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Márcio Pannunzio

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ensaio fotográfico do artista plástico Márcio Pannunzio com apresentação crítica de Henrique Marques-Samyn

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Uma definição bastante sucinta e simplória para o ato de fotografar seria o de enquadrá-lo como uma maneira de capturar um fragmento de mundo e paralisá-lo no tempo, empregando como instrumento de captura uma câmera fotográfica. E como o mundo é absurdamente vasto e complexo, uma foto que realmente prestasse deveria ser aquela que capturasse um fragmento muito expressivo. E qual seria ele em meio a tantos e tão diferentes? Durante uma viagem pelo sul de Minas Gerais, em uma estrada vicinal ligando a cidade de Maria da Fé a de Wenceslau Braz, vivenciei, intensamente, a sensação de ver-me diante de um desses fragmentos que valem mesmo a pena serem capturados. No próximo slide, o meu relato.

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Havia uma estrada esquecida serpenteando entre as montanhas. Uma estreita faixa de asfalto sem acostamento, com trânsito sossegado, fluindo gota a gota por sucessivos túneis verdes: a copa das árvores se enlaçava no alto e onde elas eram baixas ou inexistiam, grandes rasgos de céu vertiam luz inundando as margens e as encostas próximas. Num domingo antigo, duas pobres senhoras devotas caminhavam rente a essa estrada retornando da missa quando foram atropeladas por um caminhão desgovernado dirigido por um bêbado. Morreram ambas e no local, duas cruzes de concreto brancas foram fincadas na terra arroxeada e crua, donde toda erva foi diligentemente capinada; paralelas, miravam o asfalto, dele distantes uns cinco metros. Uma laje de concreto, de uns cinco centímetros de espessura, com uma área de menos de um metro quadrado, foi deitada rente ao chão em frente às cruzes. Então, sobre essa rústica mesa pedregosa foram as pessoas simples do lugar ajeitando santos de gesso, estatuazinhas pagãs, terços, colares, cordas, flores de plástico e flores de verdade colhidas nos jardins e nos campos, numa profusão tamanha que, em pouco tempo, aquele pequeno espaço se fartou. E um quadro absolutamente caótico, grotesco, bizarro se materializou incendiando a paisagem. Uma diminuta obra coletiva, sempre em mutação, de celebração da morte e, paradoxalmente, também, de celebração da vida. Exposta às intempéries, enraizou-se no mundo como monumento vivo.

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Fiz centenas de fotos do local, a ele retornando repetidas vezes a ponto de perder a conta, em diversos horários e climas, cada qual com a sua singular iluminação. Empreguei na tarefa de fotografar uma antiga câmera full frame Kodak SLR DCS pro/n com lentes vintage fixas Nikon de 28mm, 50mm, 85mm e 135mm, uma Soligor 200mm, uma Hoya 135mm e uma Cosina 19mm-35mm. A abertura usada foi sempre a máxima permitida para criar o mais forte desfoque de fundo. Editei no Lightroom, cinquenta delas, uma por uma, com muita calma e paciência. As fotos foram mostradas para o poeta e crítico literário Henrique Marques-Samyn, que havia apresentado a individual Márcio Pannunzio – Gravuras da Caixa Cultural do Rio de Janeiro. Henrique gostou bastante do que viu e pensando em uma apresentação crítica para a série de fotos, escreveu o texto seguinte.

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DA FOTOGRAFIA COMO CELEBRAÇÃO DA VIDA Por incontáveis vezes repetida, já alcançou o senso comum a possível origem etimológica do vocábulo 'religião', proveniente do latim religio, -onis, que o autor cristão Lactâncio remeteu a re-ligare; nessa medida, o fenômeno religioso estaria originariamente vinculado à necessidade de restauração de uma unidade perdida – o que, por sua vez, leva-nos a evocar um conjunto de experiências comuns à condição humana: os sentimentos de falta ou de perda, a consciência de uma incompletude fundamental, a insuperável certeza da finitude. Considerado desde essa perspectiva, o ser humano é, e sempre será, um exilado existencial, que apenas de forma provisória poderá encontrar asilo ou abrigo, até o momento em que, rompida pela eclosão do absurdo, a estabilidade cotidiana revelará sua precariedade; então, mais uma vez consciente de sua insignificância, buscará forças para reconstruir os invisíveis castelos que lhe servirão como refúgio.

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Talvez possamos compreender dessa forma o surgimento, em algum momento do passado – e qualquer datação se torna dispensável quando o que está em questão são experiências atavicamente humanas –, de um rústico altar à beira da estrada, em decorrência de um trágico episódio apenas conhecido e preservado por figuras anônimas: nem todas as vidas, afinal, merecem as melhores páginas dos jornais, ou menções nos principais noticiários. Na verdade, o esquecimento do que constitui a especificidade é o que faculta que, em casos como esse, o particular se torne universal: porque todos, enquanto humanos, conhecemos ou conheceremos vivências igualmente trágicas, capazes de fender as triviais estruturas que sustentam nossas rotinas; porque todos, enquanto humanos, sempre estamos sujeitos a enfrentar acontecimentos que nos recordarão de nossa própria finitude, somos capazes de encontrar ali um mítico símile para nossas trajetórias. Em outras palavras: porque não conhecemos aquelas devotas cujas vidas foram subitamente interrompidas, elas nos parecem estranhamente familiares.

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Não há, afinal, uma distância tão ampla entre nós e aqueles que, consumada a tragédia, deram início ao ritual de depositar estátuas de santos, flores verdadeiras ou artificiais, terços e colares sobre a laje de concreto deitada diante das cruzes gêmeas que assinalam o local onde ocorreram as mortes. Sua precariedade é a nossa; não somos menos frágeis, na medida em que somos igualmente humanos. E a espontânea criação desse ritual que, pouco a pouco, fez da laje um espaço dedicado à religiosidade popular espelha todo o conjunto de hábitos cotidianos que, uma vez cristalizados, ajudam-nos a esquecer as contingências que a cada momento nos ameaçam.

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Podemos, não obstante, estender essa reflexão até a sequência de atos fotográficos que constituem a obra assinada por Márcio Pannunzio. Houve, decerto, uma primeira visita, um gesto inaugural que produziu uma primeira imagem; mais significativo, no entanto, é o regresso – ou a sequência de visitações que, repetindo-se ao longo do tempo, sedimentou-se em um novo ritual, desta vez estético, que produziu a obra artística a partir daquele templo outrora gerado por um ímpeto religioso. E, se quisermos levar adiante essas considerações, por que não poderíamos pensar também o ato de contemplação artística, revisitando incontáveis vezes o altar ao percorrer a sequência de imagens criadas por Pannunzio, como um terceiro ritual – ainda essencialmente vinculado ao gesto originário, perdido em tempos pretéritos?

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De fato, em cada uma das séries de atos que possibilitaram desde a consagração da laje de concreto em altar até a sua inscrição no campo artístico pelo registro fotográfico e a sua contemplação já como objeto estético, é porventura possível vislumbrar um processo que acaba por consolidar uma dinâmica que encerra – de forma mais ou menos explícita – a construção de um sentido que, de modos diversos, atende ao que há de mais essencial no re-ligare. O que todas aquelas dinâmicas partilham, afinal, é a tentativa de superação da finitude e de esquecimento da falta fundamental que subjaz à condição existencial humana; desse modo, o absurdo pode ser relegado a um segundo plano, ou mesmo olvidado – ainda que de forma ilusória, por meio de recursos cuja fragilidade é evidente –, e o trágico acontecimento é convertido naquilo que possibilita a consolidação dos rituais, das rotinas e dos hábitos constitutivos das formas da existência cotidiana.

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O que ao fim importa, senão assegurar que seja possível continuar vivendo, ainda que para isso precisemos esconder de nós mesmos o constante risco das contingências? Abrigados em nossas frágeis zonas de conforto, reafirmamos a nós mesmos que seremos capazes de exercer algum controle sobre o imponderável, sustentando a certeza dos amanhãs sobre os quais nada sabemos – sequer sabemos, na verdade, se existirão; o esteio de que dispomos se limita, afinal, ao passado. Ainda assim prosseguimos, confiantes em nossas rotinas, como aqueles que continuam a depositar diante das duas cruzes os objetos que ali se acumulam, fazendo dos ritos particulares uma obra única, que Márcio Pannunzio insiste em registrar.

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De fato, se cada fotografia é singular, isso não se deve apenas a variações de enfoque, luminosidade ou de qualquer outro elemento formal; deve-se também ao fato de que o altar é sempre outro, graças à renovação facultada pela permanente devoção de anônimos homens e mulheres, que incessantemente recria aquele arranjo de objetos oferecidos em silêncio e reverência. Conquanto o episódio que possibilitou o surgimento daquele espaço consagrado representasse um dúplice encerramento, o rito devocional constitui sempre um novo começo, na medida em que faz nascer sempre um novo altar; e, se consideramos que a continuação da existência é consequência das renovações contínuas, isto é o que podemos entrever no trabalho fotográfico de Pannunzio: uma celebração da vida.

Henrique Marques Samyn Rio de Janeiro, maio de 2014

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