MarceloKunrath a Construcao Da Participacao Popular

download MarceloKunrath a Construcao Da Participacao Popular

of 381

Transcript of MarceloKunrath a Construcao Da Participacao Popular

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA CURSO DE DOUTORADO

CONSTRUO DA PARTICIPAO POPULAR: Anlise comparativa de processos de participao social na discusso pblica do oramento em municpios da Regio Metropolitana de Porto Alegre/RS.

MARCELO KUNRATH SILVA

Orientadora: Professora Dra. Snia Larangeira

Porto Alegre, setembro de 2001

2

espantoso como a histria se perde entre ns! A cada nova gerao como se houvesse um corte com relao ao passado e tudo estivesse permanentemente comeando. Como eterno pas do futuro, tendemos sempre a buscar negar nosso passado (que nos envergonha) e a querer construir algo radicalmente diferente(AZEVEDO, Ricardo. Apresentao. In: AZEVEDO, Ricardo; MAUS, Flamarion (org.). Rememria: entrevistas sobre o Brasil do sculo XX. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1997, p.8)

Como no ver que, ao enunciar os determinantes sociais das prticas, (...) o socilogo oferece a possibilidade de uma certa liberdade em relao a esses determinantes? atravs da iluso de liberdade em relao s determinaes sociais (...) que se d a liberdade de se exercerem as determinaes sociais. (...) Assim, paradoxalmente, a sociologia liberta libertando da iluso de liberdade (...). A liberdade no um dado, mas uma conquista, e coletiva (BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. So Paulo, Brasiliense, 1990, p.28)

SUMRIO

SUMRIO ...................................................................................................... 3

LISTA DE QUADROS.................................................................................... 7

RESUMO ..................................................................................................... 17

INTRODUO ............................................................................................. 18

CAPTULO 1 A PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE: UMA TENTATIVA DE EXPLICAO.............................................................................................. 33 1.1 A CONSTRUO SOCIAL DA AO COLETIVA ...................................34 1.2 A PARTICIPAO POPULAR COMO AO COLETIVA..................43 1.2.1 Associativismo e participao popular ......................................................51 1.2.2 Compromisso poltico governamental e participao popular...................70 1.2.3 Capacidade de investimento, eficcia e participao popular ...................76

CAPTULO 2. A CONSTRUO DA PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM PORTO ALEGRE 1989/1992 ........ 89 2.1 A TRAJETRIA DE ORGANIZAO POPULAR EM PORTO ALEGRE ....................................................................................................................................91 2.2 A CONSTRUO DA PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE ..........................................................116

4

2.2.1 A experincia da participao popular em Porto Alegre anterior ao primeiro Governo da Frente Popular....................................................................116 2.2.2 A trajetria da discusso sobre a participao da populao na elaborao do oramento municipal anterior ao primeiro governo da Frente Popular................136 2.2.3 A construo do Oramento Participativo e da participao popular......151

CAPTULO 3. ALVORADA, GRAVATA E VIAMO: CARACTERSTICAS MUNICIPAIS E FORMATOS INSTITUCIONAIS DOS PROCESSOS DE ORAMENTO PARTICIPATIVO ............................................................... 186 3.1 CARACTERIZAO GERAL DOS MUNICPIOS DE ALVORADA, GRAVATA E VIAMO ......................................................................................195 3.1.1 Municpio de Alvorada................................................................................195 3.1.1.1 Histrico: ..............................................................................................195 3.1.1.2 Caractersticas scio-econmicas e de infra-estrutura urbana: ............202 3.1.1.3 Evoluo financeira da Administrao Municipal: ...........................211 3.1.2 Municpio de Gravata.................................................................................215 3.1.2.1 Histrico: ..............................................................................................215 3.1.2.2 Caractersticas scio-econmicas e de infra-estrutura urbana: ............221 3.1.2.3 Evoluo financeira da Administrao Municipal: ...........................225 3.1.3 Municpio de Viamo ..................................................................................228 3.1.3.1 Histrico: ..............................................................................................228 3.1.3.2 Caractersticas scio-econmicas e de infra-estrutura urbana: ............235 3.1.3.3 Evoluo financeira da Administrao Municipal: ...........................240

5

3.2 CARACTERIZAO DAS EXPERINCIAS DE ORAMENTO PARTICIPATIVO NOS MUNICPIOS DE ALVORADA, GRAVATA E VIAMO .................................................................................................................244 3.2.1 O Oramento Participativo em Alvorada ....................................................244 3.2.1.1 Estrutura Institucional do Oramento Participativo: ............................244 3.2.1.2 Dinmica de funcionamento do Oramento Participativo: ..................249 3.2.2 O Oramento Participativo em Gravata .....................................................252 3.2.2.1 Estrutura Institucional do Oramento Participativo: ............................252 3.2.2.2 Dinmica de funcionamento do Oramento Participativo: ..................255 3.2.3 O Oramento Participativo em Viamo ......................................................257 3.2.3.1 Estrutura Institucional do Oramento Participativo: ............................257 3.2.3.2 Dinmica de funcionamento do Oramento Participativo: ..................263

CAPTULO 4 . O MODELO DE PORTO ALEGRE E AS EXPERINCIAS DE PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM ALVORADA, GRAVATA E VIAMO: UMA ANLISE COMPARATIVA . 268 4.1 A PARTICIPAO POPULAR NO OP EM ALVORADA, GRAVATA E VIAMO .............................................................................................................269 4.2 ASSOCIATIVISMO, COMPROMISSO GOVERNAMENTAL E CAPACIDADE DE INVESTIMENTO E A PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM ALVORADA, VIAMO E GRAVATA. ...........................................................................................................275 4.2.1 A participao popular no Oramento Participativo em Alvorada..........275 4.2.1.1 Associativismo e Participao no OP em Alvorada:............................275

6

4.2.1.2 Relao Governo Municipal e OP em Alvorada: .................................289 4.2.1.3 Investimento, eficcia e participao no OP de Alvorada:...................293 4.2.2 A participao popular no Oramento Participativo em Gravata ...........298 4.2.2.1 Associativismo e Participao no OP em Gravata: .............................298 4.2.2.2 Relao Governo Municipal e OP em Gravata: ..................................303 4.2.2.3 Investimento, eficcia e participao no OP de Gravata:....................306 4.2.3 A participao popular no Oramento Participativo em Viamo ............310 4.2.3.1 Associativismo e Participao no OP em Viamo: ..............................310 4.2.3.2 Relao Governo Municipal e OP em Viamo: ...................................316 4.2.3.3 Investimento, eficcia e participao no OP de Viamo:.....................321

CONCLUSES.......................................................................................... 326

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................... 340

ANEXO 1 ................................................................................................... 377

ANEXO 2 ................................................................................................... 378

ANEXO 3 ................................................................................................... 379

ANEXO 4 ................................................................................................... 380

ANEXO 5 ................................................................................................... 381

7

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1. PARTICIPAO EM ENTIDADES ENTRE OS ENTREVISTADOS NO OP - 1993, 1995 E 1998......................................... 52

QUADRO 2. PARTICIPANTES NAS PLENRIAS REGIONAIS DA PRIMEIRA RODADA DO OP/1995 ............................................................. 53

QUADRO 3. PARTICIPAO EM ENTIDADES ENTRE OS ENTREVISTADOS J ELEITOS REPRESENTANTES NO OP - 1998 ...... 54

QUADRO 4. DISTRIBUIO DAS ENTIDADES ENTREVISTADAS SEGUNDO O TIPO DE ASSOCIAES E ORGANIZAES COM AS QUAIS SE RELACIONA (RESPOSTA MLTIPLA).................................... 55

QUADRO 5. PARTICIPAO DOS ENTREVISTADOS EM ENTIDADES OP/1998 ....................................................................................................... 56

QUADRO 6. ENTIDADE DA QUAL MAIS PARTICIPAM OS ENTREVISTADOS ELEITOS REPRESENTANTES NO OP OP/1998 ..... 58

QUADRO 7. COMPARECIMENTO AO OP EM ANOS ANTERIORES ENTRE OS ENTREVISTADOS E ELEITOS REPRESENTANTES NO OP OP/1998 ....................................................................................................... 59

8

QUADRO 8. DISTRIBUIO DOS ELEITOS REPRESENTANTES E DOS NO ELEITOS SEGUNDO OS ANOS EM QUE COMPARECERAM AO OP OP/1998 .................................................................................................... 60

QUADRO 9. MODO COMO OS ENTREVISTADOS FORAM INFORMADOS SOBRE AS REUNIES DO OP (RESPOSTAS MAIS FREQENTES) 1993, 1995 E 1998....................................................................................... 67

QUADRO 10. AVALIAO SOBRE A OBTENO DE BENEFCIOS (OBRAS E SERVIOS) ATRAVS DO OP 1995 E 1998 ........................ 80

QUADRO 11. PERCEPO SOBRE O PODER DE DECISO DA POPULAO QUE PARTICIPA DO OP 1995 E 1998............................. 81

QUADRO 12. OPINIO SOBRE A INFLUNCIA DA POPULAO NA ESCOLHA DAS PRIORIDADES DA PREFEITURA ATRAVS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO ................................................................. 82

QUADRO 13. DEMANDAS ATENDIDAS E EM ANDAMENTO 1992-1994 ..................................................................................................................... 83

QUADRO 14. EVOLUO DAS RECEITAS PRPRIAS ARRECADADAS PELA PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE 1988-1992 ...... 85

QUADRO 15. COMPOSIO DA RECEITA CORRENTE DA ADMINISTRAO DIRETA - EXECUTADA EM 1997 (VALORES NOMINAIS) .................................................................................................. 86

9

QUADRO 16. VILAS DE OCUPAO EM PORTO ALEGRE COM PROCESSOS DE MOBILIZAO 1982-1984 ......................................... 98

QUADRO 17. DADOS DE PARTICIPAO NOS CONGRESSOS DA UAMPA 1983-1990 ................................................................................. 105

QUADRO 18. COMPOSIO DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE PORTO ALEGRE, INSTITUDOS PELA LEI N 3607/71........................................ 118

QUADRO 19. COMPARAO ENTRE O ANTEPROJETO DA UAMPA SOBRE O CONSELHO MUNICIPAL DO ORAMENTO E O ANTEPROJETO DO GOVERNO ALCEU COLLARES QUE INSTITUI OS CONSELHOS POPULARES.................................................................. 149

QUADRO 20. PARTICIPANTES NA SEGUNDA RODADA DO OP 1989/1990 .................................................................................................. 172

QUADRO 21. PARTICIPANTES NA SEGUNDA RODADA DO OP 1989/1992 .................................................................................................. 178

QUADRO 22. MATRIZ ORIGEM E DESTINO (TODOS OS MODOS E MOTIVOS; VIAGENS POR DIA TIL; PORCENTAGEM NO DESTINO). 188

QUADRO 23. EVOLUO DA POPULAO DO RS E DA RMPA 19401985 ........................................................................................................... 190

10

QUADRO 24. POPULAO ABSOLUTA E TAXA DE CRESCIMENTO DOS MUNICPIOS DA RMPA 1980-91 E 1991-96 ................................. 191

QUADRO 25. TOTAL DE FAMLIAS EM DOMICLIOS PARTICULARES PERMANENTES, POR CLASSE DE RENDIMENTO MENSAL FAMILIAR RMPA (1987-1995) .................................................................................... 192

QUADRO 26. PARTICIPAO DA POPULAO DE VILAS NO CONJUNTO DA POPULAO DA RMPA - 1991 .................................... 193

QUADRO 27. CONJUNTOS HABITACIONAIS OCUPADOS, NMERO DE UNIDADES E NMERO DE PESSOAS - 1987......................................... 194

QUADRO 28. VALORES ABSOLUTOS E RELATIVOS DO CRESCIMENTO DE VILAS IRREGULARES E DE NMERO DE DOMICLIOS NAS VILAS IRREGULARES EM ALVORADA E RMPA 1980-1991.......................... 198

QUADRO 29. EVOLUO DOS LOTEAMENTOS NO MUNICPIO DE ALVORADA 1946-1980.......................................................................... 200

QUADRO 30. NDICE SOCIAL MUNICIPAL AMPLIADO DE ALVORADA, POR BLOCO DE VARIVEIS E GERAL, MDIA NO PERODO 1991-1996 ................................................................................................................... 202

QUADRO 31. EVOLUO DA PARTICIPAO DOS SETORES DE ATIVIDADE NA RENDA INTERNA DE ALVORADA 1980/1990 ........... 206

11

QUADRO 32. DISTRIBUIO DAS PESSOAS OCUPADAS DE 10 ANOS OU MAIS DE IDADE, POR SETOR DE ATIVIDADE, EM ALVORADA 1980/1990 .................................................................................................. 207

QUADRO 33. DISTRIBUIO DAS UNIDADES DE EMPRESAS E DO PESSOAL OCUPADO EM ALVORADA DE ACORDO COM O NMERO DE EMPREGADOS POR UNIDADE LOCAL - 1996................................. 208

QUADRO 34. PIB PER CAPITA E POSIO NO RANKING DO ESTADO, DO MUNICPIO DE ALVORADA 1980/1994.......................................... 209

QUADRO 35. RENDIMENTO MDIO MENSAL DAS PESSOAS DE 10 ANOS OU MAIS NO MUNICPIO DE ALVORADA (EM SALRIOS MNIMOS) - 1991 ....................................................................................... 209

QUADRO 36. DOMICLIOS POR CLASSES DE RENDIMENTO NOMINAL MDIO MENSAL DO CHEFE DO DOMICLIO E PERCENTUAL DOS DOMICLIOS COM CHEFES AT 3 SM NO MUNICPIO DE ALVORADA 1991 ........................................................................................................... 210

QUADRO 37. EVOLUO DA RECEITA E DESPESA DA PREFEITURA MUNICIPAL DE ALVORADA 1996-2000 ............................................... 211

QUADRO 38. EVOLUO E COMPOSIO DAS RECEITAS ORAMENTRIAS DO MUNICPIO DE ALVORADA (VALORES EM R$) 1996-1998 .................................................................................................. 212

12

QUADRO 39. EVOLUO E COMPOSIO DAS DESPESAS DO MUNICPIO DE ALVORADA (VALORES EM R$) 1996-1998 ............... 214

QUADRO 40. DISTRIBUIO PERCENTUAL DA POPULAO ECONOMICAMENTE ATIVA DO MUNICPIO DE GRAVATA E EM RELAO AO TOTAL NO SETOR DE OCUPAO DA RMPA 19701980 ........................................................................................................... 217

QUADRO 41. VALORES ABSOLUTOS E RELATIVOS DO CRESCIMENTO DE VILAS IRREGULARES E DE NMERO DE DOMICLIOS NAS VILA IRREGULARES EM GRAVATA E RMPA 1980-1991 ........................... 219

QUADRO 42. NDICE SOCIAL MUNICIPAL AMPLIADO DE GRAVATA, POR BLOCO DE VARIVEIS E GERAL, MDIA NO PERODO 1991-96221

QUADRO 43. ESTRUTURA DA RENDA INTERNA MUNICIPAL DE GRAVATA 1990 .................................................................................... 223

QUADRO 44. DISTRIBUIO DAS UNIDADES DE EMPRESAS E DO PESSOAL OCUPADO EM GRAVATA DE ACORDO COM O NMERO DE EMPREGADOS POR UNIDADE LOCAL - 1996....................................... 224

QUADRO 45. EVOLUO DAS RECEITAS DA PREFEITURA MUNICIPAL DE GRAVATA 1996-2000 ..................................................................... 225

:QUADRO 46. EVOLUO DAS DESPESAS DA PREFEITURA MUNICIPAL DE GRAVATA (VALORES EMPENHADOS) 1996-2000 . 227

13

QUADRO 47. VALORES ABSOLUTOS E RELATIVOS DO CRESCIMENTO DE VILAS IRREGULARES E DE NMERO DE DOMICLIOS NAS VILA IRREGULARES EM VIAMO E RMPA 1980-1991................................ 232

QUADRO 48. NDICE SOCIAL MUNICIPAL AMPLIADO DE VIAMO, POR BLOCO DE VARIVEIS E GERAL, MDIA NO PERODO 1991-96........ 235

QUADRO 49. ESTRUTURA DA RENDA INTERNA MUNICIPAL DE VIAMO - 1990.......................................................................................... 237

QUADRO 50. DISTRIBUIO DAS UNIDADES DE EMPRESAS E DO PESSOAL OCUPADO EM VIAMO DE ACORDO COM O NMERO DE EMPREGADOS POR UNIDADE LOCAL - 1996....................................... 239

QUADRO 51. EVOLUO DA ARRECADAO ANUAL TOTAL DA PREFEITURA MUNICIPAL DE VIAMO (VALORES EM R$) 1994-2000 ................................................................................................................... 240

QUADRO 52. EVOLUO DAS PRINCIPAIS RECEITAS PRPRIAS DO MUNICPIO DE VIAMO E PERCENTUAL NA COMPOSIO DA RECEITA TOTAL (VALORES EM R$) 1996-2000 ................................. 241

QUADRO 53. COMPOSIO DAS RECEITAS DO MUNICPIO DE VIAMO (VALORES EM R$) 2000 ........................................................ 242

QUADRO 54. COMPOSIO DA DESPESA EXECUTADA (VALORES EM R$) 1998 ................................................................................................. 243

14

QUADRO 55. ESTRUTURA DO PROCESSO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM ALVORADA............................................................ 246

QUADRO 56. CARACTERIZAO DAS ATIVIDADES DOS DELEGADOS E CONSELHEIROS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE ALVORADA ................................................................................................................... 248

QUADRO 57. CICLO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE ALVORADA ................................................................................................................... 249

QUADRO 58. CRITRIOS GERAIS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE ALVORADA............................................................................................... 251

QUADRO 59. ESTRUTURA DO PROCESSO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM GRAVATA. ............................................................ 252

QUADRO 60. CARACTERIZAO DAS ATIVIDADES DOS DELEGADOS E CONSELHEIROS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE GRAVATA ................................................................................................................... 254

QUADRO 61. CICLO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE GRAVATA ................................................................................................................... 255

QUADRO 62. DISTRIBUIO DOS RECURSOS PARA INVESTIMENTO ENTRE AS REGIES ADMINISTRATIVAS DE GRAVATA 1999 ........ 256

15

QUADRO 63. ESTRUTURA DO PROCESSO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM VIAMO .................................................................. 260

QUADRO 64. CARACTERIZAO DAS ATIVIDADES DOS DELEGADOS E CONSELHEIROS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE VIAMO... 262

QUADRO 65. CICLO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE VIAMO. 263

QUADRO 66. PONTUAO PARA A DEFINIO DOS EIXOS TEMTICOS PRIORITRIOS NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE VIAMO..................................................................................................... 265

QUADRO 67. SISTEMA DE DISTRIBUIO DOS RECURSOS ENTRE OS EIXOS TEMTICOS NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE VIAMO.. 265

QUADRO 68. CRITRIOS PARA A DISTRIBUIO DOS RECURSOS ENTRE AS REGIES DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE VIAMO266

QUADRO 69. NMERO DE PARTICIPANTES NAS PLENRIAS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO (PRIMEIRA E SEGUNDA RODADAS) EM ALVORADA, GRAVATA E VIAMO 1997-2000 .................................. 269

QUADRO 70. NMERO DE PARTICIPANTES NAS ASSEMBLIAS MICRORREGIONAIS NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE GRAVATA 1997-2000 ............................................................................................... 270

16

QUADRO 71. NMERO DE PARTICIPAES NAS RODADAS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE (SOMA DAS DUAS RODADAS) 1989-2000........................................................................... 273

QUADRO 72. DISTRIBUIO DOS DELEGADOS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE ALVORADA SEGUNDO A PARTICIPAO EM ENTIDADES 1997 E 1999 ...................................................................... 285

QUADRO 73. DISTRIBUIO DOS DELEGADOS DO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE ALVORADA SEGUNDO O TIPO DE ENTIDADES EM QUE PARTICIPAM 1997 E 1999............................................................ 287

NMERO E TIPO DE ENTIDADES CADASTRADAS JUNTO S PREFEITURAS MUNICIPAIS DE ALVORADA, GRAVATA E VIAMO . 381

RESUMO

A presente tese tem como objetivo identificar e analisar os fatores explicativos da participao social em canais de participao direta na gesto pblica municipal, utilizando como referncia emprica quatro processos de discusso pblica do oramento municipal (o chamado Oramento Participativo) desenvolvidos nos municpios de Alvorada, Gravata, Porto Alegre e Viamo, todos municpios integrantes da Regio Metropolitana de Porto Alegre. Tomando estes processos de participao como uma forma especfica de ao coletiva, discute-se, com base em uma investigao comparativa entre os casos, a existncia de um conjunto nico de variveis presentes e atuantes em todos eles, que poderiam assim constituir a base de um modelo explicativo generalizvel para a explicao destes processos de participao. Em caso de no confirmao desta similaridade entre os processos, busca-se identificar as especificidades locais que atuariam de forma a determinar as dinmicas prprias empiricamente observadas.

INTRODUO

Este estudo tem como tema a participao social na gesto pblica, entendida esta como um processo de ao coletiva. Buscando romper com a viso que naturaliza a emergncia das aes coletivas, impossibilitando assim a sua anlise, adota-se aqui a perspectiva de que o ato coletivo sempre resultado de um complexo processo de construo social, o qual envolve uma interveno ativa dos indivduos e grupos em um campo de oportunidades e limites estruturalmente dados. Neste sentido, rejeita-se tanto uma concepo voluntarista da ao coletiva, que a resume a um ato de vontade ou interesse num contexto de indeterminao social, quanto uma concepo determinista, que transforma indivduos e grupos sociais em fantoches de foras sistmicas ou de poderes que se impem de forma absoluta e inconsciente. A anlise dos processos de ao coletiva na sociologia brasileira esteve, em grande medida, integrada ao campo de estudos sobre os movimentos sociais sendo marcada pela trajetria das discusses deste campo. Em vista disso, pode-se observar que o debate acadmico sobre processos de ao coletiva esteve, inicialmente, orientado por uma perspectiva marxista de cunho estruturalista que dispensava a pesquisa sobre a construo da ao coletiva, concebendo-a como resultado quase

19

mecnico das contradies estruturais da sociedade capitalista. A limitao destas anlises, como salienta SCOTT (1990:52), (...) is that they must restrict themselves to identifying the structural preconditions for social movements activity. But the problem is that these pre-conditions are precisely that: at most necessary but not sufficient conditions for mobilization. It does not follow that in the presence of all specific pre-conditions social movements will actually appear, or that agents will be inspired to act colectively. The appearance or otherwise of such movements will depend upon a host of other factors which are context specific, and cannot be deduced from social-structural conditions.

A reviso crtica desta perspectiva estruturalista dominante na sociologia brasileira ocorre a partir da segunda metade dos anos 80, sendo acompanhada por um progressivo desencanto com a temtica dos movimentos sociais, fazendo com que a crtica no se desdobrasse em um avano terico na direo de explicaes mais complexas. Assim, ao invs da incorporao de novas (ou no to novas) abordagens tericas produzidas na Europa e nos Estados Unidos e da construo de novos modelos explicativos sobre os processos de ao coletiva, o que predominou na sociologia brasileira a partir do final dos anos 80 foi o relativo abandono desta discusso e a desconsiderao de uma srie de questes que ainda aguardam explicao. Como salientam ESCOBAR; ALVAREZ (1992: 3),

(...) the clearest indication of the need for continued research on social movements is the persistence of multiple forms of colective mobilization in the continent. These manifestations indicate great complexity not only at the level of the actors but (...) also in terms of modes of organization

20

and action, causes and goals of the struggle, magnitude and composition of the forces, relation to political parties and the state, and so forth.

Os obstculos postos por esta trajetria expressam-se nitidamente nos estudos sobre os processos que constituem o objeto emprico desta pesquisa: as experincias de atuao de agentes da sociedade civil em canais de participao direta na gesto pblica (a chamada participao popular).1 Ao no compreenderem estes processos de participao como uma ao coletiva socialmente construda, muitos estudos acabam reduzindo tais experincias a sua dimenso institucional. A participao acaba sendo vista como uma varivel dependente exclusivamente de fatores e arranjos poltico-institucionais (particularmente, da competncia em termos da engenharia institucional). Tal aspecto insere-se numa tendncia mais ampla de predomnio de um hiperinstitucionalismo no debate pblico e acadmico brasileiro, no qual Mais que um reconhecimento do papel crucial das instituies na vida poltica, observa-se uma crena mgica no poder demirgico das instituies (MELO, 1995:29). Sem querer desconsiderar ou minimizar a importncia dos aspectos polticoinstitucionais na explicao das experincias de participao, como ser demonstrado ao longo deste estudo, salienta-se no entanto que, na falta da incorporao da

A expresso participao popular empregada aqui no como um conceito, mas como um termo que utilizado corriqueiramente para referir-se participao dos agentes sociais na gesto municipal, processos estes que, de fato, envolvem diversos segmentos sociais e no apenas aqueles agentes constitudos pelas chamadas classes populares (apesar de que, nos processos empricos aqui abordados, a grande maioria dos participantes pertence a estes segmentos populares) . Em vista disto, o termo participao popular marcado por uma certa impreciso que no pode ser desconsiderada.

1

21

dimenso de ao coletiva contida nestes processos, acaba-se por produzir uma compreenso incompleta e, s vezes, falsificadora do objeto de pesquisa. Como salienta PERUZZOTTI (1994: 216), A anlise institucional dominou o debate acadmico sobre a consolidao democrtica, reduzindo os problemas institucionais a uma perspectiva que privilegia a engenharia institucional de cima para baixo e limita a reconstruo institucional s decises das elites polticas; em vista disso, relegou a um segundo plano um outro aspecto da equao institucionalizante: as prticas e identidades polticas da sociedade civil e sua relao histrica com a democracia e o constitucionalismo. Por outro lado, os estudos que enfocam a participao social na gesto pblica tendem, em sua maioria, a centrar-se na discusso sobre os impactos ou efeitos institucionais dos processos em anlise, particularmente sobre seu significado enquanto processos de democratizao das estruturas do Estado e dos procedimentos da ao governamental.2 Sem desmerecer este tipo de anlise, importante frente ao slido enraizamento de estruturas, prticas e valores autoritrios e privatistas no mbito do Estado brasileiro, destaca-se contudo que a discusso sobre as conseqncias ou funes democratizantes decorrentes das experincias de participao no tm sido acompanhada por um debate centrado na explicao dos fatores genticos da participao. Em vista disso, acaba-se tomando como explicao dos processos de participao as suas conseqncias e/ou funes, numa inverso da dinmica social objetiva; ou seja, acaba-se pretendendo explicar a participao por

Para uma anlise nesta perspectiva ver, por exemplo, o importante trabalho de FEDOZZI (1997).

2

22

suas conseqncias/funes democratizantes, que assim passariam tambm a ser as causas desta mesma participao. Frente a estas questes, expostas de maneira simplificada e introdutria, define-se como o foco central deste estudo a anlise dos processos de participao social direta na gesto pblica como processos de ao coletiva. Ou seja, este trabalho centra-se na identificao e anlise dos fatores explicativos da atuao coletiva de segmentos da sociedade civil em canais de participao direta na gesto pblica. A adoo desta perspectiva de anlise apresenta uma srie de obstculos a serem superados. Em primeiro lugar, preciso ter presente que o objeto que constitui a base emprica do estudo, ou seja, os processos de participao social na gesto pblica, so um dos pontos centrais das disputas poltico-ideolgicas no Brasil contemporneo (e, particularmente, no Rio Grande Sul). Neste sentido, so objetos carregados de significados e representaes produzidos pelos agentes sociais e polticos envolvidos nestas disputas, os quais muitas vezes ocultam os processos objetivos com discursos que buscam construir posturas de apoio ou rejeio acrtica a determinadas posies poltico-ideolgicas. Neste sentido, o grande debate e a publicidade acerca do processo de discusso e definio pblica do oramento municipal em Porto Alegre, por exemplo, tem, do ponto de vista da anlise acadmica, provocado inmeras dificuldades. Percebe-se a disseminao da tendncia a tomar como conhecido (no sentido de explicado e/ou compreendido) um processo social pelo simples fato de que nele se fala com freqncia. A proliferao de discursos sobre o Oramento Participativo (OP) e a sua incorporao como elemento constitutivo do cotidiano da cidade parecem dispensar o esforo de anlises

23

empricas metdicas e minuciosas pelos socilogos que tratam do assunto, que esquecem que (...) a familiaridade com o universo social constitui o obstculo epistemolgico por excelncia para o socilogo, porque produz continuamente concepes ou sistematizaes fictcias, ao mesmo tempo que suas condies de credibilidade (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1975:27). Neste sentido, observa-se que a explicao sobre o OP de Porto Alegre tem, muitas vezes, limitado-se a reproduzir discursos construdos pelos prprios participantes do processo.3 Obviamente, qualquer processo social constitudo por elementos objetivos e subjetivos, verificando-se uma articulao entre fato e representao, base insupervel da complexidade da realidade social. Este reconhecimento, no entanto, no deve afastar-nos da preocupao, necessria a qualquer cientista social, de buscar despir os fatos de suas representaes, como procedimento indispensvel para superar o que na representao est oculto ou distorcido. Neste sentido, um dos principais obstculos para o desenvolvimento de nossa anlise o perigo constante de tomar o discurso pela realidade, como se esta fosse evidente e se resumisse s representaes que os indivduos e grupos envolvidos buscam, consciente ou inconscientemente, transmitir. Mesmo sendo fundamental incorporar estas

representaes a nossa investigao, preciso que tal incorporao problematize o que nos dado pelos diferentes discursos, de forma a identificar como os mesmos se situam no campo das disputas poltico-ideolgicas e quais os nveis de distoro que podem introduzir em nossa anlise. A desconsiderao por este cuidado bsico do

Como exemplo desta tendncia, ver os trabalhos de HARNECKER (1993, 1996, 1999).

3

24

procedimento sociolgico, traz o perigo de que os estudos tornem-se reificaes de discursos socialmente produzidos, que ganham assim o status de interpretaes cientficas e, muitas vezes, constituem-se em obstculos ao conhecimento na medida em que cristalizam verdades, ocultando outras relaes, acontecimentos e discursos.4 Em vista disso, torna-se indispensvel para a superao deste obstculo a articulao entre instrumentos de pesquisa que apreendam os diferentes discursos sobre os processos em anlise, pois so partes constituintes destes processos, e instrumentos que permitam problematizar as representaes e superar provveis lacunas ou distores delas decorrentes. Neste sentido, busca-se nesta pesquisa articular diferentes procedimentos de coleta e anlise de dados, de forma a constituir uma slida base emprica que contemple os aspectos objetivos e subjetivos constituintes do objeto em estudo. Em relao coleta de dados, foram utilizados os seguintes procedimentos: entrevistas qualitativas baseadas em roteiro estruturado (foram realizadas 35 entrevistas com agentes sociais participantes do OP, integrantes das equipes de governo, vereadores e prefeitos municipais); pesquisa em jornais locais (com a consulta de 8 jornais de circulao local nos municpios de Alvorada, Gravata e Viamo); pesquisa documental (foram coletados e analisados em torno de 600 documentos referentes aos processos de OP municipais, trajetria poltica e associativa dos municpios); surveys j realizados com os participantes do OP (foram analisados: dados de trs surveys realizados em 1993, 1995 e 1998 com os

Como salienta BACHELARD (1996:18), (...) aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveramos saber.

4

25

participantes do OP de Porto Alegre; dados de um questionrio aplicado, em 1999, a 118 entidades participantes do OP de Porto Alegre; dados de dois questionrios aplicados a delegados do OP de Alvorada, em 1997 e 1999); pesquisas de opinio contratadas pela Prefeitura de Porto Alegre para a avaliao do governo municipal (foram analisados 10 relatrios de pesquisas realizadas entre 1991 e 1997); observao das plenrias da Primeira Rodada do OP do ano de 2000 nos municpios de Viamo e Alvorada (foram acompanhadas 26 plenrias, regionais e temticas, nestes municpios)5; observaes de reunies do Conselho do Oramento Participativo em Viamo e Alvorada; consulta de pesquisas j desenvolvidas e utilizao de seus dados como fontes secundrias. Em relao ao tratamento dos dados foram desenvolvidos, inicialmente, dois procedimentos. Em relao aos dados quantitativos foi empregado o programa SPSS 7.5 para a sua organizao e processamento, tendo sido utilizado fundamentalmente o cruzamento de variveis e os seus resultados em termos de freqncias e percentuais. Em relao aos dados qualitativos foi empregado o programa QSR*NUDIST, que possibilita uma explorao mais rpida, controlada e qualificada das informaes fornecidas por fontes qualitativas. Posteriormente, os resultados quantitativos e qualitativos foram cruzados e analisados, de maneira a buscar e esclarecer as divergncias e afinidades entre as informaes provindas destas diferentes fontes.

Em virtude de conflito de datas, no foi possvel o acompanhamento sistemtico das plenrias do OP de Gravata. Alm disto, houve menor possibilidade de realizao de entrevistas com participantes do processo naquele municpio. Esta lacuna trouxe algumas limitaes anlise feita em relao ao OP de Gravata.

5

26

Outro obstculo colocado para este estudo refere-se ao predomnio na sociologia brasileira contempornea de uma apreenso esttica e temporalmente limitada dos fenmenos analisados. Ou seja, tende-se a desconsiderar a dimenso temporal dos fenmenos sociais, que assim passam a ser tomados como fatos que podem ser compreendidos e explicados fora de processos dos quais fazem parte e que possuem uma histria. A ausncia de uma viso processual, que enfatize a trajetria scio-histrica dos objetos pesquisados, particularmente problemtica na discusso da participao social na gesto pblica. Fruto do desencanto com os chamados movimentos sociais ao longo da dcada de 80, muitos estudos que passaram a trabalhar com o tema da participao nos anos 90 desconsideraram um longo, rico e complexo processo organizao, mobilizao e conflitualidade poltico-social que antecedeu e esteve na raiz das experincias atuais de gesto pblica com participao social.6 A nfase exclusiva na novidade destes fenmenos, os isola e retira de uma trajetria mais ampla que, na perspectiva aqui adotada, fundamental para a sua compreenso. A ausncia de uma abordagem diacrnica impossibilita apreender processos que tem na dimenso temporal um aspecto bsico da sua constituio, como o caso da ao coletiva, cujo entendimento totalmente distorcido na falta de uma perspectiva processual.7

significativo que na extensa bibliografia sobre o OP de Porto Alegre, por exemplo, praticamente no so abordados aspectos e processos anteriores ao governo da Administrao Popular. 7 ESCOBAR (1992:73), por exemplo, chama a ateno para este erro, presente em muitos estudos dos movimentos sociais, quando afirma que, Because these theorists concentrate on collective action as a fact, not a process, they make analytically invisible a crucial network of relationships that underlie collecive action before, during, and after the events.

6

27

Por fim, um ltimo obstculo a ser transposto, refere-se presena de uma forte tradio estatista no pensamento sociolgico brasileiro, na qual o Estado tende a ser concebido como o principal ou nico agente efetivamente significativo na estruturao das relaes e dinmicas sociais. Nesta perspectiva, os agentes da sociedade civil, particularmente os constitudos pelos segmentos mais pobres e menos escolarizados, tendem a ser apreendidos como frgeis, dependentes, heternomos e subordinados lgica do Estado e s iniciativas das elites polticas, incapazes portanto de aes autnomas e instituintes de relaes e representaes sociais. Conforme critica NUNES (1986:39), (...) que so distintas as lgicas de explicao conforme o ator se situe entre aquilo que se define como populao ou classes populares por um lado e o que poderamos chamar de elites polticas por outro. S ao segundo grupo dado o privilgio de significar suas aes segundo projeto prprio, diferenciado, positiva e livremente articulado. s classes populares cabe apenas a reao a uma situao, reao qual constrangida.

Neste aspecto, novamente, o desencanto com os movimentos sociais deixou uma herana problemtica, pois, juntamente com a crtica a uma srie de idealizaes que marcaram as representaes que a sociologia construiu sobre tais agentes, acabou sendo questionado e desconsiderado um aspecto inovador trazido no bojo da discusso sobre movimentos sociais: a ruptura com a tradio estatista e a abertura da sociologia brasileira para a complexidade de relaes e formas de organizao coletiva existentes ao nvel da sociedade civil. Esta ruptura, mesmo sendo acompanhada por simplificaes e maniquesmos, possibilitou

28

(...) pensar o significado de formas de sociabilidade regidas por critrios distintos de identidade, capazes de engendrar aes dotadas de sentido poltico. Foi atravs dessa imagem, enfim, que pudemos pensar a poltica como algo que no se reduz a um nico espao, prefixado e determinado como lugar do Estado e das relaes institucionalizadas de poder (TELLES, 1988:281).

A desvalorizao e secundarizao da sociedade civil marca muitas anlises sobre os processos contemporneos de participao social na gesto pblica, estando na base da tendncia exposta anteriormente de reduzir tais processos unicamente a exerccios ou experincias de inovao institucional. Neste sentido, por exemplo, observa-se algumas vezes a transformao de polticas como o Oramento Participativo em receitas, que seriam passveis de aplicao e reproduo independentemente do contexto scio-econmico e poltico dos diferentes municpios.8 No entanto, como salienta MENEGAT (1998:49), (...) sem uma referncia trajetria dos atores sociais e polticos que foram responsveis pela criao e execuo da proposta do Oramento Participativo, pode-se criar a iluso de que possvel reproduzi-la, como modelo, indistintamente em outros lugares, bastando, para tanto, conhecer-se a seqncia de passos formais e institucionais necessrios para sua operacionalizao. A nfase demasiada nos procedimentos institucionais, portanto, pode perder de vista o que deveria constituir o seu aporte principal: a anlise da gnese histrica e a construo social dos atuais processos polticos. Isto , sem levarmos em conta as singularidades histricas locais que produziram a experincia de

O exemplo mais significativo desta perspectiva o livro de PIRES (1999). Esta tendncia foi estimulada, em grande medida, pelo Banco Mundial, a partir da adoo do OP como uma das experincias inovadoras de gesto pblica a ser seguida e implantada pelos governos locais em diferentes partes do mundo.

8

29

participao popular em Porto Alegre, perdemos de vista, precisamente, os elementos que podem constituir a chave de processos de conduo da sua universalizao. (destaques da autora)

Tal perspectiva, que reduz a complexidade de tais processos a uma mera questo gerencial, produz no apenas srios equvocos polticos, mas tambm um entrave ao conhecimento de tais processos em virtude de uma viso excessivamente simplista e, por isso, falsificadora. Em conseqncia, ao adotar-se uma perspectiva de anlise que concebe a participao como ao coletiva, busca-se um enfoque que tem sido secundarizado no estudo da participao. Obviamente que com isto no se pretende retomar a velha dicotomia entre sociedade civil e Estado (ou entre institucional e no-institucional), que marcou grande parte da discusso sobre os movimentos sociais nos anos 70 e 80. Ao contrrio, buscar-se- demonstrar que variveis poltico-institucionais so determinantes na explicao dos processos de participao social. Rejeita-se, contudo, a reduo da explicao a estas variveis. Neste sentido, sustenta-se que necessrio complexificar as anlises, introduzindo a dimenso da ao coletiva e da sua construo social como fator constituinte dos processos participativos. O objeto emprico deste estudo so os processos de participao social na discusso e deliberao sobre a distribuio dos recursos pblicos dos governos municipais o chamado Oramento Participativo , em curso em quatro municpios da Regio Metropolitana de Porto Alegre (Porto Alegre, Alvorada, Viamo e Gravata), cujos governos tm como principal fora poltico-partidria dirigente o Partido dos Trabalhadores (PT). Atravs de uma anlise comparativa daqueles processos nos diferentes municpios, busca-se compreender como se

30

constri a organizao e interveno coletiva dos agentes sociais nos espaos de participao social na discusso do oramento municipal, identificando assim as variveis que possibilitam explicar como se produz a participao nos casos pesquisados, as diferenas e similitudes qualitativas e quantitativas porventura existentes. A estratgia de anlise adotada neste estudo tem a seguinte orientao metodolgica, definida por ELIAS; SCOTSON (2000:200): Os estudos empricos de casos tm, para os socilogos, uma importncia considervel a que os experimentos tm para os fsicos. A capacidade de visualizar os casos singulares limitados torna possvel seguir determinados detalhes de certa figurao, que em figuraes maiores do mesmo tipo dificilmente seriam percebidos e comprovados. Atravs do caso exemplar, atentamos para as regularidades de um nexo de acontecimentos, o que nos possibilita ento testar, por meio da investigao de outros casos, se tais regularidades so observveis em todos eles e, se no foram, por que isso acontece.

Neste sentido, parte-se, com base nas discusses tericas e estudos empricos sobre os temas da ao coletiva e da participao, de uma anlise sobre a experincia de participao no OP de Porto Alegre, que assim constitui-se como um modelo (no sentido tpico-ideal)9 a partir do qual so identificadas as variveis que explicariam a produo da ao coletiva voltada participao social na gesto pblica. Esta definio de Porto Alegre como um modelo deve-se ao fato de que este municpio apresenta a experincia mais consolidada de OP, tendo conseguido

A noo de modelo aqui empregada tem um significado estritamente metodolgico, no apresentando nenhum sentido de constituio da experincia do OP de Porto Alegre como um modelo em termos de ideal a ser seguido.

9

31

manter ao longo de mais de uma dcada uma significativa dinmica de participao social. Alm disto, em virtude deste relativo xito, o OP de Porto Alegre tem sido apresentado e divulgado como uma experincia passvel de reproduo em outros contextos, sem que haja, contudo, a devida anlise das suas condies de possibilidade, o que ser abordado neste estudo. Aquelas variveis identificadas, analisadas e definidas como explicativas da participao no OP de Porto Alegre sero, no segundo momento, submetidas a um estudo comparativo, investigando-se a sua presena e capacidade explicativa nos processos de participao social no OP dos municpios de Alvorada, Gravata e Viamo (e, em caso de uma limitada capacidade explicativa, identificar que outras variveis explicariam a participao nestes municpios). A partir desta comparao ser possvel responder ao problema de pesquisa formulado acima (quais os fatores explicativos da atuao coletiva de segmentos da sociedade civil em canais de participao direta na gesto pblica?), identificando se existe um conjunto de variveis comuns entre os casos investigados explicando os processos de participao ou, ao contrrio, se existem especificidades locais que condicionam a forma como a participao se produz nos diferentes municpios, impossibilitando assim uma generalizao daquelas variveis explicativas da participao no OP de Porto Alegre. Tendo por base esta orientao metodolgica, o estudo apresenta-se estruturado da seguinte forma: o Captulo 1 apresenta uma discusso terica sobre a questo da ao coletiva, buscando identificar quais as variveis que explicariam a participao social no OP de Porto Alegre, participao esta entendida como uma forma especfica de ao coletiva; o Captulo 2 objetiva, atravs de uma reconstruo

32

da trajetria de discusses e experincias de organizao popular e de participao social na gesto pblica em Porto Alegre, fornecer um consistente suporte emprico s consideraes desenvolvidas no Captulo anterior; no Captulo 3 ser feita uma caracterizao dos municpios de Alvorada, Gravata e Viamo e de seus processos de OP, no sentido de fornecer elementos que possibilitem apreender as diferentes realidades locais em comparao; o Captulo 4 apresenta a anlise das variveis selecionadas, no sentido de estabelecer sua capacidade de explicao dos processos de participao observados em Alvorada, Gravata e Viamo e, caso ocorram, identificar que outras variveis adquirem um poder explicativo nos casos particulares; por fim, nas Concluses retoma-se o problema de pesquisa de forma a respond-lo com base na anlise comparativa efetuada.

CAPTULO 1 A PARTICIPAO POPULAR NO ORAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE: UMA TENTATIVA DE EXPLICAO.

O objetivo deste captulo desenvolver, com base na anlise do processo de participao de segmentos da sociedade civil na discusso do oramento municipal em Porto Alegre (o Oramento Participativo OP), algumas consideraes tericas que orientem a anlise comparativa com os outros casos a serem abordados neste estudo. O captulo est dividido em duas sees: na primeira, so estabelecidos aspectos tericos que definem a compreenso adotada sobre os processos de ao coletiva e a sua construo social; na segunda, a partir de uma apreenso da participao dos agentes sociais em processos como o OP, busca-se analisar a especificidade desta forma de ao coletiva e definir as variveis explicativas para a

34

compreenso de tais processos, tendo como referncia emprica o processo de OP de Porto Alegre. Estas variveis sero posteriormente submetidas ao procedimento comparativo, no sentido de testar a sua capacidade explicativa em outros contextos e, assim, a possibilidade de sua generalizao.

1.1 A CONSTRUO SOCIAL DA AO COLETIVA

A sociologia brasileira no possui uma tradio de anlise dos processos de ao coletiva como objeto especfico de estudo. Ao contrrio, conforme indicado na Introduo, o tema da ao coletiva geralmente constituiu um aspecto secundrio includo em outros campos de investigao, em especial no interior da discusso sociolgica sobre os movimentos sociais. Mesmo neste caso, no entanto, a tendncia de grande parte das anlises foi a de tomar o ato coletivo como um aspecto no problemtico, que no mereceria ateno especial por parte do investigador, uma vez que, em geral, era visto como um desdobramento mecnico e natural de contradies e/ou problemas sistmicos, levando ao equvoco denominado por KOWARICK (2000:126) como deducionismo das condies objetivas. Neste estudo, parte-se de uma perspectiva diversa, na qual o ato coletivo tomado no como dado da realidade social, um resultado natural ou mecnico do funcionamento da sociedade, mas, ao contrrio, como uma complexa e problemtica construo social que necessita ser explicada. A noo de construo social traz a idia de que os atos coletivos so resultados de processos sociais que nada tm de espontneos ou de reflexos de determinadas relaes ou dimenses sociais.

35

O sentido de construo social implica, por um lado, em maior ou menor intensidade, a presena de uma vontade ou intencionalidade que tem na produo da ao coletiva um de seus objetivos centrais. Por outro lado, como parte e resultado de um processo social, tal construo no se resume a um ato livre de vontade ou desejo, estando inserida num campo estruturado e determinado de relaes sociais, que condiciona de forma mais ou menos estreita no s as possibilidades de realizao das vontades, mas tambm, o contedo dessas vontades e desejos.10 Este papel condicionante das estruturas objetivas observado por BOURDIEU (1989:136), ao tratar do seu impacto sobre o processo de constituio de grupos sociais fundados nas posies de classe. Segundo o autor, (...) preciso afirmar, contra o relativismo nominalista que anula as diferenas sociais ao reduzi-las a puros artefatos tericos, a existncia de um espao objetivo que determina compatibilidades e incompatibilidades, proximidades e distncias. preciso afirmar, contra o realismo do inteligvel (ou reificao dos conceitos) , que as classes que podemos recortar no espao social (...) no existem como grupos reais embora expliquem a probabilidade de se constiturem em grupos prticos.

A perda da dimenso estrutural em abordagens como o interacionismo simblico, leva OLIVER; JOHNSTON (1999:16) a estabelecerem seu limite como instrumento analtico no estudo da ao coletiva. Segundo os autores, These approaches offer dense and think descriptions of social processes, showing how the symbolic order works with descriptive depth and elegance. But they have little to say about why the symbolic order has this content rather than that content, or how this symbolic order relates to organizational and political factors outside that interactional and discursive moment. For this same reason, ethnomethodology had little impact on the study of social movements. It is difficult to move outside the interactional context, and engage the larger structures of society.

10

36

A complexidade da construo social da ao coletiva deriva do fato de que ela no pode ser compreendida como o resultado direto de um nico fator ou varivel que o investigador pudesse identificar de forma inequvoca. Ao contrrio, nesta construo articulam-se de forma dinmica fatores relacionados intencionalidade e fatores relacionados aos condicionamentos sociais, sem que, no entanto, qualquer um possa ser tomado isoladamente como fator explicativo da ao coletiva. Considerase, portanto, que a ao coletiva no resultado da mera vontade nem fruto mecnico das determinaes da estrutura social, mas sim, resultado de processos complexos em que intencionalidade e condicionamentos (sejam como possibilidades, sejam como obstculos) se articulam de forma varivel de acordo com cada situao emprica particular. Como um complexo processo de construo social, a ao coletiva constituise como algo problemtico, no sentido de que no possui qualquer garantia de que resultar na constituio de um agente capaz de atuar coletivamente e, caso se constitua, no existe qualquer garantia de que o mesmo conseguir reproduzir-se e manter-se ao longo do tempo. De fato, ao deixar de tomar o ato coletivo como algo dado ou natural, surge a possibilidade de sua desconstruo pela incapacidade ou inviabilidade de reproduzir as condies que haviam possibilitado sua emergncia. Ao apreender as aes coletivas como construo social, est implcito a aceitao do carter artificial destas e dos agentes que as promovem, uma vez que os mesmos no podem ser compreendidos enquanto resultados necessrios e inevitveis da realidade social. Aceitar o carter de artificialidade, que contrapese ao discurso ideolgico que em geral os prprios agentes produzem sobre si mesmos, apresentando-se como resultados puros e espontneos da sociedade ou de

37

algum fator extra-social, no significa aceitar qualquer noo de gratuidade ou de falsidade. Por um lado, conforme indicado acima, a construo da ao coletiva fortemente balizada pelos condicionamentos institudos pelo campo de relaes sociais no qual se efetiva, no sendo algo aleatrio e independente frente quele campo. Por outro lado, a artificialidade dos agentes coletivos compartilha da artificialidade de todas as relaes sociais (institucionalizadas ou no), que no so nem falsas nem verdadeiras, na medida em que carecem de um parmetro externo (natureza, essncia, realidade) frente ao qual pudessem ser avaliadas em sua veracidade. Da mesma forma como no podem sustentar-se em fundamento nosocial, os agentes coletivos tambm no podem ser tomados como expresso ou distoro de algum fundamento desta natureza, a partir do qual poder-se-ia estabelecer sua verdade ou falsidade. A perspectiva que orienta este trabalho busca articular nos referenciais tericos da anlise, a preocupao com os condicionantes sociais da ao coletiva, ao mesmo tempo que a apreende como um ato de construo, em maior ou menor grau, marcado pela intencionalidade. Isso significa a busca da superao de velhas frmulas dicotmicas que separam agentes e estruturas, atores e sistema. Estruturas e agentes no existem como realidades separadas, que se encontrariam e confrontariam na realidade social. Ambos so expresses de relaes sociais determinadas que, por sua trajetria, estabelecem limites e possibilidades ao social. Tais limites tendem a ser apreendidos como condicionamentos ou determinaes, enquanto as possibilidades efetivadas pelos agentes apresentam-se como desejos, vontades ou interesses. Mas, so ambos expresses do campo de relaes sociais que, a partir do que foi historicamente institudo como realidade objetiva e subjetiva, determina o

38

campo de possibilidades e limites s prticas e representaes dos indivduos e grupos sociais. Outra dicotomia questionada pela perspectiva adotada neste trabalho refere-se ciso e contraposio entre objetividade e subjetividade, como se existissem duas realidades diferenciadas que estabeleceriam relaes de subordinao, ocultao ou exterioridade entre si. Ao contrrio, parte-se da concepo de que a realidade social constituda por relaes objetivas, as quais estabelecem o fundamento bsico a partir do qual so construdas as representaes e significados simblicos. As representaes, discursos e signos, por sua vez, constituem a forma pela qual as relaes sero subjetivamente apreendidas, interpretadas e vivenciadas pelos agentes sociais como realidade objetiva. Ou seja, (...) os discursos, os ritos e as doutrinas constituem no apenas modalidades simblicas e transfigurao da realidade social, mas sobretudo ordenam, classificam, sistematizam e representam o mundo natural e social em bases objetivas e nem por isso menos arbitrrias. Quer dizer, a reelaborao simblica que um discurso efetiva parte integral da realidade social e, por esta razo, tal realidade tambm constituda, ou melhor, determinada pela prpria atividade de simbolizao. (MICELI, 1974:LX)

Objetividade e subjetividade so, ao mesmo tempo e de maneira inexorvel, constituintes da e constitudas na realidade social, cuja complexidade advm exatamente da sua natureza de coisa e representao. Tal aspecto abre um espao de indeterminao na realidade social, que justamente a base objetiva dos conflitos simblicos que tem como foco a definio do que a realidade social objetiva. Tendo por base estas premissas, entende-se neste estudo a ao coletiva:

39

(...) como uma interao de objetivos, recursos e obstculos, como uma orientao intencional que estabelecida dentro de um sistema de oportunidade e coeres. (...) O modo como os atores constituem sua ao a conexo concreta entre orientaes e oportunidades e coeres sistmicas. (MELUCCI, 1989:52)

Neste sentido, ainda de acordo com MELUCCI (1990:2), Collective action is not a unitary empirical phenomenon, and the unity, if it exists, should be considered as a result rather than a starting-point, a fact to be explained rather than evidence. The events in which individuals act collectively combine different orientations, involve multiple actors, and implicate a system of opportunities and constraints that shape their relationships.

As intenes, oportunidades e obstculos, como condies objetivas e subjetivas que se articulam no processo de construo da ao coletiva, no so nem fruto da vontade nem determinaes mecnicas de uma estrutura social externa aos agentes, mas fatores que se constituem na trajetria scio-histrica do campo de relaes sociais em parte constitudo pelos agentes e no qual estes se constroem. Nesta trajetria, por um lado, estruturam-se os condicionamentos objetivos (sociais, econmicos, institucionais) da construo da ao coletiva, os quais definem um determinado campo de possibilidades para esta construo e estabelecem limites objetivos intencionalidade dos agentes. Por outro lado, na trajetria scio-histrica estruturam-se tambm os condicionamentos subjetivos da construo da ao coletiva, que definem as possibilidades e limites em termos de discursos e representaes aos quais os agentes tm acesso e que podem ser incorporados no processo de construo.

40

Existem, assim, limites objetivos intencionalidade dos agentes e a intencionalidade constri-se em um determinado campo de possibilidades subjetivas, que estabelece o que pode e o que no pode ser pensado e institudo pelos agentes como sua vontade, interesse, desejo, projeto ou utopia. Segundo DIANI (2000:17), The interdependence between ideas and concrete relationships shapes dramatically possible courses of actions: some appear as obvious and accessible while others seem to be unfeasible if not unconceivable. Se a ao coletiva uma construo social, preciso compreender que esta construo tem que ser realizada com os materiais e com os instrumentos disponibilizados por uma determinada trajetria scio-histrica. a partir do campo de possibilidades objetivas e subjetivas estruturado por esta trajetria que se pode apreender a ao coletiva na sua complexidade, escapando tanto de uma viso voluntarista, quanto de uma viso determinista, ambas simplificadoras e, por isso, incapazes de explicar tal processo de maneira satisfatria. Em relao a estes condicionamentos objetivos e subjetivos coloca-se o que conceituado como a intencionalidade na construo da ao, destacando-se novamente que a intencionalidade no se constitui externamente aos

condicionamentos acima referidos, a eles contrapondo-se, mas sim, ao contrrio, por eles igualmente condicionada. O conceito de intencionalidade, despido de qualquer contedo voluntarista, busca apreender os processos atravs dos quais os agentes, sob condies objetivas dadas, atuam no sentido de produzir uma ao que se encontra como possibilidade determinada por aquelas condies. Mediada pela intencionalidade produz-se uma transformao das condies necessrias ao,

41

condies que possibilitam mas no geram a ao, em condies suficientes, que atualizam a possibilidade latente em prticas sociais efetivas. A construo da ao coletiva, fruto da interseo entre as determinaes da realidade objetiva e as diversas dimenses da intencionalidade, tambm esta determinada, deixou de ser apreendida e analisada por muitos autores em virtude do seu carter subterrneo e pouco visvel, imersa nas relaes cotidianas que tecem a teia das redes sociais. Considerou-se, geralmente, os atos coletivos pela sua face visvel, pela sua emergncia espetacular, pelas suas estruturas formais de organizao, perdendo a realidade submersa na qual se d a construo do que esporadicamente vem tona como ao coletiva com visibilidade pblica. Para apreender a insero da ao coletiva nas relaes sociais cotidianas, quando identidades so construdas, formas de organizao so experimentadas, recursos so mobilizados, discursos e representaes so gerados, no campo de possibilidades materiais e simblicas socialmente determinado, importante enfocar o que alguns autores tm denominado de: (...) the social networks, the recruitment networks or the micromobilization contexts (...) which provide the social and cognitive preconditions for movement emergence (FOWERAKER, 1995:39). Atravs destes conceitos, autores tm buscado, ao mesmo tempo, destacar o papel ativo dos agentes sem cair na fico do ator racional e calculista da Teoria da Escolha Racional e, por outro lado, enfatizar as determinaes sociais sem cair no mecanicismo determinista de muitas abordagens estruturalistas. Assim, os agentes envolvidos na construo da ao coletiva devem ser concebidos como agentes inseridos em campos de relaes sociais estruturadas, as quais condicionam no s as possibilidades e limites das aes dos agentes, mas o prprio

42

sentido que estas assumem (seja para o agente, seja para o sistema em geral). Isto se deve ao fato de que nas redes de relaes sociais nas quais o agente se socializa que construir-se-o os referenciais simblicos que orientaro suas aes. Ou seja, interesses, ideologias, valores, identidades enfim, derivam no de uma natureza fixa e imutvel, mas so resultados do processo de formao social do agente. O papel das redes em relao construo da ao coletiva, no entanto, nem sempre uma relao positiva, de sustentao ou potencializao do ato coletivo. Se a relao positiva uma possibilidade, h que considerar outra possibilidade, qual seja, de uma relao negativa entre redes e ao coletiva, na qual as primeiras atuam no sentido da desmobilizao e do esvaziamento do ato coletivo, por oposio ou indiferena face aos agentes que buscam construi-lo. Como salienta KLANDERMANS (1992:95), Movement organizations, like any other, are embedded in a multiorganizational field, which we can define as the total possible number of organizations with which the movement organization might establish specific links. Until recently the literature focused primarily on the support a social movement organization receives from sectors of the multiorganizational field and contained surprisingly little about the fact that multiorganizational fields need not necessarily be supportive. Opponents, in fact, always constitute some part of the multiorganizational field of a movement organization.

Um ltimo aspecto a ser ressaltado em relao ao processo de construo da ao coletiva, refere-se necessidade de considerar-se a diversidade dos agentes em termos do comprometimento e envolvimento com o ato coletivo. Esta diferenciao importante no sentido de destacar que o processo de construo da ao coletiva dependente da interveno de um pequeno grupo de ativistas, que,

43

mesmo sendo numericamente pouco significativo, pode ter um forte significado social em determinadas conjunturas.11 Estes ativistas tendem a constituir uma densa rede de relaes, que funciona no sentido do fortalecimento da identidade coletiva e na sustentao do compromisso com a ao coletiva frente ao conflito com opositores e crticos e indiferena dos segmentos cticos em relao a ao.

1.2 A PARTICIPAO POPULAR COMO AO COLETIVA

Considerando-se a interveno de indivduos e grupos sociais em processos de participao direta na gesto pblica enquanto aes coletivas,12 colocase como objeto de investigao uma srie de aspectos que tradicionalmente no tm sido problematizados nos estudos sobre a chamada participao popular. Na medida em que tal participao considerada como dado, como decorrncia mecnica da existncia de espaos de participao ou como expresso de uma vontade natural da populao de participar, deixa de existir um problema a ser

Esta distino entre significado estatstico e significado sociolgico destacada por ELIAS; SCOTSON (2000:119), para quem O pressuposto tcito de boa parte da literatura sociolgica de que as maiorias esto naturalmente ligadas a uma importncia maior, nem sempre confirmado pelos fatos. Os grupos minoritrios podem ter uma significao sociolgica que ultrapassa em muito sua importncia quantitativa. Esta afirmao particularmente importante em relao a construo da ao coletiva, onde pequenos grupos de ativistas podem ter um papel muito significativo apesar de sua pouca expresso quantitativa. 12 Os processos de participao direta aqui considerados so somente aqueles nos quais a populao intervm direta e massivamente em espaos de discusso e deliberao de determinados aspectos da gesto pblica, excluindo-se outras formas de participao que assentam-se em procedimentos de representao e/ou delegao. Tal restrio deve-se ao fato de que somente os processos de participao direta implicam necessariamente a interveno de formas de organizao e mobilizao coletiva, permitindo apreender tais processos enquanto ao coletiva.

11

44

investigado, pois o ato coletivo da participao apresenta-se como algo transparente e evidente. Esta perspectiva, no entanto, no se sustenta na medida em que se problematiza os processos de participao: por que a participao envolve apenas um segmento quantitativamente minoritrio da populao? Por que algumas pessoas e grupos participam de forma muito mais intensa do que outros? Por que se diferenciam os sentidos que os indivduos e grupos atribuem sua participao? Por que algumas pessoas escolhem tal alternativa de ao para enfrentar seus problemas cotidianos e outras no? Por que alguns problemas sociais geram participao e outros no? Por que em determinados segmentos da populao o chamamento participao encontra adeso e em outros no? Estas e uma srie de outras questes so abertas para a investigao quando abordamos os processos de participao como ao coletiva. Estes processos dependem de aes de organizao e mobilizao coletivas que no possuem naturalidade, mas sim so construes artificiais produzidas por indivduos e grupos que atuam com a intencionalidade de gerar tal organizao e mobilizao e, assim, a participao. Esta artificialidade da participao deve-se ao fato de que, segundo BOURDIEU (1989:169), (...) nada menos natural do que o modo de pensamento e de ao que exigido pela participao no campo poltico: (...) o habitus do poltico supe uma preparao especial. Ou seja, a participao ativa dos agentes sociais em espaos de gesto pblica assim como todas as formas de ao coletiva, longe de ser algo natural, como apressadamente afirmam muitas ideologias polticas, uma construo social que depende de um aprendizado fundado na experincia de uma trajetria social.

45

A ao intencional dos agentes que buscam produzir a participao em processos como o Oramento Participativo, que constituem o objeto emprico deste estudo, no um mero ato de vontade em um vcuo de relaes sociais. Ao contrrio, esta interveno est situada e condicionada pelo campo de relaes no qual e a partir do qual ela se constitui. Este campo determina as possibilidades e limites desta prpria intencionalidade e da sua efetivao na vida social. No caso da construo da participao, existem diversos obstculos objetivos e subjetivos que operam como condicionamentos negativos, tendendo a dificultar e, muitas vezes, impossibilitar o desdobramento da intencionalidade em ao efetiva. Primeiramente, encontra-se a profunda desigualdade social brasileira, acirrada nas ltimas dcadas por transformaes em diversos aspectos das relaes econmicas que tendem a afetar negativamente os setores mais despossudos economicamente. Ao contrrio do que o esquema clssico previa13, tal desigualdade pode no apenas no se constituir em fator gerador de organizao e mobilizao coletiva dos segmentos mais pauperizados, mas sim ser um fator de desestmulo a aes coletivas. Na medida em que segmentos crescentes da populao percebem um bloqueio de suas expectativas de melhoria de vida ou, pior ainda, identificam uma tendncia de descenso e excluso sociais, ao mesmo tempo que no visualizam interesse ou capacidade de uma atuao do Estado no sentido de reverso destas tendncias, a alternativa da auto-excluso poltica coloca-se como uma alternativa provvel.

REIS (1996:437) sintetiza este esquema clssico da seguinte forma: desigualdade formao de uma identidade coletiva entre os desprivilegiados mobilizao social e poltica questionamento do status quo.

13

46

Deve-se destacar que a grande maioria pobre da populao brasileira historicamente foi marginalizada e excluda da participao nos processos polticos, sendo mobilizada unicamente no sentido da legitimao e/ou do suporte eleitoral aos agentes da elite poltica. Com base na trajetria de excluso e subordinao, constituiu-se uma experincia de no identificao com os espaos, instituies e agentes polticos, vistos como algo distante em relao aos interesses cotidianos e, mais do que isso, muitas vezes opostos queles. Fundadas nesta experincia, so construdas representaes e discursos que instituem um senso comum no qual poltica associada com enganao, interesses pessoais, corrupo, dominao, sujeira, entre outros atributos pejorativos. A experincia poltica das classes populares tambm constituda por um determinado padro de relacionamento entre a populao e os representantes eleitos e governantes (os chamados polticos). Tal padro baseou-se historicamente no em uma cultura de direitos universais de cidadania, mas em relaes e favorecimentos individualizados e personalizados, conferindo distino e privilgios aos que os possuam. Tal padro, por um lado, estimula uma relao individual entre demandantes e polticos, uma vez que o atendimento de demandas ocorre como um ato de favor pessoal, uma deferncia do poltico em reconhecimento pessoal de quem lhe solicita sua interveno. Por outro lado, tal relao estabelece e refora prticas de subordinao frente aos polticos, pois como no h a reivindicao de direitos, mas a solicitao de favores, necessrio que os demandantes submetamse e, mais ainda, disponham-se a recompensar o poltico em troca da sua disposio para ajudar aos que lhe solicitam (recompensa geralmente expressa em apoio eleitoral).

47

O padro de relacionamento clientelista e a concepo pejorativa da poltica, fruto de uma experincia fundada numa longa trajetria scio-histrica, constituem um habitus que se contrape de forma vigorosa aos discursos e prticas de organizao, mobilizao e participao poltica. E isto no por uma falta de conscincia ou atraso da populao, conforme tendem a sustentar determinadas abordagens elitistas,14 mas porque esta populao aprendeu atravs de sua experincia que a poltica algo negativo (e, de fato, para ela geralmente o foi) e, a

A crtica a uma perspectiva elitista parece importante neste momento frente ao peso de uma tradio analtica que tende a julgar as prticas e representaes polticas da populao frente a um quadro normativo que define o que deveria ser e no em relao experincia poltica objetiva desta populao. Como exemplo de uma anlise que transforma dados que indicam descrdito e frustrao forma como funcionam as instituies polticas no Brasil em indicadores da falta de apego a valores democrticos, ver CASTRO (1995). Este tipo de anlise acaba seguindo uma linha criticada por ZALUAR (1994a:69), na qual (...) o atraso do sistema poltico brasileiro passa sutilmente a ser entendido (...) no como o resultado da desigualdade aberrante e do autoritarismo necessrio para mant-la, mas como um efeito perverso da existncia de massas empobrecidas, que no tm idias nem meios de ao poltica modernos. Os pobres passam a ser vistos, por este prisma, como inimigos inconscientes da democracia. Aqui parece caber a ressalva feita por BOURDIEU (1989:163), para quem Toda anlise da luta poltica deve ter como fundamento as determinantes econmicas e sociais da diviso do trabalho poltico, para no ser levada a naturalizar os mecanismos sociais que produzem a separao entre os agentes politicamente ativos e os agentes politicamente passivos. Assim, as supostas passividade e fatalismo que caracterizariam politicamente os setores mais pobres devem ser vistas, quando existem, no como uma debilidade de sua natureza, mas como o resultado de uma trajetria social marcada pela excluso econmica e poltica. Como salienta PERLMAN (1981:190), Para um pobre, o sentimento de que o que acontece na vida de uma pessoa pouco depende do que elas fazem no necessariamente resultado de uma crena irracional no destino ou nos deuses. antes uma descrena racional na abertura da sociedade que ele habita. Quando os favelados dizem que o pobre no tem vez, ou que tentar alguma coisa no adianta, no esto refletindo uma resignao ou fatalismo inatos, porm, esto avaliando realisticamente a sua situao. Se as barreiras existentes no seu caminho fossem alteradas, eles poderiam responder de modo bem diferente. Perspectiva que sustentada por ZALUAR (1994b:118), para quem, Se podemos falar do mundo fechado e imobilista da pobreza, preciso ficar claro que a percepo da sociedade como rgida e fechada fabricada entre os pobres pelo desestmulo gerado por todos os obstculos que enfrentam para melhorar de vida.

14

48

partir disso, produziu uma representao e uma forma de relacionar-se com a poltica que traduz na prtica cotidiana essa viso negativa. Assim, construir a participao significa, entre outras coisas, romper com um habitus institudo, produzido e reproduzido por uma experincia fundada numa trajetria de excluso, subordinao e clientelismo. A instituio de novas prticas e representaes que efetivem a participao confronta-se com o obstculo do institudo, cuja superao no algo nem simples nem fcil, podendo muitas vezes inviabilizar a intencionalidade organizativa e mobilizadora de determinados agentes que orientam sua ao para a construo da participao. A fora do descrdito e do ceticismo em relao participao poltica, particularmente entre as classes populares, constitui um poderoso obstculo s propostas de organizao e de mobilizao, principalmente quando estas propostas no contam com o suporte de um referencial concreto. Neste caso, o discurso participacionista se confronta com uma experincia objetiva que a ele se ope, ampliando as possibilidades de rejeio e inviabilizao dos esforos de adeso ao coletiva. Estreitamente articulado ao acima referido, outro condicionamento que dificulta os processos de ao coletiva voltada participao na gesto pblica refere-se tradio organizativa das classes populares. Em um contexto poltico marcado por relaes clientelistas entre os agentes polticos e a sociedade civil, grande parte das estruturas organizativas formais das classes populares constituramse como instrumentos de participao e busca de ganhos concretos e imediatos em um campo de prticas polticas clientelistas, subordinando-se em grande medida a este tipo de prtica.

49

Alm disto, muitas destas organizaes sociais foram criadas, estimuladas e/ou mantidas diretamente por agentes polticos, governamentais ou no, enquanto parte do processo de organizao de suas clientelas eleitorais, constituindo o que SANTOS (1989:354) conceitua como Sociedade Civil Secundria, formada pelos espaos da sociedade civil criados pela ao dos agentes ligados ao Estado.15 Tais processos constituem uma rede associativa marcada por prticas e representaes que, de fato, integram e reforam o padro de relacionamento poltico caracterizado pelas relaes personalistas, baseadas no em uma cultura de direitos universais mas no favorecimento particularista e gerador de dependncia. Neste sentido, muitas organizaes e lideranas populares encontram-se inseridas e comprometidas com a manuteno de padres de relacionamento poltico hierrquicos e desmobilizadores, pois atravs deles que obtm um acesso individualizado ao atendimento de determinadas demandas (muitas vezes voltadas satisfao de interesses puramente pessoais). Esta perspectiva rompe com uma viso simplista e idealizada dos agentes da sociedade civil, como se esta fosse um campo homogneo e todos se caracterizassem por prticas democrticas e estimuladoras de aes coletivas. De fato, a sociedade civil constitui-se em campo de disputas e conflitos (um campo multiorganizacional, conforme definido na seo anterior), no qual, em relao ao tema abordado nesta pesquisa, agentes comprometidos no sentido da construo de

Segundo SANTOS (1989:354), Utilizando dois pesos e duas medidas, o Estado de algum modo vicia o confronto social dos interesses sociais, impedindo o crescimento orgnico destes e nesta medida contribui para a desarticulao da sociedade civil (...). Com esta desarticulao, a sociedade civil assume uma certa dualidade entre a sociedade civil ntima do Estado e sociedade civil estranha ao Estado.

15

50

processos de organizao e mobilizao geradores de participao precisam contrapor-se e enfrentar, por um lado, agentes cuja prtica e intencionalidade assentam-se em outras formas de atuao poltica, tendo como base no a ao coletiva mas o contato pessoal e privado com os polticos, e, por outro lado, o predomnio do ceticismo em relao a qualquer forma de ao poltica. Dependendo da forma como localmente esto organizados os diferentes segmentos e da relao de fora entre eles, parcela significativa das formas associativas existentes pode ser um obstculo ao processo de construo da ao coletiva direcionada participao, em virtude de seu compromisso e dependncia em relao formas de atuao poltica clientelistas e/ou de seu ceticismo em relao a qualquer forma de participao. Assim, a partir do que foi abordado acima, percebe-se a existncia de um amplo conjunto de condicionamentos que tende a influir negativamente nos processos de construo de aes coletivas orientadas para a participao na gesto pblica. Excluso e subordinao polticas, desigualdade scio-econmica extrema, descrdito, clientelismo, aparelhamento e cooptao de organizaes sociais, entre outros fatores, constituem obstculos intencionalidade dos agentes que buscam produzir a participao popular (podendo, at mesmo, inviabilizar a constituio destes agentes). Em vista disto, percebe-se a fragilidade de concepes que tomam a participao como um desdobramento natural seja de uma vontade intrnseca de participao, supostamente existente entre a populao, seja como resposta mecnica abertura de espaos institucionais de participao por foras polticas ocupantes de postos de governo. Ao contrrio, frente aos poderosos obstculos socialmente existentes, esboados acima, o ato coletivo de participar uma construo e uma conquista dependente de uma srie de fatores que, na sua articulao, constituem

51

maiores possibilidades participao na medida em que permitem a superao relativa daqueles obstculos. Com base na anlise do processo do Oramento Participativo (OP) de Porto Alegre pode-se identificar alguns fatores como variveis hipoteticamente explicativas da ao coletiva orientada para a participao popular, os quais sero discutidos a seguir e submetidos analise comparativa no Captulo 4.

1.2.1 Associativismo e participao popular

Entre os fatores explicativos da ao coletiva orientada para a participao na gesto pblica destaca-se a existncia de uma rede associativa relativamente densa. Tal rede associativa, entretanto, s ser potencializadora da participao na medida em que for composta por agentes comprometidos com a sua produo, capazes de contraporem-se de forma efetiva s prticas de organizaes da sociedade civil que orientam sua atuao por outros referenciais opostos participao, conforme visto anteriormente. Esta estreita relao entre experincia associativa e participao popular pode ser observada nos processos de discusso do oramento municipal em Porto Alegre. Apesar da abertura do OP para a participao de indivduos que no apresentam envolvimento com organizaes sociais ou polticas, uma vez que esta participao se d individualmente e no por representao, quando observam-se os dados sobre a experincia associativa dos participantes do OP percebe-se que a atuao em algum tipo de entidade ou organizao predominante:

52

Quadro 1. Participao em entidades entre os entrevistados no OP - 1993, 1995 e 1998 Participao em entidade ou associao? Participa de entidades No participa de entidades No respondeu Total OP/1993* OP/1995 OP/1998 Freqncia % Freqncia % Freqncia % 2896 71,28 472 73,88 695 66,9 1044 123 4063 25,70 3,03 100 135 15 622 21,7 2,41 100 292 52 1039 28,1 5 100

Fontes: FEDOZZI, NUES, 1993. FASE, CIDADE, CRC/PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1995. CIDADE, CRC/PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1999.

* Para o ano de 1993, a pergunta refere-se especificamente participao em Associao de Moradores.

Segundo os dados acima, quase trs quartos dos participantes do OP de 1993 e 1995 e mais de dois teros dos participantes em 1998 possuam algum tipo de experincia associativa, indicando que esta se constitui em fator importante na mobilizao e organizao dos indivduos para a atuao neste espao de participao direta na gesto municipal. A importncia da participao em entidades reforada pelos seguintes dados referentes Primeira Rodada de Plenrias Regionais do ano de 1995, quando percebe-se a clara predominncia dos indivduos com alguma insero em estruturas associativas entre os participantes das plenrias em praticamente todas as regies:

53

Quadro 2. Participantes nas Plenrias Regionais da Primeira Rodada do OP/1995Regies Restinga Nordeste Eixo Baltazar Noroeste Norte Centro Humait/Ilhas Centro-Sul Leste Extremo-Sul Sul Cristal Glria Cruzeiro Partenon Lomba do Pinheiro TotalFonte: CRC/PMPA.

Total de participantes 404 485 376 273 240 329 195 1.081 243 380 654 195 299 283 595 823 6.855

N de participantes de % de participantes de entidades entidades 380 94,06 447 92,16 241 64,09 250 91,57 208 86,66 260 79,03 151 77,43 907 83,90 147 60,49 302 79,47 563 86,08 100 51,28 171 57,19 113 39,93 267 44,87 581 70,59 5.087 74,21

A relao estreita entre associativismo e participao, indicada pelos nmeros acima, foi ainda mais significativa no incio do processo do OP, o que pode ser observado quando comparamos a proporo entre participantes e entidades: em 1989, participaram da Segunda Rodada do OP 403 pessoas e 250 entidades, numa proporo de 1,6 pessoas por entidade; em 1990, participaram 599 pessoas e 467 entidades, com uma proporo ainda menor de 1,3 pessoas por entidade; em 1991, participaram 3.086 pessoas e 503 entidades, aumentando significativamente a proporo para 6,1 pessoas por entidade; por fim, em 1992, participaram 6.168 pessoas e 572 entidades, numa proporo de 10,8 pessoas por entidade (Fonte: CRC/PMPA dados para a Segunda Rodada de Plenrias Regionais). Estes dados indicam que a participao no processo do OP, principalmente em seu momento inicial, foi uma aposta de pessoas inseridas em formas associativas.

54

A importncia da insero associativa evidencia-se quando se observa o seu peso entre os indivduos que j foram eleitos representantes da populao (delegados e conselheiros) no OP:

Quadro 3. Participao em entidades entre os entrevistados j eleitos representantes no OP - 1998 Participao em entidade ou associao Participa de entidades No participa de entidades No respondeu Total Freqncia 153 15 2 170 % 90% 8,8% 1,2% 100%

Fonte: CIDADE; CRC/PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1999.

Os dados acima sugerem que a experincia associativa praticamente constitui-se em um pr-requisito para que os indivduos sejam escolhidos como representantes das regies e temticas que compem o OP. Ou seja, indivduos isolados e descolados das formas associativas tendem a possuir um papel secundrio e minoritrio na conduo do processo e nas suas definies. Assim, pode-se concluir com MARQUETTI (1999:25), There is a high level of association and organization among the PB-PoA attendants. (...) The presence of leaders of community associations and a motivated rank and file seem to be more important that occasional participants with no dense ties established with their communities.

A articulao entre as diversas formas associativas atuantes em Porto Alegre pode ser apreendida atravs dos seguintes dados, coletados para a pesquisa do Prof. Leonardo Avritzer Sociedade Civil, Espao Pblico e Poder Local: uma anlise do Oramento Participativo em Belo Horizonte e Porto Alegre junto a 118

55

entidades de Porto Alegre participantes do OP: destas entidades, 109, ou seja 92,4%, possuam relacionamento com alguma outra entidade ou organizao. Discriminando entre os diferentes tipos de entidades, tem-se os seguintes nmeros:

Quadro 4. Distribuio das entidades entrevistadas segundo o tipo de associaes e organizaes com as quais se relaciona (resposta mltipla) Sua entidade relaciona-se com: Associaes Comunitrias Grupos Religiosos Sindicatos Partidos Polticos Outro Tipo de Grupo Sim Freqncia 86 28 7 7 42 No Freqncia 32 90 111 111 76

% 72,9 23,7 5,9 5,9 35,6

% 27,1 76,3 94,1 94,1 64,4

Fonte: Questionrio aplicado pelo autor.

Os dados indicam a articulao entre as entidades comunitrias (que correspondiam a 74,6% ou 88 das 118 entidades entrevistadas na pesquisa), constituda na trajetria relatada no prximo Captulo, que assim formam a matriaprima bsica na tessitura da rede associativa popular em Porto Alegre. Esta idia reforada pelas respostas dos participantes nas Plenrias do OP em 1998 quando perguntados sobre entidades e organizaes das quais participam:

56

Quadro 5. Participao dos entrevistados em entidades OP/1998Entidade(s) da(s) qual(is) participa (resposta mltipla) Associao de Moradores Grupo religioso e/ou cultural Partido poltico Conselhos institucionais Sindicatos Clube esportivo Conselho popular ou Unio de Vilas Centro comunitrio Comisso de rua Comisses Clube de mes Entidade carnavalesca Clube recreativo Freqncia 425 94 62 54 51 41 41 36 34 25 21 21 14 % 40,9% 9% 6% 5,2% 4,9% 3,9% 3,9% 3,5% 3,3% 2,4% 2% 2% 1,4%

Fonte: CIDADE; CRC/PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1999.

Observa-se nos dados acima que as Associaes de Moradores constituem-se no principal formato associativo da populao que participa do OP, confirmando a persistncia de um tipo de vida associativa que historicamente caracteriza a cidade de Porto Alegre (vide Captulo 2). A importncia das Associaes de Moradores, como principal formato associativo da populao que participa do OP, era ainda mais significativa no incio do processo, o que se percebe pelos dados de FEDOZZI; NUES (1993:6) apresentados no Quadro 1 (p.43): entre os participantes do OP em 1993, 71,28% participavam de Associaes de Moradores. Por outro lado, significativo que as formas associativas que tendem a ter uma maior visibilidade pblica, como partidos e sindicatos, apresentem um peso relativamente baixo entre as organizaes e entidades nas quais atuam a populao que participa do OP. Isto indica a importncia de outras formas de organizao (muitas delas informais), as quais, mesmo no sendo visveis de forma imediata, possuem uma significativa capacidade de organizar e mobilizar a atuao coletiva orientada para a participao. Alm disto, a baixa participao relativa de segmentos

57

ligados aos sindicatos indica tambm o limite da vontade poltica governamental como fator suficiente na gerao da participao, pois apesar do interesse explcito do governo municipal em envolver estes segmentos nas discusses do OP (que, em parte, fundamentou a criao das Plenrias Temticas16), tal envolvimento tende a ser pouco significativo. Isto expressa-se, por exemplo, no fato de que no OP de 1995, as Associaes de Moradores predominam entre as entidades tanto nas Regies quanto nas Temticas (52,88% e 27,61% respectivamente), enquanto a participao em Sindicatos apresenta-se pouco significativa nos dois casos (5,44% nas Regies e 2,46% nas Temticas). Conforme sintetiza o relatrio da pesquisa entre os participantes do OP de 1995: (...) as Plenrias Temticas vm atraindo principalmente o pblico oriundo dos movimentos comunitrios e populares e, em menor escala o pblico ligado ao movimento sindical (FASE, CIDADE, CRC/PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1995:documento no paginado).

As Plenrias Temticas (Circulao e Transporte; Sade e Assistncia Social; Educao, Cultura e Lazer; Desenvolvimento Econmico e Tributao; Organizao da Cidade e Desenvolvimento Urbano) foram institudas no OP do ano de 1994, durante a segunda gesto da Frente Popular. Entre outros objetivos, estas Plenrias visavam a abertura do OP para segmentos sociais que no participavam do processo desenvolvido ao nvel regional (como, por exemplo, associaes profissionais, sindicatos, grupos de interesse temticos).

16

58

O predomnio das Associaes de Moradores visvel tambm entre aqueles que j foram eleitos delegados e conselheiros do OP, como indica o Quadro abaixo:

Quadro 6. Entid