos de comando da sociedade dos que merecem ficar em posição subalterna. É preciso então denunciar essa história toda como uma grande baboseira, uma perda de tempo e um desserviço à cidadania. A colocação pronominal é o que melhor revela a subserviência da nossa tradição purista frente aos modelos importados de Portugal. As regras que as gramáticas prescrevem funcionam muito bem para a língua dos portugueses simplesmente porque elas correspondem aos usos reais que os portugueses fazem dos pronomes, usos que decorrem das características fonético-fonológicas da língua deles (que é diferente da nossa). Os portugueses não “erram” na hora de colocar os pronomes porque, para sorte deles, as colocações consideradas certas são as que eles já usam, naturalmente, intuitivamente! Por que não pode ser assim também no Brasil? Esqueça tudo o que você tem lido sobre colocação pronominal e faça, por favor, o teste abaixo: Assinale em cada série a alternativa que corresponde ao seu modo de falar mais natural e espontâneo: 1.a) Você pode me emprestar uma caneta? b) Você pode emprestar-me uma caneta? c) Você me pode emprestar uma caneta? 2.a) O trabalho tem me ocupado demais ultimamente. b) O trabalho me tem ocupado demais ultimamente. 3.a) Me disseram que você parou de fumar, é verdade? b) Disseram-me que você parou de fumar, é verdade? 4.a) Me ajuda aqui! b) Ajuda-me aqui! 5.a) A festa se realizará no saguão da igreja. b) A festa realizar-se-á no saguão da igreja. Se você assinalou, em todos os casos, as alternativas com letra (a), parabéns: você é um(a) legítimo(a) falante do português brasileiro contemporâneo! E como todos os falantes do português brasileiro contemporâneo, você sabe, intuitivamente, que só existe uma única regra de colocação pronominal na nossa língua: a próclise ao verbo principal, isto é, o pronome colocado antes do verbo principal. Pronto, gente, acabou! Tá tudo resolvido! Vamos agora cuidar do que interessa, tentar pagar as contas do mês e levar a nossa vida em paz?

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A discussão acerca da colocação pronominal em Português brasileiro.A discussão acerca da colocação pronominal em Português brasileiro.

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Marcos Bagno: Linguista – Prof. da Universidade de Brasília

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Textos e Artigos para a Revista Caros Amigos A baboseira sem fim da colocação pronominal http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=459 Marcos Bagno Revista Caros Amigos – Jan/ 2009

O brasileiro é o único povo do mundo que precisa aprender uma infinidade de regras para um-dia-talvez-quem-sabe empregar “corretamente” os pronomes oblíquos. Algo que deveria ser absolutamente simples, intuitivo, natural, espontâneo, tranqüilo se transformou, por força da paranóia gramatiqueira que impera na nossa cultura, em fonte de insegurança, incerteza, receio e baixa-estima lingüística.

A famigerada “colocação pronominal” vem ocupando as discussões sobre língua no Brasil há pelo menos cento e cinqüenta anos. Ela representa decerto o melhor exemplo do esforço insano dos puristas babacas em impedir o reconhecimento de uma língua caracteristicamente brasileira. Por isso, é muito mais uma questão sociocultural (e, por conseguinte, política) do que uma questão de ordem gramatical, lingüística. Saber colocar “corretamente” os pronomes virou uma marca de distinção, o conhecimento de alguma coisa “difícil” e “sofisticada” que exige algum grau de inteligência superior, necessário para separar os que merecem ocupar os postos de comando da sociedade dos que merecem ficar em posição subalterna. É preciso então denunciar essa história toda como uma grande baboseira, uma perda de tempo e um desserviço à cidadania.

A colocação pronominal é o que melhor revela a subserviência da nossa tradição purista frente aos modelos importados de Portugal. As regras que as gramáticas prescrevem funcionam muito bem para a língua dos portugueses – simplesmente porque elas correspondem aos usos reais que os portugueses fazem dos pronomes, usos que decorrem das características fonético-fonológicas da língua deles (que é diferente da nossa). Os portugueses não “erram” na hora de colocar os pronomes porque, para sorte deles, as colocações consideradas certas são as que eles já usam, naturalmente, intuitivamente! Por que não pode ser assim também no Brasil?

Esqueça tudo o que você tem lido sobre colocação pronominal e faça, por favor, o teste abaixo: Assinale em cada série a alternativa que corresponde ao seu modo de falar mais natural e espontâneo:

1.a) Você pode me emprestar uma caneta? b) Você pode emprestar-me uma caneta? c) Você me pode emprestar uma caneta? 2.a) O trabalho tem me ocupado demais ultimamente. b) O trabalho me tem ocupado demais ultimamente. 3.a) Me disseram que você parou de fumar, é verdade? b) Disseram-me que você parou de fumar, é verdade? 4.a) Me ajuda aqui! b) Ajuda-me aqui! 5.a) A festa se realizará no saguão da igreja. b) A festa realizar-se-á no saguão da igreja.

Se você assinalou, em todos os casos, as alternativas com letra (a), parabéns: você é um(a) legítimo(a) falante do português brasileiro contemporâneo! E como todos os falantes do português brasileiro contemporâneo, você sabe, intuitivamente, que só existe uma única regra de colocação pronominal na nossa língua: a próclise ao verbo principal, isto é, o pronome colocado antes do verbo principal. Pronto, gente, acabou! Tá tudo resolvido! Vamos agora cuidar do que interessa, tentar pagar as contas do mês e levar a nossa vida em paz?