Marco Antonio Perruso - Judicialização da política

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p. 241 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 24, p. 241-252, 2009 ASPECTOS SOCIOLÓGICOS DA LITIGÂNCIA E DO ACESSO À JUSTIÇA 12 Marco Antonio Perruso Técnico Judiciário da Seção de Apoio ao Gabinete da Diretoria do Foro – Sagab/DIRFO; Professor Adjunto da Faculdade de Sociologia da UFRRJ; Doutor em Sociologia pela UFRJ RESUMO O presente artigo busca expor sucintamente alguns aspectos sociais, políticos e culturais da litigância e do acesso à justiça nas sociedades contemporâneas, no Brasil em particular. Do ponto de vista sociológico, trata-se dos fenômenos da “judicialização das relações sociais” e do incremento do acesso à justiça, ambos entendidos como processos pertinentes à ampliação do exercício da democracia e da cidadania. PALAVRAS-CHAVE Direitos. Judicialização das relações sociais. Acesso à justiça SUMÁRIO 1 Introdução 2 Excesso de litigância? A questão da judicialização das relações sociais 3 Acesso à justiça e exercício da democracia e da cidadania 4 Conclusão 5 Bibliografia ABSTRACT This paper briefly describe some social, political and cultural aspects of litigation and access to justice in contemporary societies, Brazil in particular. From the sociological point of view, these are the phenomena of “judicialization of social relations” and the increasingng access to justice, both processes understood as relevant to the extension of the exercise of democracy and citizenship. KEYWORDS Rights. Judicialization of social relations. Access to Justice 1 Enviado em 7/11/2008, aprovado em 12/12/2008 e aceito em 16/3/2009. 2 Este pequeno artigo resulta de meu trabalho final da disciplina Justiça, Direitos e Cidadania, ministrada pelas professoras Elina Pessanha e Regina Morel no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Agradeço a André Luiz de Araújo e Sônia Montero Souto, meus colegas de trabalho na Justiça Federal, pelos esclarecimentos prestados na área do Direito, campo cuja semântica não domino.

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Texto analisando a judicialização da política no Brasil.

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    ASPECTOS SOCIOLGICOS DA LITIGNCIA E DO ACESSO JUSTIA12

    Marco Antonio Perruso

    Tcnico Judicirio da Seo de Apoio ao Gabinete da Diretoria do Foro Sagab/DIRFO;

    Professor Adjunto da Faculdade de Sociologia da UFRRJ;

    Doutor em Sociologia pela UFRJ

    RESUMO

    O presente artigo busca expor sucintamente alguns aspectos sociais, polticos e

    culturais da litigncia e do acesso justia nas sociedades contemporneas, no Brasil

    em particular. Do ponto de vista sociolgico, trata-se dos fenmenos da judicializao

    das relaes sociais e do incremento do acesso justia, ambos entendidos como

    processos pertinentes ampliao do exerccio da democracia e da cidadania.

    PALAVRAS-CHAVE

    Direitos. Judicializao das relaes sociais. Acesso justia

    SUMRIO

    1 Introduo 2 Excesso de litigncia? A questo da judicializao das relaes

    sociais 3 Acesso justia e exerccio da democracia e da cidadania 4 Concluso

    5 Bibliografia

    ABSTRACT

    This paper briefly describe some social, political and cultural aspects of litigation

    and access to justice in contemporary societies, Brazil in particular. From the

    sociological point of view, these are the phenomena of judicialization of social

    relations and the increasingng access to justice, both processes understood as

    relevant to the extension of the exercise of democracy and citizenship.

    KEYWORDS

    Rights. Judicialization of social relations. Access to Justice

    1 Enviado em 7/11/2008, aprovado em 12/12/2008 e aceito em 16/3/2009.2 Este pequeno artigo resulta de meu trabalho final da disciplina Justia, Direitos e Cidadania, ministrada pelas professoras Elina Pessanha e Regina Morel no Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ. Agradeo a Andr Luiz de Arajo e Snia Montero Souto, meus colegas de trabalho na Justia Federal, pelos esclarecimentos prestados na rea do Direito, campo cuja semntica no domino.

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    SUMMARY

    1 Introduction 2 Excessive litigation? The matter of judicialization of social

    relationships 3 Access to justice and the exercise of democracy and citizenship

    4 Conclusion 5 Bibliography

    1 Introduo

    Muito se fala a respeito da ocorrncia de um excesso de litigncia na sociedade

    brasileira, isto , de uma utilizao demasiada do recurso justia por parte de

    diversos agentes sociais e institucionais. Por vezes, tal fenmeno identificado como

    judicializao da poltica, por correntemente envolver disputas entre agentes na arena

    poltica. Na verdade, um possvel excesso de litigncia deve ser referido ao conjunto

    das relaes sociais, por no estar restrito atividade poltica: torna-se, portanto, mais

    adequada a expresso judicializao das relaes sociais. Busco questionar, do ponto

    de vista sociolgico, a veracidade de tal hiptese, ou, ao menos, seus propalados efeitos

    negativos na sociedade brasileira atual.

    2 Excesso de litigncia? A questo da judicializao das relaes sociais

    Discuto a chamada judicializao da poltica ou, mais amplamente,

    a judicializao das relaes sociais, ao analisar duas interpretaes antagnicas:

    a primeira v este fenmeno como problemtico para o funcionamento da democracia

    poltica e adotada, entre outros, por Bernardo Sorj; a segunda entende-o como

    enriquecedor do processo democrtico, visto em termos mais amplos, e adotada por

    Luiz Werneck Vianna e outros.

    Sorj empreende uma reviso de conceitos sociolgicos ligados aos direitos e aos

    conflitos sociais. Juridificao da sociedade faz referncia expanso e adensamento

    do Direito Positivo na sociedade moderna e particularmente institucionalizao do

    conflito de classes, legislao trabalhista e regulao do conflito social, enquanto

    judicializao da poltica e das relaes sociais consistiria na crescente expanso do

    Poder Judicirio e/ou dos mtodos judiciais, especialmente o poder de reviso judiciria

    das aes do Legislativo e do Executivo (SORJ, 2000, p. 102-103).

    O socilogo discute a democracia e a cidadania modernas, ao destacar que nelas

    h uma dualidade entre indivduo referente da liberdade e comunidade nacional

    referente da igualdade, do bem comum , bem como categorias intermedirias e

    mesmo transnacionais (grupos tnicos, religies, sindicatos, etc). Sendo o bem comum

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    garantido pelo Estado, desenvolve-se historicamente um processo de burocratizao

    correlato construo do Estado de Bem-Estar Social. Posteriormente, na vigncia

    atual do neoliberalismo, quando aumentam a individualizao, a mercantilizao e a

    contratualizao das relaes sociais, acaba-se por, inadvertidamente, exigir maior

    presena indireta do Estado, notadamente do Judicirio.

    Sorj menciona reflexes de Jrgen Hbermas, para quem o processo de

    juridificao significaria uma colonizao das relaes sociais pelo Estado, o que,

    curiosamente, por conta da origem marxista do pensador alemo, remete crtica

    liberal ao Estado de Bem-Estar Social. Contudo, este tipo de Estado, garantidor

    de direitos coletivos, mas em crise, tambm sofre presses de movimentos sociais

    reivindicadores da diferena e da diversidade, ensejando especificaes na perspectiva

    do Direito (op. cit., p. 102-107).

    Em termos genricos, no mundo ocidental at a poca do liberalismo original

    (que encerrou-se com a Crise de 1929), o Judicirio era um poder subsidirio,

    aparentemente neutro, reativo, acionado primordialmente por indivduos, conservador,

    elitista, tecnicamente rigoroso mas eticamente frouxo e socialmente irrelevante

    (SANTOS et al., 1996, p. 29-35). Tal situao foi mudando lentamente na maioria das

    sociedades modernas, em face do advento do Estado de Bem-Estar Social na Europa, das

    experincias desenvolvimentistas e populistas protagonizadas por vrios pases pobres,

    entre outros processos histricos. O surgimento da Justia do Trabalho no Brasil um

    bom exemplo a respeito. Nas sociedades contemporneas, o Judicirio crescentemente

    ganha relevncia. Para Bernardo Sorj, tal fenmeno sociolgico e histrico deve-se aos

    seguintes fatores: presso de setores sociais subalternizados em busca de direitos, tanto

    coletivos como especficos; privatizao de diversos servios pblicos, o que motiva

    mltiplos questionamentos centrados na relao fornecedor-consumidor, mas no

    exclusivamente nela; a profuso, por vezes contraditria e mesmo catica, de legislaes

    (inflao jurdica); a recorrente crise de legitimidade da democracia, da participao,

    da representao poltica e das ideologias (SORJ, 2000, p. 108-118).

    Essa intensificao da atuao do Judicirio provoca reaes do Executivo e do

    Legislativo, em nome da chamada governabilidade, posicionamento comum a diversos

    autores, como, por exemplo, Fbio Kerche e Rogrio Bastos Arantes. Ambos consideram a

    incidncia constante de reclames/manifestaes judiciais como causadora de incerteza

    jurdica para o Estado e para a iniciativa privada (1999, p. 28-41). Nesse caso, resta

    olvidado, pelos ditos mercados em tempos neoliberais, que a ida ao Judicirio

    possibilidade prevista em qualquer contrato, um procedimento intrnseco s relaes

    capitalistas de produo, bem como ao componente contratualista da ideologia liberal.

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    Sem atentar para esse fato, Sorj aponta outros fatores relacionados ao

    grande protagonismo poltico e social do Judicirio contemporneo: a importncia

    e a maior acessibilidade dos tribunais como cortes constitucionais nas sociedades

    contemporneas uma vez que interpretam e revisam medidas legislativas e executivas,

    aumentando o carter poltico das decises judiciais; a juventude e a independncia

    dos juzes; o excesso de trabalho em condies no ideais, o que traz um ativismo ao

    Judicirio no s poltico, mas at mesmo ideolgico e sindical; a dessacralizao

    total do Estado e da sociedade ao deslocar vrios debates e conflitos sociais para a

    ampla dimenso dos direitos, cabendo ao Judicirio dirimir questes antes disputadas/

    negociadas na arena poltico-ideolgica propriamente dita.

    Assim, nesse quadro de crescente incapacidade de o sistema representativo

    (Executivo e Legislativo) expressar demandas e articular alternativas sociais, ultrapassados

    por mltiplas identidades coletivas, crescentemente atribui-se ao Judicirio a resoluo

    dos conflitos. O que, por sua vez, no diagnstico de Bernardo Sorj, agravaria o carter

    arbitrrio/interpretativo e poltico das decises judiciais. Tal processo, continua

    o autor, ocorre em detrimento dos outros dois poderes e da prpria capacidade de o

    Judicirio, presumidamente neutro e formal, zelar pela aplicao das leis. E conclui:

    como os sistemas de justia normalmente so complexos, as camadas desprivilegiadas

    da sociedade tendem a levar desvantagem no acesso prestao jurisdicional, trazendo

    um descrdito e a potencialmente perigosa busca de solues extrajudiciais. Haveria

    nesse processo um substitucionismo, de teor anti-democrtico, por parte de agentes do

    Judicirio, bem como do Ministrio Pblico: tutelar a sociedade e concentrar em apenas

    um poder a capacidade/atribuio de transformao social, em detrimento dos poderes

    Executivo e Legislativo e da democracia representativa (SORJ, 2000, p. 108-118). O que

    faz lembrar uma velha crtica da direita liberal s polticas da esquerda socialista. O

    Judicirio e o Ministrio Pblico so acusados de autoritarismo tambm por Kerche e

    Arantes: Intervenes judiciais so consideradas ilegtimas justamente porque so

    antidemocrticas, porque podem ir contra a manifestao da vontade popular e dos seus

    rgos representativos, ao passo que os rgos judiciais no so expresso dessa vontade

    nem so passveis de controle pelo povo. (1999, p. 34).

    Como ser visto adiante, existe outro modo de compreender a democracia

    e os trs poderes, bem menos simplista do que a leitura depreendida da obra

    acima mencionada.

    A leitura desenvolvida por Sorj demonstra que a judicializao da poltica e

    das relaes sociais teria o efeito de desestimular a livre expresso e o livre exerccio

    da cidadania e das reivindicaes sociais, resultando numa espcie de desencantamento

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    democrtico (VIANNA et al., 2001, p. 23-32). As elaboraes de Bernardo Sorj, neste

    sentido, filiam-se ao eixo analtico procedimentalista nas teorias do Direito e do

    Estado, presente nas obras de Hbermas e Garapon. A desvalorizao da participao

    democrtica, especialmente de seu componente poltico, representativo e institucional

    (partidos, associaes, etc), faz com que os indivduos busquem o Judicirio como

    meros clientes. Contudo, essa busca desencantada no parece coadunar com as lutas de

    grupos e movimentos sociais em torno de demandas coletivas e difusas. Veremos como

    Werneck Vianna et al. debruam-se sobre essa questo, mas com outro vis, oposto ao

    adotado por Sorj. De qualquer forma, Hbermas e Garapon ressaltam a autonomia dos

    indivduos e grupos sociais em criar e demarcar seus direitos, formalmente da o vis

    procedimental (VIANNA et al., 2001, p. 29).

    Voltando linha de raciocnio de Sorj, no mesmo sentido afirmam Kerche e Arantes

    buscar uma valorizao do jogo poltico e da democracia contra a tendncia atual de

    judicializao dos conflitos polticos (op. cit., p. 41). Outra figura importante do mundo

    jurdico brasileiro que elabora uma viso exclusivamente negativa da judicializao da

    poltica e das relaes sociais Gilmar Mendes, ex-advogado geral da Unio e atual

    Ministro do Supremo Tribunal Federal (MACIEL; KOERNER, 2002, p. 117).

    O tipo de posicionamento analtico, terico e poltico de Sorj, bem como o de

    Fbio Kerche, Rogrio Bastos Arantes e Gilmar Mendes construdo a partir de uma viso

    da democracia, da poltica e do pblico por demais formal e liberal. Assim, perfaz-se

    uma leitura negativa e at dramtica do desenvolvimento recente da institucionalidade

    democrtica brasileira. Essa leitura no leva em considerao, por exemplo, que a

    inflao jurdica de grande responsabilidade do furor legislativo por meio de medidas

    provisrias, questionveis sob diversos aspectos de sucessivos governos federais, tanto o

    de Fernando Henrique Cardoso como o de Luiz Incio Lula da Silva.

    A linha de discusso de Bernardo Sorj sobre a temtica da juridificao/

    judicializao no aborda mais extensamente um dos dilemas principais da relao entre

    democracia, trs poderes e o Judicirio: vontade da maioria ou direitos da minoria?

    No h em Sorj uma reflexo sobre a complexidade das democracias contemporneas,

    que no podem mais ser pensadas e julgadas com os olhos de um liberalismo o qual

    pretende manter-se intocado pela diversidade social e institucional. Coaduna dessa

    teoria Marcelo Neves, que reclama do Judicirio e da hipertrofia da dimenso poltica-

    simblica em detrimento de sua funo jurdico-normativa (2004, p. 267). Como se

    o exerccio democrtico e o exerccio pleno dos direitos civis, sociais, polticos e

    humanos, no Brasil e no mundo, pudessem prescindir de efeitos pedaggicos...

    Vejamos agora a perspectiva analtica oposta a respeito dos temas correlacionados

    do excesso de litigncia e da judicializao. Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende

    de Carvalho, Manuel Palcios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, em pesquisa

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    coletiva, perfazem uma anlise positiva da judicializao da poltica e das relaes

    sociais, baseando-se, em parte, nas obras de Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin,

    representantes de um outro eixo analtico presente das teorias do Direito e do Estado,

    identificado como substancialista.

    Esses quatro autores iniciam suas elaboraes afirmando que a expanso do

    direito pela vida social faz parte da ampliao da democracia. Por presso da sociedade

    civil e deciso poltica-institucional, o direito social se infiltra na democracia liberal.

    Um exemplo desse processo welfareano o Direito do Trabalho, que j significou, h

    tempos, uma espcie de juridificao ou judicializao do mundo privado.

    Portanto, a presena de mtodos judiciais na poltica e no cotidiano da sociedade

    capitalista no estranha sua histria. A crescente racionalizao e tecnizao, por

    sua vez, implicou a precedncia do Executivo sobre o Legislativo em termos de regulao

    normativa. Relacionado a isso, temos uma burocratizao da administrao que faz, por

    exemplo, com que os partidos passam a responder antes ao Estado que sociedade.

    Com a necessidade de o Estado acompanhar e intervir simultaneamente em diversos

    processos econmicos, a regulao passa a trabalhar com o tempo presente e futuro,

    contaminando o Direito com incerteza e fugacidade. Coloca-se aqui, potencialmente,

    maior indeterminao para os juzes em suas sentenas (Judicirio com legislador

    implcito), bem como politizao diante de questes econmico-sociais massificadas,

    de grande escala e interesse para todos. Nesse contexto, esses quatros autores citam

    Dworkin: este aponta com propriedade que no h necessariamente arbitrariedade ou

    politizao dos juzes quando no se prendem estritamente letra da lei, uma vez que

    devem ater-se a aplicar princpios legais, elementos estruturantes do sistema jurdico,

    sendo visto o juiz ento como hermeneuta da norma (VIANNA et al., 2001, p. 36; 242).

    Do mesmo modo, Boaventura de Sousa Santos e outros ressaltam o papel do Judicirio em

    uma constitucionalizao ativa, na qual chamado a apontar inconstitucionalidades

    por omisso, suprindo lacunas legais (SANTOS et al., 1996, p. 36).

    A argumentao de Werneck Vianna a partir desse instante promove o encontro

    da temtica da litigncia excessiva ou judicializao da sociedade com a premente

    questo do acesso justia, a ser analisada em seguida.

    A capacidade de os indivduos acessarem seus direitos judicialmente o que por

    si s problemtico, j que pressupe um conhecimento mnimo dos procedimentos

    e instituies judiciais, algo mais complexo que o exerccio do voto na democracia

    representativa (SADEK, 1999, p. 8-16) faria parte do que Werneck Vianna chama de

    representao funcional, que complementaria a representao poltica. As sociedades

    modernas atuam nestas duas dimenses democrticas, normalmente em favor de

    uma agenda igualitria. Diante da persistncia da desigualdade social e fora do

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    individualismo em tempos neoliberais (SANTOS et al., 1996, p. 38), temos conflitos nos

    quais emergem interesses coletivos e difusos (direito subjetivo pblico), que remetem a

    novos tipos de tutelas jurdicas, via aes civis pblicas e aes populares.

    O Judicirio no sentido de poder vai sendo imaginado por Werneck Vianna e seus

    colegas de reflexo sempre como mais um espao para e instrumento de exerccio

    democrtico para a sociedade: nova arena pblica onde se do procedimentos judiciais de

    mediao de conflitos, que, ao contrrio do que imaginam os adeptos da viso negativa da

    judicializao, no so terreno da ao apenas de indivduos ou grupos ditos oposicionistas,

    mas tambm de instncias estatais (prefeituras, estados, etc., isto , ocupantes ou

    detentores de poder) que buscam garantir legalmente sua ao governamental.

    Seguindo Cappelletti, Werneck Vianna acrescenta: possvel ao Judicirio

    incorporar parte dos que esto excludos do sistema poltico. Ele vai mais longe nesse

    ponto do que Hbermas, para quem suficiente o acesso dos excludos ao poder poltico

    representativo, formal propriamente dito.3 No pequena a incidncia de desrespeito

    aos direitos individuais ou das minorias pelas maiorias conquistadas nas urnas (VIANNA et

    al., 2001, 15-43; 150-153; 227-259).

    Explica-se nesse instante a importncia de instrumentos que combatam essa

    nociva identificao de democracia com majoritariedade como, por exemplo, a Ao

    de Declarao de Inconstitucionalidade e a legitimidade de setores minoritrios

    ao recorrer ao Judicirio em defesa de seus direitos. Essa subsuno da noo

    de democracia idia de maioria claramente observada no trabalho de Kerche e

    Arantes. Eles esto antes preocupados com a incapacidade do sistema poltico de

    produzir e implementar decises, diante da necessidade de manter os direitos das

    minorias polticas, o que traz custos para a governabilidade, j que consideram

    garantida a legitimidade democrtica das referidas decises pelo simples fato de serem

    provenientes dos representantes das maiorias (op. cit., 30; 38). Para esses autores,

    as concepes de democracia e governabilidade andam juntas: se a primeira segue

    o primado da majoritariedade, a segunda tcnico-instrumental e centralizadora:

    ignora-se que o processo de tomada e de execuo de decises pelo Estado enriquecido

    pela co-participao dos movimentos sociais. Os indivduos e os diversos grupos sociais

    devem ser vistos como portadores no s de direitos polticos, mas de direitos civis,

    humanos, etc., em sua plenitude e efetividade, no apenas abstratamente ou em estado

    de latncia (ODONNELL, 1998, p. 38-53).

    3 Tenho a impresso de que o normativismo institucionalizante do velho Hbermas, ao contrrio do que pode ser encontrado em suas obras mais antigas, aponta excessivamente para a necessidade de amparo legal dos espaos pblicos construdos pelos grupos sociais por meio da ao comunicativa em seus mundos da vida para usar os termos da teoria sociolgica habermasiana. Se os movimentos sociais, por exemplo, no se mobilizam para construir identidades e programas reivindicativos prprios, esperando passiva e atomizadamente solues judiciais, o problema com certeza no um quadro institucional que comporta um Judicirio mais acessvel e um Ministrio Pblico mais ativo, mas a prpria falta de vigor democrtico e participativo da sociedade composta por esses grupos e movimentos.

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    A partir dessas reflexes de Werneck Vianna e seus colegas, relativiza-se o

    protagonismo do Judicirio e do Ministrio Pblico como movimento autnomo dessas

    instituies, j que na verdade ele responde positiva e criativamente resistncia e ao

    ativismo da sociedade diante do exerccio nem sempre legal dos detentores de poder

    (poltico, econmico, social, etc.). Isso, alis, pertinente ao papel social de controle

    da administrao pblica reativamente, no caso do Judicirio; ativamente, no que

    tange ao Ministrio Pblico necessrio diante da constante incidncia da corrupo

    (SANTOS et al., 1996, p. 39).

    Luiz Werneck Vianna aponta, com preciso, que a judicializao no enfraquece

    o sistema partidrio, apenas pode dificultar a ttica de rolo compressor de setores

    governistas: pelo contrrio, torna-se mais um recurso para partidos de oposio, entidades

    populares e cidados a enriquecer a disputa democrtica, de modo complementar ao

    sistema representativo. Alm disso, contribui para a vigncia de uma esfera pblica,

    de uma cultura poltica e de uma rede institucional na qual os indivduos exeram sua

    cidadania participante e reconstruam o tecido da sociabilidade ao acessar, consolidar

    e at mesmo estabelecer direitos.

    Emerge aqui a interessante noo de soberania complexa, por intermdio da qual

    Werneck Vianna, ao contrrio de Sorj, logra: distinguir com preciso as diferenas entre

    soberania delegada (democracia representativa) e soberania de controle (democracia

    funcional); ensejar uma viso mais rica da institucionalidade entre os trs poderes; evitar

    macular a democracia em nome do princpio majoritrio; preservar a participao direta

    da sociedade, ao garantir o exerccio da cidadania social, no apenas poltica, configurando

    o que chama de cidadania complexa (VIANNA et al. 2001, p. 15-43; 150-153; 227-259; e

    VIANNA; BURGOS, 2002, p. 340-387, 416-417 e 432-463).

    Em outra obra, Luiz Werneck Vianna e Marcelo Baumann Burgos vo mais longe

    no entendimento sobre o papel do Judicirio perante os demais poderes, ao pensarem

    em termos de uma representao generalizada dos cidados pelos trs poderes e

    apontarem que o conceito de soberania se vem alargando, sempre no sentido de

    problematizar as concepes republicanas de soberania popular centradas na regra da

    maioria. O limite da soberania das maiorias o ponto a partir do qual so atingidos

    direitos fundamentais pertinentes autonomia democrtica de cada indivduo,

    quando ento emerge o Judicirio em nome do povo constituinte e sua capacidade

    de reviso judicial de atos praticados pelos demais poderes, fundados na representao

    propriamente dita (VIANNA; BURGOS, 2002, p. 340-341; 360-367).

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    Assim, fica mais bem dimensionado o equvoco da idia de excesso de litigncia

    e do conceito de judicializao das relaes sociais, como na clara assertiva de

    Andrei Koerner e Dbora Alves Maciel: Fica, pois, a impresso de que quanto mais

    contextualizado o foco analtico, menos consistente e vantajoso parece ser o recurso

    ao conceito de judicializao para identificar a dinmica da expanso das fronteiras do

    sistema judicial e os seus efeitos institucionais. (2002, p. 129)

    3 Acesso justia e exerccio da democracia e da cidadania

    Estabelecida, portanto, a importncia do incremento do exerccio dos direitos

    civis, polticos, sociais e humanos pelos indivduos em sociedade em prol da democracia,

    torna-se estratgica a questo da acessibilidade do Judicirio a todos.

    Em pases menos desenvolvidos como o Brasil, o acesso justia ainda

    um problema para grande parte da populao, como afirmam vrios autores. Marcelo

    Neves, por exemplo, assevera que as elites, em nosso sistema democrtico, so sobre-

    integradas, enquanto as grandes massas so sub-integradas (NEVES, 1994, p. 261-267).

    A sociedade brasileira historicamente oferece pouco acesso justia em sua configurao

    institucional.

    Segundo Werneck Vianna e outros, Cappelletti em sua anlise das trs etapas

    da reforma do Judicirio o grande inspirador da valorizao do acesso justia,

    especialmente para os setores desfavorecidos, no s como exerccio democrtico

    legtimo, mas tambm tendo em vista seu carter pedaggico estratgico de incrementar

    a cidadania e consolidar direitos. A concepo liberal do Estado voltada principalmente

    ao exerccio do sufrgio universal, indiferente s dificuldades enfrentadas pelas grandes

    massas no acesso justia, algo mais complexo do que simplesmente votar: h a

    necessidade de um mnimo conhecimento instrumental para demandar judicialmente,

    bem como arcar com seus custos econmicos e de tempo. O liberalismo garantia to

    somente a titularidade formal de direitos, ignorando coaes reais mas nem sempre

    visveis presentes na vida social; enquanto a justia welfareana voltava-se aos direitos

    coletivos de atores sociais j includos do sistema poltico.

    J na atualidade, as experincias de ida ao povo por parte do sistema de justia

    buscam a informalidade e a substancializao do direito, de modo a facilitar o seu

    exerccio, especialmente no campo dos direitos difusos, por parte de toda a sociedade,

    principalmente dos excludos. No toa que Werneck Vianna aponta a Defensoria

    Pblica e o Ministrio Pblico como promotores no s de assistncia judiciria ou da

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    defesa de direitos, mas tambm de orientao tico-pedaggica, de uma alfabetizao

    especial na semntica prpria ao campo jurdico, de modo a permitir que o Judicirio

    seja acessvel enquanto poder da Repblica a todo cidado (VIANNA et al., 2001,

    p. 154-158; 235; e VIANNA; BURGOS, 2002, p. 351).

    Boaventura de Sousa Santos et al. identificam o processo de incremento do

    acesso justia como uma reforma de informalizao (1996, p. 49-59). Tal ocorreria

    devido ao aumento das desigualdades e, portanto, dos conflitos, que, contudo, no se

    desdobram automaticamente em aumento da litigncia, j que esta depende tambm

    da cultura jurdica presente na sociedade. Apontam, tambm, que so muitas as etapas

    necessrias para se chegar ao sistema de justia. Inicialmente, deve ocorrer uma situao

    de injustia. Para tanto, porm, preciso uma concepo de direitos.

    Pesquisas indicam que boa parte da populao brasileira desconhece seus

    direitos, muitas vezes os encara como favores ou privilgios (cultura sdita), o que,

    obviamente, obstaculiza a percepo de injustias e conflitos (PANDOLFI, 1999, 49-57;

    GRYNSZPAN, 1999, p. 102-112). Como os indivduos e grupos sociais possuem diferentes

    percepes do que sejam direitos e conflitos, muito varivel a tolerncia a situaes

    potencialmente injustas. certo que os grupos sociais mais vulnerveis so os menos

    capacitados a litigar. Havendo percepo do envolvimento em um conflito, preciso

    que o indivduo considere o dano que porventura esteja sofrendo como remedivel para,

    em seguida, interpelar diretamente o agente causador do dano (outro indivduo, uma

    instituio, etc.). Se a reclamao no for atendida, abre-se caminho para a litigncia.

    Antes, deve-se consagrar a legitimidade do Judicirio, de quem se espera uma

    justia oficial imparcial e eficiente, o que muitas vezes no ocorre (GRYNSZPAN, 1999,

    p. 103). Cabe ento ao indivduo ponderar, diante do contexto e das relaes em que se

    inserem as partes em conflito, se vale a pena apelar justia formal. Novamente, setores

    mais subalternizados esto em condies sociais normalmente precrias para litigar.

    E tendem a litigar menos, alm de fazer menor uso dos diversos graus de recurso.

    O incremento do acesso justia, a ida ao povo por parte do Judicirio e do

    Ministrio Pblico, faz aqui todo sentido. Ainda mais que no deve ser esquecido um

    importante paradoxo: o de que h demandas demais por parte de setores privilegiados

    (inclusive em grau de recurso) e demandas de menos por parte de grupos sociais realmente

    carentes de direitos, o que mostra um Judicirio acessvel apenas seletivamente,

    inchado e formalista (SADEK et al., 2001, p. 40-41), que reproduz as desigualdades

    da sociedade. Mas tal incremento apenas pode se dar em um contexto de crescente

    exerccio da cidadania, bem como de mudanas sociais de maior escopo.

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    H diversos modos de incrementar o acesso justia e ao sistema de justia.

    Alguns dos mais importantes so: assistncia judiciria gratuita (Defensoria Pblica);

    ampliao do papel do Ministrio Pblico; e maior acessibilidade do Judicirio, por meio

    de juizados especiais4 e outras configuraes institucionais. No entanto, importante

    contextualiz-las. Tais iniciativas relacionadas ao acesso justia visam to-somente a

    garantia, consolidao e efetividade do Estado Democrtico de Direito. O escopo de tais

    experincias institucionais do sistema de justia envolve a aplicao justa e coerente

    das leis, sem discriminaes ou favorecimentos formas veladas de autoritarismo social

    as quais sempre conviveram com o formalismo das concepes mais tradicionais e

    liberais do Direito. De um ponto de vista abstrato e programtico, o maior acesso

    justia envolve fundamentalmente a concretizao das promessas originais do Direito e

    da Justia.

    4 Concluso

    A ampliao do acesso justia, se amparada e fortalecida pela sociedade e pelo

    Estado, tem condies de funcionar como um filtro de carter tanto jurdico quanto

    pedaggico, estimulando a disseminao informal e generalizada de conhecimentos e

    informaes necessrios a um maior exerccio de direitos e da cidadania por grande

    parte da populao (SADEK, 1999, p. 11-16). Um instrumento estratgico para aprofundar

    da vida democrtica da sociedade brasileira, acostumada a uma democracia de baixa

    intensidade, meramente representativa e de baixa participao poltica, historicamente

    desigual em todos os sentidos.

    4 No caso dos juizados especiais federais da Seo Judiciria do Rio de Janeiro, em relao ao qual tenho uma experincia apenas indireta (como servidor da rea administrativa que no costuma atender aos jurisdicionados), o impacto da afluncia da populao mais carente Justia Federal foi muito forte. Recursos humanos, sistemas internos, equipamentos e instalaes tiveram de ser ampliados e adequados a essa nova realidade da prestao da justia. Servidores e magistrados passaram a vivenciar essa nova realidade, muito expressiva do ponto de vista dos objetivos maiores do Judicirio.

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