Marcelo da Silva Carneiro Jesus, a Torá e os Nebîim, e...

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Marcelo da Silva Carneiro Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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Marcelo da Silva Carneiro

Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica.

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia.

Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo

Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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Marcelo da Silva Carneiro

Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Aprovada pela Comissão Examinadora aba

Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo

Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Marcelo da Silva Carneiro Graduou-se em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett em 1998. Fez Especialização em Teologia na mesma instituição, em 2002. Como pastor Metodista, trabalhou em vários projetos de Educação com crianças, adolescentes, jovens e adultos, preferindo o ensino na área bíblica. Iniciou sua pesquisa lecionando como professor substituto na Faculdade de Teologia Bennett. Efetivado, especializou-se na área do Novo Testamento. Atualmente é coordenador acadêmico do curso, além de professor.

Ficha Catalográfica

Carneiro, Marcelo da Silva Jesus, a Tora e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5, 17-20: uma análise exegético-teológica / Marcelo da Silva Carneiro ; orientador: Isidoro Mazzarolo. – 2008. 170 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Jesus histórico. 3. Evangelho de Mateus. 4. Sermão do Monte. 5. Lei e profetas. 6. Justiça. 7. Escribas e fariseus. 8. Escatologia. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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À Mírian, Luiza e Gabriel, meu porto seguro e fonte de motivação.

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Agradecimentos Ao meu orientador, Dr. Isidoro Mazzarolo, pela paciente troca de idéias e estímulo, fundamentais para que esse trabalho se concretizasse. Ao CNPq e à Vice-Reitoria Acadêmica da PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, imprescindíveis para viabilizar a realização dessa pesquisa. Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me possibilitaram uma abertura de conhecimento e estimularam a sede pelo saber. Às secretárias do Departamento de Teologia da PUC-Rio, Denise e Jussara, que, com sua disponibilidade e simpatia, facilitaram o processo acadêmico. Aos colegas de complementação e disciplinas de pós-graduação, pela riqueza de compartilhar suas experiências pessoais e acadêmicas. Aos meus colegas da Teologia do Bennett, e da Coordenação Regional de Capacitação Missionária, pelo suporte e apoio no processo de estudos. Ao bispo Paulo Lockmann, por seus conselhos, apoio e generosidade nas trocas de idéias pastorais e acadêmicas. À Mírian, pois sem ela eu não me tornaria a pessoa que sou hoje, por seu amor incondicional, sua cumplicidade e sua lucidez. Aos meus filhos, Luiza e Gabriel, por me fazer desejar ser uma pessoa melhor e mais capaz. Aos meus pais, que acreditam e torcem por mim. Aos amigos, amigas e parentes que, de alguma forma, nas encruzilhadas da vida, me ajudaram a chegar até aqui. Muitas delas são responsáveis diretas pela concretização desse projeto.

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Resumo

Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Rio de Janeiro, 2008. 170p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Jesus foi um judeu piedoso de seu tempo, observante da Lei, preocupado em

cumprir a vontade de Deus. Perceber a relação de Jesus com a Lei nos ajuda a

entender a situação das comunidades seguidoras dele na Palestina, em constante

confronto com outras propostas de fidelidade à Torá. Nessa dissertação propomos

uma análise exegético-teológica de Mateus 5,17-20, para compreender essa

relação de Jesus com a Lei, como ele a cumpriu, e que exigências fez a partir de

sua própria prática. A afirmação de Jesus, de que veio “para cumprir”, já suscitou

todo tipo de interpretação, e o fato de estar no centro do discurso conhecido como

Sermão do Monte só aumenta o seu interesse. Com o auxílio do método histórico-

crítico, e ainda a criteriologia elaborada para a pesquisa do Jesus Histórico, é

possível fazer uma aproximação do texto ao mesmo tempo científica e piedosa,

legitimamente interessada nas afirmações daquele que é considerado o maior

mestre de todos os tempos.

Palavras-chave Jesus Histórico; Evangelho de Mateus; Sermão do Monte; Lei e Profetas;

Justiça; Escribas e Fariseus; Escatologia.

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Abstract

Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, the Torah and the Nebîim, and the fulfillment of righteousness in Mt 5,17-20: an exegetical-theological analysis. Rio de Janeiro. 2008. 170p. MSc. Dissertation – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Jesus was a piety Jew in his time, a Law observer, worried about fulfilling

the God’s will. Realizing the relationship between Jesus and the Law help us how

to understand the situation of his followers communities on Palestine, in constant

confrontation with other proposals of faithfulness to the Torah. This dissertation

proposes an exegetical-theological analysis on Matthew 5,17-20 to understand this

relationship between Jesus and the Law, the way he fulfilled it, and which

demands he made from his own practice. The Jesus’ saying, that he came “to

fulfill”, have already caused every kind of interpretation an the fact of being in the

speech’s center known as Sermon on the Mount just increases the interest for it.

With the historical-critical method and still the criteria elaborated to the Historical

Jesus research, it is possible to do an approach of the text at same time scientific

and piety, legitimately interested on the statements of whom is considered the

greatest leader of all times.

Keywords Historical Jesus; Matthews’ Gospel; Sermon on the Mount; Law and

Prophets; Righteousness; Scribes e Pharisees; Eschatology.

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Sumário

1. Introdução 10

2. O tema geral da pesquisa 14

2.1. A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo 14

2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto 29

2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus 43

3. Análise de Mt 5,17-20 50

3.1. Crítica textual e tradução 50

3.2. Análise Literária 53

3.3. Análise Redacional 63

3.4. Status quaestiones do texto de Mt 5,17-20 69

3.5. Análise da Historicidade 78

4. Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20 88

4.1. Introdução 88

4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a) 88

4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b) 102

4.4. Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h`

gh/ (v.18) 120

4.5. O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn

th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n (v.19) 135

4.6. A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20) 141

5. Conclusão 153

6. Referências Bibliográficas 160

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Nas instruções concretas de Jesus transparece aquilo que é mais propriamente “cristão”, mostra-se que o Jesus histórico tem perfeitamente algo a ver com o cristianismo, ou mesmo que o cristianismo é posto à prova. Em sua rigorosidade, essas instruções são o espinho na carne do indivíduo que leva a sério seu ser-cristão, mas também da Igreja.

Joachim Gnilka, Jesus de Nazaré.

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1. Introdução

A presente dissertação trata da relação de Jesus com a Lei (Torá) e os

Profetas (Nebîim), a partir de uma análise exegético-teológica de Mt 5,17-20.

Considerando as pesquisas mais recentes a respeito do Jesus histórico, nota-se que

alguns aspectos do ministério terreno de Jesus são mais verificáveis em termos

históricos do que outros. O papel de Jesus como mestre se enquadra numa análise

tanto histórica quanto teológica. Historicamente, é possível perceber aspectos de

Jesus como mestre que confluem com o cenário judaico do século primeiro da era

cristã. Teologicamente, o ensino de Jesus tem muito a ver com o princípio de seu

ministério como aquele que veio anunciar o reino de Deus.

É verdade que não podemos fragmentar o ministério de Jesus, com o risco

de esvaziá-lo e perdermos a visão ampla do seu alcance. Entretanto, em nossa

pesquisa desejamos verificar esse corte para perceber melhor qual seria a relação

de Jesus com os elementos constitutivos da fé judaica. A pergunta subjacente é: o

quanto Jesus estava vinculado à cultura e fé do povo judeu? Teria ele desejado

realmente romper com ela, ou queria de fato fazer uma revisão da prática dessa

fé? De forma mais concreta nosso trabalho vai abordar o tema a partir da relação

de Jesus com a Lei (Torá) e os Profetas (Nebîim), procurando responder algumas

questões básicas:

- Que atitudes Jesus teve em relação à Lei e aos Profetas: ele alterou de

forma significativa seus fundamentos, apesar de ter afirmado que veio para

cumprir, e não para anular? Ou cumpriu com zelo conforme se esperava de um

judeu piedoso?

- O que Jesus ensinou aos seus seguidores em relação à Lei, e como a

comunidade de Mateus recebeu essa tradição? Que objetivo esse dito teve na

realidade vivencial (Sitz im Leben) da comunidade mateana?

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Para realizar a pesquisa, destacamos a perícope de Mt 5,17-20 por entender

que ela está estreitamente relacionada com o tema do cumprimento da Lei. Além

disso, está inserida por Mateus num bloco literário (cap. 5-7) cujo tema principal é

a vida prática da comunidade de discípulos, e como eles iriam praticar a justiça

superior. Esse conceito de justiça superior, citada diversas vezes nesse bloco

(5,6.10.20; 6,33) é central para entender a forma como Jesus cumpriu a Lei,

mesmo reinterpretando alguns aspectos, evidenciado pelas antíteses de 5,21-48.

A escolha do evangelho de Mateus para a pesquisa se dá por alguns

motivos: Mateus é considerado o evangelho mais próximo da cultura judaica1,

sendo que a perícope escolhida faz parte do extrato próprio do autor, denominado

“proto-Mateus” ou “fonte M”. Em segundo lugar, o evangelho de Mateus foi

organizado de um modo em que sua comparação com a Torá mosaica é inevitável:

tem cinco blocos de discursos, alternados por narrativas de milagres e disputas

com os religiosos de seu tempo. Por último, o evangelho de Mateus é considerado

o “evangelho da Igreja”, ao mesmo tempo em que demonstra essa proximidade

com a cultura judaica palestinense. Isso indica tanto uma aproximação apologética

– Jesus como Messias – quanto dialogal – Jesus é judeu - em relação ao judaísmo

contemporâneo ao Evangelho.

Na pesquisa desejamos demonstrar como o evangelho de Mateus trabalhou a

tradição a respeito de Jesus. Algumas hipóteses do que se deseja alcançar podem

ser apontadas:

- A possibilidade de esse dito ter origem no próprio Jesus, mesmo que a

comunidade o tenha retrabalhado. Para tanto, na análise sinóptica e histórica

iremos verificar até que ponto essa fala pode ter sido desprezada pelas demais

comunidades por aproximar Jesus demais do judaísmo (mesmo que na prática ele

tenha demonstrado isso).

- Sendo a perícope exclusiva de Mt (ao menos os versos 17 e 20), apontar a

possibilidade de que o texto tenha suas origens em categorias de pensamento

judaico, até mesmo em aramaico. Ainda que haja um trabalho redacional nessa

perícope, conforme muitos autores constatam, procuraremos identificar o quanto

Mateus trabalhou com as tradições da forma como os rabinos faziam, sendo seu

evangelho um tipo de midrash messiânico.

1 Cf. W.G.KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, pp.136ss.

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- Verificar como Mateus entendeu a mensagem de Jesus a respeito do reino

dos Céus, e da vontade de Deus para as pessoas, considerando o tipo de Mestre

que Jesus foi. Seria esse ensino uma advertência para uma prática dirigida por

uma ética superior, a compreensão de que a vida de Jesus realizava em si as

profecias e cumpria toda a Lei, ou ainda uma dimensão escatológica que

fundamentasse o agir cotidiano?

A abordagem metodológica que adotaremos para a pesquisa irá utilizar em

grande parte o método histórico-crítico, além da metodologia da pesquisa do Jesus

Histórico, para verificar a autenticidade do dito, e a análise semântica para uma

compreensão maior do texto à luz de seu contexto no evangelho de Mateus.

No primeiro capítulo vamos fazer um levantamento das informações sobre o

tema em geral, iniciando pela compreensão a respeito da Lei e dos Profetas desde

o Antigo Israel até o Pós-Exílio. Buscam-se aí aspectos históricos que tenham

influenciado o conceito sobre a Lei e os Profetas no imaginário religioso popular

da época, sem, no entanto, nos atermos ao processo de formação do texto escrito

em si, posto que não é essa a proposta da presente pesquisa. Depois vamos

analisar alguns aspectos gerais do evangelho de Mateus, e o lugar contextual da

perícope de Mt 5,17-20 dentro do livro. Esse passo é importante para situar-nos

no universo literário, mas também histórico da comunidade de Mateus, que se

reporta ao ambiente judaico do primeiro século.

No segundo capítulo, passaremos ao estudo efetivo da perícope de Mt 5,17-

20, analisando o texto grego crítico. Para tanto, será necessária fazer a crítica

textual, que possibilitará uma proposta de tradução. Em seguida, será o momento

da análise literária e redacional, através da qual faremos o levantamento das

fontes, a comparação sinóptica com Lc 16,17, o único texto com o qual Mt tem

relação direta. Essa análise é importante para perceber que Mateus agiu como

redator consciente, utilizando suas fontes de maneira precisa, de acordo com seus

objetivos.

Ao analisar a perícope em termos literários levanta-se a questão da

autenticidade, importante para o estudo teológico do texto. Por isso, passaremos

ao estado da questão da perícope, mais precisamente com respeito à autenticidade

do dito. Há duas posições bem claras: muitos autores aceitam o dito como

autêntico, segundo critérios mais ou menos precisos. Por outro lado, um grupo de

autores afirma o dito como uma construção da comunidade de Mateus, em função

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do contexto histórico concreto vivido por ela. Para sermos mais precisos na

conclusão a respeito da autenticidade, será utilizada a metodologia elaborada pela

third quest, a qual nos auxiliará na análise da historicidade.

No terceiro capítulo se procederá a uma análise mais aprofundada, a partir

de cada versículo, em si e em conjunto com os demais. Instrumentos importantes

para essa análise serão os aspectos semânticos dos principais termos do dito, além

do estudo exegético, para perceber como Mt trata cada tema ou termo em sua

obra, e qual o sentido teológico desses elementos dentro do conjunto da perícope.

Nosso objetivo aqui será pensar na idéia corrente acerca da Lei e como Jesus se

relacionou com ela, em contraposição a outros grupos contemporâneos,

notadamente os escribas e fariseus. Além disso, percebe-se a necessidade de

investigar o nível de escatologia presente na perícope, e como ela se relaciona

com o todo do ensino de Jesus.

Para que a pesquisa possa ser levada a efeito, será utilizado o texto crítico

em grego, de acordo com a organização de Nestlé-Aland, 27ª ed., com tradução

apoiada em dicionários, livros técnicos, além de autores que estejam mais

diretamente ligados ao estudo do evangelho de Mateus, de preferência no bloco

literário denominado sermão do monte. Alguns autores se destacam na pesquisa

sobre o Jesus Histórico e particularmente na relação dele com a Lei, por isso não

se pode afirmar um autor como referencial teórico isoladamente. Mas há uma

tendência na pesquisa de se trabalhar com o princípio da contraposição. Em geral,

para isso, começaremos com opiniões clássicas, oriundas da metade do século

vinte, como as de R. Bultmann, J. Jeremias, L. Goppelt. G. Barth, G. Bornkamm,

G. Kümmel, W. Trilling, dentre outros. Como contraponto, trabalharemos com

autores com pesquisas mais recentes, muitos ligados à third quest, mas com

nomes bastante respeitados no meio acadêmico com relação ao tema, como D.

Flusser, G. Vermes, J. P. Meier. J. D. Crossan, G. Theissen, F. Vouga, D.

Marguerat, e outros.

Nossa pesquisa considera especialmente o ambiente histórico social no qual

o respeito à Lei e aos Profetas se enquadrava no mundo palestino do primeiro

século. Procuraremos verificar se a literatura judaica do primeiro século trazia

algo semelhante ou diametralmente oposto ao que Jesus afirmou. Se vamos

chegar ao Jesus Histórico ou não, a própria pesquisa tem deixado em aberto essa

questão.

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2 O tema geral da pesquisa 2.1. A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo

A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas em Mateus está de

acordo com uma compreensão geral que o judaísmo do primeiro século tinha a

respeito do assunto. O texto de Mt 5,17-20 trata da questão de forma mais

pontual, e mesmo que essa passagem seja mais da comunidade de Mateus, que do

próprio Jesus, não tira do texto seu caráter contemporâneo ao judaísmo do

primeiro século, no que tange à compreensão da Lei e dos Profetas.

Para entender, então, como Jesus se posicionou, ou de que maneira a

comunidade de Mateus respondeu à questão da Lei diante de um judaísmo em

crise e reconstrução, é preciso analisar como a Lei e a Profecia eram

compreendidas dentro do imaginário religioso comum do judaísmo do século

primeiro. Faremos a seguir uma exposição panorâmica a respeito dessa

compreensão sobre a Lei e a Profecia desde o Antigo Israel até o período da

dominação romana.

2.1.1. A Compreensão sobre a Lei

A compreensão de Israel sobre a Lei é vital para existência dele como povo.

Parte de um conceito geral, que a coloca como a realização da vontade de Deus.

Se Deus é um só, e Israel é expressão dessa grandeza, então toda a coletividade, e

não apenas o indivíduo, é chamada a viver segundo a vontade Deus. Essa decisão

atinge tanto a vida privada quanto a pública, e não se restringe ao culto.2

O vocabulário relativo à Lei é bastante extenso, como demonstra o Salmo

119, e mesmo as traduções apontam para essa pluralidade, em termos como: leis,

ordenanças, mandamentos, estatutos, palavras, sentenças, preceitos, caminhos,

etc. Nossa pesquisa não nos permite tratar de todos os termos, mas dois deles se

2 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229.

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destacam: (1) jP;v.mi – do verbo jpv, “julgar”, “decidir” – que tem o sentido

estrito de sentença arbitral, arbítrio, decisão legal, e que no plural pode significar

julgamento, juízes, direito e até justiça, principalmente no direito

consuetudinário.3 (2) hr;)wOT – do verbo hry, cujo sentido mais usual é “instruir”,

“ensinar”.4 No entanto, é o sentido da Lei que nos interessa. O termo se aplica “à

instrução recebida de autoridade superior, servindo de regra de conduta em

determinado caso particular.”5 Também pode indicar “toda espécie de

determinações, não necessariamente jurídicas, dadas por Javé pela boca de

sacerdotes ou profetas.”6 Depois passou a identificar o grupo de Lei relacionadas a

Moisés (cf. Js 1,7; Ed 3,2; Ml 3,22), quando os rolos da Lei foram designados

como Torá.7 Crüsemann define o conceito em linhas gerais:

A palavra torah designa, em linguagem coloquial da época do Antigo Testamento, o ensinamento da mãe (Pr 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,12) para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange informação e orientação, instrução e estabelecimento de normas, e, com isso, também promessa e desafio. Expressa igualmente o mandamento e a história da instrução, da qual emerge. A partir daí, o conceito Torá torna-se um termo técnico para a instrução dos sacerdotes aos leigos (Jr 18,18; Ez 7,26), mas designa também as palavras dos mestres da sabedoria (Pr 7,2; 13,14) ou do profeta (Is 8,16.20; 30,9) para os discípulos. No Deuteronômio, por fim, Torá transforma-se no conceito mais importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p.ex. Dt 4,44s; 30,10; 31,9). Aqui Torá abrange tanto narrações (esp. Dt 1,5) quanto leis (cf. esp. Sl 78, 1.5.10). Mais tarde, esse conceito deuteronômico designa a lei de Esdras (p.ex. Ne 8,1), todo o Pentateuco, mas também a palavra profético-escatológica de Deus para os povos (Is 2,3 par. Mq 4,2; Is 42,4).8

Os diferentes aspectos apontados no conceito de Torá apontam para uma

idéia que vai desde o estabelecimento de Israel como nação, passando pela grande

mudança de mentalidade ocorrida no período do Exílio e a posterior elaboração do

judaísmo tardio, que ficou conhecida como judaísmo rabínico.

Nos tópicos a seguir vamos analisar de forma panorâmica essas fases. 3 Cf. V.V.A.A., Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.146; 259. 4 Idem, p.265; 94. Segundo o dicionário, no QAL o verbo hry tem o sentido de “lançar”, “atirar”; no Hifil “dar de beber” ou “instruir”. O sentido dependerá do contexto, mas é esse último que nos interessa estudar. Cf. VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.392 et.seq. Ele acrescenta que a função sacerdotal de dar orientação, como num oráculo, pode derivar do assírio tertu, que significa ‘oráculo’. 5 MICHAELI, F., “Lei”, Vocabulário Bíblico von Allmen, p.223 et.seq. 6 FRAINE, J. de, “Lei de Moisés”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.878. 7 WIGODER, G., Dicttionnaire Encyclopédique du Judáisme, p.1124. 8 CRÜSEMANN, F., A Torá, p.12. F. SCHMIDT distingui três grandes aspectos para a Torá: “a Lei como revelação, cujo depósito a tradição confia à grande Assembléia; a Torah como código legislativo; a lei escrita ou oral cujos intérpretes e guardiães (sic) são os sacerdotes e escribas.” O Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p.24.

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2.1.1.1.

A Lei no Antigo Israel

a. Nas origens (séc. XXI-VIII a.C.)

O período mais antigo da história de Israel traz dificuldades com relação ao

entendimento sobre a Lei, considerando a conexão dessa história com o direito

dos povos vizinhos à nação israelita. Enquanto Israel ainda não existia como

nação, povos vizinhos já tinham coleções de leis, como o código Ur-Nammon e

Lipit-Ishtar (do fim do terceiro milênio a.C.), o código de Hammurabi e o de

Eshnuna, (da primeira metade do segundo milênio).9

Por outro lado, a própria consistência de Israel como nação até o século X é

muito discutida pelos pesquisadores do Antigo Testamento.10 Nesse sentido, deve-

se pensar que no Antigo Israel a Lei (Torá) devia ser concebida mais nos aspectos

de uma orientação familiar, e de leis consuetudinárias, voltadas para o bem-estar

do clã e da tribo, do que numa esfera nacional centralizada em determinado lugar

(como se tornou Jerusalém posteriormente).11

Além disso, deve-se considerar a importância da Tradição Oral no processo

de estabelecimento da Lei em Israel. A mesma tradição oral que passou as antigas

histórias dos patriarcas, bem como as narrativas da história das origens (Gn 1-11),

foi responsável pelo processo de transmissão de normas e leis de convivência, que

acabaram por alcançar o status de Torá. A tradição rabínica posterior aponta para

isso, como se pode ver no tratado Pirqe Abot (“Ética dos Pais”), da quarta ordem

da Mishná:

Moshê recebeu a Torá no Sinai, e a entregou para Yehoshua, e Yehoshua para os anciões, e os anciões para os profetas, e os profetas a entregaram para os homens da grande assembléia. Eles disseram três palavras: sede

9 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229. 10 O conceito de Confederação de Tribos vem sendo questionada desde a metade do século XX Pela maioria dos exegetas. Alguns, porém, mantiveram a concordância sobre o assunto, como Gunneweg, von Rad, Albright, e outros. O grande problema é a falta de evidências arqueológicas do período que confirmem a informação de que Israel tenha uma identidade nacional já no século XI a.C., antes da ascensão da dinastia davídica e da separação de Israel e Judá. 11 VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.23 passim. Para ele o vínculo entre as pessoas, antes de ser jurídico ou político, era, acima de tudo, de sangue, por se considerarem todos “irmãos” a partir de uma linhagem comum. É a vinculação própria das tribos nômades. P.23 Sobre Jerusalém como centro de culto nacional, p.347 et.seq.

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ponderados no julgamento, levanteis muitos díscipulos e façais uma cerca em torno da Torá.12

b. A Lei nos reinos de Israel e Judá (séc. VIII a.C.)

A partir do século VIII a.C. Israel e Judá, e posteriormente somente este,

iniciarão um grande processo de juntar coleções de leis, normas e narrativas, as

quais farão parte da Lei como unidade literária posterior. Reconstituir essa

história, porém, é elemento de uma pesquisa a qual não teremos espaço para tratar

aqui.13

A Lei no Israel Antigo era, antes de tudo, a instrução dos pais aos filhos, a

partir de normas éticas e cultuais básicas, que na convivência entre as tribos

mostrou-se ser capaz de integrar os grupos que agiam com as mesmas normas. As

coleções de leis civis, rituais, e de ordem cúltica só se deram a partir do século VII

a.C., por conta da organização de uma estrutura palaciana, tanto no norte quanto

no sul, este último até o século VI, quando Jerusalém foi tomada e sua elite levada

cativa para o exílio babilônico.14

2.1.1.2.

A Lei no Exílio e Pós-Exílio

a. A Lei no período exílico (586-538 a.C.)

O Exílio representou uma grande mudança na mentalidade israelita. Dentre

os muitos conceitos que foram revistos está o da Lei, que começa a representar

um conjunto literário mais fechado. Segundo Zenger, “a formação da Torá

acontece no processo da reconstrução da identidade judaica depois de desfeita sua

condição de estado autônomo.”15

Já no exílio, o grupo deuteronomista lê a história passada como programa

para um novo Israel, juntando diferentes tradições – também com o grupo

sacerdotal – para pensar num grande projeto de nação.16

12 cf. MURRAY, M. Et.all. (Trad.) Mishná, essência do judaísmo talmúdico, p.9; COOLIN, M; LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.14. 13 O próprio Crüsemann, em sua obra de larga análise, entende que “a pergunta pelo que significa entender a Torá de forma histórica logo nos leva ao problema básico da exegese atual e sobretudo da pesquisa do Pentateuco: a pergunta pelas fontes e pelo texto na sua forma final, a pergunta pela análise sincrônica e diacrônica.” A Torá, p.18. 14 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá, p. 22ss.; ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p.91ss. 15 ZENGER, E., op.cit., p.52. 16 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: op.cit., p.230.

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b. A Lei no período persa (538-333 a.C.)

Com o fim do exílio, o grupo de judeus que retornou para a terra de Israel

estabeleceu uma reorganização religiosa, cuja principal marca é a centralização da

religião judaica em Jerusalém, em que “todas as prescrições da lei, cultuais ou

não, eram determinadas pelos sacerdotes.”17 Como a administração era dirigida

pelos persas, eram eles quem supervisionavam as reformas na legislação e no

culto. Esdras e Neemias tiveram sua atividade delimitada nesse contexto (cf. Ed

1,1ss; 7,8-26; Ne 2,1ss).

Paralelamente, o período pós-exílico testemunha o crescimento de uma

Teologia da Sabedoria, que em uma de suas correntes, “considera a Torá de Israel

como a maior e verdadeira dádiva divina da sabedoria.”18 Dt 4,4-6 prepara uma

identificação entre a Torá e a Sabedoria, tema que será melhor trabalhado pelo

Sirácida (Sr 24).19

c. A Lei no período helenístico (333 a 63 a.C.)

O período helenístico não trouxe mudança no cenário político-religioso,

conforme informa Koester:

Durante a dominação de Jerusalém pelos Ptolomeus no século III e pelos Selêucidas no início do século II a.C., o sumo sacerdote em exercício estava sujeito à autoridade do rei e tinha de cumprir suas ordens. No âmbito da jurisdição do Estado-templo, porém, não havia autoridade política superior à do templo e à de sua hierarquia sacerdotal.20

As tradições sobre a arca da aliança, a conquista da cidade de Jerusalém por

Davi, e Salomão, seu filho como construtor da casa de Deus são teológica e

ideologicamente justificadas para sustentar a posição do templo como centro

gravitacional da fé israelita, pelo menos de acordo com a proposta cronista.21 Fica

exposto, por outro lado, que a Torá foi entregue por Moisés, e com ela agora

apresentada por Esdras – talvez já o Pentateuco recém encerrado – torna-se o

centro da vida do povo, como ideal dos judeus piedosos.22

A partir daí se dá um duplo fenômeno: por um lado, a Lei se torna mais

concreta, tendo a vontade de YHWH explicitada para o povo, orientada pelos 17 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230. Também cf. GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.32ss. 18 ZENGER, op.cit., p.287. 19 OTTO, E., “Lei”, in: op.cit., p.230; ZENGER, E., op.cit., p.287; LÍNDEZ, Sabedoria e sábios em Israel, p.54. 20 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230. 21 Cf. ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p.221. 22 Cf. o relato de Esd 7,12-26, que trás o conteúdo de uma carta enviada por Artaxerxes a Esdras, promulgando a “lei de Deus” como lei oficial dos judeus. Ibid., p.54.

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sacerdotes23; por outro, a dinâmica da Torá oral permanece, como base para

interpretação da Torá escrita. Lenhardt atribui à Torá oral um alcance que engloba

a Torá escrita. Para ele, os problemas postos pela Escritura, a Torah escrita, são secundários em relação aos apresentados pela Tradição, a Torah oral. Esta, efetivamente, marcada pelas divisões que desfiguraram o judaísmo antes da destruição do Templo, foi enfraquecida, mutilada pelos massacres da guerra, pela morte de muitos mestres e discípulos, transmissores da Torah Oral.24

d. A Lei a partir da dominação romana (63 a.C.)

Apesar da considerável mudança que representou a dominação romana na

Palestina, desde 63 a.C., a religião judaica manteve sua independência, no tocante

aos costumes e obrigações provenientes da Lei. A exceção ficou por conta das leis

que previam pena de morte, pois esses casos só podiam ser decididos pelo próprio

prefeito romano (o administrador da Judéia, desde a deposição de Arquelau em 6

d.C.). Além disso, foram instituídas onze toparquias, governadas cada uma por um

sinédrio, sendo o mais importante o de Jerusalém. Todos tinham uma jurisdição

sobre causas relativas à lei judaica, mas com os limites impostos pelos romanos.

Era o sinédrio que, em última análise, tinha o papel de julgar questões que

envolvessem supostos casos de violação da Lei.25

Para o povo simples, no entanto, a Lei não estava circunscrita a um tribunal.

Um judeu do primeiro século considerava que a Lei representava o ideal de vida a

ser seguido: junto com o templo formava “os dois centros do judaísmo na época

do segundo templo.”26

A forma como a Lei era estudada fora do contexto do templo se dava,

primordialmente, por meio das sinagogas. A origem das sinagogas está vinculada

à diáspora judaica exílica e pós-exílica. Eram instituições de agregação dos

judeus, para a realização de tarefas públicas, mas também para tarefas religiosas.27

Identificadas como associações no estilo grego, segundo Koester, como no caso de outros grupos étnicos ou religiosos emigrados, estas eram associações de estrangeiros residentes, que haviam recebido certos privilégios

23 De acordo com SCHMIDT, F., “entre o puro e o impuro, o sagrado e o profano, a função dos sacerdotes é “distinguir”, bâdal.” O pensamento do templo de Jerusalém a Qumran, p.77. 24 COLLIN, M; LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.13. O termo tradição – tradução de para,dosij – aparece sete vezes nos sinóticos (Mateus e Marcos) e três nos demais escritos (Colossenses, 2 Tessalonicenses e 1 Pedro) do Novo Testamento. 25 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento I, p.396; NELIS, J., “Sinédrio”, Dicionário Enciclopédico Bíblico, p.1443 et.seq. 26 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus histórico, p.386. 27 Cf. HÄTTENMEISTER, “Synagoge”, in KOCH, Begegnungen zwischen Christentum und Judentum in Antike und Mitteralter, p.164.

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pertinentes à incorporação e à prática do seu ofício ou profissão, ou associações de culto, como as organizadas por seguidores de outros cultos nacionais.28 e. A Lei no cotidiano da Palestina

Na Palestina, as sinagogas já existiam antes de 70 d.C., porém, em pequeno

número. De acordo com Charlesworth, hoje há provas de pelo menos três

sinagogas anteriores a 70 na Judéia e na Galiléia, a saber, Massada, o Herodium e

Gamla (na Galiléia, a leste do lago de Genesaré).29 As duas primeiras “eram

salões de reunião usados para muitos fins, inclusive a oração comum e a leitura da

Escritura.”30

A sinagoga de Gamla demonstra que a Galiléia compartilhava dos mesmos

ideais com relação à Lei. De acordo com Roloff, de fato “em torno da virada do

século II para o I foi promovida a rejudaização sistemática mediante a imigração

de judeus fiéis à Lei. O objetivo era recuperar o território original da terra de

Israel para o povo de Israel.”31

Por outro lado, a família israelita – em toda a Palestina - dá destaque à Lei

no seu dia-a-dia, pois “o cotidiano estava determinado de muitas maneiras pela

Torá e seus regulamentos.” Por conta de todos os aspectos da Lei que ditavam a

vida particular (questões relativas a casamento, alimentação, festas, separação do

sábado, etc.), desde muito o judaísmo desenvolveu essa prática piedosa, que os

Salmos atestam (especialmente 1,19,119).32

Mesmo com a pouca evidência arqueológica, além do fato de ser o Templo

o centro gravitacional da fé judaica até 70 d.C., pode-se perceber uma dinâmica de

descentralização da transmissão da Torá.33 Jesus, porém, viveu toda a intensidade

da Lei de acordo com os princípios judaicos palestinenses, em especial dos

habitantes da Galiléia.

2.1.2. A Compreensão sobre a Profecia

28 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.227. 29 CHARLESWORTH, J.H., Jesus dentro do Judaísmo, p.118. 30 SALDARINI, A., Fariseus, Escribas e Saduceus, p.67. 31 ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.19. 32 STEGEMANN, E., G.,História social do protocristianismo, p.169s. 33 Essa descentralização foi ampliada após a destruição do templo e de Jerusalém pelo general Tito, em 70 d.C. Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.47 et.seq.

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Ao falarmos da profecia, nos referimos aos profetas, feita por Jesus em Mt

5,17. O termo tem sua origem no hebraico ~yaybn, ou o singular aybn, traduzido

pela LXX como profh,thj.34 Para o israelita, esse termo vincula um carisma e uma

importante parte da produção literária que testemunhou esse carisma,

especialmente no período da monarquia até o exílio.

De um modo geral, a compreensão israelita a respeito da profecia está

vinculada à forma como a Bíblia Hebraica foi organizada: após o

Pentateuco/Torá, encontramos a grande seção dos profetas – anteriores e

posteriores – que “continuam a pregação do profeta ideal, incomparável, que foi

Moisés”.35 Isso demonstra a importância e o papel da profecia no imaginário de

Israel.

Considerando que os profetas anteriores são os livros que narram a história

desde a conquista da terra (Js) até o exílio (2 Rs), e os profetas posteriores

envolvem os escritos dos profetas desde o século VIII a V a.C., temos uma

continuidade histórica desde a entrega da Lei a Israel até o pós-exílio, quando a

nação assumiu uma prática de fé consistente, especialmente no aspecto do

monoteísmo. Assim, a profecia é um elemento presente em toda a história de

Israel, que vai ter importantes ressonâncias no período do judaísmo

contemporâneo a Jesus.36

Por outro lado, o termo “os Profetas” passou a designar o segundo bloco

considerado canônico – ou sagrado – pelos judeus já no início do século

primeiro.37 A afirmação de Jesus em diversos momentos, em que afirma to.n

no,mon h' tou.j profh,taj (a Lei e os Profetas) está situada nesse contexto, de um

grupo literário que fazia parte da dinâmica da religião judaica. Mas, em que

sentido esse grupo literário era importante? E por que Jesus se reporta a ele?

Vamos analisar de forma panorâmica as principais fases concernentes à

compreensão a respeito da profecia, pensando no seu entrelaçamento com a Lei.

2.1.2.1.

A Profecia no Antigo Israel

34 BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879ss. 35 FISCHER, “Profeta (AT)”. In: BAUER, op. cit., p.345. 36 MARTIN-ACHARD, “Profecia”, Vocabulário Bíblico, p.338 et.seq. 37 Cf. BILLERBECK I, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240.

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a. A profecia nas origens (séc. XI a VIII a.C.)

O surgimento da profecia na vida do povo de Israel não é fenômeno único,

como atestam vários estudos realizados a respeito da questão junto aos povos

vizinhos.38 De acordo com a notícia de Oséias 12,14, havia no reino do norte,

desde muito tempo, tradições que associavam a origem do profetismo a Moisés.39

Mas ela de fato aconteceu em Israel apenas a partir do século IX, especialmente

com as figuras de Elias e Eliseu.40

Nesse primeiro momento, a profecia se caracteriza e confunde com

elementos extáticos, presentes em alguns grupos e situações (cf. 1 Sm 10,5ss).

Para esses grupos antigos utilizava-se o termo ~yaiybin> - do singular aybin: - que

“usualmente é considerada uma palavra derivada do verbo acádico nabû,

‘chamar’, ‘proclamar’.”41 O termo utilizado tem um sentido passivo, situando o

profeta como alguém que é chamado. Isso se confirma pelas narrativas de vocação

de alguns dos profetas que tem registro literário (ex. Jr 1,1-10; Os 1,1-11; Is 6,1-

13, etc.), bem como pela fórmula hy'h' rv<åa] hw"åhy>-rb;D> - palavra do Senhor que

veio a - em vários textos (Mq 1,1; Sf 1,1; Ag 1,1; Ml 1,1).

b. A profecia no séc. VIII a.C.

O exercício do ministério do profeta, no entanto, não se restringia a apenas

uma dimensão. Havia vários outros termos para designar um profeta, de acordo

com a situação, além dos aspectos políticos e sociais que envolviam a atividade.

Wilson aponta para esse problema:

Até a leitura apressada das fontes revela que os escritores bíblicos tiveram visões divergentes e às vezes conflitivas sobre a profecia. Estas visões foram presumivelmente o produto de longo período de desenvolvimento, e agora é difícil determinar a medida de precisão com que refletem realidade histórica. Todavia, não existe nenhum motivo para suspeitar que as várias concepções bíblicas de profecia tenham sido simplesmente criadas de uma só peça inteira. Pelo contrário, elas devem ser tomadas como indicação de que os grupos portadores da tradição bíblica na verdade conheciam diferentes tipos de profecias.42

38 Podemos citar alguns que abordam a questão: FOHRER, Geschichte der israelitischen Religion; SCHMIDT, A Fé no Antigo Testamento; PEDERSON, The Role played by inspired persons among the Israelites and the Arabs; SICRE, Profetismo em Israel; WILSON, Profecia e Sociedade no Antigo Israel. 39 Cf. SICRE, J.L., Introdução ao Antigo Testamento, p.222. 40 De acordo com a concepção de von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.451ss. 41 BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879. Também GUNNEWEG, Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.239s. 42 WILSON, Profecia e Sociedade no Antigo Israel, p.20-21.

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Nessa concepção Wilson delimita o movimento profético em pelo menos

duas grandes tradições: a tradição efraimita do norte, mais coesa e registrada

literariamente, e as tradições de Judá, no sul. Estas tendem a ser menos

delimitadas, registradas e mais fragmentadas, daí inclusive a denominação de

“tradições”, ao invés de tradição.

Do ponto de vista da motivação ideológica dos profetas, pode-se afirmar

que, mesmo não sendo uniformes em sua abordagem, os profetas tinham como

foco o pecado da incredulidade de Israel, “ou seja, a não-confiança em Javé na

situação concreta e, ao invés, confiar em si próprio.”43 De modo específico, os

profetas atacam as diferentes manifestações dessa incredulidade, que são o

orgulho, a idolatria, as estruturas monárquicas, assim como as sacerdotais.

c. Tipologia da profecia no Israel Antigo (séc. VIII a.C.)

Zenger descreve sumariamente uma tipologia no tocante à condição social

do multifacetado profetismo do Israel Antigo: (a) Os profetas de congregações ou

irmandades – denominados ~yaiybiN>h; ynEåB. [filhos de profetas/discípulos de

profetas] (1Rs 20,35; 2Rs 2,3.5.7.15) –formam comunidades de profetas, que

costumavam atender às demandas populares por orientação; (b) Os profetas do

templo, cujas atividades incluem interceder e anunciar em nome de Deus no

contexto do culto. Em Jerusalém são subordinados aos sacerdotes. A narrativa do

chamado de Samuel, em 1Sm 3, transparece um pouco o processo para o

surgimento de um profeta ligado ao templo; (c) Os profetas da corte, que servem

ao rei e ao seu propósito, e anunciam a palavra de Deus no tocante às situações de

guerras e catástrofes, bem como participam das celebrações de entronização,

núpcias do príncipe herdeiro, e outras. Desses profetas era esperado o ~wOlv;44,

conforme o texto paradigmático de 1Rs 22; (d) Os profetas independentes, que

formam o grupo menor numericamente, e menos respeitado no período em que

atuaram. No entanto exerceram um ministério de oposição, e por isso mesmo

tornaram-se historicamente os mais importantes. A maioria dos profetas

“escritores” faz parte desse grupo.45

43 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.249. 44 Paz, não num sentido meramente metafísico ou existencial, mas com implicações sociais, políticas e que atinjam a coletividade. 45 ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, pp.370ss. O autor considera ainda que “nenhum ‘livro de profeta’ é da autoria do profeta, cujo nome lhe foi dado.” p.372, e afirma que os livros relacionados a esses profetas surgiram, de fato, das mãos de círculos de alunos e discípulos

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Essa atividade profética se tornou fortalecida e respeitada a partir do exílio,

quando os oráculos sobre a destruição de Judá se confirmaram. Como lembra

Gunneweg, “nessa época da ruína chegam ao ápice a proclamação de Jeremias e o

profetismo de Israel em geral.”46

2.1.2.2.

A Profecia no Exílio e Pós-Exílio

a. A nova compreensão sobre Profecia (séc. VI a.C.)

O exílio representou uma mudança na forma de ser e de se compreender a

profecia em Israel, da mesma forma como se deu com a Lei. Para aqueles que

foram deportados para a Babilônia em 597 a.C., o passar do tempo no cativeiro

formou no coração dos judeus um ódio que se aninhou (cf. Jr 51,34-35), “e junto

com o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de

libertação.”47

Com esses sentimentos, o povo teve sua fé e esperança abaladas. Mas é

nesse momento que a palavra profética se levanta para consolar o povo (cf. Is

40ss), a ponto de dar um salto teológico em torno da figura do Servo sofredor.48 A

partir daí a profecia ganhou um cunho cada vez mais escatológico e universal, em

face do novo cenário que os profetas estão vivendo.49

Segundo von Rad, uma marca da profecia desse período é que “são

individualidades religiosas e literárias.”50 Há um direcionamento maior para a

pessoa, e sua decisão pessoal diante de Deus. “A novidade nesses profetas, do

ponto de vista formal, é o alargamento da base da sua pregação, em comparação

com os profetas mais antigos”.51

b. O surgimento do apocaliptismo (séc. IV a.C.) deles que coletaram e elaboraram essas obras. Mas não se pode pensar nisso sem grandes reservas. Ver também IMSCHOOT, “Profeta”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.1221. 46 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.278. 47 SICRE, J.L., Profetismo em Israel, p.311. 48 Essa controvertida figura, que tem suscitado amplo debate sobre seu significado histórico, foi adotada muito cedo pelos cristãos como uma representação de Cristo, o messias que sofre pelo povo. Cf. SICRE, J.L., op.cit., p.312s; GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p. 292s; von RAD, op.cit., p.672-681. 49 Essa idéia não tem consenso entre os autores. Para muitos, mesmo antes do exílio já existia profecia com cunho escatológico, enquanto outros defendem que a escatologia nasce realmente depois. Para uma discussão sobre o assunto, ver CORRÊA LIMA, M. de L., Salvação entre juízo, conversão e graça, pp. 15-63. 50 RAD, G. von, op.cit., p.683. 51 Ibid., p.683. Von Rad avalia que essa mudança se dá no estilo literário, principalmente, que se abre a diferentes formas, bem como na estruturação da proclamação.

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Simultaneamente, o período pós-exílico viu surgir um movimento, a partir

do período helenístico (séc IV a.C.), que teve sua origem na profecia, e marcou

profundamente o imaginário popular judaico: o apocaliptismo, cujo único

representante no Antigo Testamento é o livro de Daniel52. De acordo com

Koester, Os inícios do pensamento apocalíptico são anteriores ao período helenístico: suas origens estão intimamente relacionadas com uma mudança fundamental no pensamento teológico de Israel, que aconteceu no tempo do exílio. A decadência do reino de Judá e a destruição de Jerusalém no início do século VI a.C. suscitaram dúvidas profundas sobre o conceito de teodicéia histórica.53

Toda essa situação provocou mudanças no enfoque da profecia, adquirindo

elementos universalistas, até mesmo com “alusões mitológicas”.54 De acordo com

Sicre, se uma parte da profecia trabalhou com a idéia da monarquia, e mesmo da

aceitação do império após o exílio – nunca de forma acrítica, é verdade – no

entanto, outra parte dela se colocou frontalmente contra o domínio imperial

estrangeiro, sempre com um colorido nacionalista.55

Toda a transformação social que marcou a vida e a história do povo de

Israel, não só mudou sua concepção da sua identidade, como da forma que Deus

passou a falar com o povo. Agora a nação é uma realidade que não está vinculada

somente a um espaço geográfico, mas a uma eleição e aliança, baseadas na Lei,

que tem nos profetas os mensageiros que tornam essa esperança palpável, por

meio de sua mensagem.

Podemos afirmar que essa marca da profecia pós-exílica influenciou o

imaginário popular, como realmente aconteceu na revolta macabaica e nos

movimentos de dissidência56 que surgiram a partir do período helenístico. Jesus

certamente respirou desses ares profético-apocalípticos.

c. A canonização da profecia (séc. II a.C.)

A profecia tinha vários desdobramentos nos primeiros anos do século I d.C.,

especialmente por conta da canonização dos textos proféticos da antiga tradição

52 De fato, no Antigo Testamento, o único exemplo literário que podemos afirmar como Apocalipse é Daniel. Alguns outros trechos apocalípticos são encontrados em Isaías (24-27; 33). Pequenos elementos pré-apocalípticos podem ser percebidos em outros profetas, mas que não configuram as mesmas características de Daniel. Ver discussão em ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p.449s. 53 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.233. 54 Ibid., p.233. 55 SICRE, J.L. Profetismo em Israel, p.447s. 56 Especialmente o grupo dos hassidim, que deu origem aos fariseus, bem como a comunidade de Qumran e a reação samaritana ao governo judaico de Jerusalém. Cf. KOESTER, op.cit. p.235-248.

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judaica, bem como pelo contato que a cultura judaica tivera com o helenismo

desde o século IV a.C. Por outro lado, diversos movimentos proféticos se

levantaram na Palestina nesse período, tanto antes como depois da destruição de

Jerusalém, em 70 d.C. De forma sintética vamos analisar esses aspectos.

A canonização dos livros proféticos se deu por volta do II século a.C. Antes

disso não pode ter sido, pois os samaritanos realizaram o cisma nesse período e só

aceitavam a Torá – Pentateuco. Além dessa época também não é provável, tendo

em vista a “introdução grega da obra” de Jesus Ben Sirac, pelo ano de 132 a.C.,

que cita os Profetas ao lado da Lei (Pentateuco), bem como os demais escritos.57

Como literatura canônica, os profetas “são considerados comentários à

Torá”. Por isso mesmo cedo foram separadas leituras de profetas que

acompanhavam a cada sábado um trecho da leitura da Torá. A própria

canonização da Lei deu aos livros proféticos o valor de cânon para a fé judaica,

considerando sempre Moisés superior a todos eles, como nos lembra Crüsemann:

Nesse contexto, a identificação de Moisés no fim do Pentateuco, em Dt 34, recebe uma importância que dificilmente pode receber atenção suficiente. Ao contrário, por exemplo, do Código Deuteronômico sobre os profetas com sua promessa de haver sempre um profeta como Moisés (Dt 18,15ss), nesta passagem-chave, ele é exaltado para a compreensão de toda a obra sobre profecia. (...) Moisés e, com ele, também sua Torá, são fundamentalmente superiores a toda a profecia posterior.58

Como processo cultural, a profecia judaica foi matizada por seu contato com

a profecia helenística, especialmente os oráculos sibilinos. Associados às Sibilas,

figuras lendárias que exerciam sua atividade por meio de êxtases, esses oráculos

podiam ser, inclusive, ex eventu, com forte cunho escatológico. Os judeus

aproveitaram esses textos para divulgar suas crenças apocalípticas, tanto de

desgraça quanto de esperança de um mundo melhor.59

d. Movimentos proféticos a partir do período romano (séc. I a.C.)

No período romano há diversos relatos testemunhando pelo menos dois

tipos de profetas populares: “o profeta oracular”, cuja função estava ligada ao

juízo divino e à redenção promovida por Deus; e “o profeta de ação”, que

inspirava e guiava um movimento popular para antecipar a redenção divina.60

57 Cf. ZENGER, E., op.cit., p.30s. 58 CRÜSEMANN, F., op.cit., p.472. 59 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.175; PRADO, A.M. “Questionamentos acerca da Sibila Babilônica”, p.3. Segundo o autor, o texto do Pastor de Hermas indica que também os cristãos sofreram influência desse tipo de oráculo. 60 HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.125.

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Esses movimentos proféticos do século I d.C. mostram que o “profetismo

estava muito vivo entre o povo judeu.” Horsley descreve ainda como se

processava a adesão do povo: Numerosas pessoas, inspiradas e convencidas da iminência da ação de Deus, abandonavam seu trabalho, suas casas e aldeias para seguir seus líderes carismáticos no deserto. Elas sabiam pelas tradições sagradas que fora no deserto que Deus tinha manifestado sinais e prodígios de redenção em tempos antigos, e que o deserto era o lugar da purificação, preparação e renovação.61

i. Os profetas de ação

Flavio Josefo desprezava o chamado “profeta de ação”, conforme relatou:

“Impostores e demagogos, sob o pretexto de inspiração divina, provocaram ações

revolucionárias e impeliam as massas a agir como loucos. Levavam-nas ao

deserto onde Deus lhes mostraria sinais de iminente libertação.”62

Dos movimentos liderados por profetas de ação, Josefo narrou três que se

destacaram dos demais, cujas características apocalípticas estavam muito claras:

um primeiro movimento se deu entre os samaritanos, no período de Pôncio

Pilatos. Segundo Josefo o líder anunciou ter descoberto vasos sagrados enterrados

por Moisés no monte Garizim. Pilatos reprimiu violentamente o movimento,

matando seus líderes.63 Outro movimento, agora na Judéia, foi liderado por

Teúdas,64 cerca de 45 d.C. Ele afirmou que iria dividir o rio Jordão, como Josué.

Fado, governador da Judéia na época, não permitiu e dizimou o grupo.65 Um

terceiro movimento foi liderado por um judeu ligado ao Egito, na época de Félix

(c. 56 d.C.). Esse defendia uma nova conquista da terra prometida, pretendendo

invadir Jerusalém para se tornar governador. Mas foi igualmente destruído.66 Em

todos esses casos houve franca participação dos camponeses, revoltados com a

dominação romana e a conivência das autoridades judaicas.

ii. Os profetas oraculares

Outro grupo de profetas do qual se tenha conhecimento no primeiro século

são os “profetas oraculares”. Horsley comenta o seguinte sobre eles:

61 HORSLEY, R.A., op.cit., p.146. 62 JOSEFO, F. Guerras Judaicas, 2.259. 63 JOSEFO, F., op.cit., 18.85-87. 64 Citado pelo fariseu Gamaliel, no discurso presente na narrativa de Atos dos Apóstolos em 5,36. No relato de Atos parece que ele agiu antes de Judas Galileu (6 d.C.), mas isso é confusão do autor. 65 JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 20.97-98. 66 Josefo cita o caso em dois textos: Antiguidades Judaicas, 20.169-171; Guerras Judaicas, II.261-63.

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Transmitiam oráculos, tanto de julgamento como de libertação, como o tinham feito os profetas oraculares clássicos, Amós ou Jeremias, séculos antes. Os profetas oraculares que anunciavam libertação iminente acham-se concentrados no período imediatamente antes e durante a grande revolta, quando as condições sociais e econômicas dos camponeses estavam-se deteriorando ao mesmo tempo que o comportamento oficial se tornava cada vez mais irregular e opressivo.67

Vários profetas desse tipo são citados por Josefo, inclusive João Batista,68 e

esses profetas incomodaram as elites tanto quanto o outro tipo de profetas. Basta

ver o destino de João Batista nas mãos de Herodes.

Como conclusão dessa rápida análise, percebe-se que o início do século I

testemunhou um florescer da profecia, nos moldes pré-exílicos, mas que carregava

também um teor apocalíptico pós-exílico. Isso demonstra uma releitura das

tradições por parte dos judeus palestinos que sofriam debaixo da opressão

estrangeira e dos desmandos do poder local.

De alguma forma, todo esse panorama influenciou a mentalidade popular

acerca dos profetas. Nos escritos do Novo Testamento, se observa um afastamento

desse tipo de movimento profético, tendo em vista que a pregação de Jesus não o

levou para um confronto direto com o poder romano. Mas é bastante razoável

pensar que os discípulos dele partilharam desse tipo de convicção e desejo de

trazer o reino de Deus pela força.69

Ao mesmo tempo, essa profecia reafirmava o valor da Torá e dos Nebîim,

pois afirmava a busca de fidelidade a um, enquanto se inspirava no ministério

registrado no outro. Será nesse cenário que vamos encontrar Jesus e sua posição

em relação às Escrituras Canônicas dos judeus do século I d.C., conforme

veremos nos próximos capítulos.

Por outro lado, a comunidade de Mateus esteve mais perto desse Jesus que

as demais comunidades cristãs? Será que a afirmação de que ele veio para cumprir

“a Lei e os Profetas” expressa um Jesus tão arraigado nas tradições judaicas, que

as demais comunidades diluíram essa imagem? Ou será que na verdade ele não

teve essa atitude, e foi a comunidade de Mateus que a formulou, numa tentativa de

salvaguardar sua identidade judaica? Para tentarmos responder a essa pergunta,

vamos antes traçar um quadro panorâmico do evangelho de Mateus e seu contexto

de origem.

67 HORLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.163. 68 JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 18.116-119. 69 Cf. GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.109

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2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto

Na pesquisa a respeito do evangelho de Mateus há muitas convergências

entre os pesquisadores, assim como muitas divergências. Antes de entrarmos no

universo do texto escolhido para análise, vamos fazer uma análise geral sobre o

Evangelho de Mateus em suas origens, a partir do seu Sitz im Leben.

2.2.1. Objetivo e estrutura geral da obra

Mateus costuma ser identificado como o evangelho mais eclesiástico,70 ao

mesmo tempo em que é o mais próximo da cultura judaica, ou seja, uma obra

cristã num contexto judaico.71 Porém, ocorre uma diferença significativa quanto à

intenção da obra. Em Mateus Jesus é o Messias Salvador, primeiro para o povo de

Israel, mas também já apontando para uma universalidade.

Ao mesmo tempo, em Mateus há um claro questionamento sobre a Lei, de

como ela não tem mais valor diante da nova aliança iniciada em Cristo, mas que,

ao mesmo tempo, continua a ter valor em sua essência. Isso é exemplificado

largamente no Sermão do Monte. Como afirma Koester: O Sermão da Montanha não deixa dúvidas de que Jesus não veio revogar a lei, mas para dar-lhe pleno cumprimento, e essa lei impõe aos discípulos a obrigação de cumpri-la – embora a justiça deles deva ser superior à dos fariseus (5,17-19). Para explicar essa ‘justiça superior’, Mateus formulou as antíteses do Sermão da Montanha (5,21-48), que contrapõem ‘o que foi dito aos antigos’ com as palavras do próprio Jesus: ‘Eu, porém, vos digo’. O que está em jogo em cada caso é uma radicalização das exigências da lei.72

Para alguns, é o evangelho com maior conteúdo eclesiológico. Mateus teria

menos cristologia e mais questões referentes à Igreja, que continuaria a atividade

de Jesus, especialmente pelo discipulado. Pede-se aos seguidores, acima de tudo,

“obediência incondicional em relação a tudo o que ele ordenou”.73 Mas Jesus está

70 Cf. SCHREINER; DAUTZENGERG, Forma e exigências do NT, pp.274-294; ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.159ss. 71 KÜMMEL aponta alguns aspectos que explicam a relação de Mt com o AT: “a) ele não explica os usos e costumes, os preceitos e as expressões judaicas (..); b)dispõe as narrativas orientado-as para uma formulação especificamente rabínica de uma questão (...); c) Traz toda uma série de ditos em apoio da validez incondicional da Lei (...); traz de preferência os ‘logia’ de Jesus que circunscrevem expressamente a atividade de Jesus a Israel (...); e) adapta a maneira de se exprimir de Jesus às expressões próprias dos judeus (...).” Introdução ao NT, pp.135-137. 72 KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.191s. 73 ROLOFF, J., A Igreja no NT, p.160.

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presente para acompanhar a caminhada da Igreja, a partir da autoridade

escatológica que lhe foi conferida. Por isso, a Igreja supera Israel como

testemunha de Deus aos povos, indo ao encontro dos gentios. Essa compreensão

situa Mateus numa heilsgeschischte onde a ekklesia é o novo povo de Deus.74

Carter coloca em maior evidência a situação da comunidade frente ao

império romano, o que aproxima Mateus da tradição deuteronomista, a qual

entende que os eventos históricos demonstram o juízo divino se concretizando. O

império romano estaria nas mãos de Deus na destruição de Jerusalém, mas teria

extrapolado seu papel, cuja oposição não poderia ser pela violência, e sim por

uma visão da história na qual Deus puniria Roma também por seus pecados.75

A estrutura do evangelho tem por princípio diferenciar blocos narrativos e

de discursos. As propostas clássicas para a estrutura de Mateus – Bacon, com a

estrutura dos cinco livros alternados por narrativas76; o sistema concêntrico de

Lohr, com seis narrativas e cinco discursos77, ou ainda na mesma linha a divisão

em cinco partes (com narrativa e discurso em cada uma) de Rolland78 - apontam

sempre para o mesmo processo, de se ter uma parte narrativa alternada por um

bloco de discurso. Essa estrutura mostra uma intenção de colocar Jesus frente a

Moisés e ao Pentateuco.79

Uma característica própria em Mateus é a de comentar as narrativas, no

momento em que compara a situação com textos do Antigo Testamento. E Mateus

vê nisso não obra do acaso, mas o fato de que todas as coisas acontecem por

vontade de Deus, que já tinha estabelecido essa história, com conseqüências

universais.80 Para Mateus, Jesus é – da mesma maneira como foi anunciado por

Marcos – aquele que veio para pregar o reino de Deus e o mestre. Mas a ênfase

74 ROLOFF é um dos autores que defende essa interpretação. Cf. op.cit., pp.159-187. KOESTER concorda que o Sermão do Monte não está endereçado a indivíduos, mas a toda a Igreja. Por outro lado, destaca-se o fato de ser o único evangelho a utilizar a palavra “igreja” [evkklhsi,a], em Mt 16,18 e 18,17, sempre relacionando à comunidade de seguidores de Jesus. Cf. op.cit., p.192. 75 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, pp.63-72. 76 BACON, “The Five Books of Matthew Against the Jews”, The Expositor VIII, 85, pp.56-66. 77 C.H. LOHR, “Oral Techniques in the Gospel of Matthew”, CBQ 23 (1961) 78 ROLLAND, “From the Genesis to the End of the World. The Plan of Matthew’s Gospel”, BT 2, p.156. 79 Outras estruturas, no entanto, podem ser identificadas, dependendo das referências com que se trabalhe. Kümmel e Garcia preferiram por não adotar esse sistema de estrutura quíntupla. Win J. C. Weren, que abordou a questão em artigo recente, aponta que os diversos estudos feitos a respeito mostram que não é simples declarar se há uma estrutura básica no evangelho. Cf. WEREN, “The Macrostructure of Matthew’s Gospel”, p.171-200. Em nossa pesquisa vamos considerar a estrutura clássica de narrativa-discurso. 80 Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (I), p.50.

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mateana recai sobre a idéia do mestre, como bem demonstra o Sermão do

Monte.81 Por outro lado, Mateus enfatiza Jesus como “o Messias Salvador

enviado por Deus, o rei de Israel.”82

Um terceiro aspecto importante no objetivo de Mateus, além da eclesiologia

e da cristologia é a escatologia.83 Em Mateus, a vinda do reino de Deus, seu juízo

sobre o mundo e a recompensa final para os fiéis não apenas aspectos do

querigma, mas temas fundamentais, que perpassam toda a obra. Aparecem muito

mais perícopes com esse motivo do que em Mc e Lc juntos.84

Esse texto, em que a comunidade é considerada parte do projeto de Deus

para o mundo, Cristo é o Messias, e há uma mensagem escatológica perpassando

a pregação, reflete seu Sitz im Leben. Uma comunidade que precisa de orientação

para a vida, mas que é seguidora dos princípios de Jesus.85

2.2.2. Fundo histórico do texto

Há um consenso bastante grande quanto ao tempo em que nasceu o

evangelho de Mateus. Sendo ele dependente de Marcos, e tendo esse sido escrito

entre os anos 64-70 d.C.86, Mateus não poderia ser anterior a 70. Por outro lado, a

o fato de Inácio conhecê-lo também impede uma data posterior a 100. Além disso,

não deve ter sido escrito próximo aos anos 70, por realizar uma revisão bastante

81 Ibid., p. 51. 82 CAMACHO, F.; MATEOS, J., O Evangelho de Mateus, p.8. No entanto, do ponto de vista dos antagonistas Jesus é julgado por suas curas e milagres, “pelo poder do maioral dos demônios”, em 9,34, e como “enganador”, em 27,63s. Isso indica que o ministério de Jesus em Mateus não pode ser resumido a faceta de mestre, mesmo que haja uma ênfase nesse sentido. Cf. STANTON, G.N. A Gospel for a New people, p.171 passim. 83 De acordo com STANTON, G.N., “Matthew writes with several Christological, ecclesiological and eschatological concerns.” A Gospel for a New People, p.43. MARGUERAT, D., compôs sua pesquisa exatamente considerando o julgamento escatológico, como algo presente o tempo todo na obra de Mateus. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu. KÄSEMANN realizou uma conferência em 1960 a respeito da relação de Mt com a mensagem apocalíptica cristã, transcrita no artigo “Os inícios da Teologia Cristã”, Apocalipsismo, pp.231-254. A repercussão dessa pesquisa foi tão grande que Bultmann respondeu a Käsemann através de um artigo, em 1964, na revista APOPHORETA, Festschrift für E. Haenchen. 84 MARGUERAT comenta que os textos de Mt que tem esse acento são 60 em 148 perícopes,e enquanto Mc são 10 em 92, e em Lc 28, em 146. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.13. 85 Stanton analisa a possibilidade do evangelho de Mateus ter atendido, na verdade, a várias comunidades, e não somente a uma, como normalmente se pensa, tendo em vista que ele escreveu no gênero evangelho e não epístola. Cf. STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.45 et.seq. Mesmo concordando com essa possibilidade, vamos tratar aqui da comunidade (singular), como uma grandeza ideológica. 86 Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao Novo Testamento, p.117. De fato ele defende o ano 70 como a data da composição.

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considerável do texto de Marcos. Considerando esses aspectos, mesmo não sendo

muito conclusivos, vários autores sugerem uma datação entre 80-90 d.C.87, a

partir da qual vamos basear nossa pesquisa.

Um aspecto importante para um trabalho que pense a autenticidade dos ditos

de Jesus em Mateus e, por conseguinte, nos ajude a pensar a posição de Jesus

frente à Torá, é a tradição a que o evangelista teve acesso. Koester comenta que

há uma probabilidade do “Evangelho dos Ditos” (Q) já estar sob autoridade de

Mateus mesmo antes da redação do evangelho, que teria reelaborado esse

material, ao juntar o material de Marcos. E não só ele teria tido acesso a esse

material, mas Tomé também. Assim, “Mateus e Tomé teriam sido então as duas

autoridades apostólicas mais antigas para a transmissão dos ditos de Jesus.”88

A autoria de Mateus também é cercada de incertezas e questionamentos.

Apesar dos manuscritos não trazerem no corpus a identidade do autor, já no

século II foram agregados cabeçalhos que afirmavam euagglion katta

Maqqaion89 ou mesmo apenas kata Maqqaion90. Isso se deve aos textos de

Papías, que não foram preservados, mas chegaram até nós numa clássica citação

de Eusébio de Cesaréia: “Referente a Mateus, diz o seguinte: ‘Mateus ordenou as

sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.’91 O

fato de Papías usar o nome de Mateus, relacionando com o apóstolo, não define

realmente se ele seria o autor. Mateus passa a ser a identidade do “autor”, no

sentido da comunidade de fé relacionada ao apóstolo Mateus.92

87 KÜMMEL, W.G., op.cit. p.145 et.seq.; MAZZAROLLO, I., Evangelho de São Mateus, p.3 et.seq.; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.35 et.seq.; MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.10 et.seq.; STEGEMANN, E., História social do protocristianismo, p.257 et.seq. 88 KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188. Como confirmação dessa possibilidade, temos o estudo de KLOPPENBORG, J. S., The Formation of Q, a respeito da fonte Q, além da posição de STANTON, A Gospel for a New People., que afirma o uso de Q por Mateus como uma reelaboração de gênero, ou seja, o evangelista já teria encontrado a fonte Q pronta e adaptado para seu gênero próprio, junto com Marcos. 89 “Evangelho segundo Mateus” de acordo com as unciais W e D, as minúsculas da família 13, a versão boaírica, ou seja especialmente no texto Cesareense, além do texto Majoritário, que indica a presença dessa forma no texto Bizantino. Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, pp.41-45. 90 “Segundo Mateus”, testemunhado pelas unciais a e B, nos melhores maiúsculos do Novo Testamento, segundo o texto Alexandrino. Cf. Ibid., pp 41-45. 91 FISCHER (Trad.), HE, III, 39, 16. Sobre a questão de Mateus ter sido escrito em grego, ver KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.188; KÜMMEL, Introdução ao NT, pp.146-148. 92 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.33s. Quanto à afirmação de que Mateus não seria o autor citamos o próprio Koester, op.cit., p.187s, bem como Kümmel, que afirma que “o autor de Mateus, cujo nome nos é desconhecido, teria sido um cristão proveniente do judaísmo e de fala grega, que provavelmente seria possuidor de erudição rabínica”, op.cit., p.148. com quem concordam Mateos e Camacho, O Evangelho de Mateus, p. 11.

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Quanto ao lugar de origem, as opiniões se dividem. Alguns autores

reafirmam a posição tradicional da exegese moderna de situar Mateus na Síria,

provavelmente em Antioquia.93 Outros, mais recentemente, o situam na Palestina,

seja em Séforis ou Tiberíades.94 Para a atual pesquisa levou-se em conta uma

proximidade do contexto palestino e Galileu, o que significa que concordamos

com a segunda hipótese geográfica. De fato, o embate entre círculos cristãos e

fariseus só pode ser plenamente compreendido a partir de uma análise da situação

ocorrida na Palestina, após o ano 70 d.C. Mesmo que o texto final tenha sido

escrito na Síria, transparece conflitos originários da Palestina. Ou seja, em sua

formação, a comunidade associada ao evangelho de Mateus tem fortes ligações

com o judaísmo.95

2.2.3. Características da comunidade a partir do movimento de Jesus

O seguimento de Jesus em Israel se deu efetivamente na região da Galiléia,

pelo que se constata em todos os evangelhos canônicos.96 Alguns identificam que

o movimento dele tinha muito a ver com os movimentos populares

contemporâneos, especialmente com reis populares e expectativas messiânicas.97

93 Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao NT, p.145s; MATEOS e CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.10; MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.5s; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p. 34s.; KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188.; RICHARD, P., “A origem do cristianismo em Antioquia”, p40 et.seq. 94 Cf. OVERMAN, O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.27-29, seguido por GARCIA, O Sábado do Senhor Teu Deus, e STEGEMANN, História, p.257. Outro que expressa essa opinião é SALDARINI, “The Gospel of Matthew and Jewish-Cristian Conflicts”, In: LEVINE, The Galilee in late Antiquity, pp.23-38. 95 CARTER, W. O Evangelho de Mateus, p.54 et.seq. 96 Sobre a questão do ministério de Jesus na Galiléia ver o estudo aprofundado de FREYNE, S. A Galiléia, Jesus e os Evangelhos. Um dos aspectos que ele aborda é o problema da descrição dos evangelhos como retratos não-históricos da situação. Ele chega mesmo a afirmar que entre as evidências históricas do contexto galileu e as narrativas evangélicas há tal discrepância que “é difícil ver como um ministério carismático/profético, tal como o que Jesus realizou, pôde desempenhar ali um papel significativo.” P.189. Contra essa posição, porém, HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, que considera pertinente o que foi narrado por Josefo e outros a respeito de revoltas camponesas na Judéia, bem como na Galiléia. Ele cita, por exemplo, que “a cidade de Séforis, que foi incendiada e cujos habitantes foram vendidos como escravos no ano 4 a.C., estava situada apenas algumas milhas ao norte da aldeia Nazaré, a terra de Jesus.” p.111. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.190 et,seq, também defende que havia tensões de diversos tipos (entre judeus e gentios, entre cidade e campo, ricos e pobres, governantes e governados, na Galiléia).; Também GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.30 et.seq. 97 Cf. HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A. op.cit. 89 passim; Também HORSLEY, R.A., Jesus e o Império, p.80 passim; CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, p.340 passim; GRELOT, P., A esperança judaica no tempo de Jesus, p.109 passim.

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De fato, era um movimento popular, de massa, com ensino em parábolas, e

demonstração da chegada do reino de Deus pela realização de curas e milagres.98

É possível fazer uma diferenciação entre três fases para um estudo do

fenômeno do seguimento de Jesus: uma primeira fase do seguimento

propriamente dito, com uma relação discípulo-mestre; uma segunda fase da

“protocomunidade” de Jerusalém, surgida logo após a morte e ressurreição de

Jesus; uma terceira fase, das “comunidades messiânicas”, a partir de 70 d.C.,

principalmente retratadas nos evangelhos de Mateus e João. Para um estudo a

partir do evangelho de Mateus, por conseguinte, temos diante de nós essa última

fase, o que está em concordância com a datação anteriormente trabalhada.99

Tendo por princípio que as comunidades palestinenses herdaram muito das

características do seguimento original de Jesus – com algumas modificações

institucionais necessárias –, é interessante levantar alguns dados que tem sua fonte

ainda no próprio Jesus e seu movimento. Alguns aspectos que Stegemann aponta

do seguimento de Jesus podem ter sido claramente continuados pela comunidade

cristã de Mateus. Esses aspectos se apresentam especialmente na “desviância

genuína, mas sem ruptura com o judaísmo”, e mantém a relação com as

instituições religiosas do judaísmo, com os elementos básicos da fé judaica, e com

a Torá.100

Aplicado ao movimento de Jesus, Stegemann sugere que “o caráter

carismático do seguimento de Jesus implica certa desviância genuína e uma

concepção pré-política”.101 A mensagem de Jesus, da irrupção do reino de Deus,

98 Cf. GNILKA, J, Jesus de Nazaré, p84 passim. THEISSEN, G. Sociologia do Cristianismo Primitivo, p.33 et.seq. Ele afirma que “já em seus inícios, o movimento de Jesus visava a integração.” 99 Cf. STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, p.217. 100 STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, pp.217 et. passim. Por desviância Stegemann define uma nova abordagem para o termo hairesis usado por Josefo para falar dos grupos judeus no primeiro século. Por ser um conceito de origem grega – “partido” – padece do fato do grupo ter uma escola que trata apenas dele mesmo. O que aconteceu na Palestina do primeiro século é que esses grupos pensaram a identidade do judaísmo como um todo. Por outro lado, o conceito utilizado por Weber de “seita” (na obra Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriß der verstehenden Soziolage. 5.ed., 1976) , foi colocado em contraponto à igreja. Esse conceito, de fato, não ajudou a perceber “as diferenças específicas entre esses grupos”. THEISSEN chama essa desviância de “radicalismo itinerante”, a partir da transmissão das palavras de Jesus nos sinóticos, Sociologia da cristandade primitiva, p.36. 101 STEGEMANN, E.; W., op.cit. p.238. Com isso, Stegemann propõe uma nova abordagem, a partir da teoria da desviância, que “descreve o processo da formação de desviância em conexão com situações fundamentais de crises nas sociedades, bem como a formação de grupos como parte de uma ‘carreira de desviância’ em que a exclusão inicial como divergente é neutralizada”. P.179. Decisivo para que isso aconteça, de acordo com essa teoria, não é a reação ao grupo desviante, nem tampouco que essa desviância aconteça numa sociedade altamente estruturada em termos

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bem como a aceitação dos excluídos da sociedade em seu movimento

caracterizam bastante essa desviância, mesmo que Jesus apresentasse certa

expectativa compartilhada com outros grupos e movimentos. Aí temos uma

ruptura implícita com o judaísmo. Mas não se pode afirmar que a ruptura

definitiva se deu já no movimento, pelo contrário, deve ter se dado a partir de uma

intensificação no processo de desviância nas comunidades cristãs pós-70 d.C.

Mas, “é evidente que essa autocompreensão escatológico-carismática do

seguimento de Jesus marcou também sua relação com as instituições do judaísmo

e especialmente com a Torá”.102

Em relação aos aspectos gerais da fé judaica, é possível ver em Jesus uma

relação de prática fiel, como os diversos relatos em que o mostram em reuniões

nas sinagogas aos sábados (Mc 1,21.39; 3,1; 6,2; Lc 4,15ss, etc.). Ali Jesus

participa normalmente, questionando em alguns casos aos religiosos que

freqüentam ao local, não o processo em si.103 Com relação ao Templo, apesar da

atitude marcante de Jesus contra os cambistas, não há da parte dele uma posição

prévia contrária ao Templo. Outros grupos, inclusive os fariseus, também faziam

críticas à administração sacerdotal.104 Por fim, Jesus também não teve uma atitude

contrária à família. Ainda que seu seguimento exigisse um afastamento da família

terrena, ele foi a favor do sustento dos pais (Mc 7,10-13), do acolhimento de

crianças órfãs (Mc 9,37) e contra o divórcio (Mc 10,1-12). Jesus seguiu os

princípios básicos da fé judaica, como o monoteísmo e a teologia da aliança. Da

mesma forma, sua relação com a Torá parte de um respeito e uma atitude positiva.

ideológicos, mas as circunstâncias de crise que forçam uma nova tomada de posição e uma nova orientação. 102 STEGEMANN, E.; W., op.cit., p.238. Para G. THEISSEN, realmente foi uma separação paulatina. Como ele afirma: “após a morte de Jesus, seu movimento de renovação intrajudaico transformou-se numa seita judaica. (...) A partir do ano 70 d.C. a ‘seita’ se torna um cisma definitivo – condicionado pela destruição do templo e por desenvolvimentos internos do judaísmo e do cristianismo primitivo.” O Jesus Histórico, p.167. No entanto, ele já afirmou que Mateus, por exemplo, formula certas ordenanças “a partir de uma perspectiva intra-judaica”. Cf. Sociologia da cristandade primitiva, p.104. 103 VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21 et.seq. Entretanto, o autor aponta o curioso fato de não haver nessas passagens clara alusão a uma participação de Jesus em atos de culto nas sinagogas, com exceção da leitura do rolo em Lc 4,16-21. 104 THEISSEN lembra que a Galiléia como um todo tinha “uma marcada devoção ao templo por parte dos galileus e uma forte ligação dos habitantes da periferia com o centro do culto judeu e com as instituições afiliadas a ele”, conforme demonstram as fontes. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.198.

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Esses aspectos básicos parecem se expressar também na comunidade de Mateus,

caso se tenha a Palestina como lugar de origem.105

Pelos aspectos levantados acima, entende-se que a comunidade de Mateus

teria uma prática semelhante à de Jesus, sem a intenção de criar uma religião ou

fechar-se ao judaísmo. No entanto, o texto do evangelho e as pesquisas realizadas

demonstram que, internamente, a comunidade vivia sob tensão.106 O principal

motivo dessa tensão interna é a questão a respeito da Lei e sua observância.

Enquanto um grupo defendia a Lei e sua validade (cf. 5,17-20; 10,5-6; 23,1-3),

outro fazia uma releitura dela ou pelo menos da observância judaica (5,17-48;

23,1-36).107 A comunidade de Mateus seria, então, formada por um grupo misto,

“composta por um setor judeu-cristão de rígidos observantes e de um estrato de

cristãos mais abertos”.108

Mateus não trabalha com diferentes níveis de crentes (a multidão e os

perfeitos), mas com a idéia de “discípulos”, seguidores que devem buscar a

perfeição, ou o ser perfeitos [te,leioj].109 Assim, o evangelho de Mateus

expressaria uma oposição contra os antinomianos da comunidade (Mt cita aqueles

que não praticam a Lei - avnomi,an - três vezes: 7,23; 13,41; 24,12), os quais

relativizavam as exigências da perfeição. Para eles, o Antigo Testamento foi

válido até Jesus, mas agora não tinha mais sentido para a Igreja.110 Ao mesmo

tempo, a comunidade de Mateus não era uniforme do ponto de vista social, e

expressava um pouco da sociedade à qual estava ligada.111

105 Cf. FLUSSER, Jesus, p.37 et.passim; 106 Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.54-63. Mesmo considerando que ele tome Antioquia como lugar de origem do evangelho de Mateus, os conflitos aos quais se refere são válidos para uma análise tendo por base a Palestina. Em ambos a polêmica tem como foco o grupo dos judeus seguidores de Cristo contra os judeus não-seguidores, que têm o poder da sinagoga. 107 Cf. BROWN, R., An Introduction to the New Testament, p.213. 108 Cf. BARBAGLIO, G. Os Evangelhos 1, p.39 et.seq. 109 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.96 et.seq. 110 Ibid., p.159. Alguns conjeturaram se esse grupo seria paulino, mas de fato deve se tratar de cristãos gentílicos que começam a pressionar os cristãos judeus por uma atitude mais aberta em relação à Lei, conforme se verifica nas discussões em Atos 15, e nas epístolas de Paulo e de Tiago. Para Stanton, no entanto, não é possível, de forma sumária, identificar que sejam esses oponentes internos. Ele afirma: “Hypotheses based on a possible interpretation of one verse, or even of a cluster of verses, are likely to be insecure. The only opponents who are in view from the beginning to the end of Matthew’s gospel (form 2.1 to 28.15) are the Jewish leaders.” STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.49. 111 Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.48 et.seq. Partindo do pressuposto que o evangelho teria nascido em Antioquia, o autor analisou o estrato social daquela cidade. Ele aponta que em Mateus o grupo se identificar como “pequeno”, seja numericamente, seja na condição social. Segundo ele, “dado a experiência comum de endividamento, perda de terras e perda de status e relações de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando

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Além dos problemas internos (ou que estivessem ligados a outros grupos

crentes em Cristo), a comunidade de Mateus igualmente esteve sob forte pressão

externa, que levou o grupo a uma ruptura completa com o judaísmo de sua época.

O estudo dos grupos antagônicos é fundamental para entender esse quadro.

2.2.4. Os grupos antagônicos

A destruição do Templo, como resultado de Guerra Judaica de 66-70 d.C.

trouxe uma série de mudanças significativas para os piedosos palestinenses, sejam

eles judeus ou cristãos.

Acabaram o culto sacrifical e muitos atos e deveres religiosos ligados ao templo (...). As funções dos sacerdotes no templo tornaram-se obsoletas, assim como o cargo do sumo sacerdote. Terminaram as tarefas tradicionais do Sinédrio, que tinha sua sede no templo.112

Essa quebra exigiu novas respostas, que culminaram na formação de um

judaísmo mais voltado para observância da Lei como princípio de vida, e menos

dependente de preceitos rituais ligados ao templo. Importante para isso foi o papel

dos sábios e dos mestres da lei, grupo que passou a se destacar a partir daí. Esse

período é conhecido como o nascedouro do “judaísmo rabínico” ou “judaísmo

clássico”. Ou no dizer de Overman, o “judaísmo formativo”.113 O grupo de

Mateus vai ter sérias controvérsias com esse grupo, mesmo que cada um estivesse

estabelecendo seu próprio projeto.114 É possível que o conflito de fato fosse bem

mais amplo e até mais fragmentado, mas as narrativas que chegaram a nós, em

especial no evangelho de Mateus, mostram uma pequena parte dele.115 Seja como

algum meio para sobreviver, é provável que parte dessas pessoas fizesse parte da audiência de Mateus.” P.50. Então deveriam haver ricos, pobres, livres, escravos, comerciantes, etc. participando da comunidade. 112 STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.254. 113 OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.14s. Ele chega a afirmar que há uma substancial diferença entre dois: “a evolução do judaísmo formativo para o rabínico foi um processo histórico prolongado e complexo que ocorreu ao longo de um período de várias centenas de anos.” 114 Cf. o comentário de P. R. GARCIA: “os essênios e os cristãos abandonaram o Templo e estabeleceram seus próprios ritos de piedade e serviço religioso; os fariseus ficaram numa posição intermediária”, O Sábado do Senhor teu Deus, p.45. Também MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.5. Ele afirma: “Os que aderiram ao cristianismo eram hostilizados pelos que os rejeitavam a e as perseguições eram constantes.” 115 Como afirma J.A. OVERMAN: “No conflito entre o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, somos expostos a uma fatia bastante pequena do processo global de definição e consolidação judaica do período pós-70.” O Evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo, p.15.

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for, há uma tensão crescente entre esses diferentes grupos, diante do vácuo de

referência para a fé judaica. Bonneau indica essa tensão:

O Evangelho de Mateus dá conta de diversos conflitos que permitem uma reconstrução plausível da situação dos seus destinatários. (...) Mateus luta contra os adversários externos, judeus, fariseus com toda a evidência, do meio dos quais sua comunidade e ele mesmo saíram e aos quais ele opõe uma nova compreensão da fé judaica, à luz do acontecimento Jesus. Uma profunda rivalidade se estabelece entre os dois grupos e conduz a uma violenta polêmica, até mesmo a uma perseguição.116

O Evangelho de Mateus cita vários oponentes a Jesus – fariseus, escribas,

chefes de sinagoga, saduceus, sacerdotes, governantes judeus e romanos -. Alguns

de fato não existiam ou pelo menos não tinham mais a mesma força nos anos pós-

70, como o saduceus117. Outros se fortaleceram nos processo de descentralização

da religião e busca de renovação da identidade, como os fariseus e os escribas,

grupos centrais para o estudo em questão.

2.2.4.1.

Os fariseus

O grupo dos fariseus é um dos mais citados em Mateus como antagonista.118

J. de Fraine descreve os fariseus como “um partido religioso, no judaísmo, que se

aplicava a estudar profundamente a lei mosaica e as tradições dos antepassados, e

propugnava a mais rigorosa observância da sua interpretação da lei.”119 Além

disso, são caracterizados como um movimento leigo originado da resistência

contra o esvaziamento dos ideais religiosos tradicionais do judaísmo por parte da

realeza sacerdotal secularizada (os saduceus).120 Entretanto, dependendo da fonte

116 BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.181. Overman trabalha a questão. Igreja e comunidade em crise – o Evangelho segundo Mateus, esp. p.18. 117 Os saduceus surgiram de círculos sacerdotais favoráveis ao governo hasmoneu, e também tinham o templo como centro da religião israelita. Como se consideravam sucessores do sumo sacerdote Sadoc, do tempo do rei Davi, entendiam que o sistema do Templo lhes assegurava poder e estabilidade. Aliás, O Templo foi o principal motivo de sua rivalidade com os fariseus e porque não dizer dos essênios. Era um grupo conservador e ortodoxo em suas crenças e posturas. Acreditavam acima de tudo na unidade de culto, nação, terra e história. Sua doutrina baseava-se na crença de que o ser humano faz o seu destino; a negação do além, bem como da ressurreição dos mortos e prêmio após morte; atentavam apenas para a Torah escrita, rejeitando toda a Torah Oral. Estavam ligados às classe superiores. No entanto, a maior parte das informações que temos a seu respeito é de fonte indireta, o que pode carregar certas distorções movidas por preconceito. Sobre eles ver SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.307-316; Em STEGEMANN, uma abordagem social em termos de movimento de desviância, História social do protocristianismo, pp. 176-185; ROLOFF, A igreja no Novo Testamento, p.22s. 118 Mt 3,7; 5,20; 9,11.14.34; 12,2.14.24.38; 15,1.12; 16,1.6.11.12; 19,3; 21,45; 22,15.34.41; de forma especial as imprecações do cap.23, onde inclui os escribas; 27, 41.62. 119 FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557. 120 Ibid., p.558. Também conforme a pesquisa de KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.240s; ROLOFF, J., A igreja no Novo Testamento, p.20.

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a qual consultamos, a configuração do grupo dos fariseus pode ter diferentes

características. Flávio Josefo os designa como grupo de interesse político, que

teria surgido como tal por volta do final do século 2 a.C., na época de João

Hircano.121 Na literatura rabínica que surgiu a partir do século 3 d.C. os fariseus

são indicados como mestres, a partir das escolas de Hillel e Shammai, dois

fariseus notáveis do primeiro século, o que dificulta a interpretação das

descrições.

De um modo geral, no entanto, há evidências de que os fariseus compunham

associações, ou grupo de comensais, que desejava ter influência sobre Israel, mas

não alcançou essa proeminência.122 A composição social desse movimento,

segundo a pesquisa feita por Stegemann a partir das fontes, indica uma pertença

aos estratos superiores, tanto da elite quanto do séqüito.123 Já Saldarini, em sua

pesquisa, enxerga uma mescla maior nos estratos sociais. De fato ele coloca a

questão de modo abrangente:

Uma questão importante, não respondida pelas fontes, diz respeito às atividades diárias dos fariseus e a origem dos meios de vida. A teoria antiga de que eles eram artesãos urbanos é muito improvável, porque os artesãos eram pobres, sem instrução e sem prestígio. A teoria mais comum de que os fariseus eram um movimento escribal leigo, um grupo de estudiosos e intelectuais religiosos que substituíram os líderes tradicionais e obtiverem grande autoridade sobre a comunidade é igualmente muito implausível. Embora alguns fariseus fizessem parte da classe governante, a maioria eram funcionários subordinados, burocratas, juízes e educadores. Eles são mais bem compreendidos como conservadores que eram servos letrados da classe governante e tinham uma proposta para a sociedade judaica e influência junto ao povo e junto aos seus patronos.124

O nome do grupo deve derivar do hebraico perushîm (~yviWrp.), da raiz

hebraica prs (vrp), que pode significar “os que estão separados”, ou

“separatistas”.125 Essa designação é pouco freqüente na literatura rabínica, sendo

muitas vezes usada pelos seus adversários de forma pejorativa, significando, em

sentido negativo, “sectários” ou mesmo “hereges”, afastados dos outros de modo

121 Cf. descrito em A. Saldarini, op.cit., p.99 et.seq. Ele aponta que “grupos como os fariseus, que existiram por dois séculos, mudam com o tempo, às vezes significativamente”. P.290 122 Cf. SALDARINI, A., op.cit., p.223-229. Também STEGEMANN cita a questão, op.cit., p.183s. 123 STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.185-188. O quadro da p.216 mostra a condição dos principais grupos na pirâmide social da terra de Israel, no primeiro século. 124 SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.294. (Destaques meus). De fato Saldarini se aproxima da posição de Stegemann, quando este aproxima os fariseus do grupo do séqüito, que estaria a serviço da elite, cf. nota anterior. Sobre o sistema de classes de um modo geral ver o próprio Saldarini, pp.53-59, e Stegemann, op.cit., pp.71-118. 125 Cf. FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557.

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ilegítimo.126 O significado dessa separação, em sentido positivo, pode ser de

“pessoas que se retraíram da sociedade judaica normal ou da sociedade gentia, a

fim de observar a lei judaica (pureza, dízimo) mais rigorosamente”. É possível

entender o sentido de prs como “intérpretes”, o que estaria de acordo com a

abordagem do Novo Testamento sobre o grupo, no qual demonstra que os fariseus

tinham sua própria interpretação da Lei.127

Pelo contato com a cultura helenista, desenvolveram aspectos inovadores no

judaísmo. Formaram importantes escolas, como as de Hillel e de Shammai, de

onde surgiu o movimento do rabinismo, que existe até hoje.128 Também

enfatizaram a possibilidade do indivíduo cumprir a vontade divina, contra o

conceito tradicional da salvação coletiva. Em termos de doutrinas, acreditavam

numa sinergia entre Deus e os homens; na ressurreição dos justos e na punição

dos maus; acrescentavam Tradição Oral (Haggadah e Hallakah) à Torah mosaica;

estavam próximos do povo simples (!)129, e tem seu respeito; honravam os antigos

e buscavam ter comunhão entre si.130

Uma das práticas mais importantes dos fariseus foi a observância da Torá

Oral, ou nos termos de Josefo, das tradições (paradosis): O que eu gostaria agora de explicar é isto, que os fariseus entregaram ao povo muitas observâncias segundo a tradição de seus Pais, que não estão escritas na Lei de Moisés; e, por esta razão, os saduceus rejeitaram-nas e dizem que devemos honrar as observâncias que estão em nossa palavra escrita, e não observar aquelas que são derivadas da tradição de nossos antepassados. Quanto a essas coisas, grandes disputas e diferenças surgiram entre eles.131

Essas tradições defendidas pelos fariseus se chocaram com a interpretação

de Jesus e consequentemente com a comunidade de Mateus, conforme se percebe

em várias passagens (Mt 12,1ss; 15,1ss; etc.). Isso por que “tanto o judaísmo

formativo como a comunidade de Mateus estavam preocupados em legitimar suas

126 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.250; D. FLUSSER comenta que “na literatura rabínica, os sábios nunca designam a si mesmos de fariseus. Conhecemos, porém, dois homens que assim o faziam: Flavio Josefo e Paulo.” Jesus, p.46. 127 Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.75. Ele cita Josefo que descreve os fariseus como “os intérpretes mais acurados da Lei”. P.75. Também SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.232. 128 Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.241, onde ele comenta: “a ‘escola’ e as tradições de interpretação transmitidas de mestre a discípulo tornaram-se a instituição religiosa principal do judaísmo farisaico, análoga à função da escola nos meios filosóficos da antiguidade.” 129 No entanto, E. STEGEMANN fala de uma relação distanciada com o “am há áretz” da Galiléia. Cf. História social do protocristianismo, p.183. 130 Cf. SALDARINI, A. op.cit, pp.123-126, onde compara o grupo com os saduceus; KOESTER, H., op.cit., p.238 passim. Sobre isso ver OVERMAN, op.cit., pp.70-75. 131 Antologias Judaicas, 13.10.6 – 297.

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crenças e comportamento.”132 Em termos práticos, se trata de interpretar a Lei e

defender uma paradosis adequada à existência de cada grupo, que acabava

entrando em choque com a visão do outro grupo, visto como adversário.

Curiosamente, todos têm em mãos o mesmo instrumento (a Lei e os Profetas

como escritura reguladora) e o mesmo propósito (realizar a vontade de Deus).133

Entretanto, não eram apenas os cristãos que tinham conflito com os fariseus.

Eles tinham clara oposição por parte dos saduceus, que os consideravam

hipócritas e rejeitavam sua paradosis. Flusser relata a respeito que “em seu leito

de morte o rei saduceu Alexandre Janeu advertiu sua esposa não contra os

verdadeiros fariseus mas contra os ‘pintados’.”134 Os essênios chamavam os

fariseus de “caiados”, referência que encontramos em Jesus (cf. Mt 23,27s).135

2.2.4.2.

Os escribas

Ao lado dos fariseus encontramos diversas citações sobre os escribas136,

como um grupo que tem sua própria estrutura e ideologia. Mas quem eram os

escribas? Como podemos identificá-los historicamente?

A palavra “escriba” vem do grego [grammateu,j] e descreve um funcionário

que trabalha para a elite, compilando documentos, ou mesmo que realiza essa

tarefa no povoado.137 No contexto judaico isso também aconteceu, porém a

origem hebraica está na palavra sôfer (rpewOs), da raiz spr (rps), que indica a

132 OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.71. O autor aponta para a questão do desenvolvimento de tradições como parte da construção social de um grupo que produz um novo movimento numa sociedade. É preciso dar autoridade normativa à maneira como o grupo se organiza, para que as gerações seguintes se guiem pelos mesmos valores. Nas palavras de Overman, “para que o movimento sobreviva, as pessoas precisam esquecer gradualmente que essa ordem social foi estabelecida por pessoas e continua a dependente do consentimento de pessoas. Essas construções sociais do movimento precisam passar a ser identificadas com uma autoridade maior, mais estabelecida e tradicional.” P. 70 et.seq. 133 MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.53 et.seq. MERZ, A. e THEISSEN, A. O Jesus Histórico, p.252. O autor comenta que a relação de Jesus com os fariseus é apresentada nas fontes de forma “ambivalente”. O mesmo princípio pode ser aplicado à relação da comunidade cristã com os grupos judeus contemporâneos. 134 FLUSSER, D. Jesus, p.46. 135 Cf. Documento de Damasco (CD) 8:12, 19:25, apud Ibid., p.46. Na verdade os essênios detestavam os fariseus, mas também rejeitavam sua doutrina, ao contrário das comunidades cristãs, que tinham bastante correlação doutrinal com os fariseus. Flusser afirma que, do ponto de vista de modo de doutrina, Jesus pode ser comparado a um fariseu, num “sentido mais amplo”. P.48 136 Muitas vezes citados junto com os fariseus, a seguir os textos em que aparecem exclusivamente: Mt 2,4; 7,29; 9,3; 16,21; 17,10; 20,18; 21,15; 26,3.57. 137 MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.248.

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escrita, e no caso o substantivo “escriba, escrevedor, escrivão, secretário.”138 Mas

escribas como um grupo organizado só encontramos registro nos evangelhos

sinóticos, em conexão com os fariseus e com os sumos sacerdotes, sempre como

antagonistas de Jesus.139

J.Jeremias aponta que havia uma corporação de escribas em Jerusalém,

desde a classe sacerdotal mais alta, passando pelos sacerdotes de menor peso, bem

como os levitas, chegando até mesmo às demais classes populares, das quais um

dos mais famosos, sem dúvida, foi Hillel, um operário.140 Ele demonstra ainda que

o saber é o único e exclusivo fator do poder dos escribas. Quem desejasse agregar-se à corporação dos escribas por ordenação, seguia um ciclo regular de estudo de alguns anos. O jovem israelita, desejoso de consagrar sua vida à sábia atividade de escriba começava o ciclo de sua formação como discípulo (talmîd).141

Saldarini procura mostrar, a partir das diferentes fontes, que também a

concepção a respeito dos escribas podia mudar, e consideravelmente. De um

modo geral, desde a Antiguidade os textos mostram o escriba como secretário, e

mesmo como alto oficial do gabinete real. Em Esdras o escriba tem uma função

importante junto aos repatriados. Já na comunidade judaica após o exílio, os

escribas estavam vinculados aos sacerdotes e todas as funções de dirigentes.

Provavelmente tiveram influência na redação final do Deuteronômio, dado o seu

caráter sapiencial. 142

Nesse período do pós-exílio os escribas tiveram um papel central na

elaboração do texto final dos diferentes livros que compuseram a Lei, os Profetas,

e bem assim, os Escritos. Com isso, também puderam ter o papel de intérpretes da

Lei, como transmissores da tradição bíblica. E nesse caso os escribas nem mesmo

seriam parte de um único grupo, mas estariam em grupos que traduzissem as

diferentes tradições de Israel.143 Na literatura judaica dos séculos anteriores a

Cristo há extensa presença dos escribas. Diversos elementos presentes em Henoc,

138 Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.170. Saldarini comenta, inclusive, que secretário seria o termo idiomático adequado para sofer. Op.cit., p.251. 139 Cf. MERZ, A. E THEISSEN, G., op.cit., p.248. 140 Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus, pp.317-320. 141 Ibid., p.320. 142 Cf. SALDARINI, A. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.252-281. 143 VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.393; Para SCHMIDT, com a Lei ganhando força na sociedade judaica, “a visão da comunidade judaica seria muito exclusivamente a dos escribas.” O Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p24.

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Qoélet, Daniel, Ben Sira, além de outros textos do período atestam esse grupo

presente no processo de construção do saber judaico.144

Flávio Josefo citou os escribas em diferentes contextos: como oficiais de

todos os níveis, não exatamente como grupo organizado. Em sua obra

Antiguidades Judaicas ele promoveu a presença dos escribas em vários pontos da

história, onde o texto bíblico não apresenta.145 Josefo fez isso em vários outros

textos, sempre repetindo a função escribal como apoio aos grupos atuantes em

diferentes áreas. Sintetizando, Saldarini faz essa observação:

Josefo menciona escribas em determinado número de passagens porque eles são comuns e aceitos em seu meio social. As funções, o status social e o poder dos escribas variam de altos oficiais a humildes funcionários dos povoados. A capacidade de ler e escrever era crucial para o lugar e função deles na sociedade, mas o status exato deles dependia do monarca ou da classe governante. Josefo não apresenta os escribas como um grupo específico, distinto, com seus próprios ensinamentos, como os fariseus, saduceus e essênios. Ao contrário, os escribas eram um tipo de indivíduo social bem conhecido e aceito, que podia desempenhar diversos papéis e a quem se atribuíam diferentes status sociais.146

A grande oposição entre a comunidade de Mateus e os escribas tem a ver

com a autoridade deles como intérpretes da Lei contraposta à autoridade de Jesus,

o que é equacionado na forma como o evangelista encerra o Sermão do Monte

(7,29). Mas sempre está diante dos dois grupos a forma como devem interpretar a

tradição judaica.147

2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus

144 Cf. SALDARINI, A., op.cit., pp. 263-270. Ele comenta que o período helênico viu surgir um movimento escribal não obrigatoriamente vinculado ao sistema sacerdotal. Talvez isso se deva ao fato do escriba grego ser mais “secularizado” que o judeu. Mesmo assim, há escribas do templo citados por carta de Antíoco, no século II a.C., bem como há registros de escribas – citados como “pessoas piedosas” – no texto de 1 Macabeus (1 Mc 7,12-14). Aqui eles foram ligados aos macabeus na grande revolta macabaica. Mesmo assim não está claro qual seria essa relação. Quanto a essa questão Saldarini afirma o seguinte: “A natureza e o status dos assideus são bastante incertos também. Os assideus têm sido tratados, na maioria das vezes, como uma seita bem definida ou como um grupo coeso que mais tarde deu origem aos fariseus, essênios, escribas e talvez outros grupos judaicos do segundo século, mas nada da redação de 1 Macabeus sugere isto. A palavra para ‘companhia’ é ‘sinagoga’, uma palavra grega com amplo leque de significados. Sabemos apenas que estes judeus piedosos eram hábeis guerreiros em lutas corporais, que voluntariamente se ofereciam para lutar. É bem mais provável que pietistas seja uma designação descritiva de um amplo espectro de judeus que resistiam ativamente à helenização e defendiam a piedade, ou seja, a forma de vida deles, contra o ataque de Antíoco, e não o nome de um grupo bem definido.” P. 262. 145 Ex: Comp. 1 Sm 14,31-35 com Ant 6.6.4; 1 Cr 23,1-6 com Ant 7.14.7; etc. 146 SALDARINI, A., op.cit., p.273. 147 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G. O Jesus Histórico, p.249. No capítulo 3, faremos uma análise literária em Mateus a respeito da polêmica entre Jesus, os escribas e os fariseus.

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A compreensão geral a respeito do evangelho de Mateus nos leva

necessariamente à contextualização da perícope em estudo dentro do conjunto da

obra. Conforme já foi apontado anteriormente, a perícope não é um material

isolado, mas tem estreita relação com o conjunto da obra mateana. Vamos ver a

seguir o seu contexto temático, e o contexto integral dentro do evangelho de

Mateus, vinculada às orientações de Jesus sobre certos aspectos da Lei.

2.3.1. O contexto temático: o Sermão do Monte

Podemos considerar que a perícope de Mateus 5,17-20 está no coração do

Sermão do Monte, como esquema programático para o reino de Deus.148 A leitura

do Sermão do Monte tem sido alvo das pesquisas desde o início do século vinte,

após a abordagem liberal a respeito da interpretação das palavras ditas por Jesus.

O bloco, no qual a perícope está inserida, que compreende os capítulo 5 a 7, é o

primeiro bloco de discursos de Mateus, e é denominado “Sermão do Monte”,

desde que Santo Agostinho deu esse título ao seu comentário a Mt 5-7.149

Segundo J.Jeremias, no Sermão do Monte encontra-se o ensino catequético

para os novos discípulos, advindos do judaísmo farisaico, ou que antes eram

adeptos dos escribas.150 Por se tratar de uma Didaquê, compreende o conteúdo do

querigma, e todos os elementos fundamentais para a conduta e fé cristã. Sendo

assim, nesses capítulos temos um programa de vida em termos de discipulado. O

discípulo que conseguir viver segundo a proposta ali apresentada será considerado

o maior, um discípulo perfeito.151 Na visão judaica, o Sermão do Monte tem sido

lido como uma derashá; “que contém uma exposição de versículos extraídos do

Pentateuco, sobretudo da segunda parte do decálogo.”152

148 Considerando que faz parte da continuação do primeiro bloco da atividade de Jesus, anunciando o reino de Deus. Cf. KÜMMEL, Introdução ao NT, p.123; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.175s; MAZZAROLO, Evangelho de São Mateus, p.72; LADD, Teologia do NT, p.119, dentre outros. 149 De Sermone Domini in Monte. 150 Jeremias entende que há dois grupos específicos aqui, um dos escribas, que seriam teólogos da Torá, outros dos fariseus, leigos piedosos, com teólogos apenas na liderança. Estudos no Novo Testamento, p.99. 151 MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos, p.133s. 152 FLUSSER, “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, p.32.

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Esse discurso, da forma como está construído, jamais deve ter sido proferido

por Jesus.153 Há algumas representações importantes de Jesus como o novo

Moisés, ao subir no monte para anunciar a vontade de Deus, expressa na Lei

(Torá). Há uma reafirmação dessa Lei, com reformulações necessárias para que a

comunidade seja ainda mais fiel ao propósito de Deus do que os outros grupos

foram.154

A estrutura do Sermão do Monte é apontada como uma sucessão de temas

superpostos. De um modo geral a estrutura é relativamente fácil de ser

identificada. De acordo com Stanton155, as Bem-aventuranças (5,3-12) são uma

introdução ao sermão como um todo; os ditos sobre o “sal” e a “luz” (5,13-16)

seriam uma segunda introdução. 5,17-7,12 formam uma seção central, que abre e

fecha com o dito que trata da Lei e dos Profetas, em 5,17-20 e 7,12. Depois disso

há um epílogo, em 7,13-27, que fecha com coerência a proposta do sermão.

Quanto à estrutura interna da seção central, é relativamente fácil identificar

as partes de 5,17-6,18, como sua primeira grande parte. O dito sobre a Lei e os

Profetas de 5,17-20 é explanado e exemplificado nas seis antíteses de 5,21-47. O

verso 48 (“Portanto, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai que está nos

céus”) pode ser uma conclusão de toda a parte. Já 6,1 inicia outra parte da seção

central, em que Jesus trata da prática da religião de forma autêntica em contraste

com uma forma hipócrita, que no texto não são claramente identificados, e com a

forma gentílica de orar (6,2-18), com estruturas similares para falar da esmola

(6,2-4), da oração – com o ensino do Pai-nosso (6,5-15) e do jejum (6,16-18).

Já a segunda grande parte dessa seção (6,19-7,11) oferece maior dificuldade

na definição de sua subestrutura. A princípio parece um quebra-cabeças, pois há

ditos que tratam do dia a dia, com relação ao acúmulo de bens (6,19-23), com a

ansiedade do pão cotidiano (6,24-34), além da proibição do juízo e do estímulo a

uma confiança no Pai que está nos céus (7,1-11). De novo, há uma conclusão do

conjunto de ditos que já foi associada a um dito de Hillel (“Portanto, tudo o que

vós quereis que os homens vos façam, fazei vós também a eles; porque esta é a

153 Cf. vimos anteriormente, na questão da autenticidade. Aceitamos, nesse sentido, que o fato dos ditos serem autênticos não inviabiliza uma construção redacional pelo autor. Pelo contrário, uma simples comparação de Mateus com Lucas deixa entrever que ambos se propuseram a essa tarefa. 154 Cf. BARBAGLIO, Os Evangelhos (1), p.104ss; SCHREINER, Forma e exigências do Novo Testamento, p.289-293; MATEOS, CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.55ss; 155 STANTON, A gospel for a New people, p.297s.

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Lei e os profetas.”). Esse dito, na verdade, encerra a segunda parte da seção

central, e prepara para o epílogo.

A interpretação da Igreja a respeito do Sermão do Monte foi, desde muito

cedo, entendido como um padrão para a vida cristã. A possibilidade de viver o

sermão, de fato, caiu na esfera moral, como um padrão a ser buscado, em face das

tentações e do pecado que assedia a alma humana. Mesmo Agostinho, no entanto,

reviu sua interpretação do Sermão do Monte diversas vezes. Da mesma forma,

Martinho Lutero, séculos depois, em sua interpretação, entendeu que havia um

ideal para a vida cristã no sermão, mas que, diante da dificuldade de colocar em

prática as premissas sobre a violência, em especial, entendeu que se trata no caso

de “dois reinos”, um espiritual e outro terreno, dentro dos quais o cristão

convive.156

Ainda para Lutero a vivência da chamada “Lei de Cristo” só pode se dar

pela graça, pela qual Cristo nos aceita, mesmo sem sermos capazes de obedecer

completamente seus mandamentos. Assim a Lei é também Evangelho, e não

contradiz o espírito da nova aliança, tão cara à teologia protestante. Foi dessa

forma que J.Jeremias compreendeu o sermão, como evangelho, como ele mesmo

afirma:

O Sermão da Montanha – esta é a nossa conclusão – não é lei, mas sim Evangelho. Pois, efetivamente, esta é a diferença entre lei e Evangelho: a lei deixa o homem entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao máximo; o Evangelho, porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça deste dom inefável o verdadeiro fundamento de sua vida. São dois mundos diferentes. Para frisar bem a diferença, seria conveniente, na teologia do Novo Testamento, evitar as expressões “ética cristã”, “moralidade ou moral cristã”: este vocabulário profano é inadequado e pode dar margem a confusão. Seria melhor falar de “fé vivencial”: assim claramente se exprimiria que o dom de Deus precedeu suas exigências.157

Nos séculos XVIII e XIX, vários pesquisadores da vida de Jesus

trabalharam com a idéia da mensagem do Sermão do Monte como continuação do

judaísmo (Reimarus)158, como ética de pura moralidade (Baur)159, ou ainda uma

verdade moral eterna, desprovida de limitações históricas e totalmente livre

(Holtzmann).160

156Cf. a exposição de STANTON, A Gospel for a New People¸ p.289-292. 157 JEREMIAS, Estudos no Novo Testamento, p.112. 158 REIMARUS, Apologie oder Schutzchrift für die vernünftigen Verehrer Gottes. I. 99ss. 159 BAUR, Kritische Untersuchungen über die kanonischen Evangelien, ihr Verhältnis zueinader, ihren Charakter und Ursprung, Tübingen, 1847, p.585. 160 HOLTZMANN, Die synoptischen Evangelien, Leipisz, 1863, p.188.

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Mas foi no século vinte que a interpretação escatológica do Sermão do

Monte, ganhou corpo, especialmente a partir de A. Schweitzer. Influenciado pelas

interpretações do final do século dezenove, entendeu que a pregação ética de Jesus

era motivada pela expectativa do julgamento divino, tornando-se assim uma

preparação para ele (ética do ínterim). Ou seja, não seria um sermão para as

gerações seguintes, senão para aquela que estava vivendo naquele momento. Isso

é demonstrado, segundo ele, em outras partes do evangelho de Mateus. Com essa

interpretação abriu-se um campo de discussão em torno da relação entre o ensino

ético de Jesus e a proclamação da vinda do reino de Deus. Mesmo assim, há

tendências recentes que interpretam o sermão à luz da proclamação geral de Jesus

nos sinóticos, a qual não seria escatológica futura, mas realizada. Crossan afirma

mesmo que a pregação de Jesus tinha uma teologia da presença de Deus, uma

escatologia participativa.161

Mais recentemente a pesquisa tem pensado na importância da crítica

redacional para analisar o Sermão do Monte. Com isso identificou-se partes nos

blocos de discursos que claramente apontam para a capacidade de Mateus como

redator/autor, não somente como compilador de ditos. Isso leva a algumas

questões sobre as quais os pesquisadores têm se debruçado: O Jesus de Mateus é

só intérprete ou quer esclarecer o sentido da Lei de Moisés? A quem o sermão é

endereçado, a todos ou só aos discípulos? Jesus é o novo Moisés, que sobe no

novo monte Sinai, com a nova Lei? Que partes do sermão devem ser entendidas

literalmente, e quais devem ser interpretadas como metáforas ou hipérboles?

Afinal, o sermão é dominado por um senso escatológico (ética de ínterim) ou por

uma prática diária saudável da fé?

As questões acima estão no centro do debate e devem ser respondidas por

parte, dito a dito, separando aquilo que vem de Jesus e o que deve ser acréscimo

de Mateus a partir de sua necessidade em relação à sua comunidade. Nossa

exegese deve passar, sem dúvida, por essas questões.

2.3.2. Mt 5,17-20 no contexto integral do evangelho

161 Cf. sua conferência “A vida de Jesus”, proferida no I Seminário Internacional do Jesus Histórico, no Rio de Janeiro, em 2007.

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Mateus elaborou seu material, separando em blocos: narrativos e

discursivos. Nas narrações encontramos ditos, que na verdade apontam para uma

disputa.162 Nesses relatos, em geral, ele acompanha Mc e Lc. Nos discursos, no

entanto, é que Mt expôs sua singularidade literária. “Os cinco discursos são

composições de Mateus, que aproveitou materiais tradicionais que em geral já

estavam reunidos em unidades menores de ditos.”163 Essa reunião se deu por meio

de elementos temáticos comuns.

Ao ler os capítulos 5 a 7, percebe-se claramente a intenção do autor em

realizar todo um bloco centrado no tema da Lei, como sendo o primeiro grande

discurso de Jesus. Ao qual Mateus dá seqüência com um bloco de narrativas de

milagres. “Com isso ele quer mostrar que Jesus é o Messias da Palavra e o

Messias da Ação. Palavra e ação: uma coisa não existe sem a outra.”164 Essa

afirmação é menos problemática do que aquela que diz que os cinco discursos

apontam Jesus como o novo Moisés, pois há outras estruturas numéricas que são

mais evidentes e importantes para Mateus (o número 14 das gerações, o indicativo

duplo em várias passagens: dois cegos, dois endemoninhados, etc..).

Mateus contem um certo número de passagens que tratam da questão a

respeito da Lei (Mt 5,18ss; 23,2ss.23s.25s; 22,34-40). A questão é saber de que

forma realmente ele desejava relacionar a Lei com a sua comunidade. Por isso, em

geral, os relatos apontam ou uma revisão do sentido da Lei (como nas

advertências contra os escribas e fariseus no capítulo 23) ou uma síntese ética (a

centralidade do amor no cumprimento da Lei, no capítulo 22).165

Também é perceptível que Mateus utilizou a expressão Mh. nomi,shte

também em Mt10,34, que por sua vez tem paralelo com Lucas 12,51. Quando se

trata da Lei, e da posição de Jesus a respeito disso, Mateus trabalha mais com a

fonte Q do que com Marcos. Mesmo assim, não se pode ignorar que o tema

percorre de alguma forma o evangelho de Marcos, pois aparece a discussão sobre

a cura em dia de sábado (Mc 2,23-3,6) e a problemática da pureza ritual na

alimentação (Mc 7,1-23, utilizado apenas por Mateus), como questões pontuais.

Mas o evangelho de Marcos não registra o termo Lei (no,moj e suas variantes) em

162 Bultmann e Dibelius desenvolveram esse conceito, pelo nome de apoftegmata, ou seja, pequenas unidades narrativas cujo centro está numa palavra pontual de Jesus. 163 KOESTER, H., Introdução ao NT, p.189. 164 JEREMIAS, Estudos no NT, 92. 165 Cf. BARTH, “Matthew´s understanding of the Law”, p.62-78.

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nenhum momento, pois está sempre mais ocupado com a ortopráxis do que com o

discurso, diferente de Mateus, o qual associa ambas as atitudes.

Mas uma questão importante é saber se o dito vem de Jesus ou de Mateus. É

uma expressão do mestre, imitado pela comunidade em meio ao panorama da

reconstrução do judaísmo, ou uma projeção desta para o problema da legitimidade

de sua pregação, diante de outros modelos que “competiam” no cenário pós-70?

Para podermos perceber isso precisaremos fazer uma análise da historicidade, a

qual, apesar de não ser o cerne de nossa pesquisa, vai influenciar diretamente nas

respostas a que estamos buscando. No próximo capítulo iremos fazer essa análise,

precedida pelo estudo do texto em si, e seus aspectos literários e redacionais.

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3 Análise de Mt 5,17-20 3.1. Crítica textual e tradução 3.1.1. O texto grego de Mt 5,17-20

17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk

h=lqon katalu/sai avlla. plhrw/saiÅ 18 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o

ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh. pare,lqh| avpo. tou/ no,mou ( e[wj a'n

pa,nta ge,nhtaiÅ 19 o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn tw/n evlaci,stwn

kai. dida,xh| ou[twj tou.j avnqrw,pouj( evla,cistoj klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n

ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai. dida,xh|( ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a|

tw/n ouvranw/nÅ 20 le,gw ga.r u`mi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh

plei/on tw/n grammate,wn kai. Farisai,wn( ouv mh. eivse,lqhte eivj th.n basilei,an tw/n

ouvranw/nÅ

3.1.2. Crítica textual166

O verso 17 não apresenta variantes. A transmissão desse versículo foi imune

a alterações, omissões ou acréscimos. Talvez se possa relacionar essa postura com

o fato de tratar-se de uma afirmação cristológica, e por isso, considerada mais

digna de atenção que uma narração comum. Dois termos têm bastante peso na

tradução desse versículo: katalu/sai e plhrw/sai.

O versículo 18 apresenta três variantes que devem ser comentadas. Na

primeira, o acréscimo de “e os Profetas” no genitivo (kai twn profhtwn)167. Há

nela uma tentativa de harmonização com o verso 17, que traz a mesma forma de

articular Lei e Profetas (porém no acusativo).

166 De acordo com o texto NESTLÉ-ALAND, 27ª. edição. 167 De acordo com Θ, f 13, o manuscrito 565, e outros manuscritos que divergem do texto majoritário, além da citação de Irineu167, todos do tipo cesareense.

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Uma segunda variante no mesmo versículo omite a palavra an, que é uma

partícula verbal que completa a frase (que), e tem “significado dubitativo ou

condicional ou eventual em geral,”.168 É uma variante originada no texto do tipo

alexandrino, mas com pouquíssimas testemunhas.

Outro acréscimo constatado aparece no códice latino “c”169, que afirma

caelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt, citando Mt 24,35:

“o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não irão passar” (o` ouvrano.j kai. h`

gh/ pareleu,setai( oi de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsin)) Parece ser uma inserção a

partir de um comentário litúrgico, talvez uma nota de margem, para referência de

relação entre os dois textos, que depois foi incorporada como parte integrante.

Sem valor para dar autoridade ao acréscimo, no entanto, essa relação nos ajuda a

perceber como a perícope foi trabalhada em diferentes momentos da história.170

Avaliação das variantes do v.18 pelo critério externo: a primeira variante

sofre diante dos seguintes problemas: é bastante atestada, mas em apenas um tipo

de texto, o cesareense, que é considerado intermediário entre o tipo alexandrino

(mais puro) e o ocidental (mais livre). As variantes atestadas por ampla expansão

geográfica são preferíveis àquelas que constam apenas de um pólo. Também são

manuscritos recentes, e a regra entende que manuscritos mais antigos devem ser

preferidos. Na verdade, são melhores testemunhas para Marcos do que para

Mateus.171

A segunda variante ainda tem a seu favor o testemunho de textos antigos do

tipo alexandrino, mas a ausência dessa variante no sinaítico depõe contra os

demais manuscritos. Pelo contrário, esse importante Uncial apresenta a omissão

do termo. Acontece a mesma situação da variante anterior, pois não é constatada

numa esfera geográfica maior. Dificuldade maior ainda encontra última variante,

pois é atestada apenas em um códice, o que confere pouco peso a ela.

Avaliação pelos critérios internos: em duas variantes há uma

intencionalidade, no sentido de ser feita uma harmonização do texto. Na primeira,

168 RUSCONI, “a'n”. In: Dicionário Grego do Novo Testamento, p.38. Essa diferença aparece na maiúscula B*, l 2211, além de alguns outros poucos manuscritos (B* (séc. IV), o lecionário 2211 (séc. X), além de alguns outros). 169 Códice latino “c” (séc.XII/XIII). Esse códice é dos séc. XII/XIII, mas segue rigorosamente as mesmas porções de textos do códice “e”, que se originou no séc. V. 170 Cf. O texto de Nestlé-Aland se apóia nos demais manuscritos que atestam esse trecho de Mateus, e que contém as melhores testemunhas dele. NESTLÉ-ALAND, p.58 da introdução. 171 Cf. WEGNER, Exegese do NT, pp.44-47.

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harmoniza-se com o verso 17, onde a Lei e os Profetas figuram juntos. Na última,

há uma aproximação com o texto paralelo, presente no sermão do monte. Pelo

critério de se preferir a leitura mais breve, além do critério que prefere textos não

harmonizados com paralelos, essas variantes devem ser desconsideradas como o

texto mais original. A segunda variante poderia entrar, considerando que torna a

leitura mais difícil e breve (preferível).

Conclusão: não há motivos para preferir qualquer uma das variantes, com

exceção, talvez, da segunda. Por isso vamos acatar o texto de acordo com Nestlé-

Aland. Alguns aspectos do texto devem ser ressaltados, para fins de tradução:

avmh.n, a expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a e pa,nta ge,nhtai.

O versículo 19 apresenta apenas uma variante, na verdade, uma omissão do

trecho “aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos

céus”.172

Avaliação da variante: pelos critérios externos, os manuscritos que

demonstram essa variante são de boa qualidade, e bastante antigos. Também

expressam mais do que uma única área geográfica, pois têm representantes do

texto alexandrino e do ocidental.173 O problema é que nem os melhores papiros,

nem o Códice Vaticano (B) atestam essa forma. O mesmo acontece com as

testemunhas do texto Ocidental, em que os papiros não atestam essa forma. Não

há, assim, condições de avaliar pelo critério externo.

Pelo critério interno, pode-se presumir que essa variante tenha mais peso do

que os demais, pois o texto mais breve deve ser preferível, e nesse caso simplifica

o versículo. Por outro lado, precisamos verificar se, teologicamente, esse trecho se

coaduna com o restante do sermão do monte, onde a exaltação está nas pequenas

coisas. O cumprir a Lei não é motivo para auto-justificação, pois esse é um dos

motivos da crítica de Jesus aos Fariseus. Ao mesmo tempo, no entanto, faz parte

do estilo de ensinamento de Jesus a antítese, e o paralelismo de membros.

Considerando, então o critério externo e interno, tanto poderíamos deixar o

v. 19 sem o trecho como mantê-lo. Como as muitas traduções do texto inserem

esse trecho, vamos colocá-lo entre chaves [], para distinguir do restante do

172 De acordo com o códice א* (num texto original diferente das correções existentes), D (séc. V), W (séc. V) e um manuscrito da versão copta boaírica (talvez séc. IV). O texto adotado por Nestlé-Aland utiliza os demais manuscritos que testemunham esse trecho do Evangelho de Mateus. 173 O Códice Sinaítico (א) é um dos mais antigos e melhores textos do NT, caracterizado, sobretudo, por sua brevidade e linguagem mais rude.

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versículo, e posteriormente analisarmos sua funcionalidade no pensamento geral

da perícope.

O versículo 20 tem uma variante só: não consta do uncial D. Considerando

o critério externo, pois no caso o critério interno não nos ajudaria, devemos

desconsiderar essa variante, pois um único manuscrito não deve ser referência

para a leitura encontrada em todos os demais. O texto de Nestlé-Aland, também

nesse caso, se baseia em todas as testemunhas do Evangelho de Mateus, o que em

si já desautoriza essa variante. Vamos manter o versículo e adotar o texto corrente.

Considerados os fatores textuais apresentamos a seguir nossa tradução do

texto.

3.1.3. Tradução de Mt 5,17-20

17 Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas174; não vim

para anular, mas para cumprir. 18 Em verdade vos digo: até que passem o céu e a

terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots)175 da Lei passará, sem que

tudo aconteça. 19 Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos,

mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no

reino dos céus; [aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino

dos céus.] 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos

escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.

3.2. Análise Literária

A análise literária de Mateus já descreveu que, de uma forma geral, a obra

foi elaborada em blocos que alternam discurso e ação, conforme já apontado no

capítulo anterior. A seguir, faremos a análise específica do evangelho, em relação

à perícope de Mt 5,17-20

174 to.n no,mon h' tou.j profh,taj. Considerando o ambiente aramaico da religião de Jesus, é mais coerente considerar que a expressão já está traduzida do hebraico “Torá ve Nebîim” (~yaiybin>w> hr;wOt). Na tradução e em diferentes partes do trabalho adotaremos o termo “Lei e Profetas”, levando em consideração esse aspecto do texto. 175 A expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a (um iota ou um pequeno sinal) deve ser concebida dentro do universo lingüístico semita, e por isso pode ser traduzido por “um yod ou um qots”. O yod é a menor letra do alfabeto hebraico, que não têm vogais, enquanto o qots (pequeno sinal) era uma pequena marca utilizada para adornar o texto da Torá. BROWN, R.E., e FITZMEYER, J., Comentário Bíblico “San Jerônimo”, p.185.

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3.2.1. Delimitação e estrutura da perícope

A perícope de Mt 5,17-20 está inserida no grande bloco de discurso

conhecido como “Sermão do Monte” ou “Sermão da Montanha”. Falar dessa

perícope sem falar do bloco literário onde está inserida é quase impossível, pois

seria ignorar o papel dessa fala dentro do programa de ensino de Jesus quanto ao

reino de Deus (dos Céus).

A delimitação da perícope é aparentemente simples. Trata-se de um material

cuja redação é claramente perceptível quando se observa o conjunto de textos do

sermão do monte em contraste com os demais evangelhos.176 A análise redacional

perceberá essa questão, mas desde já podemos apontar os aspectos literários

presentes no texto. Apesar da redação de Mateus juntar diversos ensinamentos

nesse bloco (cap.5-7), é possível delimitar as pequenas unidades presentes no

discurso, mesmo diante do trabalho redacional.

No entanto, a aparente clareza para delimitar o trecho recai numa questão:

5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o conjunto de

interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma afirmação

contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o tema da Lei

é complexo e impreciso? Vamos analisar melhor esse aspecto mais à frente na

pesquisa.

O trecho que antecede (5,13-16) é a continuação da grande introdução do

sermão do monte. Nela Jesus afirma os discípulos como sal da terra e luz do

mundo. Parece encerrar o assunto com a expressão “assim resplandeça a vossa luz

diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso

Pai, que está nos céus”. O trecho posterior inicia uma longa seção que trata de

diferentes posicionamentos de Jesus no tocante à Lei Mosaica, em geral alterando

a maneira como se deve agir. A fórmula típica desse trecho é “Ouvistes o que foi

dito pelos Antigos; eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti evrre,qh toi/j avrcai,oij],

176 De fato, a maioria dos autores trabalha essa perícope com esses limites, mas relacionada com o restante do “Sermão da Montanha”, cf. MAZZAROLO, I., O Evangelho de São Mateus, p.83s; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.189s; BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.117s; LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.78; MARGUERAT, D., Le jugement das l’Évangile de Matthieu; BONNARD, P., Évangile selon Saint Matthieu, p.60; TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.239ss; BANKS, R., “Matthew´s understanding of the Law”, p.226.

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que sintetiza a idéia jurídica e teológica presente no conjunto de sentenças, num

sistema antitético177.

Assim colocada, a perícope de 5,17-20 tem função de introdução da série de

antíteses legais do sermão do monte (5,21-48). Como função de introdução, o

texto tem muito a ver com a análise global do evangelho de Mateus a respeito da

verdadeira essência da Lei e da obediência a ela. Uma estrutura possível do trecho

é a seguinte:

17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;

não vim para anular, mas para dar pleno sentido.

18: Em verdade vos digo:

até que passem o céu e a terra,

nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots) da Lei passará,

sem que tudo aconteça.

19: Portanto,

qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que

insignificante, e assim ensinar às pessoas,

será chamado o menor no reino dos céus;

aquele que observar e ensinar,

será chamado o maior no reino dos céus.

20: Porque vos digo que,

se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus,

de modo nenhum vocês entrarão no reino dos céus.

Nessa estrutura percebe-se um paralelismo permeando o texto, característica

do ensino de Jesus.178 No v.17 encontramos a idéia inicial de afirmar que não veio

para destruir sendo encerrada com a repetição de katalu/sai, para em seguida

apresentar a idéia de dar pleno cumprimento com o verbo plhrw/sai.

No v.18 verifica-se duas repetições nas três afirmações que seguem a avmh.n

ga.r le,gw u`mi/n\ A primeira afirmação é espelho para as duas seguintes. Primeiro

177 Essa expressão é encontrada em diversos autores, desde que J. Jeremias analisou o estilo dos ditos de Jesus a partir das estruturas semíticas, das quais o paralelismo é a mais presente no Novo Testamento. Ele mesmo considera que tanto Mt 5,17 quanto o trecho de 5,21-48 devem ser tratados como paralelismo antitético. Teologia do Novo Testamento, p.45 et.seq. W. Carter utiliza a expressão “seis ‘por exemplo’” para essa unidade que vai de 5,21-48. Evangelho de Mateus, p.194 et.seq. 178 Cf. WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p.90s.

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repete que nada passará - pare,lqh| - na segunda afirmação, comparando o fato de

que nem as menores partes da Lei perderiam a validade antes que chegasse o fim

do céu e da terra. Depois repete a fórmula e[wj a'n, como abertura da idéia de que

tudo acontecerá antes que o céu e a terra deixem de existir.

O v.19 tem paralelismo em duas partes do texto. Primeiro, ligando a idéia de

que aquele que violar o menor - evlaci,stwn – dos mandamentos será o menor -

evla,cistoj – no reino dos céus. O segundo paralelismo está na repetição da

expressão klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/nÅ Como cada um será

considerado no reino dos céus vai depender de sua atitude diante da Lei.

Joachim Jeremias analisou o paralelismo antitético nos ensinos de Jesus, e

percebe nessa perícope a ocorrência em 17 (a//b), 19 (a//c)179, conforme esquema

a seguir: 17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;

não vim para anular, mas para dar pleno sentido.

19: Portanto,

qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que

insignificante, e assim ensinar às pessoas,

será chamado o menor no reino dos céus;

aquele que observar e ensinar,

será chamado o maior no reino dos céus.180

Nesse tipo de ensino aparenta o semitismo subjacente ao ensino de Jesus.

Para Jeremias, o paralelismo antitético nos aproxima das ipsissima verba de Jesus,

acima de qualquer outro estilo de pregação.181 Jeremias também pesquisou o ritmo

na fala de Jesus (no aramaico), para verificar uma tendência de estilo oral. Dentre

os diversos tipos (quatro, na verdade)182 analisados, ele apontou o v.17 como

exemplo de métrica “quinária”.183

179 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. Segundo C.F. Burney o paralelismo antitético “caracteriza o ensino de Nosso Senhor em todas as fontes dos evangelhos”. The Poetry of Our Lord, p.83. 180 Colocamos em itálico os termos antitéticos, e em negrito os termos repetidos, mas em oposição. 181 JEREMIAS, J., op.cit., p.46. 182 Ritmos de quatro acentos, três acentos, dois acentos e a métrica quinária, cf. Ibid., p.53. 183 Segundo Jeremias, “o ritmo especial é o da métrica ‘quinária’, que se apresenta assim: 3+2, com variação ocasional de 2+2 e 4+2. Originariamente era usada na lamentação dos mortos (qina), na qual a carpideira que dirigia o canto fúnebre entoava um lamento mais longo (ritmo de três acentos), ao qual as outras carpideiras respondiam com uma entonação mais breve (ritmo de dois acentos”. Ibid., p.63.

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Segundo Jeremias, no verso 18 há uma hipérbole, um estilo de linguagem

muito comum em Jesus, usado para chamar a atenção dos ouvintes.184 Além disso,

chama a atenção o uso do Amém, “para o qual não existe paralelo em toda a

literatura do judaísmo antigo nem do resto do Novo Testamento”.185 Mateus é

quem mais faz uso dessa expressão, mas ela é comum aos demais evangelhos,

inclusive o joanino. O uso da expressão avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ no evangelho de

Mateus, exatamente assim ou sem a palavra ga.r ocorre 30 vezes além dessa de

5,18186, enquanto ocorre 14 vezes no evangelho de Marcos, 8 vezes em Lucas e 25

vezes em João, o evangelista que utiliza o amém repetido na fórmula, para dar

maior ênfase. Sem dúvida, é digna de análise a importância que Mateus dá a essa

expressão.

Para uma análise das fontes utilizadas por Mateus nessa perícope, vamos

colocar o quadro sinótico da perícope de Mt 5,17-20 de acordo com Aland:187

Mateus 5,17-20 Lucas 16,16-17 17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n

no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai

avlla. plhrw/saiÅ

16 ~O no,moj kai. oi profh/tai me,cri VIwa,nnou\

avpo. to,te h basilei,a tou/ qeou/ euvaggeli,zetai

kai. pa/j eivj auvth.n bia,zetaiÅ 18 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o`

ouvrano.j kai. h gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh.

Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou( e[wj a'n pa,nta

ge,nhtaiÅ

17 Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n

gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an

pesei/nÅ

19 o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn

tw/n evlaci,stwn kai. dida,xh| ou[twj tou.j

avnqrw,pouj( evla,cistoj klhqh,setai evn th/|

basilei,a| tw/n ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai.

dida,xh| ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a|

tw/n ouvranw/nÅ

20 le,gw ga.r umi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| umw/n

h dikaiosu,nh plei/on tw/n grammate,wn kai.

Farisai,wn( ouv mh. eivse,lqhte eivj th.n

basilei,an tw/n ouvranw/nÅ

184 Cf. Ibid., p.68. 185 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.77. 186 Mt 5,26; 6,2.5.16; 8,10; 10,15; 10,23; 10,42; 11,11; 13,17; 16,28; 17,20; 18,3.13.18.19.23.28; 21,21.31; 23,36; 24,2.34.37; 25,12.40.45; 26,13.21.34. 187 NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.52.

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Há uma unidade básica na perícope, mas que demonstra rupturas e ligações

ligadas redacionalmente. O v.17 é uma afirmativa fechada em si mesma, que pode

inclusive ser analisada em separado do restante da perícope. O v.18 está

relacionado ao assunto no sentido geral, mas é proveniente de Q (Cf. abaixo) e é

um logia independente. O v. 19 conecta-se melhor com o 17, continuando o

raciocínio de cumprir ou não cumprir a lei. Apenas para ilustrar o que afirmamos

antes, o v. 20 também desloca o raciocínio do cumprimento da Lei para a prática

da justiça dos escribas e fariseus (o que em essência é a mesma coisa, com

terminologia diferente).

Há um pequeno ponto de contato entre ambos na expressão de que não

passarão nem céu nem terra antes que a menor partícula da Lei se cumpra.

Aparentemente, então, o v.18 de Mateus seria proveniente de Q, usado também

por Lucas (16,17), mas de maneira totalmente diferente. A perícope lucana está

inserida no tema a respeito de João Batista e de como se deve ter acesso ao reino

de Deus.188

Quanto aos versículos 17, 19 e 20, são material exclusivo de Mateus. Por

isso mesmo pode-se falar numa coesão maior entre os v. 17 e 19, com o v.18

sendo um arranjo redacional. O que fica nesse caso é o seguinte: será que Mateus

usou esse dito no centro da perícope para dar maior autoridade ao restante?

Considerando que Q é uma fonte conhecida também em outras comunidades, a

inserção dessa logia é bastante justificada.

188 Curiosamente, esse dito de Q presente em Mateus e Lucas não está no mesmo bloco literário, ou seja, enquanto Mateus colocou-o numa perícope do Sermão do Monte, Lucas trabalhou esse dito fora do contexto do sermão da planície, que é o correlato lucano para o Sermão do Monte. Como indicou J. JEREMIAS: “O Sermão da Montanha tem seu correlato em Lucas, a saber, o Discurso da Planície (Lc 6,20-29). (...) Todavia, o Discurso da Planície é mais curto que o Sermão da Montanha. Disso se deve concluir que temos no Discurso de Lucas uma forma mais antiga do sermão”. Estudos no Novo Testamento, p.92.

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Por outro lado, Boismard apresenta a seguinte análise sinóptica:189 Mt

5 17 N'allez pas croire que je sois venu abolir la Loi ou les Prophètes : je ne suis pas venu abolir, mais accomplir. 18 Car verité je vous (le) dis : avant que passent le ciel et la tierra un seul iota ou un seul trait ne passera pas, de la Loi, avant que tout soit arrivé. 19 Celui donc.... 20 Car je vous...

Mt

24 34a En verité je vous dis

que ne passera pas cette

génération... 35 Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles ne passeront pas.

34b...avant que tout cela soit arrivé.

Mc

13 30a En vérité je vous dis que ne passera pas cette

génération... 31 Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles

ne passeront pas.

30b...avant que tout cela soit arrivé.

Lc

21 32a En Vérité je vous dis

que ne passera pás cette

génération...

33 Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles ne passeront pas.

32b...avant que tout cela soit arrivé.

Lc

16 17 Mais il est plus facile

que le ciel et la terra passent,

qu’un seul trait de la Loi ne tombe.

A sinopse de Boismard indica outra proposta, essa com um dito registrado

no próprio Mt, Mc e Lc: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem

que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não

passarão” [avmh.n le,gw u`mi/n o[ti ouv mh. pare,lqh| h genea. au[th e[wj a'n pa,nta tau/ta

ge,nhtai]. Nos três evangelistas, esse dito está inserido no chamado “sermão

profético”, na verdade um texto de cunho escatológico, com certa abordagem

apocalíptica.190 Goppelt trabalha com a idéia de que Mateus introduziu a última

parte da paralela de 24,34b (“sem que tudo isto aconteça” [ [wj a'n pa,nta tau/ta

189 BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles, p.46. 190 Cf. CARTER, W., O Evangelho de Mateus, p. 580ss. A. Schweitzer foi quem lançou a idéia de Jesus como um pregador apocalíptico, o que foi muito criticado pela academia. Käsemann trabalha a questão, tentando resgatar o sentido de uma mensagem escatológica em Mateus como forma de alertar contra a anomia. Essa mensagem teria em mente um juízo escatológico. “Os inícios da Teologia Cristã”, in: Apocalipsismo, pp.231-254. K. BERGER admite que Mt 5-7 apresenta uma “motivação claramente escatológica”. Formas Literárias do NT¸ p.120.

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ge,nhtaiÅ]), “para ligar esse dito com o versículo precedente, o v.17.”191 O paralelo

em Lucas (16,17) não tem essa última expressão, como se pode verificar na

análise de Aland, acima.

Isso nos levará, inevitavelmente, a uma questão: até onde se pode pensar o

dito em termos escatológicos? Sabendo que Jesus pregava e pensava em

categorias escatológicas, não é de se admirar a similaridade de termos e idéias

entre esses textos. Por outro lado, a fonte Q tem sido caracterizada por uma

abordagem escatológica, pelo menos em parte do material.192 Assim, o dito de Mt

5,17-20 teria por trás de si uma orientação escatológica, que vamos analisar mais

profundamente no capítulo 3.

3.2.2. Forma e Gênero Literário

Do ponto de vista de gênero e forma, certamente estamos diante de material

discursivo, mas vamos nos aprofundar a fim de perceber de qual tipo de discurso

estamos tratando, para situar melhor o Sitz im Leben193 de Mt 5,17-20. Os

evangelhos foram bastante pesquisados nesse campo, e há algumas posições a

respeito da forma.

De um modo geral, Bultmann qualifica a perícope como um dito do gênero

profético,194 proveniente de material de Q, e retrabalhado na tradição mateana. Ao

considerar esses ditos isoladamente, percebe-se que todos estão no subgênero de

ditos proféticos, de acordo com a classificação de U. Wegner:195

� no v. 17 um dito iniciado com h=lqon (“eu vim”)

� no v.18 um dito introduzido por avmh.n (“em verdade”).

191 GOPPELT, L., Teologia do NT, p.132. 192 MACK, B.L., O Evangelho Perdido, pp.145-157. 193 Termo bastante utilizado por Dibelius e Bultmann e sua Formgeschichte. Wegner traduz por lugar vivencial, e explica: “é uma expressão que procura reproduzir as palavras alemãs ‘Sitz im Leben’. Sitz significa ‘lugar/assento’ e im Leben quer dizer ‘na vida’. Literalmente ‘Sitz im Leben’ significa, pois, ‘lugar na vida’ = ‘lugar vivencial’. Alguns autores preferem outras traduções, como ‘lugar de origem’, ‘situação geratriz’, ‘ambiente vital’ ou ‘contexto histórico’.” Exegese do NT, p.171. Em nossa pesquisa vamos nos manter o termo no alemão, por se tratar de termo largamente utilizado pela exegese. 194 BULTMANN, R. L’histoire de la Tradition Synoptique, p.519. 195 De acordo com a exposição de WEGNER sobre as conclusões de Bultmann, Exegese do NT, p.201. De fato, nesse trecho de sua pesquisa, Bultmann só trabalhou com o material sinóptico – atestado em Mt, Mc e Lc – mas por analogia, acreditamos que essas formas possam ser aplicadas ao texto em questão. BULTMANN, op.cit., p.519.

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� nos v. 19 e 20 ditos de correlação escatológica (19: “aquele, porém, que

os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus”; 20: “se a

vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum

entrareis no reino dos céus.”);

Segundo essa classificação, o Sitz im Leben dessa perícope seria o discurso

parenético na comunidade. Através das palavras de Jesus a comunidade receberia

instruções, conselhos e mandamentos. Teriam também a função de auxiliar na

comunidade uma descrição a respeito da natureza da pessoa de Jesus.196

Jeremias trabalha em outra direção, pois ao analisar o Sermão do Monte

como um todo ele enxerga ali uma Didaquê, ou seja, o texto nasceu no ambiente

da catequese dos novos discípulos da comunidade. Ele afirma também que o v.17

é um dito sobre a própria pessoa de Jesus, bem como enquadra o v.18 na mesma

categoria.197 Seguindo essa lógica, os v. 19 e 20 estariam direcionadas para a

polêmica com os fariseus e escribas, e seria uma introdução para a exposição a

respeito no trecho de 5,21-48. Esse dito de Jesus apresenta-se de tal maneira em

Mateus – inserida no grande conjunto do Sermão do Monte - que ganha ares de

halaká cristã.198 Flusser, no entanto, compara o Sermão da Montanha como uma

derashá, e o método exegético de Jesus, comparável a um midrashim rabínico.199

No extenso estudo de K. Berger sobre as formas literárias do Novo

Testamento, que atualizou a pesquisa de Bultmann, há diversos aspectos a serem

apontados. De forma abragente, ele apontou o Sermão do Monte como um gênero

de discurso, “composto de material variado.”200 Para Berger, aliás, o trecho 5,17-

20 faz parte de um todo bem delimitado, uma grande perícope que envolve 5,2-48.

O material variado a que Berger se refere faz parte do tipo de texto simbulêutico e

epidíctico. 201 Ambos os gêneros permeiam a perícope, que parece ter nascido na

196 Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, p.199. 197 Cf. JEREMIAS, J., Estudos no NT, p.98. A análise do Amém como expressão exclusiva de Jesus foi deixada para o momento da Análise da Historicidade do texto, cf. infra. 198 Cf. SCHREINER e DAUTZENGERG, Formas e Exigências do NT, p.289. 199 FLUSSER, D., “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, p.32. 200 BERGER, K., Formas literárias do NT, p.67. J.M.Robinson enxergou nos textos de Q ainda outro gênero, próximo daqueles estudados por Bultmann e Berger. Ele percebeu que na literatura antiga os conjuntos de ditos eram em geral atribuídos a sábios, como os antigos conjuntos sapienciais egípcios ou israelitas. Por isso batizou-os de logoi sofôn (ditos dos sábios). Assim, se o v.18 realmente pertencer a Q, e tudo indica que seja, então também compartilha esse gênero. 201 BERGER conceitua assim os textos simbulêuticos: “pretendem mover o ouvinte a agir ou a omitir uma ação. O nome vem do grego symbouléomai = aconselhar. Frequentemente dirige-se à segunda pessoa. A forma mais simples é a admoestação; a mais complexa, a argumentação simbulêutica.” Já os textos epidíctico são definidos como aqueles que “tencionam impressionar o

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forma oral, para depois ter sido registrada por escrito. Como unidade própria, Mt

5,17-20 é identificada como um discurso normativo, que é um ensino

antropológico-ético. Ali se trabalha a validação da Lei.

Analisando as partes da perícope, podemos perceber no v.19 o gênero

simbulêutico, um dito com cunho parenético. Sua forma seria de uma admonição

no esquema “ato-efeito”, uma promessa condicional de salvação ao lado de

anúncios condicionais de desgraça: uma conclusão bipartida. Há também um

anúncio condicional de perdição, numa fórmula de canonização, à qual o v.18 é

incluído. Ainda no esquema “ato-efeito”, o v.20 aponta para um dito sobre o

“entrar” no reino de Deus e sobre “herdar” e “ver”, sendo uma frase condicional.

Há, no entanto, uma possibilidade de ver na perícope o gênero epidíctico, na

forma de um dito que contenha o “eu” do enviado, especialmente na expressão

“Eu vim...”, presente no verso 17.202

A característica geral do gênero simbulêutico está expressa em seu uso de

parênese, que Dibelius definiu como uma série de admonições de conteúdo

ético.203 Para compreender adequadamente seu sentido, especialmente no caso do

Sermão do Monte, é preciso analisar a forma como se dá a parênese no contexto

jurídico judaico. O sistema legal judaico pouco tinha a ver com o direito romano,

e os discursos de Jesus que tratam dessa matéria não podem ser interpretados à luz

deste. Em geral, no tempo de Jesus, o direito se fundamentava nas grandes

autoridades que interpretavam a Lei. Aqui temos um dado que nos ajudará a

aprofundar a nossa compreensão sobre a relação entre Jesus e a Torá, e sua

exigência de justiça.

Trilling204, por sua vez, analisa cada versículo da perícope como tendo uma

forma própria: o v.17 como uma sentença teológica na forma do EU; o v.18 uma

palavra profética; o v.19 como uma sentença legal; e o v.20 também como palavra

profética, mas que adiciona uma regra de piedade. Com isso cada verso teria um

Sitz im Leben próprio.

O panorama geral da perícope, enfim, nos leva a um Sitz im Leben cuja

principal função é parenética, pois pretende orientar a vida da comunidade à luz

leitor, para fazê-lo sentir admiração ou repulsa; sua sensibilidade para valores é abordada na esfera pré-moral”. Op.cit., p.21. 202 BERGER, K. op.cit., p.111 passim. 203 Cf. DIBELIUS, Der Brief des Jacobs, p.16s. 204 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.265.

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do modelo que Jesus representa para ela, que pode ser num nível de catequese,

como propõe J. Jeremias.

3.3. Análise redacional

No capítulo anterior pudemos ver, de forma panorâmica, o objetivo de

Mateus em sua redação, e na estrutura que moldou para atender a esse objetivo.

Aqui desejamos discutir a redação específica de 5,17-20, à luz de seu contexto

imediato205. Antes porém, analisaremos a atividade redacional mateana, em

relação às fontes utilizadas.

3.3.1. Aspectos redacionais do evangelho de Mateus

O evangelho de Mateus apresenta sinais de atividade redacional pela forma

como ele utilizou os materiais que tinha à disposição. Ele os modificou e agrupou

segundo um determinado objetivo que transparece durante a obra. Os discursos

formam blocos temáticos, e cada um é encerrado com a fórmula “e aconteceu que,

concluindo Jesus este discurso” [Kai. evge,neto o[te evte,lesen o` VIhsou/j tou.j lo,gouj

tou,touj(], ou semelhantes (em 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1). Uma análise

sinóptica percebe material comum entre Mateus, Marcos e Lucas, o que conferiu

aos três a denominação de evangelhos sinóticos.206 No entanto, dois aspectos há

muito têm sido trabalhados: há partes em cada um dos três (inclusive Mc) que não

foram utilizadas pelos outros dois; e mesmo o material comum muitas vezes

apresenta diferenças e alterações. Isso deixou claro que os evangelistas tinham,

cada um, objetivo teológico e literário próprio, e que não eram meros

compiladores, mas redatores com plena capacidade de interferência no texto, ou

na tradição.207

205 A análise da perícope à luz do contexto temático e integral foi feita no capítulo anterior, p.43-49. 206 Esse termo foi atribuído aos escritos dos três primeiros evangelhos pelo pesquisador alemão J.J. Griesbach, em sua obra Synopsis evangeliorum [sinopse dos evangelhos], publicada em 1776. 207 Sobre a questão sinótica ver: A clássica obra de BULTMANN, R. L’historie de la Tradition Synoptique. Uma obra que trás vasta bibliografia para aprofundamento é KÜMMEL, W.G. Introdução ao NT, pp.36-93. Duas obras introdutórias em português que dão uma visão panorâmica: DAUTZENGERG, SCHREINER, Formas e Exigências do Novo Testamento, p.256-273; MARCONCINI, B., Os Evangelhos Sinóticos, p.69-84.

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Com relação à dependência literária, a pesquisa atual tem aceitado de forma

bastante ampla a tese de que Mateus utilizou material de Mc e Q – a teoria das

duas fontes208. A grande questão está em torno do material próprio – a fonte M, ou

tradição M. Para alguns ela pode ser na verdade parte do material de Q numa

versão ampliada, que Lucas não aproveitou.209 Outros defendem que a fonte M

teria sido uma terceira fonte escrita, por se tratar de vasto material.210 Uma

terceira posição, no entanto, defende que o material exclusivo de Mateus seja

proveniente da tradição oral.211 A dificuldade está em como comprovar essa fonte.

Alguns autores pensam que a correlação estaria na forma como Mateus cita o AT,

em trechos exclusivos (ex: 1,23; 2,15.18s.23; 4,15s; 8,17; 12,18-21; etc.). Todas

elas são iniciadas pelas fórmula de cumprimento “para que se cumprisse o que foi

dito da parte do Senhor pelo profeta” [i[na plhrwqh/| to. r`hqe.n u`po. kuri,ou dia. tou/

profh,tou le,gontoj(], ou semelhantes a essa. Mas mesmo aí há um problema. A

análise desse material demonstrou que, na verdade, foi Mateus quem compôs

essas fórmulas, e não as teria colocado a partir de alguma fonte212. Seria assim o

trabalho redacional próprio do evangelista.

3.3.2. Atividade redacional em Mt 5,17-20

Na perícope de 5,17-20 temos uma pequena unidade redacional que,

conforme vimos na análise literária (2.2.1) tem, como fonte, material comum a Lc

16,17, provavelmente advindo de Q, mas que também guarda semelhanças com

outra perícope (Mt 24, 34-35), paralela a Mc 13,30-31 e Lc 21,32-33. Os v.17, 19

e 20 pertencem ao material próprio de Mateus, e mesmo podendo ser de diferentes

momentos, foram reunidos em torno da temática do cumprimento da Lei. Mas

como se pode analisar a redação dessa perícope?

Redacionalmente, Bonnard considera que os quatro versos de 5,17-20 não

são coerentes entre eles, nem na forma nem no conteúdo, o que transparece um

208 Desenvolvida pelo filólogo C. Lachmann no século XIX, e muito aceita hoje em dia pelos exegetas, mesmo considerando alguns problemas e questões não resolvidas, como o material exclusivo de Lc (quase do tamanho do evangelho de Mc) e a citação de Papias a respeito de um texto de Mateus em aramaico, nunca encontrado. 209 Cf. as teses de Bacon, J.P.Brown e Strecker. 210 Cf. MANSON, T.W., The Sayings of Jesus; e as teses de Johnson, Henshaw, Kilpatrick, et all. 211 Kümmel defende essa tese, Introdução ao NT, bem como Albertz, Guthrie, Heard, Dahl. 212 Cf. Grundmann, Lohmeyer, Bacon, Strecker.

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arranjo redacional de diversos elementos da tradição prémateana.213 Marguerat

considera essa perícope uma das mais difíceis do ponto de vista literário e

redacional, pois com exceção do v.18, que pode ser comparado diretamente com

Lc 16,17, não há clareza no restante do material quanto ao uso de fontes e arranjo

redacional. Os indícios de trabalho redacional se dão por conta da cadeia de

conjunções que articula o pensamento geral da perícope ( “ga,r” 18, “oun” 19a,

“de,” 19b, “ga,r” 20).214 Seguindo a análise de Trilling, na seção sobre a forma do

texto (3.2.2), há indícios de atividade redacionais, pois Mateus junta num pequeno

conjunto de sentenças expressões que, a despeito da aproximação temática, são

oriundas de ambientes específicos, e respondem a questões diferentes, quando

analisadas isoladamente. Se as sentenças, isoladamente, vêm de Jesus, foram

trabalhadas em conjunto pelo evangelista para tratar da questão mais ampla a

respeito da Lei.215

Barth216, por outro lado, entende que os vv.18 e 19 formam uma unidade,

pois o salto entre o v.19 e o 20 é grande demais para ser uma redação mateana, ou

seja, Mateus já os teria encontrado da forma como estão. Já o v.17 parece uma

construção de Mt, ao mesmo tempo em que permite uma interpretação para o

v.18. Ambos são parte de uma costura redacional. Seja como for, de acordo com

Barth, o núcleo central 18 e 19 seria mais antigo, com complementos posteriores,

os v. 17 e 20. Bultmann já havia diagnosticado que o v.20 é uma construção do

evangelista, elaborada para introduzir a série de antíteses de 5,21-48.217

Já Pregeant aborda a questão redacional levando em conta todo o conjunto

ao qual 5,17-20 está ligado: as antíteses (5,21-48) e também as orientações de

Jesus para a comunidade (6,1-18). Ele considera que a melhor hipótese para a

redação está na relação v.17 ligado às antíteses (como se deve interpretar as

escrituras hebraicas), e o v.20 relacionado às orientações (como praticar a justiça

superior a dos escribas e fariseus). E entende que os v.18 e 19 são uma inserção de

213 BONNARD afirma: “D’ailleurs, les quatre versets de Mat., tant pour la forme que pour le fond, ne sont pás absolument cohérents entre eux; il s’agit sans doute d’un arragement réunissant divers éléments de la tradition prémathéenne; em conséquence, il serait faux d’y chercher um développement selon les normes d’une logique occidentale.” L’Évangile selon Saint Matthieu, p.60s. 214 MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p. 112. 215 TRILLING, W., op.cit., p.265. 216 BARTH, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. Como também M. LAGRANGE, que chega a afirmar que “la suite serait limpide, si l’on passait du v.17 au v.20. Le v.18 semble être là comme une transition entre le v.17 et le v.19.” Évangile selon Saint Matthieu, p.95. 217 BULTMANN, R., L’historie de la tradition synoptique, p.176.

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Q, e assim a perícope deve ser lida como vv.18-19 à luz de 17-20 e não o

contrário.218

Realmente, o v. 17 apresenta características de uma atividade redacional. De

acordo com Marguerat, Mt repete a fórmula “to.n no,mon h' tou.j profh,taj”,

originária da fonte Q, em 5,17, 7,22 e 22,40, como recurso redacional. O verbo

“plhroun” faz parte da terminologia própria de Mateus.219 Além disso, Banks

entende que as palavras de abertura (Mh. nomi,shte) são um artifício retórico para

reforçar o aspecto positivo das sentenças seguintes.220

O v. 18, em comparação com Lc 16,17 apresenta alguns aspectos peculiares,

segundo o quadro comparativo entre os dois textos:

Mateus Lucas 18 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o`

ouvrano.j kai. h gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh.

Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou( e[wj a'n pa,nta ge,nhtaiÅ

17 Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n

gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an

pesei/nÅ

Apesar da construção um pouco diferente, ambos se baseiam nos mesmos

vocábulos, especialmente o termo “pare,lqh”, subjuntivo do verbo pare,rcomai, e

quer dizer “passar, passar além”. Em 5,18 pode ser entendido no sentido

metafísico, como algo que vai passar, ter fim, perecer.221 Esse verbo aparece em

Lc seis vezes, quase sempre com conotação escatológica.222 Em Mateus aparece

um pouco mais, oito vezes, em contextos diferentes, nem sempre escatológicos:

além das duas vezes de 5,18, em 8, 28, referindo-se aos endemoninhados que

impediam a passagem de um caminho (pare,lqein), no capítulo 24, em alguns

momentos, como no v.34 (pare,lqh) e 35 (pareleu,setai e pare,lqwsin), e na

oração de Jesus ao Pai, a respeito de passar o cálice, em 26, 39 (parelqa,tw) e 42

(parelqein). Em Mateus, portanto, o verbo é utilizado com mais sentidos do que

em Lc. Por isso, o sentido escatológico de 5,18 só persiste numa análise sinóptica

com os textos paralelos.

Considerando que o v.18 vem da tradição comum de Q, mas que Lucas

utilizou de maneira totalmente diferente, vemos aqui a maestria de Mateus em 218 PREGEANT, R., Christology beyond dogma, p.63 et.seq. 219 MARGUERAT, D., op.cit., p. 112 et seq. 220 BANKS, R., op.cit., p.226. 221 Cf. RUSCONI,C., Dicionário do grego do NT¸ p.357. 222 Em Lc 16,17 (pare,lqein), 21,23 (pare,lqh), 21,33 – duas vezes (pareleu,sontai), 12,37 e 17,7 (pare,lqwn). Apenas esse último pode ser entendido num sentido não escatológico.

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colocar duas tradições diferentes em uma unidade de dito, como se Jesus o tivesse

afirmado num momento histórico definido, da maneira como está escrito.223

No tocante à estrutura redacional, temos então uma certeza: há trabalho

redacional em Mt 5,17-20. As hipóteses em torno desse trabalho, no entanto, não

são conclusivas, mesmo considerando o fato do v.18 (e talvez o 19) ter sua origem

na fonte Q. Mesmo assim seguiremos a proposta da moldura de 17 e 20

complementando a idéia de 18 e 19, cuja fonte seria diversa das demais partes. A

partir da afirmação escatológica do verso 18, Mateus teria associado o dito sobre a

permanência da Lei e dos Profetas na pessoa dele, no verso 17. E, a partir da

declaração do maior e menor no reino em relação à Lei (também escatológica) no

verso 19, ele associou a advertência sobre o cumprimento da justiça dos

discípulos na atual realidade, no verso 20.

Um esquema redacional nos daria:

v.18: a eternidade da Lei = v.17: a permanência da Lei em Jesus

v.19: o maior e o menor no reino = v.20: a exigência do cumprimento da

justiça na comunidade.

A conexão das duas partes é o reino dos céus, conforme analisaremos mais

profundamente no próximo capítulo. Seja como for, também é certo afirmar que a

perícope não está de forma alguma isolada no evangelho, mas faz parte do

contexto imediato ao qual está ligada. Vejamos que contexto é esse.

3.3.3. O contexto imediato de Mt 5,17-20

A perícope de 5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o

conjunto de interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma

afirmação contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o

tema da Lei é complexo e impreciso? Vamos tentar identificar o objetivo da

perícope no contexto imediato onde está posta.

Segundo Barbaglio224, percebe-se na composição que o autor pretendeu

resolver a questão a respeito da vontade de Deus. Estava claro que todos deveriam

obedecer a esta vontade, mas a questão era: qual vontade? Aquela da Lei e dos 223 Mesmos assim, muitos apontam que o dito de Lucas deve ter a forma original, pelo fato de ser mais curto. Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.234; VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq. 224 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (1), pp.118ss.

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Profetas? Ou haveria outra nova, que seria desenvolvida a partir de Jesus? Havia

na verdade uma contenda interna na comunidade, pois alguns “proclamavam que

Jesus viera como libertador para anular a lei de Moisés; outros sustentavam que

sua tarefa fora a de subscrever, até nos mínimos particulares, tudo aquilo que aí

está escrito”.225 Assim, a perícope é uma tentativa de solucionar o problema, em

tese, e as antíteses posteriores seriam aplicações práticas dessa máxima de

cumprir e não anular. Esse pensamento é compartilhado por Filson226, que entende

que não é uma resposta fácil. Afinal, teria Mateus construído essa perícope apenas

para questionar aqueles que rejeitavam o valor da Lei (como os de Paulo, segundo

o pensamento corrente).

M.Lagrange227 entende que mesmo sendo uma composição de dois

pensamentos expressos em momentos diferentes por Jesus (o v.18 em relação aos

demais), demonstram uma unidade de intenção: mostrar Jesus como reformador

religioso. Assim, a perícope seria uma introdução ao tema, exposto em 5,21-48.

Da mesma forma, S.Parisi228 vê como o anúncio do tema da justiça superior

exigida por uma fé expressiva. Trilling concorda com a abordagem de uma

introdução, mas considera que mais especificamente o v.20 teria essa função.229

De um modo geral percebe-se a conexão de 17-20 com 21-48, com a

ordenação de Jesus a respeito da atitude dos discípulos em relação à Lei. Sendo

uma introdução, a perícope prenuncia a abordagem de Jesus nesse caso. O que

fica patente é a tendência de Jesus (ou Mateus) reinterpretar a Lei, para dar-lhe o

pleno sentido.

Quanto a essa última observação é necessário aprofundar nossa análise. Para

nossa exegese é relevante perceber se a perícope é uma construção da comunidade

de Mateus, a partir de sua situação histórica, conforme apontado no capítulo 1, ou

se de fato o dito veio de Jesus, mesmo considerando os aspectos redacionais

indicados acima. Para tanto, propomos a seguir o estado da questão acerca da

autenticidade do dito de Mt 5,17-20.

225 Ibid., p.118. 226 FILSON, F.V., A commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83s. 227 LAGRANGE, M., Evangile selon Saint Mathhieu, pp.92s. 228 PARISI, S., “Mt 5, 17-48: giustizia superiore e fede ‘estroversa’. La morale sociale da ‘un punto de vista’ della Scrittura”. Vivarium 2, p.45ss. 229 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.267. Bem assim comentam TASKER, Matthew: an Introduction and Commentary, pp.64ss; BORNKAMM, G. Tradition and Interpretation in Matthew, p.24ss, bem como F. VOUGA, Jésus et la Loi selon la tradition synoptique, p. 191ss.

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3.4. Status quaestiones do texto de Mateus 5,17-20

Considerando a questão a respeito da autenticidade do dito, podemos

afirmar de antemão que pelo menos até o século dezenove a opinião corrente era a

favor dela. Um dos pontos a discutir em nossa abordagem é: depois de tantas

pesquisas a respeito dos ditos de Jesus, e do substrato histórico por trás dos textos,

é possível afirmar que Mateus 5,17-20 é um dito autêntico de Jesus? A pesquisa

bíblica anterior ao método histórico-crítico não levantou nenhuma objeção quanto

ao fato das palavras terem sido ditas pelo próprio Jesus. A partir do século vinte é

que se pode falar de duas posições claramente diferenciadas.

3.4.1. Mt 5,17-20 como posição da comunidade de Mateus

A posição que tem influenciado ainda hoje a pesquisa é a de R. Bultmann

(1948).230 Em sua pesquisa sobre o Novo Testamento foi o primeiro a colocar, de

forma clara, a idéia de que os evangelhos refletem muito mais a posição da Igreja

e suas necessidades de organização, do que as aspirações e projetos de Jesus.

Analisando a exigência de Deus para com os discípulos, Bultmann afirma que há

uma relação entre Jesus e o AT, mesmo que não seja direta, pois “Jesus não negou

polemicamente a autoridade do AT: este é um fato que se comprova pela atitude

posterior de sua comunidade, que permaneceu fiel à lei do AT e com a qual Paulo

entrou em conflito por causa dessa atitude.” Assim, a comunidade se posicionou

diante dos grupos helênicos, colocando na boca de Jesus as palavras constantes na

perícope.

Por isso, para Bultmann essa “palavra que, em vista de outros ditos de Jesus

e em vista de seu efetivo comportamento, de modo algum pode ser um dito

autêntico, sendo antes uma formulação da comunidade no período de conflito

posterior”.231 Isso não quer dizer que esse comportamento foi imaginado pela

comunidade, pois realmente Jesus deve ter tido uma reconhecida autoridade de

mestre. Da mesma forma não houve em Jesus um oposição frontal aos costumes

judaicos (esmola, oração, jejum), mas uma tomada de posição sobre a motivação

adequada para essa prática.

230 BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, pp.48-60; Id., Jesus, pp.71-84, 128-138. 231 Idid., p.54.

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R. Bultmann analisa a importância de Jesus para a fé da comunidade

primitiva, e interpreta a perícope mostrando Jesus como Messias. Nessa

compreensão, está implícita a possibilidade de interpretação da Torá, pois o

Messias é o mestre. A coleção de ditos, nesse sentido, é mais do que mera

transmissão de dados, mas herança do Rei da comunidade, cujas palavras contém

sabedoria e uma dimensão escatológica própria do Messias. “Dessa convicção

nascem novos ditos do Senhor, ditos que se destinam a decidir casos de

controvérsia, como: ‘Não penseis que vim para revogar a lei os profetas! Não vim

para revogar e sim para cumprir...’ (Mt 5.17-19).”232

Além disso, R. Bultmann refletiu sobre as conseqüências do fato da

comunidade primitiva ter consciência escatológica para sua vida prática cotidiana;

seria a Lei válida para ela? Nesse sentido, é assim que ele percebe Mt 5,17-19,

como resposta da comunidade com intensa raiz judaica, principalmente pela

influência de Tiago, que vê na postura aberta de Paulo e dos helenistas um perigo

para a fé da comunidade. O dito de Mt 5, 17 teria nascido nesse contexto.

A posição bultmanniana fez escola, e outros se posicionaram na mesma

direção, como G. Bornkamm (1956),233 que admite o papel autêntico de Jesus

como um escriba, não no sentido técnico do termo, mas como intérprete da Torá.

Fazendo um paralelo com a sabedoria judaica contemporânea a Jesus, ele constata

que a aproximação de Jesus com o judaísmo não é circunstancial, mas deve

“despertar compreensão para o fato de que o judaísmo moderno está amplamente

empenhado em reclamar para si o Jesus histórico como um de seus grandes

mestres.”234

Entretanto, G. Bornkamm confirma a posição de R. Bultmann, de

demonstrar que o dito surgiu no ambiente de conflito, e que foi “posta na boca de

Jesus”.235 Por outro lado, compara a posição de Jesus diante da Lei na tradição de

Marcos, que é similar à posição de Mateus. Ou seja, de um modo geral Jesus teria

realmente tido um papel escribal de intérprete, mas o dito de Mt 5,17-20 seria uma

construção da comunidade diante de um contexto posterior de conflito com os

grupos antagônicos que exigiu uma palavra mais clara do mestre.

232 Ibid., p.54 passim. 233 BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, 163-174. 234 Ibid., p.166. 235 Ibid., p.167.

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Afinado com essa posição, encontramos G. Barth (1960),236 que cita o

próprio R. Bultmann e entende que a perícope expressa um embate entre o grupo

conservador na congregação que tinha uma compreensão própria da Lei. Diante

da questão se a Lei teria sido abolida ou não, Mt 5,18 surge para sanar a questão:

mesmo o elemento mínimo da Lei nunca desaparecerá. G. Barth entende então

que o dito de 5,17 é posterior a 18 e 19, e foi costurado para tornar-se uma

unidade.237

G. Barth interpreta o dito dentro do contexto da polêmica sobre a posição de

Jesus frente à Lei, que seus contemporâneos tiveram. Tudo indica uma correção

nessa posição, como se Jesus quisesse abolir a Lei e fundar algo novo, ou ainda

pior, que tivesse tendências antinomianas. Assim, 5,17-20 deve ser interpretado à

luz de 21-48, onde são apontadas as diretrizes práticas do seguimento da Lei na

nova aliança. É desse modo que o termo plhro,w deve ser compreendido.

Na década de 1970, G. Barbaglio teceu um comentário a respeito do

evangelho no qual não deu um veredicto simplista sobre o assunto, onde também

traça a costura redacional. Ali, ele vaticina a princípio que os v.17 e 20 são

composição mateana, enquanto o v.18 provém de Q, mesmo que reflita de fato um

ambiente de igreja judaico-cristã. Já o v.19 ele considera certamente como

expressão dessa igreja. O sentido desse dito, então, está vinculado ao contexto da

polêmica, de um lado contra setores identificados como “cristãos libertários de

cultura grega”, contra os que pretendiam simplesmente se ater ao escrito da lei

antiga, segundo a tradição farisaica. Em suma, para Barbaglio, Mt 5,17-20

demonstra que “Jesus encontra-se entre o passado do AT, que também tinha

registrado a revelação da palavra do Senhor, a manifestação da sua vontade, e o

futuro do Reino anunciado por ele”.238

De certa forma, é a mesma posição de A. Overman (1990) que chega,

inclusive a afirmar: “interpretações dessa passagem têm se perdido com

freqüência em questões referentes à autenticidade de certos versículos e ao grau

de revisão empregado por Mateus”.239 Ele critica uma tendência de estudar a

perícope isoladamente, sem analisar todo o contexto no restante do livro, que

236 BARTH, G. “Matthew’s Understanding of the Law”, pp.64-73. 237 Efetivamente concordamos com essa costura redacional, como veremos no capítulo 2, mas isso em si não prova nada quanto à autenticidade. 238 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.118s. 239 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92s.

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mostra a compreensão de Mateus a respeito da Lei. De qualquer modo, a tese

central de Overman, que hoje é defendida por muitas pessoas, é que a análise

redacional e literária de Mateus nos leva a um estudo do cristianismo primitivo e

não do Jesus Histórico. Com isso conclui-se que, a despeito de não tomar posição,

há uma clara definição da inautenticidade dos ditos como um todo, que seriam

reflexo da comunidade.240

Quase no mesmo período, dois expoentes da pesquisa a respeito do Jesus

Histórico mantiveram a posição iniciada por Bultmann. J. D. Crossan, em sua

análise do assunto (1991),241 que não chega a analisar em separado a autenticidade

dos ditos de Jesus, especialmente de Mateus 5,17-20. Há duas evidências de sua

concordância com Bultmann na pesquisa: ele lista os ditos que Jesus teria

realmente proferido242, e deixa de fora a perícope de Mateus, citando o dito

paralelo de Lc 16,16-17. A segunda evidência ele apresenta no apêndice a respeito

dos estratos das tradições que compuseram os evangelhos, através de um

inventário.243 A partir dessa catalogação Crossan propõe o seguinte quadro para a

formação da perícope de 5,17-20: os versos 17, 19 e 20 seriam “testemunho único

do Terceiro Estrato”, da tradição M. Ou seja, material elaborado dentro da própria

comunidade de Mateus. O versículo 18 seria proveniente de 1 ou 2 Q, um

“testemunho independente duplo do Primeiro Estrato”. Seria apenas esse dito que

poderia ser considerado autêntico.

O outro forte pesquisador que indica a perícope como construção da

comunidade mateana é J. Gnilka (1993), que afirma textualmente: “Não

possuímos uma palavra básica de Jesus em relação à lei. Isto torna mais difícil

esclarecer a questão, como também explica as idéias disparatadas que se

manifestam na pesquisa.”244 Gnilka entende que o dito de Mt 5,17-20 nasceu sob

o peso da disputa entre diferentes grupos a respeito da Torá, e aceita a atribuição

dada à comunidade de Mateus a respeito do dito.

Num artigo contemporâneo à pesquisa de J. Gnilka, I. Broer (1993)

escreveu a respeito das antíteses do Sermão do Monte. Nesse artigo é

demonstrado que a leitura de Mt 5,17-20 junto com 21-48 ajuda a entender o 240 Talvez considerando como autênticos apenas os ditos testemunhados em Q e Marcos, e ainda assim com ressalvas. 241 CROSSAN, J.D. O Jesus Histórico. 242 Ibid., pp.13-25. 243 Ibid., pp.472-486. 244 GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197.

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conflito sobre a Torá entre os seguidores de Jesus e a comunidade materna

judaica. A radicalização da Torá no texto não era entendida como ab-rogação da

Lei do AT.245

Concluindo, essa corrente afirma categoricamente que o dito de 5.17-19

seria um dito desenvolvido pela comunidade de Mateus, e não do próprio Jesus, e

que respeita a tradição em que Jesus não se coloca claramente contrário à lei, mas

a reinterpreta. O problema na posição de Bultmann e dos demais, quando

confrontada com a nova abordagem na pesquisa de Jesus, é a contradição entre a

posição de Jesus perante a Lei, que ele reconheceu como legítima, e a palavra em

si, que ele não aceita como autêntica. Um grupo social, originado de uma grande

liderança, que tem na palavra o cerne de sua atividade, e considera tal palavra

como Torá viva, dificilmente se sentiria à vontade para construir um repertório

para esse mestre.246

3.4.2. Mt 5,17-20 como dito autêntico de Jesus

Numa posição inversa, mas utilizando recursos científicos para abalizar suas

conclusões, encontramos J. Jeremias (1970), já no decurso da Nova Pergunta pelo

Jesus Histórico. Sua posição, definida especialmente quando desenvolveu sua

Teologia do Novo Testamento, é resultado de um extenso trabalho filológico,

iniciado décadas antes. Jeremias considera o dito como parte de um grupo de

sentenças que Marcos não teve acesso, e por isso mesmo seria autêntico, a partir

da análise da base aramaica dos ditos de Jesus. Ele afirma que Mt 5.17b vem de

uma tradição rabínica, no Talmude Babilônico, Shabbat 116 b247 (p.33).

Para Jeremias, Mt 5.17 é a “expressão mais aguda dessa consciência de

plenipotência” de Jesus em relação à sua missão.248 Ele afirma alguns aspectos

importantes:

245 BROER, I. “Die Antithesen der Bergspredigt Ihre Bedeutung und Funktion für dier Gemeinde des Matthäus.” pp.128-133. 246 Essa discussão aponta para o problema que hoje se discute em termos de autoria dos evangelhos, quanto ao papel da comunidade na construção dos textos. Além disso, o papel da tradição oral no Sitz im Leben de cada uma. Eis aí um ponto que precisa ser melhor refletido, sobre as fontes, o contexto vital e a herança que cada comunidade teve como pano de fundo em sua formação. Sobre o assunto, ver OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, pp.79-148; MARCONCINI, B., Os evangelhos sinóticos, pp.122-126; 247 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p. 33. 248 Ibid., p.142.

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Contra a antigüidade do dito alegou-se que h=lqon [vim] refere-se em retrospectiva à atividade de Jesus como já acabada. Todavia, como mostra Mt 11.19, essa afirmação não condiz nem sequer com o texto grego, quanto mais com o tytea] [’atet] aramaico subjacente, que pode significar simplesmente ‘eu estou aqui’, ‘eu quero’, ‘é minha tarefa’. Por outro lado, fala em favor da antigüidade da palavra o fato de ela ser uma das pouquíssimas palavras de Jesus que nos foram transmitidas em aramaico.249 Quanto a essa última parte veremos se Jeremias prova sua tese, comparando

com o Talmude (ver na análise semântica, cap.2). Para ele, os títulos cristológicos

são interpretação posterior da comunidade, a partir das imagens que o próprio

Jesus deve ter destacado dele mesmo.

Ainda mais claramente do que nas imagens emprestadas à linguagem simbólica, a consciência que Jesus tinha acerca da sua soberania expressa-se na profusão incomum do ’egw, enfático nos seus ditos, em igual grau tanto no material sinótico como no joanino. Encontra-se não só em afirmações que Jesus faz sobre sua missão como em Mt 5.17, mas perpassa toda a sua pregação.250 Conclusão: J.Jeremias trabalha com a hipótese de que o dito seria de Jesus,

mesmo que a Igreja tenha dado a ela um tom mais cristológico. Essa posição

também influenciou um grande grupo de exegetas, que têm defendido essa

hipótese.

Um pouco antes (1960), G.W. Kümmel, já trabalhara sua própria Síntese

Teológica do Novo Testamento,251 a partir de um pressuposto: “não existe a

mínima razão para que se concorde com a opinião de que a probidade histórica de

um trecho da tradição possa ser somente uma exceção”.252 Ele considerou que,

mesmo não sendo possível reconstituir a biografia completa e a trajetória histórica

cronologicamente, a partir dos evangelhos, não se pode descartar que por trás

deles há uma sólida tradição a respeito de Jesus, que tem especialmente nos ditos

sua mentalidade e pregação. Para Kümmel, na verdade, é a inautenticidade que

precisa ser provada, e não o contrário. Dito isto, Mt 5,17-20 se torna autêntico no

conjunto dos demais ditos de Jesus. 249 Ibid., p.142. Jeremias atribui ao texto grego um traço semítico, que denuncia uma tradução. Em suas palavras, ele afirma: “Deve-se dizer ainda mais precisamente que a língua materna de Jesus é o dialeto galileu do aramaico ocidental. Pois as analogias lingüísticas mais aproximadas das palavras de Jesus se acham nos textos populares aramaicos do Talmude e dos midrashim originários da Galiléia. A fixação por escrito desses textos só se deu entre os séculos 4 e 6 depois de Cristo, mas há muita probabilidade de que já no tempo de Jesus o aramaico usado no dia-a-dia na Galiléia se distinguia do aramaico (judaico) do sul da Palestina por sua pronúncia, por suas variações lexicais, por sua imprecisões gramaticais e por um menor influxo por parte da linguagem da escola rabínica. Em Mt 16.73 pressupõe-se que em Jerusalém se podia reconhecer um galileu pelo seu dialeto.” P.33. 250 Ibid., p.362. 251 Lançado em 1968. 252 KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.44.

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A questão da autenticidade foi tratada por alguns exegetas como assunto

definido. É o caso de R. Banks (1974), que tenta superar a discussão sobre a

autenticidade, colocando a compreensão de Jesus sobre a Lei como sendo também

a discussão de Mateus e sua comunidade. Com isso Banks aponta para uma

decisão: considerar como já discutida a questão, em função das conclusões a que

se chegou através do método histórico-crítico, especialmente na História das

Formas e da Crítica Redacional. Para ele, importante é discutir a compreensão que

Mateus e sua comunidade tiveram do próprio Jesus e de sua mensagem relativa à

Lei. 253

O que o dito passa em termos dessa compreensão é o fato de que a

comunidade de Mateus estava vivendo a problemática da disputa de espaço com

outros grupos, especialmente com a tradição farisaica. Jesus teria afirmado sua

posição sobre a Lei numa alusão crítica a essa tradição, que os discípulos

deveriam superar, com um novo senso de justiça. Essa nova justiça se cumpriu

integralmente em Jesus, que enfatizou o caráter profético e provisório da Lei

frente à vontade de Deus e seu Reino, que superaria completamente a letra e a

tradição (paradosis) dos fariseus. O centro da questão, de fato, não está no mero

cumprimento das normas, mas a obediência a partir de um relacionamento vivo

com o próprio Jesus.254

B.L. Martin (1983), em um breve artigo,255 analisa o posicionamento de

vários pesquisadores a respeito da posição de Mateus na questão de Jesus e a Lei,

a partir da perícope de 5,17-20. Comentando o sentido do texto, Martin entende

que as palavras de Jesus devem ser tomadas como “instrução”, dentro do contexto

ético do amor a Deus e ao próximo. Seria nessa linha que Jesus teria afirmado sua

posição em relação à Lei, cumprindo-a no critério do amor.

Anos mais tarde, a pesquisa que levou em consideração a autenticidade – ou

que decidiu não tratar do assunto – continuou a evocar sentidos para o dito de

5,17-20. Como exemplo, podemos ver o comentário de F. Mateos e F. Camacho

sobre Mateus (1993), que trata do assunto em questão como sendo uma busca de

253 BANKS, R., “Matthew's Understanding of the Law: Authenticity and Interpretation in Matthew 5:17-20”, pp. 226-242. 254 Como afirma BANKS: “For Matthew, then, it is not the question of Jesus’ relation to the Law that is in doubt but rather its relation to him! AS this analysis hás sought to show, however, such a way of posing the issue stems from the authentic words of Jesus which Matthew’s account enshrines.” P.242. 255 MARTIN, B.L. “Matthew on Christ and the Law”, pp.53-70.

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sentido para a situação do povo oprimido, para quem a mensagem de que ele veio

para cumprir a Lei, seria também a mensagem do cumprimento das promessas.

Nesse sentido, “Jesus quer desfazer um mal-entendido e uma decepção. Os que

conhecem a grandeza das promessas do At, que se traduziram na expectativa

messiânica, podem sentir-se defraudados diante do horizonte que Jesus

apresenta.”256

G.E. Ladd (1990) também considera a autenticidade dos ditos de Jesus, e

interpreta a perícope, a partir do Sermão do Monte como uma ruptura tanto da

Tradição farisaica quanto da Mishnah. Para ele, o que diferencia o ensino de Jesus

ali é a ética da vida interior, em que a justiça perfeita se realiza a partir do

coração. Além disso, por ter realizado plenamente o verdadeiro propósito da Lei,

ele pode declarar o que é válido e o que não é.257

Um dos expoentes da Third Quest que concorda com essa abordagem é G.

Vermes. Em sua pesquisa a respeito da relação de Jesus com a religião judaica, a

partir das fontes sinóticas, Vermes faz importantes afirmações sobre o assunto.

Tratando a respeito da relação específica entre Jesus e a Lei (1993),258 Vermes

entende que a pesquisa com relação à autenticidade tem uma tendência pessimista,

e por isso mesmo abordem mais a teologia ou a perspectiva de um evangelista, do

que o cerne da mensagem de Jesus. Vermes pretende caminhar nessa direção, e no

tocante à autenticidade, ele pensa no princípio cui bono: quem ganha e quem

perde com determinado ensinamento? Assim, ele conclui: Um pronunciamento que serve aos interesses da cristandade gentílica em seus primórdios e não se harmoniza com a perspectiva geral de Jesus é provavelmente produto da igreja primitiva. Em contraste, se nos defrontamos com uma doutrina contrária e de impossível conciliação com as necessidades eclesiásticas, pode-se presumir sua autenticidade histórica.259

Tratando do material exclusivo de Mateus, com coloração mais judaica,

Vermes propõe uma leitura a partir do material de Marcos e Lucas que reforçam o

fato de que Jesus não aboliu de forma absoluta a validade da Lei. Tal abordagem

confirma um fato: Jesus não se opôs à Lei. Por isso o material exclusivo de

Mateus não tem que ser, necessariamente, fruto do pensamento da comunidade,

sem relação com a posição de Jesus. Em seu sistema de classificação dos ditos de

256 CAMACHO, F. e MATEUS, F., O evangelho de Mateus, p. 64s. 257 LADD, G.E., Teologia do Novo Testamento, pp.117-122. 258 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, pp.19-48. 259 VERMES, op.cit., p.24.

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Jesus, Vermes identifica Mt 5,17-20 como um dito autêntico, que sofreu edições

posteriormente para enfraquecer o peso da afirmação acerca da permanência da

Torá. Na verdade, “um exame rigoroso das passagens relevantes atinentes à

validade permanente da Torá revela que o dito básico vem de Jesus.”260 As

mudanças ou omissões em outras tradições refletem as exigências de uma “igreja

não-judaica, cujos membros já não se consideravam sujeitos às pesadas regras da

religião judaica”261.

Semelhante posição tem G.N. Stanton (1993), que realizou estudos no

evangelho de Mateus privilegiando a comunidade receptora da mensagem. Para

ele, com relação ao material exclusivo M, presente no dito de 5,17-20, não se

pode falar de uma criação de Mateus, mas de uma exegese dele em torno de ditos

autênticos do mestre. Na verdade Mateus teria a postura de um escriba que guarda

um tesouro: os ditos do próprio Jesus, mas que adaptaria esses ditos ao contexto,

da mesma forma como fez com os textos da tradição marcana e da fonte Q.262 Em

relação ao sentido da perícope, ele entende que diante do questionamento dos

opositores quanto à atitude de Jesus perante à Lei, os discípulos são convocados a

prática urgente da vontade de Deus, num grau ainda maior que os Escribas e

Fariseus.263

Outro exemplo de posição imparcial no tocante à autenticidade é a de

Theissen que, em seu manual (1996), trata da aparente contradição sobre o uso da

expressão “Antes que passem o céu e a terra, não passarão da lei um i nem um

ponto do i, sem que tudo haja sido cumprido” (Mt 5,18/Lc16,17)264 por Mateus e

Lucas em contextos literários totalmente diferentes. Quanto a isso ele afirma:

Independentemente da questão sobre a autenticidade, ambos os ditos poderiam ser atribuídos a Jesus em virtude de seu conteúdo, pois sua posição perante a Torá era, de fato, ambivalente. A combinação de intensificação e abrandamento das normas é característica da relação de Jesus com a Torá.265

Mais recentemente, numa nova abordagem a respeito dos evangelhos, com a

preocupação de uma hermenêutica política por trás do texto, encontramos W.

Carter, que em 2000 realizou um “comentário sociopolítico e religioso a partir das

margens” do evangelho de Mateus. Em sua análise da perícope, ele trata da

260 Id., O autêntico evangelho de Jesus, p.402. 261 Ibid., p.402. 262 STANTON, G.N. A Gospel for a New People, pp.340-345. 263 Ibid., p.300s. 264 Citado conforme tradução do texto de Theissen, O Jesus Histórico, p.387. 265 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388.

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temática do império de Deus em contraponto ao império romano, que de certa

forma, assombrava o imaginário dos povos oprimidos, sempre lembrando que eles

não eram livres em absoluto para decidirem sua forma de viver. Assim sendo, a

afirmação de Jesus, além do sentido direto de uma conformação à vontade do

Senhor, ganha um colorido de resistência aos poderes romanos e ao

colaboracionismo por parte das elites judaicas, que pretensamente são justas.266

Concluindo, o debate acerca da autenticidade de Mt 5,17-20 se dá

principalmente por ser material quase totalmente exclusivo de Mateus. O contexto

judaico e a relação conflituosa da comunidade mateana com os demais grupos

judaicos fizeram com que esse dito tivesse importância capital. Mas isso quereria

dizer que o dito foi criado pela comunidade? E se um dito tão marcadamente

judaico de Jesus tivesse de fato sido “esquecido” pelas demais comunidades,

simplesmente porque não as ajudava em sua caminhada, cada vez mais distante do

mundo do judaísmo, e mais próximo da realidade helênica? A análise a favor da

autenticidade poderá nos conduzir na exegese do texto, a fim de verificar a

validade dessa hipótese.

3.5. Análise da historicidade Não dúvida de que Jesus teria ensinado aos seus discípulos, e que esses

ensinos foram preservados pelas comunidades receptoras de sua mensagem. Seu

ensino teve muito a ver com a ética do judaísmo corrente, e de fato deve ser

encontrada ali sua raiz. Vários autores compararam o posicionamento de Jesus

frente à Torá com a exegese rabínica corrente.267

No sistema da interpretação judaica a respeito da Torá, compendiada na

Mishnah a partir dos anos 80 do século 1 da era cristã, há uma força muito grande

na Tradição Oral, da qual certamente Jesus participou e a partir da qual

desenvolveu sua própria “Mishnah”. Como diz o Talmud de Jerusalém Peah II, 6

17a: O Rabbi Haggai em nome do Rabbi Shemuel bar Nahman: ‘Foram ditas palavras oralmente e outras foram ditas por escrito. Não saberíamos quais são preferíveis se

266 CARTER, W., O Evangelho segundo São Mateus, p.189ss. 267 Em especial G. VERMES escreveu um artigo, a partir de uma palestra ministrada em Oxford, no ano de 1982, “Literatura judaica e exegese do Novo Testamento: reflexões metodológicas”, onde analisa a similaridade entre os ensinos de Jesus presentes no Novo Testamento e os escritos judaicos contemporâneos a ele. Segundo ele, a maior probabilidade a ser trabalhada é a de que o “Novo Testamento e a doutrina rabínica derivam de uma fonte comum, por exemplo, o ensinamento tradicional judaico”. Jesus o mundo do Judaísmo, p.106.

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não estivesse escrito (Ex 34,27): Porque foi em virtude destas palavras que fiz aliança contigo e com Israel. Assim se entende que as palavras orais são preferíveis.’268

Tendo em vista essa idéia judaica, podemos apontar a historicidade dos

ditos de Jesus tendo como matriz vivencial o ensino dos sábios judeus. Essa é uma

realidade que também podia ser vinculada a Jesus. Na verdade não havia, no

judaísmo tardio, uma escola formal para mestres, no sentido dos intitulados rabis.

O fato de Jesus ter sido chamado assim não contradiz sua origem camponesa

humilde, pois o estudo realizado a partir de registros literários, sejam cristãos,

sejam rabínicos, ou mesmo oriundos do movimento epigráfico, demonstram que

não haviam ritos ou formas fixas que determinavam o rabinato naquele período.

De fato, “um escriba se tornava ‘Rabi’ tão logo outros, e especialmente alunos, o

tratassem como tal e lhe pedissem conselho.”269 Sem dúvida, essa era a situação

de Jesus. Cabe agora avaliar esse ensino exposto no dito de Mt 5,17-20 a partir

dos critérios de historicidade.270

A avaliação da historicidade dos evangelhos passa por critérios que “são

apenas mais ou menos prováveis; raramente se chega a uma certeza”.271 Em nossa

análise, que não é o centro da pesquisa, mas que fundamenta boa parte dela,

queremos verificar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 vem de Jesus, e até que

ponto é uma elaboração de Mateus frente a uma necessidade específica de sua

comunidade de fé. Vamos analisar a perícope de acordo com os critérios de

historicidade divulgados pela pesquisa, a partir do Critério da Múltipla Atestação,

da Plausibilidade Histórica, do Constrangimento, Critério da Rejeição e da

Execução e do Critério do Estilo de Jesus.

3.5.1.

268 Cf. citado por LENHARDT, A Torah Oral dos Fariseus, p.20. 269 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.381. 270 Esses critérios foram elaborados no bojo da Third Quest, como aceitáveis academicamente para determinar até que medida podemos declarar um dito de Jesus como histórico ou não. Hoje também já se aplica essa criteriologia às narrativas de milagres. Mas não há um consenso exato sobre quantos e quais devem ser aplicados ao estudo do texto. Theissen, por exemplo, propõe que os critérios de diferença e coerência sejam substituídos pelo da plausibilidade histórica. Ele é seguido por Wegner nessa posição. Marconcini propõe cinco critérios, baseado em Latourelle. Meier propõe um sistema um pouco mais complexo: ele dividiu os critérios em primários (constrangimento, descontinuidade, múltipla confirmação, coerência, rejeição e execução) e secundários ou dúbios (traços de aramaico, ambientação palestina, vividez da narração, tendências do desenvolvimento da tradição sinóptica e suposição histórica). Em nossa abordagem vamos nos ater aos critérios que são mais aceitos e tem maior objetividade de análise. 271 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.169.

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Critério da Múltipla Atestação Também chamado de critério da múltipla “confirmação” (Meier) ou

“depoimento múltiplo” (Marconcini), trata da existência de um dito de Jesus “em

mais de uma fonte literária independente (p. ex., Marcos, Q, Paulo, João) e/ou em

mais de um gênero ou forma de literatura (p.ex., parábola, história de debates,

história de milagres, profecia, aforismo).272 Meier e Theissen destacam a

importância da fonte ser independente.273 Casos em que Mt e Lc simplesmente

repetem ditos presentes em Mc não representam em si um exemplo de múltipla

atestação.

Ao aplicar esse critério à perícope em questão, vamos seguir a

classificação de Crossan. Nela, o versículo 18 tem sua origem em 1 ou 2 Q, e seria

um testemunho independente duplo do Primeiro Estrato. Já os versos 17, 19 e 20

são da tradição de M, e por isso devem ser testemunho único do Terceiro Estrato,

a partir da Tradição M.274 Isso não quer dizer, a priori, que o dito não foi afirmado

antes, mas que só foi registrado por escrito numa terceira fase redacional do texto.

A questão é: a perícope fica prejudicada em sua análise de historicidade, pelo fato

de ser material exclusivo, na forma como foi redigida no evangelho de Mateus?

Vejamos se há correlação no dito com outras fontes independentes: o v.17

tem semelhança com Mt 10,34, que por sua vez é paralelo de Lc 12,51, conforme

podemos verificar na estrutura:

Mateus 5,17 Mateus 10,34 17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon

h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai avlla.

plhrw/saiÅ

[Não considereis que eu vim para anular a Lei e

os Profetas; não vim para anular, mas para dar

pleno sentido ]

34 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon balei/n eivrh,nhn evpi.

th.n gh/n\ ouvk h=lqon balei/n eivrh,nhn avlla.

ma,cairanÅ [Não considereis que eu vim para trazer paz à

terra; não vim para trazer paz, mas espada]

Há uma evidente correlação estrutural entre os dois ditos. Nos dois casos o

uso de h=lqon [eu vim], segundo Banks, reforçam um significado cristológico

particular que Mateus pretende expressar.275 O v.18 apresenta uma clara relação

com Lc 16,17, como visto acima, enquanto os demais versículos não apresentam

272 Ibid., p.177. 273 Cf. Ibid., p.177; MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.137. 274 CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, pp.472-485. 275 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.227.

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correlatos diretos. Entretanto, em outras formas literárias encontramos Jesus

assumindo essa postura diante da Lei. Em Marcos 2,23-3,6 ele coloca em prática

sua interpretação a respeito da Torá, não necessariamente numa oposição a ela,

mas numa perspectiva adequada, inclusive com uma citação dos Nebîim276. Por

esse critério, no entanto, o dito de Mt 5,17-20 não pode ser considerado autêntico,

pois tem um testemunho fraco fora do evangelho de Mateus.

3.5.2. Critério da Plausibilidade Histórica

Theissen propõe o Critério da Plausibilidade Histórica em substituição ao

de Diferença e Coerência. Ambos são critérios adotados por Meier

(Descontinuidade e Coerência) e Marconcini (Descontinuidade e Conformidade).

O critério de Descontinuidade é um dos mais consensuais entre os pesquisadores,

e tem como foco “as palavras e atos de Jesus que não podem ser originários nem

do judaísmo de seu tempo, nem da Igreja primitiva depois dele”.277 O problema

apontado por Theissen e que Meier concorda é que o caráter singular do

ministério de Jesus é avaliado como uma realidade, sem que se tenha absoluta

certeza de como era o judaísmo da época dele e a igreja logo após ele. Mesmo

levando em conta a idéia de que Jesus foi único em seu tempo, não se pode

ignorar o fato de que ele foi um judeu do século I, e como tal se posicionou em

relação às tradições que recebeu, ou seja, muito do que fez tinha essas tradições

como base, seja para dar continuidade, seja para romper.

Por outro lado, o critério da Coerência ou Conformidade afirma que “é

material autêntico de Jesus o que concorda em conteúdo com as tradições

conquistadas na base do critério de diferença (mesmo que caibam no pensamento

judeu ou do cristianismo primitivo).”278 Tanto Theissen quanto Meier entendem

que esse critério pressupõe a infalibilidade do critério de Descontinuidade, o que

acaba por ser um argumento frágil para a validade de ambos. Não se pode afirmar

que a Igreja tenha inventado toda a tradição a princípio estranha a Jesus, pelo

simples fato de divergir dele. Corre-se o riso de declarar como inautênticos ditos

apenas pelo fato de não terem consistência com o que foi aceito pelo critério 276 1 Sm 21,1ss. O Sacerdote citado no texto seria Aimeleque. Abiatar foi o filho dele, que se juntou a Davi depois que Saul massacrou os sacerdotes por causa do apoio dado ao fugitivo. 277 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.174. 278 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.135.

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anterior. De fato, é como se o ensino de alguém não pudesse evoluir em termos de

compreensão e aplicação.

Por isso Theissen sugere o Critério da Plausibilidade Histórica, ou seja,

elementos que apontam para uma vinculação de Jesus com o judaísmo, ao mesmo

tempo em que mostram a influência dele sobre a Igreja posterior. Assim, “nas

fontes é histórico o que ajuda a explicar a influência de Jesus e pode, ao mesmo

tempo, surgir apenas num contexto judeu.”279

Aplicado à perícope, a idéia de Jesus defendendo a Torá não será em

hipótese alguma estranha ou artificial. Pelo contrário, pensar que Jesus teria uma

postura antinomiana, próxima de um crítico da cultura judaica, isso sim, é

questionável. Jesus teria, no dizer de Geza Vermes, uma preocupação abrangente com o propósito final da Lei que ele percebia, de forma primária, como essencial e positiva, não como uma realidade jurídica mas como uma realidade ético-religiosa, revelando o que pensava ser o comportamento justo e divinamente ordenado para com os homens e para com Deus.280

Por um lado, a defesa da Torá era uma atitude própria para um judeu do

século I da era cristã. Era um dos fundamentos da religião praticada pelos judeus

da Galiléia, e tudo indica que a atitude de Jesus de ir a sinagogas aos sábados

reflete uma piedade própria de um judeu de seu tempo.281

Por outro lado, o teor escatológico presente no verso 18, típico da fonte Q,

se repete no verso 19, pois ali fala do maior e do menor no reino dos Céus, termo

mateano que normalmente reflete a expectativa messiânica da comunidade. Além

disso, há no texto uma exortação para que a comunidade expresse uma justiça

superior, que supere ao tipo de espiritualidade presente no projeto dos escribas e

fariseus. Essa continuidade da expectativa do pleno cumprimento da Lei e da

Profecia vigorou na comunidade, e é atestada até mesmo nas cartas paulinas.

Hoje, a idéia de que Jesus tenha tido uma pregação escatológica é bastante

aceita.282 Assim, por esse critério o dito de Mt 5,17-20 pode ser autêntico.

3.5.3. Critério do Constrangimento 279 Ibid., p.136. 280 VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.48. 281 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.198 et,. seq; VERMES, op.cit., p.19 et. seq. 282 Cf. GNILKA, J. Jesus de Nazaré, p.146 et. seq; Theissen faz longa análise do tema, O Jesus Histórico, p.276-298.

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Esse critério, conquanto seja muito semelhante ao Critério de

Descontinuidade, na verdade procura expor como a tradição dos evangelhos lidou

com certas passagens a respeito de Jesus que tivessem causado dificuldade. É o

caso do batismo de Jesus, por exemplo, que em Mc não é explicado, e que após

receber as explicações teológicas e históricas de Mt e Lc, simplesmente é

suprimido da narrativa de Jo.283

No tocante ao dito de 5,17-20, é possível perceber esse constrangimento

no todo da tradição. Marcos levantou a questão mostrando Jesus interpelando a

Tradição dos Pais, no relato de 7,1-23, onde responde ao questionamento sobre os

ritos de pureza. Da mesma forma, Marcos apresenta a postura desafiadora de

Jesus frente ao Sábado, chegando a afirmar que “O sábado foi feito por causa do

homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2,27). Mateus reafirmou todo

esse problema, explicitando teologicamente a motivação de Jesus quanto à Lei

(Mt 5,17-20), enquanto Lucas diluiu essa postura (Lc e João nem mesmo evoca

qualquer discussão a respeito da Lei, a não ser o fato de também ali Jesus curar no

sábado e ser inquirido a esse respeito (Jo 5,9ss; 9,14ss).284 Em outra ocasião, a

posição das comunidades gentílicas, da resolução do “concílio” de Jerusalém, e

principalmente, de Paulo diante da Torá, demonstra um outro caminho quando

comparados a Jesus (At 15) .

Em Mt 5,17-20 vamos considerar que Jesus teria se colocado como

intérprete, e não promulgador da Torá. Numa perspectiva ouvinte-praticante, essa

postura de completar e cumprir pode fazer parte da categoria de pensamento de

Jesus. Nesse sentido ele seria o intérprete definitivo da Torá, que teria cumprido

fiel e cabalmente até mesmo o menor traço do texto, bem como cada yod presente

nela285. É exatamente o que se sucede nas perícopes posteriores, onde ele aplica

essa idéia de completar, dando o sentido máximo a alguns aspectos específicos da

Lei, como o trato com o inimigo, com o irmão, a questão do adultério e até

mesmo dos juramentos.

Esse critério também aponta para o dito como autêntico? A solução só

pode se dar na medida em que percebemos um amplo campo de discussão sobre a 283 Cf. exposição de MEIER, J.P. Um judeu marginal, p.10 et.seq, 284 Entretanto, é curioso que haja mais citações à Lei em Lucas e João do que no próprio evangelho de Mateus, mesmo que João a cite como sendo a Lei dos judeus (Jo 10,34). 285 Geza Vermes coloca numa nota uma explicação a respeito, a partir do texto do Exodus Rabbah, texto rabínico, onde o yod e qots aparecem lado a lado. Ver A Religião de Jesus, o judeu, p.26, nota 11.

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observância da Lei entre as diferentes vertentes cristãs na primeira metade do

século um, conforme se nota ao ler a epístola aos Gálatas. Percebe-se a

problemática entre os cristãos provenientes do judaísmo - cristão-judeus - e os

cristãos provenientes do helenismo – cristão-gentios.286 Dentro do contexto de

polêmica, considerando que Mateus escreveu para afirmar a observância à Lei

como princípio de vida a partir do próprio Jesus, não podemos afirmar

categoricamente a autenticidade do dito.

3.5.4. Critério da Rejeição e da Execução

Sob o crivo do critério da rejeição e da execução, encontramos algo que

deve nos fazer pensar. Esse critério é vinculado ao fato de que o Jesus histórico

disse e fez coisas que incomodaram setores de poder do seu tempo, e que por isso

mesmo foi morto nas mãos das autoridades, em execução pública. De acordo com

o que temos no texto, a afirmação de Jesus pode muito bem ter provocado as

autoridades por, pelo menos, dois motivos:

(1) como em outras vezes, Jesus dimensionou o papel e a conseqüência

pessoal de quem agisse de acordo com os seus ensinos, no tocante ao reino dos

céus. Para muitos líderes, o fato de Jesus estabelecer critérios para o cumprimento

da Torá – como fazer o bem aos sábados, dar menor importância às rígidas

normas de pureza ritual, ou ainda se associar a setores discriminados da sociedade

(pecadores e publicanos em especial) era motivo de acusação por blasfêmia e

heresia. E ele chegou a ser chamado de blasfemo (Mt 26,65).

(2) Jesus coloca a justiça (dikaiosyne) dos escribas e fariseus como algo

artificial e que deveria ser superado pelos seus próprios discípulos. O termo

justiça aqui está ligado ao sentido de retidão e equidade, como algo a ser mostrado

e distribuído, e que está vinculado à própria justiça divina. Essa atitude certamente

286 Koester considera a expressão cristianismo judaico problemática, tendo em vista que “os apóstolos e missionários da nova mensagem de Jesus vieram de Israel, embora não necessariamente daqueles círculos da Palestina que emergiram como ‘judaísmo rabínico’ depois da destruição do Templo”. Afinal, ele completa, muitos vieram da diáspora da língua grega. Esses seriam os cristão-judeus helênicos, que tiveram polêmica com os cristão-judeus palestinenses. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.216. Sobre esse assunto ver o apêndice 1: “On the Problem of Jewish Christianity”, de G. Strecker, a partir do artigo de W. Bauer, “Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity”, na versão eletrônica de R. A. Kraft, de 1993. http://ccat.sas.upenn.edu/humm/Resources/Bauer/bauer_a1.htm#FN1#FN1. Também GOPPELT, op.cit. p, 281 et.seq.

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mexeu com os mais conservadores, piedosos até, o que explicaria seu ódio por

Jesus.

Entretanto, não há provas suficientes (mesmo considerando alguns relatos

dos evangelhos) de que os fariseus e os escribas se envolveram diretamente na

condenação e morte de Jesus. 287 Por isso, esse critério não auxilia objetivamente

na conclusão pela autenticidade do dito. Mesmo assim, é fato que a maneira como

Jesus lidou com o templo e o sistema sacerdotal pode ter causado sua prisão.

3.5.5. Critério da Análise do Estilo de Jesus

Esse critério, considerado dúbio por Meier, é tratado com importância por

Marconcini.288 Ele parte da idéia de que Jesus tenha ensinado em aramaico e que

mesmo o texto grego dos evangelhos pressupõe uma tradição oral de raiz

aramaica.289 Sendo assim, se um dito tiver uma correspondência formal com a

forma aramaica, em termos de ritmo, sintaxe, etc. então teria grandes chances de

ser autêntico. Em contrapartida, um dito que tivesse dificuldade de ser traduzido

do grego para o aramaico dificilmente seria de Jesus. Essa pesquisa foi

exaustivamente trabalhada por J. Jeremias, que analisou as características da

ipsissima vox. Segundo ele são “características da dicção de Jesus que não

possuem nenhuma analogia na literatura da época e que, por isso, podem ser

consideradas como marcas da ipsissima vox de Jesus.”290

A crítica de Meier a esse critério é que se as comunidades de fala grega

puderam criar ditos relacionados à pessoa de Jesus, também as comunidades

palestinenses, de língua aramaica, o poderiam fazer. Além disso, esse critério já

pressupõe que determinado conjunto de ditos é autêntico, e isso pode ser

metodologicamente equivocado.291 Assim, Meier entende que o critério da análise

287 Cf. CROSSAN, J.D. Quem matou Jesus?, obra na qual o autor defende que todos os textos a respeito da prisão, julgamento e execução de Jesus sofrem interferência das lutas “intra-judaicas”, ou seja, os autores culpavam aqueles que de alguma forma interferiam na comunidade, ou que na memória dela tiveram atitudes negativas. Especialmente p.43-55. 288 MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos. 2004, p.52 et.seq. 289 Cf. THEISSEN, op.cit., apesar dele deixar essa hipótese em aberto, p.190 et.seq. 290 JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ pp.69-79; Id., Estudos no Novo Testamento, pp.137-147. Jeremias estudou essa característica nas parábolas, nos ditos enigmáticos, do reino de Deus, no uso da palavra Abba e da palavra Amen. 291 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.180.

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do estilo de Jesus só é válido depois que o dito tiver passado pelos demais

critérios.

Em nosso caso, então, se torna válido complementar os dados até aqui

levantados, agregando-se à análise o resultado da pesquisa relacionada ao estilo de

ensino de Jesus, conforme registrado nos sinóticos.

No caso do uso de Jesus da palavra avmh.n, Jeremias entende que é uma

exclusividade dele, sem paralelos, seja na literatura do judaísmo antigo, seja no

Novo Testamento. O termo vem do aramaico !mEïa', que significa “certamente”,

de acordo com Baumgartner292. Pode ser entendido como uma fórmula solene; em

Deuteronômio aparece como aceitação do povo às maldições proferidas contra a

desobediência a diversos mandamentos (Dt 27,15-26). Em Neemias é a resposta

do povo em momentos solenes de culto (Ne 5,13; 8,6). No Novo Testamento

encontramos expressão similar nos escritos de Paulo, relacionado ao culto público

(1 Co 14,16) e no Apocalipse que, em geral, reproduz fórmulas oriundas do

ambiente litúrgico (Ap 5,14; 7,12; 19,4; 22,20).

A diferença nos evangelhos é que o termo é usado para sublinhar as palavras

próprias de Jesus, e nunca aparece na boca de outros, o que aponta para o uso

dessa expressão como elemento introdutório solene em diversos textos dos três

evangelistas. O comentário de Jeremias a esse respeito é que a tradição dos ditos

demonstrou respeito por esse termo estrangeiro. Na verdade, poderia ser uma

associação com a expressão dos profetas “assim diz o Senhor”, que apontavam a

fonte de suas palavras, cuja origem seria divina. De modo correspondente, ao usar

o termo Jesus demonstra sua plenipotência. No dizer de Jeremias, “a novidade

desse uso lingüístico, sua estrita restrição às palavras de Jesus e o testemunho

unânime de todas as camadas da tradição evidenciam que nos deparamos com

uma inovação lingüística nos lábios de Jesus.”293 Considerando esse critério,

podemos considerar o dito de Mt 5,17-20 uma fala autêntica de Jesus, preservada

pela comunidade e utilizada como fundamento para a identidade dela.

3.5.6. Síntese e conclusão da análise da historicidade

292 BAUMGARTNER, Hebräisches und aramäisches Lexicon zum Alten Testament, Lieferung I, 3ª.ed. Leiden, 1967, p.62b. 293 JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ p.78.

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Mesmo considerando que os critérios da historicidade não são absolutos nas

suas conclusões, por vários motivos podemos considerar esse dito autêntico:

a) Ele reflete tanto o contexto judaico de Jesus como aponta para a

influência dele sobre a Igreja posterior, mesmo sendo atestado por poucas fontes

independentes;

b) O tema do dito foi sendo retrabalhado pela tradição cristã, a ponto da

Lei deixar de ser do grupo dos cristãos para ser apenas dos judeus. O

constrangimento que ele causou foi sendo minimizado nas comunidades com

menos expressão judaica.

c) A postura de Jesus frente à Lei foi um dos motivos de sua crucificação,

mesmo ele não tendo sido condenado pelos grupos citados em Mt 5,17-20

(escribas e fariseus);

d) No dito o estilo de Jesus é claro, com elementos aramaicos

característicos de sua fala.

Evidentemente que as explicações acima podem muito bem ser apenas uma

projeção, já que a comunidade de Mateus estaria sendo severamente perseguida

pelos fariseus. No entanto, como nota dissonante, temos o próprio Paulo que,

sendo fariseu, se declarou “perseguidor (diôkô) da Igreja” (Fp 3,6), ou seja, numa

época anterior ao evangelho de Mateus. Certamente uma das motivações para essa

perseguição seria não apenas a mensagem positiva do Evangelho, como também

certas insinuações com respeito à espiritualidade praticada pelos fariseus.

Com relação à comunidade de Mateus, podemos entender que, ao ser

questionada quanto à sua autenticidade, frente aos demais projetos pós-70 em

Israel, ela busca em Jesus uma palavra que estabeleça nele, e não nela mesma, a

autoridade para revisar a Torá e se declarar o novo Israel. Um Israel que segue a

Torá cuja síntese é: amar a Deus e ao próximo.

Concluindo, diante da pergunta sobre a autenticidade do dito (com exceção

do v.18) ou se ele seria uma projeção da comunidade de Mateus, referindo-se aos

projetos judaicos concorrentes pós-70, preferimos pensar que a comunidade teria

recuperado tradições antigas a respeito da relação de Jesus e a Torá que a Igreja

num todo foi perdendo, por ter outros interesses em vista.

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4

Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20

4.1. Introdução

É possível saber ao certo a relação entre Jesus de Nazaré e a Torá? Que

indicativos temos de sua compreensão a respeito da Lei? Conseqüentemente, da

vontade de Deus e de sua prática piedosa como judeu Galileu, a partir do dito de

Mt 5,17-20, considerando-o como dito autêntico? Esse dito teria um sentido

meramente pragmático, comum à piedade farisaica, ou Jesus também pensou em

termos escatológicos a respeito do cumprimento da Lei e dos Profetas?

Essas são as principais perguntas que desejamos responder, a partir de uma

análise exegético-teológica, que passa pela análise semântica do dito e sua relação

com o todo do ministério de Jesus, segundo exposto no livro de Mateus. Além

disso, queremos evidenciar a teologia do texto, o que afirma para a fé da

comunidade a respeito do próprio Jesus e de seu ministério.

4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a)

Vamos retomar aqui alguns aspectos dos capítulos anteriores, no sentido de

entender ao que Jesus se referia quando trata da Lei e dos Profetas. Mais ainda,

desejamos perceber qual era a relação de Jesus com essa categoria de pensamento,

tão importante no imaginário judeu. 17a Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;

4.2.1. O sentido da Lei e dos Profetas para Jesus

Considerando o uso desse termo associado – Lei e Profetas – tudo indica

que Jesus se refere ao grupo de textos reconhecido pelos judeus como inspirados

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por Deus, referência para sua prática de fé.294 Os judeus residentes na Galiléia

exercitavam a mesma fé dos judeus da Judéia, especialmente no que tange à

Torá.295 Pensando em Jesus como um “judeu observante”, no dizer de Vermes,

segundo a imagem que emerge dos evangelhos:

De início, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e de ensino. Encontramos referências gerais à sua presença nestes centros da Galiléia, por vezes especificamente no Shabat. Duas dessas sinagogas, uma em Cafarnaum (Mc 1,21; Lc 4,31) e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são especificamente designadas.296

Dentre as atividades comuns de um judeu piedoso estava a prática de ir à

sinagoga para a leitura da Lei e dos Profetas.297 A configuração de uma sinagoga

na diáspora não deveria ser muito diferente daquelas localizadas em Israel. Assim,

podemos identificar Jesus como um judeu praticante, ouvinte (ou talvez até

mesmo leitor) da Torá e dos Nebîim.298 Alguém que observa os mandamentos,

para cumpri-los.299

Mateus é quem mais registra essa terminologia; em três outras ocasiões

(7,12; 11,13; 22,40) ele cita o Cânon judaico, que ainda não tinha sido dividido

em três partes. Essa maneira de dividir o Antigo Testamento só foi reconhecida a

294 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, I, p.240. 295 Segundo FREYNE, S., “um dos estereótipos dos estudos sobre a Galiléia é a afirmação de que os galileus não eram observantes quanto à Torah.” A Galiléia, Jesus e os evangelhos, p.173. 296 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.21. 297 Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. A sinagoga também servia como centro de hospedagem e lugar de reunião para questões jurídicas dos judeus, além do propósito de ser um centro de devoção. Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., O Jesus Histórico, p.149; E. STEGEMANN comenta que antes do ano 70 d.C. o número de sinagogas na Palestina deve ter sido pequeno. História social do protocristianismo, p.168s. Em At 13,14-15 há uma referência que ilustra esse ponto. Ao entrar numa sinagoga, no dia de sábado, Paulo e Barnabé, esperaram até que terminasse “a leitura da Lei e dos Profetas” [th.n avna,gnwsin tou/ no,mou kai. tw/n profhtw/n.], para também poderem falar. 298 A discussão acerca da alfabetização de Jesus tem sido razoável e inconclusa. De acordo com THEISSEN, O Jesus Histórico, p.382 et.seq., há evidências de que Jesus tinha capacidade de ler, como o ensino em sinagogas, a existência de uma sinagoga em Nazaré, etc. J.P. MEIER, Um judeu marginal, p.347, aponta que “na cultura popular oral e quem ele se criou e mais tarde passou a ensinar, a alfabetização não era uma necessidade absoluta para as pessoas comuns.” Mesmo assim ele considera possível que Jesus tenha sabido ler. 299 Ibid., p.384 et.seq. aponta o modo como Jesus utilizava as Escrituras, nas vezes em que ela as cita: a consciência de cumprimento (próximo do sentido de Mt 5,17), onde Jesus demonstra “conhecimento da ação escatológica de Deus”; conduta provocativa, o uso polêmico da Escritura com o fim de provocar seus ouvintes; argumentação polêmica, quando faz o uso correto da Escritura para justificar uma atitude polêmica; fundamento ético (também próximo de Mt 5,17), quando Jesus demonstra concordar com o fato de que a Lei expressa a vontade de Deus e não deve ser menosprezada, mas interpretada adequadamente. Também cf. D. FLUSSER, O Judaísmo e as origens do Cristianismo, p.32.

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partir do fim do século um, quando são encontradas referências no Talmude

Babilônico e na Midrash dos Salmos300.

Uma das referências de Jesus ao cânon bipartido está também no Sermão do

Monte, quando estabelece a sua Regra de Ouro: “Portanto, tudo o que vós quereis

que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas”

[Pa,nta ou=n o[sa eva.n qe,lhte i[na poiw/sin umi/n oi a;nqrwpoi( ou[twj kai. umei/j

poiei/te auvtoi/j\ ou-toj ga,r evstin o no,moj kai. oi profh/taiÅ] (Mt 7,12)301; em

outra ocasião, quando discutiu a respeito do papel de João Batista: “Em verdade

vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do

que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que

ele.” [avmh.n le,gw u`mi/n\ ouvk evgh,gertai evn gennhtoi/j gunaikw/n mei,zwn VIwa,nnou

tou/ baptistou/\ o` de. mikro,teroj evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n mei,zwn auvtou/

evstin] (11,13); e numa terceira ocasião, em diálogo com um “doutor da Lei” a

respeito de qual seria o maior mandamento: “Destes dois mandamentos dependem

toda a lei e os profetas.” [evn tau,taij tai/j dusi.n evntolai/j o[loj o no,moj kre,matai

kai. oi profh/taiÅ] (22,40).

Mas que grupo de textos inspirados seria esse? Seria em sentido estrito?

Parece que não. Barth entende que se deve pensar que, ao utilizar a referência de

Lei e Profetas, Mateus esteja, de fato, tratando do Antigo Testamento como um

todo, como deve ter sido com Jesus em seu tempo.302 O uso dos Salmos no texto

de Mateus confirma isso (Mt 5,5, com paralelo em Sl 22,26 e 25,9; Mt 7,23, com

paralelo em Sl 5,5 e 6,8; Mt 13,35, com paralelo em Sl 49,4; Mt 21,16, com

paralelo em Sl 8,2; e Mt 27,43, com vários paralelos messiânicos: Sl 3,2; 14,6;

22,8; 42,10; 71,11). Filson afirma que, se Jesus pensa no Antigo Testamento todo,

então ele aceita a Escritura como uma revelação e ao mesmo tempo exigência de

Deus para o ser humano.303

300 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240. Há citação desse cânon juntamente com os Ketubîm no TB 11,23 e na Midr Ps 90 §4s. BARTH comenta a respeito: “There is reflected in this formula the fact that the Hagiographa were canonized only towards the end of the first century”. “Matthew’s understanding of the Law”, p.92. 301 Importante aqui é a inversão da lógica sapiencial judaica, cf. registrada em Tb 4,15, bem como presente no ensino de Hillel. Nesses textos se afirma de forma negativa: “o que não quereis que vos façam, não fazeis a ninguém”. Jesus inverte ao colocar de forma positiva, insistindo que o fazer o bem é mais importante do que apenas deixar de fazer o mal. Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus, p.120. Ver abaixo, na § 3.3.2, outras opiniões a respeito. 302 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.93. 303 FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83.

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O que aponta no texto a aceitação desse corpus canonicus é a expressão

“não penseis” [Mh. nomi,shte], uma declaração aberta de que a intenção de Jesus

não era de invalidar a vontade de Deus expressa nas Escrituras. Na verdade, se

Jesus pensasse ou agisse assim, seria como um herege, ou blasfemo diante de sua

religião.304

Por outro lado, segundo a posição de Bultmann, essa expressão indica

recurso redacional de Mateus. Sendo o dito elaborado pela comunidade

palestinense, foi uma tentativa de refutar a posição antinomiana da comunidade

helenística, que seria a grande polêmica entre os dois grupos: a correta

compreensão a respeito do valor da Lei.305 Concorda com ele Charles, para quem

Mateus usou a expressão Mh. nomi,shte como um recurso estilístico de oratória de

Jesus para dar peso ao seu argumento.306 Ao mesmo tempo, entretanto, pode-se

pensar em termos da autoridade de Jesus apontada no dito, acima daquela

demonstrada pelos escribas, perante a Lei.307

A comunidade de Mateus de fato deve ter seguido Jesus em sua concepção

das Escrituras. Desse modo, também para ela a Lei e os Profetas designavam a

revelação da vontade de Deus. A menção dos profetas nessa fórmula, segundo

Marguerat, não deve ser vista nem pelas promessas antigas, nem como portadores

do curso da história da salvação, mas como proclamadores da Torá.308

Cabe aí, então, uma interpretação ética a respeito da fórmula “Lei e

Profetas”, em que nem devemos pensar numa mera alusão ao corpus literário,

considerado sagrado, nem a uma regra, como o código legal a ser obedecido. A

compreensão adequada da fórmula pode ser a de que se trata da exigência ética

transmitida por Deus ao seu povo, a partir da tradição vétero-testamentária. Nessa

304 Cf. expressa Charles: “To a Jew, the setting aside or abrogating of the law constituted the mark of a heretic”. CHARLES, J.D., “The Ethic of the Sermon of the Mount Reconsidered”, p.52. 305 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176. Cf. também BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.67, GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. 306 CHARLES, J.D., op.cit., p.52. Uma declaração paulina que deve ter provocado boa parte dessa discussão está em Rm 10,4: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê.” [te,loj ga.r no,mou Cristo.j eivj dikaiosu,nhn panti. tw/| pisteu,onti]. 307 O evangelho de Marcos, na primeira cura que Jesus realiza (na verdade, um exorcismo, em Mc 1,23-28), mostra o questionamento dos escribas, perguntando se essa seria uma nova doutrina [didach. kainh.]. A autoridade de Jesus fica evidenciada de tal maneira que provoca surpresa. Mateus não tem essa narrativa em seu evangelho. Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de Marcos, p.70. 308 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.125.

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exigência ética vamos encontrar Jesus e seu posicionamento a respeito da Lei e

dos Profetas, bem como a transmissão dessa idéia a seus seguidores.309

Entretanto, o v.18, que pode ser considerado o eixo central da perícope,

mostra que Jesus na verdade não trata da ética a partir de considerações genéricas

apenas, mas de seu registro escrito e transmitido pela tradição, inclusive com os

acentos e ornamentos próprios que os copistas elaboraram no decorrer da

transmissão dos manuscritos. 310

Podemos pensar que havia um senso comum entre os judeus de que a Lei e

os Profetas não podiam ser mexidos, nem nos menores detalhes, pois isso

certamente iria alterar o sentido das ordenanças. Nesse caso aceitamos a idéia de

que Jesus compartilhou desse pensamento, e foi acompanhado pelas comunidades

palestinenses, em sua maioria composta de judeu-cristãos.

Trilling, percebe três sentidos para a Lei, em sua análise da perícope: no

verso 17, como base para o cumprimento de Jesus; no verso 18, a Lei como norma

irrevogável; no verso 19 como resumo de todos os preceitos que apontam para o

reino de Deus. Mas para entender o sentido que predomina em Mateus como um

todo, é preciso analisar todo o material que trata da Lei.311

A plena compreensão desse sentido para Jesus se dará a partir da análise do

restante do dito e das implicações éticas referentes a ele.

4.2.2. Jesus e as ordenanças da Lei

Até aqui pudemos supor que Jesus – e da mesma maneira a comunidade de

Mateus – entendia a Lei e os Profetas como sendo a revelação divina para seu

povo, através da Tradição escrita transmitida e registrada no Antigo Testamento, e

que contém exigências éticas para a vida. Mas o que significa isso num sentido

mais estrito? Que exigências eram levadas em consideração, que ordenanças da

Lei mais influenciam as decisões do indivíduo e da comunidade?

309 Ibid., p.125. 310 Há uma história rabínica do Exodus Rabbah, presente na Midrash, que trata da questão do yod e do qots. Nela, Salomão tenta manipular a vontade divina, alterando o verbo hbr (multiplicar) da terceira pessoa para a primeira pessoa na proibição do rei aumentar o número de mulheres (cf. Dt 17,17). O yod se levanta e questiona a Deus, dizendo que de letra em letra toda a Torá será destruída. Deus então responde que todos podem tentar, mas que ele não permitiria que a Torá fosse destruída. Cf.VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.26. 311 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.266.

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As pesquisas recentes sobre o Jesus Histórico têm equilibrado entre uma

interpretação de clara oposição de Jesus frente à Lei, e uma plena equivalência da

posição dele com o judaísmo contemporâneo. Por um lado há uma compreensão

de que Jesus não teria uma oposição ferrenha contra o judaísmo, e por outro, a

clareza de que ele tinha uma grande liberdade em analisar a Lei e estabelecer o

seu valor, e isso teria causado escândalo.312

Em sua pesquisa sobre o assunto, Bultmann trabalhou com a idéia de que a

posição de Jesus em relação às ordenanças está diretamente ligada à sua

proclamação escatológica a respeito do reino de Deus, e conseqüentemente seria

uma abordagem mais profunda das exigências de Deus. Por isso, Bultmann afirma

que a pregação de Jesus explica a exigência de Deus como sendo protesto contra

o legalismo judaico, na linha dos grandes profetas.313

Ao mesmo tempo, no entanto, Bultmann reconhece que Jesus não negou a

validade do AT. O que ele combateu foi a “maneira de compreender e aplicar o

AT.”314 Jesus também não combateu os costumes piedosos, apenas questionou a

maneira como eram praticados. Assim, Jesus teria “uma atitude naturalmente

soberana em relação ao AT, uma atitude que discerne criticamente entre

importante e não importante, entre essencial e indiferente.”315

Kümmel concorda que Jesus tinha em mente uma concepção escatológica

em sua posição frente à Lei. No entanto, como expressão de sua autoridade, que

demonstrava o fato de que a salvação escatológica tinha sido iniciada no próprio

Jesus.316 Segundo ele, isso se deu pela própria maneira como os judeus lidaram

com a tradição, pois a Lei não tratava de questões triviais do cotidiano, nas

situações particulares. Jesus conviveu com a interpretação da Lei a partir da

tradição oral, e foi capaz de até mesmo desconsiderar algumas exigências que

considerava erroneamente interpretadas, como no caso do sábado (Mt 12,1ss – os

discípulos colhendo espigas para comer e depois a realização de uma cura).317

312 Cf. BROER, I., “Lei (NT)”, DBT, p.231. 313 BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.49 et. seq. 314 BULTMANN, op.cit., p.54 315 Ibid., p.54. Considerando o uso do AT por Mateus, G.N. STANTON afirma: “The OT is woven into the warp and a woof of this gospel; the evangelist uses Scripture to underline some of his most prominent and distinctive theological concerns”. A Gospel for a New People, p.346. 316 KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76 et.seq. 317 Ibid., p.76. Para Goppelt, por exemplo, só podemos entender a posição de Jesus frente à Lei, quando olhamos concretamente sua posição frente à Halaká, ou seja, a Tradição Oral. GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p.118 et.seq.

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Jeremias também entende que a postura de Jesus se deva ao fato de ter sido

criado no ambiente judaico, em que o Antigo Testamento ganha proeminência

para as questões da vida. Na verdade, Jeremias afirma que “não se pode entender

de forma alguma as suas palavras sem o conhecimento do Antigo Testamento.”318

Há, na postura de Jesus uma lealdade para com a Lei, e o desejo dele de que

seus seguidores também sejam leais a ela. Longe de ser um rebelde contra a

religião judaica, Jesus teve nas Escrituras judaicas o suporte para sua mensagem e

ministério.319 Theissen explica esse processo como uma ambivalência da parte de

Jesus na sua relação com a Lei: Jesus intensificava as normas éticas (sobretudo, o mandamento do amor) em que é nítida uma tendência a um ethos universal. E relativizava as normas rituais (sobretudo os mandamentos sobre a pureza) pelos quais se separa o judaísmo do helenismo – sem eliminar tais normas completamente.320

Theissen ainda aponta que outros grupos faziam exegese da Lei em linhas

semelhantes. Quanto à perícope em questão, ele afirma que as antíteses que se

seguem são uma tomada de posição de Jesus frente à Lei.321 A respeito dessa

questão, Tasker trabalha com a idéia de que o ensino de Jesus sobre a Lei não

contradiz aquilo que Moisés ensinou, mas é uma oposição às interpretações

correntes desse ensino. Caso não se entenda assim, mesmo considerando que o

dito de 5,17-19 coloca Jesus no mesmo nível da Lei, as antíteses tornam-se

contraditórias em relação ao dito que as introduz.322 Gnilka completa, afirmando

que “a posição de Jesus em relação à Lei está voltada para a salvação do homem.

As concepções da lei que estão em contradição com isto são por ele rejeitadas

como não correspondendo à dignidade do homem.”323

Para Vermes, no entanto, de forma prática, a questão está na tendência,

presente também nos rabinos do primeiro século, de “pesquisar os princípios

centrais da Torá, e mesmo sua essência”.324 Flusser confirma essa perspectiva,

pois segundo ele, “para Jesus havia, naturalmente, o problema peculiar de sua

relação com a Lei e seus preceitos, mas o mesmo ocorre com todo judeu crente

318 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.303s. 319 FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83. 320 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388. 321 Ibid., p.389. 322 TASKER, R.V.G., Matthew: An Introduction and Commentary, p.64 et.seq. 323 GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.207. 324 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.42.

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que leva a sério seu judaísmo”.325 Com isso, tem-se que pensar em dois fatores, já

apontados: a relação de Jesus com a tradição oral, talvez o principal motivo de

questionamento; e a busca dele pelo essencial que, praticado, cumpriria toda a

justiça.

De acordo com Overman, a comunidade de Mateus aprendeu de Jesus essa

prática, de interpretar adequadamente a Lei, pois é totalmente cabível que uma

pessoa seja zelosa cumpridora da Lei e, ao mesmo tempo, não cumpri-la

rigorosamente. É o que ocorre nas histórias de controvérsia entre Jesus e membros

de grupos judeus com respeito a aspectos da Lei, como na questão do sábado (Mt

12,1-14), e de certas normas rituais de pureza determinados pela Tradição dos

Anciãos (Mt 15,1-20) que é a tradição Oral.326

E qual foi a posição de Jesus frente a essa tradição? Essa é, talvez, a questão

chave para entender a diferença na posição de Jesus e seus adversários quanto à

Lei.

4.2.3. Jesus e a Tradição Oral

Ao tratar da Tradição oral, nos referimos acerca do aparato que Jesus lidou

para interpretar e até interferir nos mandamentos, como ocorre nas antíteses do

Sermão do Monte (5,21-48). Essas questões estão relacionadas ao outro aspecto

da Torá: a Torá Oral, que interpreta a Torá Escrita e estabelece parâmetros para

sua prática.

De acordo com a definição judaica a respeito da Torá oral, a Lei de Moisés

escrita – chamado por alguns grupos do judaísmo de Chumash [vmwx]– necessita

da explicação e do detalhamento que auxilie na observância dos mandamentos

registrados por Moisés. Mas essa explicação, segundo a Tradição, foi também

dada por Moisés, o qual recebeu de Deus.327 Por isso têm a mesma autoridade que

325 FLUSSER, D., Jesus, p.37. Entretanto, Maldonado aponta que o dito de Jesus sobre João, em Mt 11,13: “porque todos os Profetas e a Lei profetizaram até João”, deve ser entendido como uma declaração do fim da validade da Lei do Antigo Testamento. MALDONADO, J., Comentario a los quatro evangelios, p. 437. Essa interpretação implicaria numa contradição com o dito de Mt 5,17-20. 326 OVERMAN, A., O evangelho de Mateus, p.92 et.seq. 327 Cf. o tratado Pirqe Abot, analisado no Cap 1.

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a Lei escrita. Essa interpretação é chamada de Halaká, que é “o quê, quando, onde

e como de uma vida judaica.”328

As grandes escolas de interpretação do tempo de Jesus, segundo a Mishná,

eram a de Hillel e a de Shammai. Conforme Vermes informa: “Hillel e Shammai,

os líderes das mais influentes escolas farisaicas, possivelmente ainda estavam

vivos e, no curso da vida de Jesus, Gamaliel, o Velho, tornou-se sucessor de

Hillel”.329 Segundo Flusser, um dos aspectos que diferenciava as duas escolas

estava na tolerância para a entrada dos gentios na fé judaica. Enquanto Hillel era

mais tolerante, Shammai tinha maior dificuldade em aceitar essas conversões.330

Considerando essa postura, Flusser afirma que Jesus estaria mais próximo de

Shammai do que de Hillel. Em algumas passagens do Sermão do Monte,

transparece realmente uma má opinião de Jesus para com os não-judeus: a

preocupação com as coisas materiais (Mt 6,32-34), as repetições consideradas vãs

(Mt 6,7) e o desconhecimento do mandamento do amor (Mt 5,47). Soma-se a isso

o fato de Jesus, em sua prática comum, não curar não-judeus, mas ater-se às

“ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24).331 Isso, no entanto, contraria

outra abordagem, na qual Jesus e Hillel teriam muito em comum, especialmente

considerando a regra de ouro.332 Pode-se presumir, dessa forma, que Jesus não

esteve atrelado a nenhuma escola específica, mas que esteve em diálogo com

algumas tendências do judaísmo de seu tempo.

Mas qual foi a atitude concreta de Jesus frente à Halaká? De acordo com

boa parte dos autores, a posição de Jesus foi de rejeição.333 Segundo Goppelt, a

rejeição total da Halaká faz com que Jesus não discuta diretamente com seu

ambiente a respeito da interpretação da Lei, nem mesmo sistematize uma

interpretação própria, contrariando a dos fariseus. Ele complementa: “A visão

328 R. Shlita “A eternidade da Halachá”. http://www.admatai.org/iniciantes/mensagem_42.htm, acessado em dezembro de 2007. Halaká é um termo hebraico, hk;)l;)h], e quer dizer “modo de vida”, “direção”. Vem de $lh = “ir”, “andar”, e “designa uma doutrina fixa, lei ou princípio que é uma norma para a prática religiosa.” MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.389. 329 VERMES, G., Jesus e o mundo do judaísmo, p.13. No entanto, a Mishná apresenta aspectos anedóticos de ambos, dando preferência clara a Hillel, como se encontra no Talmude Babilônico, Shabbat 30b-31a: “Nossos mestres ensinaram: ‘um homem deveria sempre ser humilde e afável como Hillel e nunca ser intransigente e impaciente como Shammai...’.” Cf. COLLIN, M. e LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.23. 330 FLUSSER, D., Jesus, p.51. 331 cf. Ibid., p.51 et.seq. 332 Cf. BORNKAM, G.,Jesus de Nazaré, p.166, COLLIN, M. e LENHARDT, P., op.cit., p. 26. 333 Cf. JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento, p.306 et.seq.; GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p. 119 et.seq.; MARTIN, “Matthew on Christ and the Law”, p.59;

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judaica da lei leva necessariamente à casuística: a visão de Jesus a exclui.”334

Entretanto, Flusser aponta para outra direção. O dito de Jesus que trata da cátedra

de Moisés,335 cf Mt 23,2-3, demonstra que os ensinos dos fariseus e escribas eram

aceitos por Jesus. O que ele criticava eram as atitudes deles, que não praticavam o

que ensinavam.336 Mais uma vez transparece, em Jesus, uma atitude de releitura e

interpretação, própria de um legislador e intérprete da Lei, e não de um radical

pregador de anomia religiosa. E com uma abordagem que o assemelha a um

profeta, pois eles também não desconsideravam a lei. Por isso, é importante

considerar a idéia de Jesus como profeta e intérprete da Lei.

4.2.4. Jesus, profeta e intérprete da Lei

Seguindo um pouco o raciocínio de Bultmann, de que Jesus teria adotado

uma posição de crítica ao legalismo judaico,337 na linha dos grandes profetas,

podemos pensar que ele agiu em defesa da Lei como também o fizeram os

profetas antes dele. Jesus não chamou a si mesmo de profeta, e esse aspecto não

está tão claro em Mateus como está em outros evangelhos.338 O que Mateus

reforça muito é o grande número de referências de cumprimento de profecias, cuja

fórmula é “para que se cumprisse o que fora dito por meio do profeta” [i[na

plhrwqh/ to. rhqen dia. tou/ profh,tou le,gontoj].339 Segundo Brown, “essas

citações enfatizam que toda a vida de Jesus, até o mínimo detalhe, situava-se no

334 GOPPELT, L., op.cit., p.121. 335 Que ficava em Corazim, lugar ao qual Jesus dirigiu palavras de alerta, cf. Mt 11,21. Crüsemann observa que a existência de tal elemento é antecipada por uma idéia de um ofício mosaico de interpretação da Lei de Moisés. CRÜSEMANN, F., A Torá, p.153. 336 FLUSSER, D., Jesus, p.48. Ele demonstra ainda que essa crítica não foi exclusiva de Jesus, pois tanto os saduceus quanto aos essênios tinham severas críticas aos fariseus (Documento de Damasco 8:12). Por outro lado, os textos rabínicos antigos criticam fariseus não observantes, exaltando o fariseu fiel à Tora, cf. o Tratado Sotá, 22b, no Talmude Babilônico. BARTH concorda com essa posição: “In the original meaning of the saying therefore the word ‘everything’ included the Rabbinic tradition.” BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.86. 337 BULTMANN, R., Teologia do NT, p.49 et. seq. 338 Lucas aponta muito mais para a figura de Jesus como profeta. Isso ocorre já no início de seu ministério, quando leu o rolo de Isaías na sinagoga (Lc 4,14-30) e ainda se insere na perspectiva de Elias e Eliseu. Além disso, os discípulos do caminho de Emaús viram nele um profeta “poderoso em palavras e obras, diante de Deus” (Lc 24,19). E a obra de Atos, continuação de Lucas, reafirma em alguns momentos essa perspectiva (At 3,11-26; At 7,1-53). Mesmo assim, Mateus associa Jesus aos profetas, especialmente tomando sua vida como cumprimento das profecias. Cf. DILLMANN, “Profeta (NT)”, DBT, p.347. Ver também a expectativa popular em torno dos profetas em GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125. 339 Essa fórmula aparece em Mt 1,22s; 2,15; 2,17-18; 2,23; 4,14-16; 8,17; 12,17-21; 13,35; 21,4-5; 27,9.

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plano predeterminado por Deus.”340 Mateus cria assim uma relação da história de

Jesus e da vivência de sua comunidade, com as tradições que fundamentam o

judaísmo corrente, especialmente em relação às profecias, em torno das quais

havia grandes expectativas.341

Considerando o que já levantamos na pesquisa, em que a profecia tinha

ganhado uma dimensão escatológica além da busca pela fidelidade à Lei, faz

sentido a idéia de que a pregação de Jesus tinha forte cunho escatológico.342 Da

mesma forma, percebe-se na pregação de Jesus a preocupação dos profetas de

levar o povo de volta à Lei de Deus, e não abandoná-la. Assim, Mt 5,17-20 pode

ser considerada uma palavra profética de Jesus, tanto para levar o povo até Deus,

quanto para declarar a validade da Lei para o povo. Em outras palavras, é possível

afirmar uma expectativa na comunidade de que o mestre seja também o “Filho do

Homem” escatológico, e isso se tornou ainda mais evidente à luz da fé pascal.343

De acordo com a pesquisa de Cullmann, sobre a cristologia do Novo

Testamento, a idéia de Jesus como profeta está bem próxima da idéia dele como

Messias. Segundo sua exposição, isso se dá por causa do conceito de Filho do

Homem, que é não apenas uma designação associada aos profetas, como também

se tornou depois interligado com a idéia de um profeta do fim dos tempos, o qual

configura-se como o Messias. Para Cullmann, “a noção de ‘profeta’ explica, pois,

perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como também a

autoridade com a qual atua e fala.”344 Mas isso não está muito claro em Mateus,

pois como aponta Bonneau, apesar de Jesus ser chamado como um profeta em

algumas ocasiões, inclusive a si mesmo, citando um provérbio popular (Mt

13,57), “Mateus não situa Jesus na categoria dos profetas”.345

340 BROWN, R.E., O Nascimento do Messias, p.96-97. 341 Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.82 et.seq.; 342 BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 90. Cf. mais recentemente MEIER, J.P., Um judeu marginal vol 2, livro 2, p.78 et.seq. Ele até polemiza a respeito: “Em anos recentes, alguns estudiosos têm questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um reino escatológico que haveria de chegar em breve”. P.79. 343 Cf. BULTMANN, R., op.cit., p.90. J.GNILKA, no entanto, alerta para não limitar a figura de Jesus a um predicado messiânico, tendo em vista que muitos outros foram usados, e nenhum foi claramente definido. Cf. Jesus de Nazaré, p.235 et.seq. 344 CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 67. Ele aborda o assunto nas p.31-74. 345 BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.184 et.seq. A bem da verdade, o próprio Cullmann chegou a essa conclusão: “Os evangelhos sinópticos mostram, pois, que uma parte do povo considerava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para o fim dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-se que nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas tenham se servido desse título para expressarem sua própria fé em Jesus.” CULMANN, op.cit., p.58. Ele de fato conclui que a idéia de Jesus como profeta abrange apenas um aspecto do

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Da mesma forma, segundo a pesquisa de Gnilka, deve-se considerar Jesus

como mais que um profeta, mesmo que ele tenha desenvolvido elementos cuja

matriz estivesse presente no movimento profético, tais como: o anúncio do

domínio/reino de Deus sobre todos os povos, como nova ordem de salvação; o

chamado de discípulos, para seguirem-no de forma especial; e um certo apelo

messiânico em sua definitividade, mesmo que faltando o traço político-nacional,

aspecto fundamental para os seus contemporâneos.346

A pesquisa de Theissen aponta para uma abordagem do anúncio de Jesus

como profeta escatológico, a partir do conceito de Kümmel, em que há, na

pregação dele uma dupla dimensão: presente e futura.347 Assim define Theissen a

respeito da pregação de Jesus: No que se refere ao conteúdo, Jesus representa uma variante da expectativa apocalíptica, mas no aspecto formal ela aparece como profecia – não na forma de um escrito esotérico secreto da pré-história remota, mas como uma proclamação (oral) ligada a sua pessoa. Sua pregação é uma revitalização da apocalíptica em forma profética.348

Mas, analisando o que já foi exposto acima, percebe-se que, mesmo que

Jesus tenha lidado com a Lei da mesma forma que os profetas, de fato ele agiu

mais como mestre, como intérprete da Lei. De fato, pode-se afirmar que “Mateus

substitui a função profética de Jesus pela de mestre.”349 Ou seja, quando se trata

da questão da Lei, evidencia-se em Jesus mais o papel de escriba e intérprete da

Lei do que de profeta. Destaca-se aí o plano ético de sua pregação, vinculado à

ética da Lei. A pesquisa sobre o papel de Jesus como mestre passou por diversas

fases, e nos últimos anos leva em consideração sua condição histórico-social

concreta, a partir do ethos judaico ao qual ele estava vinculado.350 Apesar das

ministério terreno de Jesus, não podendo responder nem à questão escatológica e futura de seu ministério, nem à sua preexistência. 346 GNILKA, Jesus de Nazaré, p.238. Sobre o assunto ver também BRUEGGEMANN, A Imaginação Profética, especialmente as p.104-143. 347 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.267 et.seq. 348 MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Kümmel, no entanto, considera que em Jesus o tempo profético se encerrou. Cf. KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.92. Cabe aqui pensar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 tem elementos proféticos e apocalípticos, ou ainda, em que proporção tratam do presente ou do futuro. Ver § 3.3 infra. 349 BONNEAU, G., Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.185. 350 Theissen faz uma síntese dessa pesquisa, que coloca as diferentes fases, especialmente referindo-se ao séc. XVIII e XIX, onde pensou-se uma ética atemporal, e uma pregação de uma moral eterna, dissociada da história. Nas primeiras décadas do século vinte, a pesquisa começou a ter uma abordagem mais historicizada. O primeiro passo se deu por meio da ética escatológica, que chama o ser humano a uma resposta, mas que minimiza o papel das exigências concretas. Depois da descoberta dos manuscritos de Qumran, e mesmo antes, outros pesquisadores abordaram por meio da comparação com elementos contemporâneos a Jesus, como os escritos rabínicos, os textos

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divergências de abordagem há um consenso: Jesus agia como mestre, e assim era

considerado. Mas a partir de qual base?

A tradição sinóptica (Mc 14,14 par. Mt 26,18, Lc 22,11), bem como a

tradição de Q (Mt 8,19ss par. Lc 9,57ss) e a tradição M (Mt 23,8) apresentam a

idéia de que Jesus é o Mestre por excelência. Mateus reuniu e reforçou bastante

essa ênfase, conforme se pode ver no fim do Sermão do Monte: “porque os

ensinava com autoridade, e não como os escribas” [h=n ga.r dida,skwn auvtou.j w`j

evxousi,an e;cwn kai. ouvc w`j oi` grammatei/j auvtw/nÅ] (Mt 7,29). Peculiar em Mateus,

no entanto, é o fato de Jesus ser chamado de Mestre apenas por não-judeus e por

Judas (cf. 26,25.49). Os discípulos chamam Jesus apenas de Senhor (kurie).

Segundo Müller, “Mt não quer apresentar Jesus como mestre judaico, e sim,

programaticamente, como o novo legislador”.351 O dito de Mt 5,17-20 faz parte de

um conjunto de ditos messiânicos, com cunho sapiencial.352

Vermes sugere a idéia de que Jesus foi um mestre influente. “Era uma figura

antes popular que profissional, um mestre itinerante que não anunciava sua

mensagem em local fixo tal como numa escola (bet midrash) ou numa sinagoga

determinada”.353 No entanto, a despeito dessa imagem de mestre, há na figura de

Jesus em Mateus mais um aspecto messiânico e salvífico do que meramente de

intérprete. “Em Mateus, a função salvífica de Jesus está no nível de seu papel de

legislador.”354

Em seu papel de mestre, Jesus utilizou com bastante propriedade as

Escrituras Hebraicas, ao menos da maneira como os evangelhos descrevem.

Considerando o cânon aceito comumente pelos judeus de seu tempo, é natural que

de Qumran, e mesmo os valores presentes no judaísmo helenístico. Mas foi a partir da década de 1970 que a pesquisa – já vislumbrando a abordagem da Third Quest – trabalhou com o Sitz im Leben da pregação ética de Jesus, e sua conseqüente relação com a Lei, no papel de Mestre (Rabi). Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., op.cit., p.375-381. 351 MÜLLER, “Doutrina/Ensino”, Dicionário Bíblico Teológico, p.111 et.seq. 352 Bultmann já indicara esse fato, associando o papel de mestre ao de messias: “Quando se coleciona seus ditos, isso não é feito só por causa de seu conteúdo doutrinário, e sim porque são as palavras dele, do futuro rei. Segundo a concepção rabínica, o Messias, depois de aparecer, também se apresentará como mestre da Torá – a comunidade já possui a interpretação da lei por parte de Jesus e, no “Eu, porém, vos digo”, ela o ouve falar como o Messias. Em suas palavras já se possui a sabedoria e o conhecimento que, segundo a crença dos apocalípticos, o Messias proporcionará um dia.” BULTMANN, R., Teologia do NT, p.90. 353 VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.49. Sobre isso Meier lembra que, mesmo discutindo de igual para igual com os chefes de sinagogas, Jesus não teria nenhuma relação de origem com o grupo levita ou mesmo sacerdotal: ele seria um camponês galileu leigo. Um judeu marginal, p.343 et.seq. 354 BONNEAU, G., op.cit., p.188.

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Jesus tenha feito uso dos métodos de exegese e de utilização delas.355 Mas não se

pode afirmar que ele mesmo tenha sistematizado seu ensino, pois era um pregador

carismático, mais do que um mestre de escola.356

Aqui, é possível falar de uma aproximação entre Jesus e a figura de Moisés?

Talvez se possa, mas não sem muitas reservas do ponto de vista hermenêutico,

mesmo considerando o relato da transfiguração (que tem sua origem em

Marcos).357 O que realmente importa é a tarefa efetiva que Jesus realizou, e que

Mateus organizou em termos de um discurso com lugar, público e objetivos

definidos. E aqui cabe a nós verificar o que ele quis dizer com sua expressão de

não destruir, mas cumprir, e que aspectos da Lei Jesus cumpriu.

4.2.5. Síntese da análise sobre a Lei e os Profetas em Jesus Considerando o que foi abordado até aqui, podemos perceber que Jesus teve

um respeito pelas Escrituras hebraicas como qualquer judeu contemporâneo a ele,

mas manteve uma liberdade em relação às escolas de seu tempo, bem como em

relação às práticas correntes.

Na perspectiva mateana Jesus tinha um ministério de caráter profético, mas

é apontado como um mestre sábio, capaz de avaliar o texto sagrado tendo em

consideração fatores éticos mais profundos, nos quais a vida fosse o centro da

decisão. Sua independência em relação à paradosis – a tradição dos Pais, ou à

Torá Oral – se explica pelo fato dele não se vincular a nenhuma corrente em

355 Como afirma FLUSSER: “O método de exegese empregado por Jesus é o dos antigos midrashim rabínicos, e mesmo que as conclusões pessoais de Jesus sejam às vezes ousadas, todas elas permanecem bem dentro do contexto do pensamento e exame rabínicos e de modo nenhum contradizem métodos de interpretação das Escrituras judaicas.” Op.cit. p.32. 356 VERMES, G., op.cit., p.49-70, confirma essa idéia em sua análise de Jesus como Mestre. Na verdade, o que marcou o ensino de Jesus foi sua exousia – autoridade – que chocava e maravilhava sua audiência. Vermes comenta: “não seria razoável duvidar que Jesus tenha jamais recorrido a argumentos bíblicos, e entre estes, como foi sugerido, gozam das pretensões mais fortes de autenticidade a adoção da expressão bíblica, o emprego de precedentes escriturais e a interpretação enfática ou hiperbólica dos mandamentos com os quais todos os seus contemporâneos estavam familiarizados. Mas essas instâncias são poucas e isoladas e de modo nenhum formam um corpus bastante sólido para dotar a pregação de Jesus de poder excepcional.”, p.70. 357 Por ex. Crüsemann expõe que já no pós-exílio Moisés alçou à categoria de ‘carisma’, sendo identificado em Esdras, pelo seu papel de promulgador da Torá, com o Sinédrio e seu predecessor, o conselho dos anciãos do período helenista, por usa competência jurídica, e de uma forma especial, com os grupos que elaboraram os documentos geradores do Pentateuco, pois, apesar de suas divergências, tiveram em Moisés a figura agregadora, que permitiu a coexistência de projetos tão diferentes num mesmo documento. CRÜSEMANN, A Torá, p.154-158. Além disso, Cullmann admite que a crença popular do Moisés ressuscitado, advindo dos escritos apocalípticos judaicos, não se coaduna com os evangelhos, pois estes reforçam mais a figura de Elias. CULLMANN, Cristologia, p.35 et.seq.

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especial. Mesmo assim seu ensino e posturas, conquanto apresentasse novidades,

em muitos aspectos está próximo de outros mestres de seu tempo. A novidade de

Jesus talvez estivesse numa proximidade com elementos da religiosidade popular,

especialmente no que se refere a um senso escatológico de sua mensagem, coisa

que vamos nos analisar amiúde em outro ponto.

Em relação à Lei Jesus afirma categoricamente o cumprimento, não a

anulação. Vamos analisar este aspecto para entender o pensamento do mestre

judeu, chamado Jesus.

4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b)

A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas, que já vimos se tratar

das escrituras judaicas e especialmente da revelação da vontade de Deus para a

vida das pessoas, assume uma postura aparentemente ortodoxa: não veio

anular/destruir, mas cumprir. Um olhar mais atento, no entanto, vai nos levar ao

profundo sentido das palavras de Jesus, e as implicações para seus ouvintes.

Logo de início, nos deparamos com a declaração mais forte: “Eu (não) vim”

[(ouvk) h=lqon], que J. Jeremias relaciona com o “Vegw,” enfático. Para ele, nos ditos

autênticos de Jesus – pré-pascais – não há títulos messiânicos, pois ele não se

refere a si mesmo com títulos, com exceção de “Filho do Homem”.358 A

terminologia que indica uma autoconsciência messiânica está presente no uso do

“Vegw,” enfático, que aparece em Mt 5,17 na expressão h=lqon, indicativo aoristo

ativo, na 1ª pessoa singular do verbo e;rcomai, “vir” ou “ir”.359

Mateus reuniu esse dito, pois considerava que ele estava intimamente

relacionado à sua comunidade. Vamos analisar um pouco o significado das

expressões “anular” e “cumprir”, para assim podermos nos aproximar da

hermenêutica geral do dito.

4.3.1.

358 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.362. 359 Cf. RUSCONI, C., “h=lqon” e “e;rcomai” Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.218, 199. Esse dito tem um equivalente na literatura rabínica, no Shabbat 116a, que parece ser uma anedota em relação ao evangelho de Mateus. Cf. BILLERBECK I, p.241; JEREMIAS, J., op.cit., p.143 et.seq. Apesar de não acrescentar nada de novo, visto que o registro desse texto é do séc. 3 d.C., Jeremias destaca o fato dele ajudar a perceber o substrato aramaico.

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Jesus não veio anular - katalu/sai

A etimologia de katalu/sai junta a preposição kata, com o verbo lu,w, que “é

usado em uma variedade de sentidos em conexão com as instituições do

judaísmo.”360 No grego clássico, e de acordo com o uso no Novo Testamento, no

ativo tanto pode ter o sentido de “lançar para baixo”, “destacar”, “destruir”,

“demolir”, “desmanchar”, como pode indicar “acabar com”, “abolir”, “anular”,

“tornar inválido”.361 Estes últimos sentidos estão mais próximos do contexto

jurídico imediato do v.17, posto que este verbo é considerado um termo chave

para discussões em torno da constituição e das leis de um povo na política

grega.362 O termo “destruir” é mais apropriado para o sentido de terminar com

alguma coisa concreta, como o templo em Mt 24,2.363

R. Banks aponta para a mesma interpretação, visto que em outras passagens

o verbo katalu/w, além de ter o sentido de “destruir” (no caso do templo), está

contrastando com o verbo oivkodomw/n, “edificar”.364 O mesmo sentido se dá em

outros lugares, como At 5,38; Rm 14,20. Mas, em passagens pré-cristãs onde

aparece explicitamente o termo Lei, o sentido para katalu/w é “abolir” ou “anular”

(cf. 2 Mac 2,22; 4 Mac 5,33).365 Segundo P. Bonnard, o verbo não designa uma

refutação teórica a respeito da Lei, mas uma atividade própria que liberta ou

sustenta os homens para além de sua autoridade. Seria assim, uma polêmica

contra o legalismo rabínico.366

Qual seria o sentido de “não vim para anular a Lei”? Maldonado aponta para

algumas possibilidades: a sentença seria uma resposta aos judeus, que o acusavam

de destruir a Lei, ou mesmo contrapor essa acusação, contra os escribas e

intérpretes da Lei (cf. Mt 7,29; 15,9). Outra explicação seria o dito como uma

360 BROWN, “luw”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1977. 361 Cf. BROWN, “luw”, op.cit., p.1983. Também. RIENECKER, F. e ROGERS, C. Chave Lingüística do Novo Testamento, p.254. 362 Cf. BALCH, “Greek Political Topos peri no,mwn and Matthew 5:17,19 and 16:19”, p.68-76. 363 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.190. Fitzmeyer, no entanto, entende que o significado é o de abater, “como uma tienda de campaña”. Comentario Bíblico “San Jerônimo”, Tomo III, NT I, p.185. 364 De acordo com Martin, a relação katalu/sai e plhrw/sai está no aspecto de mútua exclusão: se não veio para anular, é porque veio cumprir. Há outros ditos de Jesus em que há esse paralelismo (Mt 9,13; 20,28; 10,34b). MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.65. Trilling aponta que essa estrutura também está presente em Marcos (Mc 2,17b; 10,45). El verdadeiro Israel, p.250. 365 BANKS, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.229. Martin também aponta esses textos, “Matthew on Christ and the Law” p.65. 366 BONNARD, L’Evangile selon Saint Matthieu, p.61.

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transição para iniciar a parte do sermão que trata da interpretação mais adequada

da Lei, e assim Jesus quis deixar bem claro que não estava destruindo a Lei, mas

aperfeiçoando-a, ou seja, explicando-a de acordo com o pensamento do legislador.

Assim, há uma interligação com a parte posterior que encabeça as antíteses:

“ouvistes o que foi dito aos antigos; (...) eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti

evrre,qh toi/j avrcai,oij( (...) evgw. de. le,gw u`mi/n] .367 Como aponta I. Mazzarolo,

nessa tensão “Jesus revela sua soberania e superioridade absoluta em relação ao

que foi dito. Agora não é mais o tempo antigo, arcaico, mas o tempo próprio,

novo.”368

De acordo com Stanton, na verdade esse dito tomou forma de uma resposta

aos críticos da comunidade, que diziam ter abandonado a Lei, posto que estavam

inseridos no contexto judaico mais forte. Seria assim, um texto panfletário: “Jesus

não veio destruir a Lei e os Profetas”.369 É o que aponta Jeremias: “Jesus, pois,

responde à insinuação (mh. nomi,shte [não penseis]) de que seria um antinomista,

dizendo que sua tarefa não é a dissolução da Torá, mas o seu preenchimento.”370

Para a comunidade de Mateus isso teve um significado muito importante. A

afirmação de Jesus tem, no evangelho, um sentido de advertência para os

antinomianos. Segundo Overman, “Mateus acredita que tanto Jesus como sua

comunidade, que age de acordo com os ensinamentos de Jesus, são seguidores e

cumpridores da Lei.”371 Mas de que forma Jesus cumpriu a Lei? É o que veremos

a partir do sentido de plhrw/sai, a seguir.

4.3.2. Jesus veio cumprir - plhrw/saiÅ

367 MALDONADO, J., Comentarios a los Cuatro Evangelios, p.247. W.Carter parafraseia da seguinte forma: “o mandamento é conhecido pela audiência (Ouvistes) como palavra de Deus (a forma passiva foi dito) confiada a gerações anteriores (aqueles de tempos antigos).” p.195. 368 MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.88. 369 STANTON, G.N., A Gospel for a new people, p.300. BARBAGLIO, no entanto, afirma que na verdade seria “uma opinião difundida na Igreja”, ou seja, seria uma polêmica interna. Os Evangelhos I, p.119. 370 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.144. Cf Também Marguerat, M., Le jugement dans l’Evangile de Matthieu, p.125 et.seq.; LUZ, U., Matthäus, p.232. 371 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.93. De acordo com Stanton, pode ser interpretado como ‘nem mesmo se sintam tentados a pensar...’. STANTON, G.N., op.cit.,p.48 et.seq.

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Jesus não veio anular a Lei e os Profetas, mas cumprir. De que maneira? O

termo plhrw/sai, cuja interpretação tem sido fruto de longo debate, deve ser bem

analisado para a plena compreensão do dito de Mt 5,17-20.

O uso de plhrhj e seus derivados aparecem na literatura grega desde

Ésquilo, e seu significado está relacionado com a raiz comum, plh, que significa

“cheio”, “plenitude”. Literalmente quer dizer “encher um vaso”, para que se

chegue ao plhroma, ou o vaso cheio. Em termos metafóricos, ganha o sentido de

“cumprir” um desejo, “atender” uma oração, “acalmar” a ira, “satisfazer” uma

vontade, “cumprir” uma obrigação ou “realizar” um trabalho, além de outros

sentidos, inclusive de tempo cumprido.372

No Novo Testamento o termo aparece 86 vezes, é um “termo técnico que se

emprega em conexão com o cumprimento da Escritura e também como

designação do cumprimento do tempo num sentido escatológico.”373 Quanto a

essa dupla possibilidade teremos que investigar as interpretações que têm sido

feitas a respeito, para ver qual sentido cabe melhor no dito de Mt 5,17.

Em geral, Mateus trabalha muito na perspectiva do uso de plero/w como

cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento em diferentes ocasiões da vida

de Jesus, desde a concepção e nascimento374, depois no começo do ministério na

Galiléia375, e finalmente nos acontecimentos da paixão, como cumprimento de

profecias376. Mas dois ditos (3,15 e 5,17), exclusivos de Mateus, não estão

associados ao cumprimento de algum texto do Antigo Testamento específico, e

sim com a messianidade de Jesus. De acordo com Obelinner, “nesses dois textos,

Jesus liga sua convicção de ser o enviado de Deus aos conteúdos centrais da

história da revelação a Israel”.377

O texto de 3,15 trata do batismo de Jesus por João, em que declarou ser

necessário “cumprir toda a justiça” [plhrw/sai pa/san dikaiosu,nhn]. Não se trata

de fazer a vontade de Deus, visto que Mateus utiliza outros verbos para esse 372 Cf. SCHIPPERS, “plhro,w”, Dicionário de Teologia do Novo Testamento, p.1671. 373 Ibid., p.1673. Na verdade, a relação com as escrituras do AT e seu cumprimento é sistematizado no esquema “promessa-cumprimento”, especialmente em textos com valor cristológico. Cf. OBELINNER, “Cumprir/Encher/Plenitude”. Dicionário Bíblico Teológico, p.85. 374 Em 1,22s = 7,14; 2,6 = Mq 5,1-3; 2,15 = Os 11,1; 2,17s = Jr 31,15; 2,23 = Jz 13,5. 375 Em 4,14-16 = Is 8,23-9,1; 8,17 = Is 53,4; 13,35 = Sl 78,2; 12, 17-21 = Is 42, 1-4. 376 Em 21,5 = Is 62,11 e Zc 9,9; 27,9s = Zc 11,13 e Ex 9,12. 377 OBELINNER, op.cit., p.87. Cf. Também. a análise de G. BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, Tradition and Interpretation in Matthew, p.68; BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.229 et.seq.; MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.126. PARISI, S., “Giustizia superiore e fede ‘estroversa’”, p.52.

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significado, como poiein, threin e fulassein, mas realizar a vontade salvífica de

Deus, de acordo com sua proclamação do reino de Deus e suas ações.378 Essa

afirmação sobre o cumprir a justiça é o motivo para Jesus se submeter ao batismo

de João, mesmo não tendo real necessidade dele.379

A melhor maneira de entender o sentido de plerw/sai em 5,17 é buscar o seu

correspondente aramaico, de acordo com as pesquisas realizadas a respeito, a

partir de textos correlatos do Talmude.380 Mesmo esse texto sendo posterior ao

tempo de Jesus (século III d.C.) ele ajuda a perceber que palavras podem ter sido

usadas com sentido similar, tendo em consideração que ele também se reporta a

tradições rabínicas mais antigas. Conforme o estudo de Jeremias, o Tb Shabbat

116b afirma:

at;)yy>r;wOa !mi tx;p.mil. al;) an;)a]

tytea] hvemD.

Eu não vim para tirar algo

da lei de Moisés

at;)yy>r;wOa l[; ypes;)wOal. aL;)a,381

tytea] hvemD.

Antes vim para acrescentar

à lei de Moisés

No caso desse texto katalu,sai (anular) corresponde ao aramaico tx;p.mi

(tirar fora), e plerw/sai (cumprir) corresponde ao aramaico ypes;)wOa (aumentar,

acrescentar, alargar). Assim, Jeremias afirma que

a tradução de ´osape (“acrescentar”) com plerw/sai [tornar pleno] no grego expressa adequadamente que o propósito do “preenchimento” é atingir a medida

378 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.142 et.seq.; BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.91 et.seq; LANGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.54. MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.126 et.seq; ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.52. 379 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p93 et.seq. J. GNILKA comenta o seguinte a respeito: “Que Jesus recebeu o batismo de João não pode ser posto em dúvida seriamente. Este fato, manifestamente, trouxe dificuldades para a comunidade cristã. Mt 3,14s sabe relatar a respeito de uma conversa ocorrida durante o batismo, tendo como pano de fundo que o batismo não se coadunava com a condição de Jesus.” Jesus de Nazaré, p.78 380 Especialmente o Shabbat 116a, cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.241; JEREMIAS, J., (cita como Shabbat 116b), Teologia do Novo Testamento, p.142 et.seq.; BARTH, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.92 et.seq.; MARTIN (também cita o Shabbat 116b), “Matthew on Christ and the Law”, p.65 et.seq. 381 Quanto a esse termo específico alguns manuscritos trazem aL;)w> em vez de aL;)a,. Isso muda totalmente o sentido, pois o primeiro significa “nem”, ou seja, Jesus não teria vindo nem para tirar, nem para acrescentar nada à Lei. O segundo, conforme constatada na tradução, aponta para a mudança que Jesus veio trazer. Jeremias preferiu o segundo sentido, conforme consta no texto apoiado também num texto do cristianismo judaico, o Recognitiones Pseudoclementinas, e numa fonte judaico-cristã, que afirma pelo sentido de Jesus não veio “para diminuir, mas, pelo contrário, para completar”. Cf. JEREMIAS, op.cit., p.144.

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plena. Temos aí a idéia da medida escatológica, que Jesus usa em outros lugares; plerw/sai é, portanto, um termo técnico escatológico.382

Jeremias, nesse sentido, considera que Mt 5,17 é a “expressão mais aguda”

da consciência de plenipotência de Jesus. Para ele o ponto central do dito é o

verbo plerw/sai.383

Outro que analisou profundamente o termo foi Barth, e em sua interpretação

de plerw/sai, uma possibilidade é o sentido de “completar”, que combina com as

idéias expostas em 5,21-48. Ou seja, assim interpreta-se plhrw/sai à luz de 21-48.

Seguindo alguns que procuraram o substrato aramaico da palavra, Barth chegou

ao termo ~Yeq384;, “tornar com efeito”, “confirmar”, e, em conexão com 21-48,

“ensinar”. O problema, para Barth, é o critério para a interpretação de um termo

que é especificamente mateano, para determinar, em primeiro lugar, em que

medida ela concorda com o contexto, e em segundo, em que medida ela concorda

com linguagem usual de Mateus em seu ambiente. Para isso, é preciso interpretar

plhrw/sai à luz de outras passagens em Mateus.385

Assim, Barth considera que o sentido de plhrw/sai em 5,17 não é nem o

simples “fazer”, como cumprimento mecânico da Lei, nem “determinar” o

verdadeiro sentido dos mandamentos, mas “estabelecer” a Lei e os Profetas, como

o próprio estabelecimento da vontade de Deus. Isso é marcado pelo fato da obra

de Cristo ser precisamente a realização da vontade de Deus, de acordo com a

cristologia de Mateus. Esse sentido se aproxima, da mesma maneira, do sentido de

plhrw/sai em 3,15.386 De fato, o estabelecimento do juízo de Deus é o pano de

fundo desse dito, bem como o de 3,15. Especialmente os versos 17 e 18c

382 Ibid., p.144. 383 Ibid., p.142. 384 Também pensado por BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.241, contra a lógica de Jeremias, exposta acima. G. VERMES também pensa nesse termo, e afirma: “Os antônimos ‘revogar/cumprir’ correspondem ao hebraico-aramaico lebbatel-lebattela/ leqqayem-leqqayema. Um bom paralelo é fornecido pela Mishná: ‘Aquele que cumpre a Torá na pobreza, a cumprirá mais tarde na riqueza; e aquele que revoga a Torá (quer dizer, não a observa como se ela estivesse nula e vazia) a revogará mais tarde na pobreza’ (mAb. 4,9).” A religião de Jesus, o judeu, p.27. 385 BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.68. Mateus frequentemente usa o passivo de plhro,w em conexão com trechos do Antigo Testamento, enquanto em 5,17 e 3,15 ele usa o ativo plhrw/sai. (Em geral a LXX traduz para plhrwth/nai,o verbo alm, como em 1 Rs 2,27: hw"hy> rb:åD>-ta, aLem;l. = plhrwqh/nai to. r`h/ma kuri,ou. Também em 1 Rs 8,15.24; 2 Cr 6,4.15; 36,21.22). 386 Ibid., p.69. Ele comenta: “This interpretation is further supported by the following fact: the establishing of the will of God as the work of Christ plays an important part in the Christology of Matthew.”

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pertencem a esse contexto, que indica o fato de que o ensino de Jesus em

plhrw/sai está vinculado com o estabelecimento da Lei, da vontade de Deus.387

Nesse sentido, então, G. Barth concorda com J. Jeremias, que plerw/sai

aponta para um evento escatológico. A favor dessa interpretação encontramos L.

Goppelt, que explica a frase de 5,17 não somente com uma intenção apologética,

mas que positivamente também tem a intenção de “apresentar Jesus como aquele

que traz a consumação.”388 Para Goppelt, só podemos interpretar plhrw/sai à luz

do cumprimento escatológico das Escrituras. O fato de Mateus acrescentar ao dito

de Q (v.18) a afirmação do sermão escatológico de Jesus (Mc 13,31 par Mt 24,35)

só reforça essa idéia.389

B.L. Martin aponta seis diferentes possibilidades para plerw/sai: (a) “fazer”

ou “realizar”; (b) “estabelecer”; (c) “dar o verdadeiro sentido”; (d) “manter

intacto”; (e) “realizar o evento salvífico”; (f) “consumar escatologicamente”. Ele

aceita como melhor sentido o último, em nível escatológico, a partir da análise de

Jeremias.390

G. Barbaglio aceita que a intenção do dito é que a vinda de Jesus trás certa

superação, mas por um processo de completar, tornar pleno. A escatologia fica

por conta da aceitação de cada discípulo dessa plenitude da Lei, e do viver

segundo sua revelação em Cristo, para que possam participar da salvação final.391

W.G. Kümmel, conhecido por sua visão de uma escatologia realizada, considera

que Jesus está concretizando um evento escatológico, pois “reivindica que, com a

sua pregação da vontade de Deus, irrompeu um novo e definitivo tempo da

revelação da vontade de Deus. Conseqüentemente, Jesus entendeu ser sua tarefa

de dar o sentido verdadeiro à revelação transmitida até então”.392 É nesse sentido

que se contextualizaria o dito de 5,17.

Contra essa idéia de cumprimento escatológico, porém, temos outros

pesquisadores que interpretaram o dito de maneira diversa. M. Lagrange, para

quem o sentido de plhrw/sai está ligado ao pleno cumprimento da Lei, tanto em

termos de realização quanto de interpretação: Jesus veio aperfeiçoar a Lei.393

387 Ibid., p.147. 388 GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p.455. 389 Ibid., p. 132; 456. 390 MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.64 et.seq. 391 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. 392 KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76. 393 LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.93 et.seq.

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Também P. Bonnard não aponta para um sentido escatológico, mas considera que

“Jesus interpreta a Lei dada aos Pais revelando o significado radical.”394

Outros pesquisadores tentaram não se ater a uma interpretação escatológica,

mas voltada para a plenitude do cumprimento em Jesus. É o caso da análise de J.

Maldonado; para ele no texto de 5,17 plero/w guarda certa relação de sentido com

3,15, pois se trata também ali da vontade salvífica de Deus, por meio da

obediência de Jesus. E ele certamente veio cumprir a Lei. Primeiro, porque,

enquanto vigorou a Lei, Jesus a cumpriu de forma diligente, como também os

seus discípulos, inclusive na guarda de datas como a Páscoa. Em segundo lugar,

ao interpretar a Lei, Jesus a aperfeiçoou. Na verdade, Jesus foi ainda mais severo

do que a Lei, em questões como vingança, o matar o próximo, o adultério, etc.

(elementos que ele trabalhou nas antíteses). Em terceiro lugar cumpriu a Lei por

meio da graça divina. Em quarto lugar, tudo o que estava prometido, mas oculto

na Lei, Jesus revelou à humanidade (cf. Lc 24,44). Se na Lei e nos Profetas se

distinguem quatro partes: promessas e vaticínios, preceitos do Decálogo,

cerimoniais e judiciais, Cristo cumpriu tudo. As promessas e os vaticínios,

realizando o predito e prometido; os preceitos morais do Decálogo,

aperfeiçoando-os; os cerimoniais, mostrando o que eles realmente significavam,

por exemplo, na circuncisão da carne, depois recebendo o batismo e apontando

para a circuncisão do coração; e os judiciais, substituindo os prêmios e os castigos

corporais e temporais por outros espirituais e eternos. 395 Ou seja, Jesus

interpretou a essência e o espírito da Lei, contra as tradições e distorções

realizadas pelos fariseus em sua interpretação casuística.

Quem também interpretou nessa linha foi J. Fitzmeyer. Para ele a missão de

Jesus é dar plenitude. O termo não se refere simplesmente a uma observância

literal, pois as antíteses negam essa possibilidade. Jesus afirma a vigência

permanente da Lei tal como ela é afirmada nos escritos rabínicos, mas não a Lei

de Moisés com as doutrinas orais explicativas, e sim a Lei completa e perfeita.396

É a questão colocada por G.N. Stanton: da perspectiva de Mateus, Jesus

estabeleceu a real intenção da Lei? Ou ele confirmou ou estabeleceu a Lei? Esse

último sentido é mais apropriado considerando os argumentos lingüísticos 394 BONNARD, P.: “Jesus interprète la Loi donnée aux peres en révélant la signification radicale”. L’Evangile selon SAint Matthieu, p.61. 395 MALDONADO, J., Comentario a los cuatro evangelios, p.248 et.seq. 396 FITZMEYER, J., Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.185.

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baseados no uso do aramaico que Jesus falava, ou mesmo pela ligação com os

v.18 e 19, pois ambos confirmam a importância da Lei.397

R. Banks, ao contrário de Fitzmeyer, aponta para o cumprimento das

Escrituras. O ponto central do sentido está na idéia da novidade e superioridade de

Jesus diante da Lei, daí o cumprimento. As instruções de Jesus em 21-48

exemplificam essa superioridade. O sentido que se pode dar para o termo

“cumprir” está profundamente vinculado ao seu objeto – a Lei e os Profetas – e

inclui tanto elementos de descontinuidade (o que supera a Lei em seu objetivo)

quanto elementos de continuidade (o cumprimento daquilo que a Lei aponta como

vontade de Deus).398

W. Trilling, ao analisar a questão, levanta outra idéia, também não

escatológica. Mateus diferencia entre pleroun [cumprir, completar] e telein [levar

ao seu fim], em que o primeiro tem um sentido mais religioso, enquanto este

último, um sentido mais profano. pleroun é um verbo que se utiliza conectado

com o cumprimento das Escrituras. O sentido do verbo no dito pode ser

interpretado como: a prática de Jesus a partir da Lei, considerada, juntamente com

os Profetas, como a “vontade de Deus revelada e registrada na Escritura.”399

Também pode ser o cumprimento das profecias como um todo, na vida de Jesus.

Nesse caso, plerw/sai em 5,17 pode ser pensado como a realização que Jesus

provocou dos acontecimentos preditos na Escritura, considerando que a Lei e os

Profetas têm a função profética, na perspectiva da história da salvação.400 Mas

Trilling não consegue ver em nenhuma das interpretações acima – seja de cumprir

no sentido de fazer, seja no sentido de realizar as profecias – uma solução

satisfatória. Por isso aponta para uma terceira hipótese, em que a relação entre

katalu,ein e plerou/n não deve ser entendida como contraditória, mas superlativa.

O peso deve estar em cima da expressão positiva “cumprir”, portanto, é o cumprir

de Jesus o eixo hermenêutico da passagem, e não o anular. Jesus veio trazer pleno

cumprimento, por meio do seu ensinamento, da vontade de Deus, sem anular o

que já foi revelado anteriormente, mas dando pleno efeito aos ensinamentos

efetuados por ele em seu poder (cf. Mt 7,29). Assim, o Antigo Testamento

397 STANTON, G.N., A Gospel for a new People, p.300,320. 398 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.229 et.seq. 399 TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.252. 400 Ibid., p.253.

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mantém o seu valor como objeto material de estudo, e o seu caráter normativo é o

objeto formal.401

Parisi pensa na mesma perspectiva: Jesus não veio para anular a validade do

AT: o verbo deve ser entendido no sentido de dar à lei aquela finalidade que os

fariseus criam poder dar. Esse significado é alinhado com o conteúdo do v.18:

Mateus está propondo uma releitura da Lei e dos Profetas em perspectiva

cristológica; dessa ótica emerge que a vontade de Deus tem um valor permanente

mesmo em sua mínima expressão; isso é fundamental para Mateus.402

Há uma terceira linha de interpretação que, ao considerar o dito uma

construção redacional de Mateus, tem por premissa a idéia de que 5,17 quer

responder aos questionamentos feitos à comunidade, seja por outros cristãos, seja

por outros setores do judaísmo. É como interpreta Bornkamm, pois segundo ele

essa afirmação de Mateus é uma resposta contra uma posição que “proclamava

como missão de Jesus a anulação da vontade de Deus atestada na Escritura e a

instauração de uma nova era isenta de lei.”403

De acordo com Overman, para quem o evangelho é, em sua maior parte,

uma construção do evangelista, essa pode ser considerada a passagem-chave para

entender “a concepção de Mateus quanto à Lei”.404 Mt 5,17 aponta para o fato de

que Mateus e sua comunidade “não violam a Lei, mas compreendem-na e

cumprem-na completamente”405, considerando ainda afirmação do v.19. Isso tem

a ver com uma interpretação adequada da Lei, e que muitas vezes contrariava

outras, que tinham sentido oposto. Assim, o que Mateus faz na afirmação de que

Jesus não veio anular a Lei, mas cumpri-la, é responder à acusação de que a

comunidade não segue a Lei. Como a perícope identifica os escribas e fariseus

como os oponentes nesse mister, isso representa que no contexto da comunidade

eram eles que acusavam os seguidores de Cristo de anomia. Mas isso aponta

também para o fato de que a defesa de Mateus e suas acusações contra os fariseus

(especialmente no cap.23) fazem parte de um cenário de disputa ideológica, em

que os diferentes grupos estão em conflito aberto.406

401 Ibid., p.250-257. 402 PARISI, op.cit., p.52. É a linha de interpretação de Vermes; ele admite que 5,17 está vinculado à idéia de cumprimento de profecia. A religião de Jesus, o judeu, p.27. 403 BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167. 404 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92. 405 Ibid., p.93. 406 Ibid., p.94.

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Alguns pesquisadores interpretaram plerw/sai para além da perícope de

5,17-20 em si, mesmo considerando tecnicamente o significado do termo.

Dautzenberger afirma que, sob o aspecto teórico o “cumprimento da lei” é

apresentado essencialmente em três sentidos: como retorno à vontade de Deus

(19,1-9; 15,4), como concentração no mandamento do amor (23,39s) e como

realização prática por meio da acentuação perfeita. O amplo conceito de

“cumprimento” comporta esta aplicação múltipla. O elemento decisivo do

“cumprimento” se acha na concentração no mandamento do amor.407 Nesse

sentido Schippers chega a afirmar que o “cumprimento não deve ser entendido de

modo formal.”408 O fundamento para o cumprir de Jesus é o amor, o qual Jesus

demonstrou desde o início, quando declarou que estava cumprindo toda a justiça

(3,15).409

Flusser, em sua visão desde a perspectiva judaica, aborda a questão não a

partir da prática das normas de forma rigorosa, mas de sua essência, através da

qual o cumprimento de certo preceito abrange os demais. Ademais, ele aponta

para o fato de que Jesus não foi o único a desejar resumir a Lei numa busca por

seu sentido ético mais amplo.410 Para ele, inclusive, é preciso simplificar o sentido

do texto, pois, “seguindo a linguagem costumeira de sua época, ele evitou a

acusação de que a exegese da Lei que se seguia ab-rogava o significado original

407 DAUTZENBERG e SCHREINER, Formas e exigências do Novo Testamento, p.292. 408 SCHIPPERS, “cumprir”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1676. 409 É o caso de D. FLUSSER, em seu artigo sobre o Sermão do Monte: “A última citação (“Amarás o teu próximo”, Lev 19:18; ver Mt 5:43) e sua explicação encerram todo este trecho, porque esse versículo foi considerado o ‘grande resumo da Torá’, não apenas de acordo com o ponto de vista rabínico, como também de acordo com o próprio Jesus (Mt 22:34-38 e paralelos). “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, p.32. Na verdade não se pode excluir esse sentido na hermenêutica geral da perícope. 410 FLUSSER, D., Jesus. p.40. Ele cita comentários de escribas no Mekhilta sobre Êxodo 31,14: “O Sábado vos foi dado, não vós ao Sábado”, relacionando com Mc 2,27-28. Deve ser lembrado também o clássico paralelo entre a Regra de Ouro de Hillel (Também Shabbat 31a) e de Jesus em Mt 7,12, par Lc 6,31, ambos colocados em partes do sermão do monte ou planície. Quanto ao fato de Hillel tratar do tema no negativo (“não façais”, enquanto Jesus reforça o positivo (“façais”), os autores tendem a considerar que Jesus desejou reforçar mais o sentido positivo, como JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.311 et.seq. Entretanto, VERMES compara com outros textos rabínicos que tanto podem tratar de forma negativa quanto positiva, A religião de Jesus, o judeu, p.43-46. FLUSSER vai mais longe e considera que, de fato, ambos defendem o mesmo ponto de vista: “Jesus e Hillel viam a Regra de Ouro como uma síntese da Lei de Moisés. Isso se torna inteligível quando consideramos o dito bíblico, “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19:18) era tido por Jesus e pelos judeus, em geral, como o mandamento da Lei.

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das palavras da Bíblia”.411 Desse modo, descarta-se na interpretação de Flusser

qualquer senso escatológico no texto.

Cabe agora uma breve análise do modo como Jesus cumpriu a Lei, para uma

compreensão mais ampla do dito no contexto da comunidade de Mateus.

4.3.3. Como Jesus cumpriu a Lei

Jesus foi circuncidado ao oitavo dia (cf. Lc 2,21412), o que em si já indica

que o seu ambiente natural foi como judeu observante da Lei.413 Dentro da

tradição transmitida pelos evangelistas – mesmo com as interferências redacionais

em relação aos eventos – transparece em vários momentos esse respeito à Lei, ao

mesmo tempo de uma aparente liberdade na interpretação de questões pontuais.

4.3.3.1.

Jesus e aspectos relativos à observância em geral

O relato da Paixão mostra-nos que, considerando a época em que aconteceu

a derradeira ceia de Jesus com seus discípulos, eles estavam observando as datas

festivas da tradição de Israel, segundo Ex 23,14ss.414 Outro aspecto peculiar que

aponta para a observância regular da Lei são as vestes. De acordo com dois relatos

de cura (Mt 9,20 e par; 14,36) as pessoas tocam na borda das vestes de Jesus, que

tinham “franjas” – gr. kraspe,dou / heb. tciyci – em concordância com Nm 15,38-

40 (e sua tradução para a LXX). Além disso, uma narrativa pitoresca a respeito do

411 FLUSSER, D., Jesus, p.65. Também D. MARGUERAT trata do cumprimento relacionado com amor, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.128, bem como CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.55. No entanto, W. CARTER afirma cabalmente que “alguns sugeriram que Jesus cumpre a lei e os profetas ensinando a realizar o amor (22,34-40). Mas enquanto Paulo faz esta argumentação (Rm 3,8-10; Gl 5,14), o verbo plhro,w (plêroô) está ausente no ensinamento de Jesus sobre o amor em Mt 22,33-40. O Evangelho de São Mateus, p.191. Como apontado acima, Carter compreende o cumprir como Jesus implementando a “vontade salvífica de Deus, previamente revelada, na sua proclamação do império de Deus e nas suas ações.” 412 Curiosamente, Mateus omite essa informação, talvez por considerá-la óbvia aos seus ouvintes. 413 De um modo geral podemos afirmar que “a representação geral de Jesus que emerge dos Evangelhos Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua nação.” VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21. FLUSSER denomina Jesus de “judeu, fiel à Lei.” Jesus, p.37. THEISSEN analisa a postura de Jesus como uma ambivalência de postura, com a intensificação e abrandamento das normas da Lei. O Jesus Histórico, p.388-399. 414 Nesse sentido, o evangelho de João é ainda mais aberto, pois mostra Jesus indo com seus discípulos diversas vezes a Jerusalém, a fim de participar das festas. Se foi um artifício metafórico por parte dele, ao menos reflete a possibilidade de Jesus ter feito isso. No evangelho, tem a intenção de mostrar um Jesus mais dinâmico, missionário. Cf. MAZZAROLO, I, Nem aqui, nem em Jerusalém, p.39.

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pagamento de imposto para o templo (Mt 17,24-27), que guarda um certo humor,

coloca Jesus questionando, mas, por fim, obedecendo ao imposto.415

4.3.3.2.

Jesus e as controvérsias sobre o Sábado e pureza levítica

Entretanto, encontramos muitos relatos em que Jesus assume uma posição

de questionamento, não à Lei, mas às interpretações dadas por outros grupos

religiosos. Mas esses questionamentos estão presentes na vida de “todo judeu

crente que leva a sério seu Judaísmo.”416 Em geral esses questionamentos

aparecem em relatos de controvérsia, amparados por situações concretas, em

geral, de cura ou de comportamento. Destacam-se dentre eles a polêmica sobre o

sábado e as normas de pureza levítica.417

A respeito do sábado, de um modo geral Jesus não fez nada que o

quebrasse, com exceção de cura de pessoas em sinagoga e permissão para os

discípulos pegarem espigas no campo. A posição dele em ambos os casos contem

uma dupla demonstração, (1) de que ele é o Senhor do sábado418: “Porque o Filho

do homem até do sábado é Senhor.” (Mt 12,8), e (2) de que o sábado é dia de

praticar a misericórdia: “Pois, quanto mais vale um homem do que uma ovelha?

É, por conseqüência, lícito fazer bem nos sábados.”(Mt 12,12419). Na verdade, não

415 VERMES, op.cit., p.23 et.seq. Contra esse último exemplo, no entanto, L. F. RIBEIRO defende que o v.27 é um arranjo redacional posterior, indicando, com isso, que Jesus teria se recusado a pagar o imposto do Templo, assim como muitos camponeses e grupos antagônicos à estrutura templária o fizeram. RIBEIRO, L.F. “‘Livres são os Filhos’ (Mt 17,24-27) O Jesus Histórico não pagava o imposto do Templo.” p.1-14. 416 FLUSSER, D., Jesus, p.37 passim. Na verdade, nos casos de cura, os preceitos rabínicos proibiam não cura em si, mas o uso de elementos mecânicos; Jesus não usou nenhum instrumento, senão sua palavra, para realizar a cura no sábado. Cf. Também. VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.28-30. 417 Sobre o sábado Mateus registra narrativas de controvérsia no capítulo 12, 1-14; paralelo de Marcos, que também indica diversos acontecimentos no sábado (1,21-28; 2,23-3,6); sobre as questões de pureza levítica em Mt 15,1-20. Além disso, nas admoestações contra os fariseus (cap 23) há vários exemplos da prática farisaica que Jesus faz avaliação. Sobre a controvérsia com os fariseus, ver infra em 3.5. 418 Cf. GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.109. 419 A paralela de Mc 3,4 é ainda mais clara: “E perguntou-lhes: É lícito no sábado fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida, ou matar? E eles calaram-se.” Marcos também é o único a registrar o seguinte dito: “E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” Há um paralelo rabínico muito similar, que diz: “O Sábado foi dado a vós, e não vós ao Sábado.” Mekhilta sobre Ex 31,14, cf. FLUSSER, D., op.cit, p.40; VERMES, op.cit., p.30. Segundo Vermes, isso não quer dizer que o dito rabínico tenha tido Mc como fonte, literariamente anterior a ele, mas que essa era concepção geral entre os judeus piedosos do tempo de Jesus. BORNKAMM, no entanto, prefere interpretar que o dito de Jesus seria blasfemo em relação à ortodoxia, pois para ele o dito rabínico apenas aponta para a necessidade de consagrar o Sábado a

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há nenhuma prescrição da Lei ou da Torá Oral que proíba o fazer o bem no

sábado; pelo contrário, em caso de risco de vida é lícito fazê-lo. Por isso, o

questionamento dos fariseus não se refere realmente à Lei420, mas a prescrições

seguidas por eles. A misericórdia no caso da cura – mesmo não havendo risco

imediato para a vida do doente – é clara, mas e no caso das espigas de milho? Se

seguirmos certas interpretações rabínicas, também ali se aplica o princípio da

misericórdia: saciar a fome é mais importante que guardar o sábado. Além disso,

quando alguém colhe as espigas apenas com as mãos, sem instrumentos

mecânicos, não há quebra formal da Lei. Percebe-se de fato um exagero por parte

dos fariseus que interpelavam a Jesus e seus discípulos.421

Em outro momento, Jesus critica de fato a tradição dos anciãos [para,dosin

tw/n presbute,rwn],422 no episódio do lavar as mãos antes da refeição (Mt 15,1-20).

De novo aponta para um questionamento dirigido diretamente aos fariseus. Na

verdade, também nesse mister não há na Mishná nenhum relato exigindo o lavar

as mãos, apenas aconselhando a fazê-lo.423 O dito de Jesus sobre o que entra e o

que sai da boca, e o que contamina ou não em 15,11, e explicado aos discípulos

nos v. 17-20, pode dar a entender que ele não se preocupou com as normas de

alimento da Lei (cf. Lv 11; Dt 14). Mas considerando o fato de que o problema

Deus, pois o rabino Simão ben Menasiá inicia o dito com a seguinte advertência: “Guardarás o Sábado, porque ele santo para ti”. Jesus de Nazaré, p.169. 420 As diversas prescrições sobre o sábado no AT (por ex: Ex 16,23 – o relato fundante -; 20,10; 31,14s; Lv 23,3; Dt 5,12) são muito genéricas, e a tradição Oral organizou os diferentes modos pelos quais uma pessoa pode transgredir o sábado – o Tratado Shabbat, que aparece na ordem segunda da Mishná. Cf. COLLIN, M. e LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.46 et.seq. e 149. Ver Também a excelente exposição de GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.50-94, onde ele diferencia três concepções a respeito do sábado: (1) como normatização para a vida cotidiana; (2) em relação ao Cosmos, na concepção helenista; (3) como evento celestial, a partir de Qumran, mas não exclusivamente. A nossa abordagem nos interessa a primeira concepção. Também sobre a Mishná, Garcia dá alguns exemplos a respeito, p.168-172. 421 Cf. VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.30. Cf. Também FLUSSER, Jesus, p.40. Contra eles, porém, P.R. GARCIA, op.cit., p.140 et.seq. Ele interpreta que a quebra só se justifica mediante a autoridade de Jesus, superior a de Davi, que também quebrou princípios da Lei, como Jesus salientou ao lembrar do relato bíblico. 422 Sobre o assunto a respeito dos grupos antagônicos, ver cap.1.2.5. 423 Cf. o Tosefta Berakhot 5,13: “Lavar as mãos antes de uma refeição é aconselhável, a ablução após a refeição é obrigatória”. Apud FLUSSER, D., Jesus, p.37. BORNKAMM,G., no entanto, considera que no Judaísmo tardio, a exemplo do contemporâneo, a vida do judeu piedoso “era regulada pela exigência da pureza ritual e pela proibição de entrar em contato com o que era cultualmente impuro.” Jesus de Nazaré, p.170. MAZZAROLO, por outro lado, aponta que lavar as mãos antes da refeição “tinha um sentido de purificação também das culpas”. Evangelho de São Mateus, p.233.

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não estava no tipo de alimento comido, e sim na maneira de comê-lo, conclui-se

que não há na fala de Jesus nada que contrarie diretamente a Lei.424

4.3.3.3.

Jesus e as leis morais

E quanto às denominadas leis morais? Sem dúvida, são delas que Jesus mais

se ocupa, e às quais dá interpretações mais fortes. Tanto as antíteses (5,21-48)

quanto outras orientações ou respostas de Jesus no tocante a aspectos da lei moral

(a questão familiar em Mt 12,50; 10,37; 8,21-22; bem como o divórcio em 19,3-

12) parecem direta ou indiretamente relacionar-se com o decálogo – os

pronunciamentos associados a Moisés no monte Sinai.425 As antíteses tem, em sua

maioria, essa ligação conforme quadro abaixo:426

Antítese Texto Tema Relação na Torá

Primeira 5,21-26 Homicídio Ex 20,13

Segunda 5,27-30 Adultério Ex 20,14

Terceira 5,31-32 (19,3-12) Divórcio Dt 24,1.3

Quarta 5,33-37 Juramento Ex 20,7 / Lv 19,12

Quinta 5,38-42 Vingança Ex 21,24 / Lv 24,20

Sexta 5,43-48 O amor ao próximo Lv 19,18.34

Pelo quadro acima, percebe-se que, em três antíteses (1ª, 2ª e 4ª) Jesus

analisou leis diretamente do Decálogo. As demais são citadas de partes diversas

da Lei de Moisés, mas foram colocadas numa ordem que demonstra que o

objetivo de Jesus na observância da Lei é, acima de tudo, o amor ao próximo, o

qual deve reger o relacionamento entre as pessoas.427

Quanto às polêmicas sobre a lealdade familiar, está sempre em questão o

mandamento do decálogo sobre os pais, em Ex 20,12. Não há uma discussão

424 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p. 406 et.seq. FLUSSER, op.cit, p.38 et.seq. Na verdade ele aponta que “esse dito é compatível, na íntegra, com a postura legal judaica. O corpo de uma pessoa não se torna ritualmente impuro mesmo que ele tenha comido animais proibidos pela Lei de Moisés!” 425 Cf. VAUX, R.de., Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.176. 426 Seguimos a divisão das antíteses de VOUGA, Jesus et la Loi, p.200-274. BARBAGLIO considera que todas são autênticas, com exceção da terceira, que tem relação com o dito de Q em Lc 16,18, de outro contexto. Os Evangelhos I, p.120 et.seq. Entretanto, THEISSEN considera que apenas a 1ª, a 2ª e 4ª devem ter vindo do Jesus histórico. O Jesus Histórico. 389 et.seq. 427 ZUMSTEIN, J. Mateus o Teólogo, p.49 et.seq.

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formal sobre o assunto, mas encontramos algumas situações que podem

transparecer um certo descaso para com a família. Quando um discípulo desejou

seguir Jesus, mas pediu para aguardar a morte dos pais, ele respondeu: “Segue-

me, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos” (8,21-22). Em seu

discurso de envio aos discípulos (cap. 10), ele adverte que o amor aos pais não

pode sobrepor-se ao amor por ele: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim

não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno

de mim” (10,37). Em outra ocasião, quando ensinava aos seus discípulos e foi dito

a ele que sua família o aguardava do lado de for da casa, ele disse: “Porque,

qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e

irmã e mãe” (12,50). Como entender essa aparente distância e até mesmo certa

negligência para com a família?

Uma possibilidade pode ser a idéia apontada por Crossan, de que as famílias

ficariam divididas por causa de Jesus, e ele sabia disso, porque ele “romperá a

família hierárquica ou patriarcal pelo meio, ao longo do eixo de dominação e

subordinação.”428 Ou seja, a exemplo do que Jesus apontou na questão do

divórcio, não haverá mais relações de dominação entre pessoas, mesmo que na

família.429

Entretanto, uma das severas críticas de Jesus aos fariseus foi exatamente

sobre o descuido deles com os pais idosos, na controvérsia sobre descumprir

mandamentos (Mt 15,3ss). Em sua argumentação contra os fariseus, Jesus analisa

o fato dos fariseus se preocuparem deveras com esse tipo de ordenança legal,

esquecendo-se, no entanto, de guardar preceitos morais fundamentais. No caso,

exatamente de “honrar pai e mãe” (Ex 20,12) e a advertência de que “aquele que

amaldiçoar pai ou mãe seja punido de morte” (Dt5,16). O que os fariseus faziam

estava fundamentado no korban, uma oferta separada a Deus que não podia ser

utilizada de modo comum. O problema é que eles separavam aquilo que seria

destinado aos seus pais idosos; com isso, tornavam-se isentos de cumprir o

428 CROSSAN, O Jesus Histórico, p.337. 429 Na verdade, não há como negar a tensa relação de Jesus com sua própria família, pois em algumas ocasiões transparece essa distância, como no texto de 12,50, e até mesmo hostilidade, como no episódio de Nazaré (Mc 6,1-5). Mas é correto afirmar também que Jesus tinha uma clareza da dificuldade de se manter laços familiares mediante o compromisso com sua vocação de anunciador do reino de Deus. Cf. FLUSSER, Jesus, p.15 et.seq. THEISSEN chega a admitir uma “ética a-familiar,” por conta do radicalismo itinerante. Sociologia da cristandade primitiva. P.39. STEGEMANN, no entanto, questiona essa posição, pois “não tem validade geral”, e implicaria a abandono apenas para o círculo mais chegado a Jesus. História social do protocristianismo, p.239.

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mandamento. Mas Jesus desmascarou essa farsa e condenou-os por violar o

mandamento moral.430 A conclusão a que se chega é que Jesus só colocava a

família numa condição menor, quando se tratava de cumprir a missão confiada a

ele, de proclamar o reino de Deus.

Na verdade Jesus intensificou a lei do amor, ao ponto de renunciar a toda

violência, mesmo permitida pela Lei, e apontando para necessidade de amar o

inimigo, pois isso seria um sinal de uma justiça superior. Como afirma

Stegemann: “precisamente no assim chamado mandamento do amor ao inimigo

desdobram-se princípios contidos na Torá e que, de alguma forma, é possível falar

de uma superação da mesma.”431 Essa foi uma idéia que as comunidades

seguidoras de Jesus acolheram dele mesmo, não sendo jamais uma elaboração

posterior.432

Tendo em vista uma interpretação apropriada da Lei, Jesus a resumiu em

situações de debate e ensino. Os sumários representam a busca de uma síntese que

facilite e englobe toda a Lei, considerada como vontade de Deus, num único

grande mandamento. Isso também ocorria no Judaísmo, de acordo com famosa

história relacionada a dois grandes mestres: um gentio foi procurar Shammai e

pediu: “Faz de mim um prosélito, sob a condição de me ensinares toda a Torah

enquanto me mantenho sobre uma perna só.” Shammai o expulsou com um

bastão, e ele foi até Hillel, que o tornou prosélito, e o ensinou: “O que é odioso

para ti, não faças a teu próximo; isto é toda a Torah e o resto não passa de

comentário; vai e estuda.”433

Jesus fez resumo similar daquele de Hillel, quando declarou: “Portanto, tudo

o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós, porque esta é a

Lei e os Profetas.” (Mt 7,12), que também faz parte do Sermão do Monte. Outra

expressão que tem o mesmo objetivo está em Mt 22,34-40. Argüido sobre qual

430 Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.233 et.seq; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.401 et.seq. 431 STEGEMANN, E., W.,História social do protocristianismo, p.242. 432 HORSLEY demonstra que essa idéia radical de amor ao inimigo já estava presente na tradição Q, bem como em Marcos. Também Paulo trata do assunto. Sem dúvida, trata-se de um ensino autêntico, ligado ao Jesus Histórico. A história apenas confirmou a veracidade desse ensino, especialmente nos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Jesus e o império, p.119 passim. 433 T.B. Shabbat 30b-31a. Citado apud COLLIN, M. e LENHARDT, J., A Torah Oral dos fariseus, p.23. Também VERMES, G. A Religião de Jesus, o judeu, p.44.

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seria o grande mandamento da Lei por um intérprete [nomiko.jÐ, Jesus respondeu

com uma síntese:

E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (22,37-40)

Nos dois casos fica claro que se trata de uma síntese, tendo em vista a

conclusão, que cita a Lei e os Profetas. E qual é o sentido máximo da vontade de

Deus, expressa na Lei e nos Profetas, para Jesus? O amor e a misericórdia, que de

certa forma são indicados na perícope de 5,17-20, . 434

Assim, transparece na interpretação e atitudes de Jesus o desejo pela total

observância da Lei, a partir de uma busca pelos mandamentos que irão definir

toda a postura ética. Theissen aponta que essa ética está entre a Sabedoria e a

Escatologia. De um lado Jesus tem motivos sapienciais, pois em diversos

momentos utiliza elementos sapiências, “quando se refere à criação como passado

primevo ou como natureza presente”.435 De outro, vemos em Jesus motivos

escatológicos em sua ética, por causa do conceito – já trabalhado acima – de

“recompensa e castigo no novo mundo ou do Reino vindouro de Deus. A

escatologia propicia a motivação.”436

4.3.4. Síntese sobre a análise de plerw/sai

O debate em torno do sentido de plerw/sai percorreu vários caminhos, seja

pelo sentido intrínseco do termo, seja por sua relação com o pressuposto

hebraico/aramaico, ou mesmo por uma interpretação aberta, ligada ao todo do

escrito de Mateus. É inegável que o dito foi colocado, ideologicamente, como

argumento para enfrentar os adversários da comunidade e suas acusações contra

uma possível anomia, sejam eles externos ou internos. Mas o dito não se resume a

essa esfera, pois tem dentro de si uma expressão cristológica que, considerada

como autêntica, revela muito da relação do próprio Jesus com a Lei. Nesse

sentido, tentar chegar ao substrato aramaico é relevante, mesmo não havendo

434 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.35 passim;186. 435 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.401. 436 Ibid., p.403. Cf. infra as análises sobre a escatologia na proclamação de Jesus.

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nenhuma certeza plena de que vocábulo ele tenha usado. Seja como for, dois

aspectos se destacam para a compreensão de plerw/sai.

Primeiro, o fato de Jesus se comportar como judeu piedoso, e como tal não

ter uma atitude de rebeldia diante da Lei é muito claro. Seguindo esse raciocínio

somos levados a pensar que o cumprir dele está vinculado realmente às Escrituras

Hebraicas, especialmente a Lei e os Profetas, aos quais Jesus estava intimamente

relacionado. Mas esse cumprir não era realmente no sentido habitual, repetitivo,

que qualquer fariseu piedoso também seguiria. Em se tratando de Jesus, havia na

sua prática uma expressão mais profunda, que irrompia com o reino de Deus em

meio às pessoas, e assim anunciava o domínio pleno que a salvação de Deus traia

a todos, com o amor como centro da prática relacional.

Em segundo lugar, e interligado ao que afirmamos acima, não se pode

pensar no domínio de Deus sem pensar em seu juízo completo, o qual desde os

profetas manifestava a esperança de que os oprimidos alcançariam a misericórdia,

enquanto os opressores seriam destruídos. Pois é justamente com essa introdução

que começa o Sermão do Monte, quando Jesus afirma a herança do reino de Deus

para os pobres e mansos. Assim, o cumprir trás também uma idéia escatológica,

não somente no Jesus terreno, mas, sobretudo, no juízo que ainda se realizará. Ao

examinarmos o v.18, e sua afirmação sobre a terra e o céu, verificaremos a

exatidão dessa afirmação.

4.4. Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/

(v.18) Até aqui a pesquisa nos tem levado a um entendimento de que Jesus foi um

judeu piedoso, e mais do que isso, como mestre foi também legislador. Mas de

igual modo percebemos que o dito de Mt 5,17-20 ganha uma dimensão

escatológica a partir da afirmação que tem sido interpretada como messiânica: “Eu

vim”. O versículo 18 demonstra ter a maior carga escatológica da perícope, e pode

auxiliar na compreensão do todo. 18 Em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots) da Lei passará, sem que tudo aconteça.

4.4.1.

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121

O sentido de avmh.n

A tônica do v.18 é a expressão “até que passem o céu e a terra” [e[wj a'n

pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/], mas a frase se inicia com avmh.n [heb. !mea;)]. O termo

vem da raiz !ma, e quer dizer “ser firme”, “seguro”, “válido”, e pode ser

entendido como “ser autêntico, verdadeiro”. É traduzido na LXX como ge,noito,

“assim seja”. Quando era proferida por Jesus, o “amém” no início da frase

intensifica a afirmação seguinte. Como comenta Bauer: “em português, a palavra

de Jesus soaria mais ou menos assim: ‘Digo-vos com toda a seriedade’, ou ‘Digo-

vos de uma vez para sempre’.437 O uso do “Amém” dessa maneira não tem

paralelo na literatura rabínica, nem mesmo na literatura cristã posterior, onde

sempre tem o sentido responsorial. Para alguns evidencia as ipsissima vox Iesu,

especialmente pelos textos preservarem a forma hebraica da expressão.438 Outros,

inclusive, enxergam nessa expressão uma estreita relação com ditos de cunho

escatológico, vinculadas à pregação do reino, 439 outros que Jesus empregará mais

a fórmula em seu ensino para corrigir noções rabínicas que obscureceram a

interpretação apropriada da Lei, como acontece em cada exemplo das antíteses.440

Dentro do contexto dos diferentes ditos de Jesus em que ele introduz a

fórmula “Em verdade vos digo”, podemos concluir que o dito do v.18 é

messiânico, e Jesus afirma toda sua autoridade perante a Lei e os Profetas. Se

antes ele afirmou que tinha vindo para cumprir a Lei e os Profetas, agora ele

admite a permanência e a validade das Escrituras por um tempo determinado, mas

que ainda não se concretizou. O que é expresso de forma negativa no v.17, é

expresso de forma positiva e ampliada no v.18 através da fórmula de autoridade

“em verdade vos digo”. Tudo indica que o uso freqüente dessa fórmula em

Mateus reflete o uso na sinagoga, no ambiente da comunidade.441

437 BAUER, “Amém”, Dicionário Bíblico-Teológico, p.10. Esse termo aparece, inclusive, em todos os quatro evangelhos, com maior freqüência em Mateus e João (onde sempre aparece duplicado, como fórmula litúrgica). Cf. Também RUSCONI, Dicionário do Grego do NT, p.47, que aponta essa expressão como uma afirmação solene, para apresentar sua autoridade. 438 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p.77 et.seq. Por ser sempre seguida da expressão le,gw umi/n (Digo-vos, ou te), a única analogia possível em termos de conteúdo seria a “fórmula do oráculo”, expressa pelos profetas: “assim diz o SENHOR”, traduzido pela LXX como ou[twj le,gei

ku,rioj a partir do heb. hw"±hy> rm:ôa'-hKo). Também BAUER, “Amém”, DBT, p.10. 439 Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.238. 440 CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58. 441 CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58. Contra essa idéia, no entanto, JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.78 et.seq. Na verdade, todas as evidências apontam que tanto a sinagoga quanto a igreja cristã utilizavam o Amém de forma responsorial.

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122

Seu uso evidencia a autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre

verdadeiro, cujo ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. Além disso,

aponta o respeito por tradições de ditos que tivessem início com esse termo,

mantendo a afirmação na língua original, apenas transliterando para o grego.442

De certa forma, deve-se pensar na dependência que Mateus deu a esse dito

com o v.17, pois da forma como foi montado, considerando que os dois ditos são

de fontes independentes (M e Q), o peso maior está na afirmação de que Jesus

veio cumprir a Lei, para só então Jesus afirmar a permanência da Lei em si

mesma. É Jesus interpretando-a e atualizando-a que a torna permanente, de

fato.443

Na continuação do dito, no entanto, está a chave de leitura da perícope no

tocante à questão escatológica. E uma questão que transparece no próprio dito: até

quando se dará a permanência da Lei e dos Profetas? Até que passem o céu e a

terra, ou até que tudo se cumpra? Caso ambos os termos tenham o mesmo sentido,

cabe a mesma resposta, mas caso se trate de dois aspectos futuros diferentes,

como se resolve essa equação escatológica? Para responder a esse ponto, vamos

analisar a seguir a escatologia do texto.

4.4.2. A escatologia no dito: o sentido de e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/

A compreensão da dimensão escatológica no dito de Mt 5,17-20 depende,

em primeiro lugar, de diferenciar escatologia e apocalíptica, depois ver o quanto a

pregação de Jesus tinha sentido escatológico, para então analisar a escatologia no

texto específico.

4.4.2.1.

Diferenciando escatologia e apocalíptica

O conceito de escatologia é bastante amplo, mas veio a ser posteriormente

um elemento bastante marcante no pensamento religioso popular dos judeus

contemporâneos a Jesus.444

O núcleo do conceito de escatologia, de acordo com a síntese de Corrêa

Lima, M. de L. sobre as crenças do Antigo Testamento, é: a “referência a um 442 Cf. Ibid., p.78. 443 Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.19. 444 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.269-276; STEGEMANN, História Social do Protocristianismo, p.171-176; GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125.

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tempo futuro”, que iniciará uma situação completa e definitiva; a “pressuposição

de uma mudança qualitativamente significativa, que implica uma descontinuidade

histórica grande”, ou seja, algo tão novo e diferente do que existe agora que

somente Deus pode levar a efeito; e a “centralidade de Israel”, como centro dos

acontecimentos, mesmo quando outros povos ou o mundo criado são incluídos nas

profecias.445 Ela ainda complementa a síntese indicando que na escatologia

profética vétero-testamentária deve haver elementos de juízo – como ponto final

da situação de pecado e punição dos injustos – e salvação – como um estado

totalmente novo e não sujeito a mudanças ou perdas, com a consumação da

relação salvífica entre Deus e o povo.446

No período pós-exílico, no entanto, o pensamento a respeito do reinado de

Deus se torna de tal maneira absoluto que só pode ser compreendido a partir de

uma ruptura total com a história presente. Isso está presente em alguns textos

proféticos (Mq 4,1-4 par Is 2,2-4; Is 33,17-22; Is 25,6-8; Zc 14,9). Em torno dessa

idéia está o termo Reino de Deus que “poderia, portanto, evocar expectativas de

vitória sobre os gentios e o estabelecimento de um reino eterno de Israel”.447

A escatologia, que até o exílio era exclusividade de categorias proféticas,

passa no pós-exílio a ser compartilhado pelo que é considerado por muitos como

sucessor da profecia: a apocalíptica. Segundo a definição de Theissen,

“apocalíptica é a expectativa de um mundo novo contida em escritos secretos de

revelação”.448 Aspecto importante para nossa pesquisa é a relação com a Torá:

enquanto os textos secretos preparam a comunidade para o tempo final, a

obediência à Torá é que “confere o direito de pertencer a ele pela ressurreição dos

mortos.”449

Assim, o período pós-exílico viu surgir uma corrente religiosa judaica com

vasto material literário, o apocaliptismo judaico. Esse movimento influenciou a

revolta macabaica, deu origem à comunidade dos essênios, e alimentou as revoltas

da guerra Romano-Judaica e mais tarde a revolta de Bar Kochba. Foi de fato um

fator decisivo em movimentos de “protesto, renovação e libertação em formas

445 CORRÊA LIMA, M. de L. Salvação entre juízo, conversão e graça, p.55. Os trechos em aspas são referências diretas do texto da autora. 446 Id. Ibid., p.60 et.seq. 447 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.271. 448 Id, Ibid., p.272. 449 Idem.

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posteriores tanto do judaísmo como do cristianismo.”450 Ele fortaleceu antigos

valores e inseriu novos, típicos do período posterior ao helenismo na Palestina.

Os escritos apocalípticos não se definem meramente escatológicos. Antes,

há neles uma presença próxima da esperança de mudanças. Enquanto a

escatologia trata de um futuro incerto e muitas vezes distante, a apocalíptica trata

da questão do juízo e salvação como algo prestes a acontecer. Aí está a diferença

fundamental entre os dois pensamentos, que já é perceptível no livro de Daniel,

único representante canônico do apocaliptismo. Há uma relação entre escatologia

e apocalíptica, mas nem toda escatologia é apocalíptica. A escatologia é uma

projeção de esperanças, que influenciam a forma de pensar a realidade, enquanto a

apocalíptica se apresenta como forma de explicar a realidade tendo como base

uma ação direta da parte de Deus. A apocalíptica também se tornou

posteriormente uma categoria literária diferenciada de outras como a profética,

sapiencial e outras.451

Conforme é possível perceber nos textos apocalípticos judaicos

extracanônicos, a escatologia está presente na apocalíptica, indicada como um

discurso concreto, onde o futuro vem para pôr fim a ordem presente, e, na história,

iniciar o transcendente e definitivo.452

Considerando o pano de fundo do Antigo Testamento e dos escritos

apocalípticos existentes nesse período, notamos que a mentalidade popular estava

mergulhada numa predisposição para a escatologia. Isso se apresenta tanto na

pregação de João Batista como de outros grupos estruturados na Palestina,

especialmente na Galiléia.453 Horsley também afirma essa possibilidade, tratando

dos movimentos populares e messiânicos do primeiro século: “todos esses vários

tipos de movimentos ocorreram durante um período da história judaica em que

450 KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento 1, p.232. 451 Cf. CROSSAN, J. D. Em busca de Jesus, p.118. Ele afirma textualmente: “O reino escatológico ou eutópico representa a sublime perfeição da aliança, e o apocalíptico realiza-se no iminente advento do reino escatológico”. 452 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Como exemplo, ele cita o Testamento de Dã 10,10-13, em que Deus vence Belial; 1 QM VI, 6, que trata da vitória dos filhos da luz; Ascensão de Moisés 10,1ss, sobre uma vitória em cima dos perseguidores do povo de Deus; e Oráculos Sibilinos 3,767, que trata de uma concepção universalista do reinado de Deus. 453 Cf. STEGEMANN, E. W. e W. História social do protocristianismo, p.173 et.seq. Segundo os autores é possível situar o apocaliptismo dentro dos círculos assideus, que por sua vez, deram origem aos essênios e fariseus.

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aparentemente estava bastante difundido o espírito apocalíptico, pelo menos em

épocas de tensão e de conflito.”454

4.4.2.2.

A escatologia em Jesus

Até que ponto Jesus trabalhou com essas crenças? O ponto de partida para

perceber isso não é o próprio Jesus, mas João Batista. Desde que os textos de

Qumran foram divulgados ficou muito claro que João Batista pertenceu a esse

universo apocalíptico.455 Sua mensagem anunciava o juízo iminente de Deus

sobre Israel, e a necessidade deste se converter de seus maus caminhos.456 E seu

ministério foi de tal forma contundente que perdurou para além de sua morte.

Muitos de seus discípulos continuaram seu ministério; alguns se juntaram ao

movimento de Jesus, mas outros se mantiveram separados (conforme podemos

perceber em diversos textos: Mc 2,18-19; At 18,1-7; Jo 1,35-40; Mt 11,7-11).457

O fato de discípulos de João aderirem ao seguimento de Jesus é um indício

de que a mensagem deste era, em muitos aspectos, similar à daquele. Apesar do

forte helenismo presente na Palestina, Jesus tem uma pregação inspirada na

apocalíptica, mas não influenciada pelo helenismo, assim como João.458 No

entanto, é importante frisar que Jesus não repetiu acriticamente a mentalidade

apocalíptica de seu tempo. Ele nem assumiu o papel de Profeta Escatológico, nem

uma messianidade aberta. E quando foi perguntado acerca da vinda do reino de

Deus, sobre o tempo em que se daria, respondeu: “O reino de Deus não vem com

aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de

Deus está entre vós.” (Lc 17,20-21). Sua evasiva desloca-o de um papel

meramente futurista.459

454 HORSLEY, R. Bandidos, Profetas e Messias, p. 212. No entanto, ele afirma a dificuldade de termos acesso a evidência direta desse fenômeno junto a movimentos populares, porque as fontes que temos, em especial Josefo, evitam propagar as idéias correntes do judaísmo palestinense. CROSSAN também aponta para esse problema. Em busca de Jesus, p.152. 455 Cf. FLUSSER, Jesus, p.215 et.seq. 456 Cf. CROSSAN, J.D. op.cit. p.153. 457 Cf. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.84. 458 Cf. RICHARD. P., Apocalipse, reconstrução da esperança, p.41. 459 Cf. GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.122 et.seq.

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Mas, sem dúvida, a pregação de Jesus está vinculada a uma mensagem

escatológica.460 Mesmo considerando a interpretação existencialista de Bultmann,

podemos citar sua clássica exposição:

O conceito predominante da pregação de Jesus é o do reinado de Deus (basilei,a tou/ qeou/). Jesus anuncia sua irrupção imediatamente iminente, que se manifesta já agora. O reinado de Deus é um conceito escatológico. Ele se refere ao governo de Deus que põe termo ao atual curso do mundo, que destrói tudo o que é contrário a Deus, tudo o que é satânico, tudo o que agora faz o mundo gemer, e, pondo desse modo um fim a todo sofrimento e dor, estabelece a salvação para o povo de Deus que espera pelo cumprimento das promessas proféticas. A vinda do reino de Deus é um evento maravilhoso, que se realiza sem contribuição humana, unicamente por iniciativa de Deus. Com essa pregação Jesus se encontra no contexto histórico da expectativa judaica do fim e do futuro.461

Com respeito à iminência da vinda do reino de Deus, Vermes entende que

se havia em Jesus realmente essa expectativa, então essa convicção guiava todas

as suas ações, ensino e a própria natureza de sua devoção religiosa. Jesus, como

judeu piedoso, não tinha uma tranqüilidade escatológica – em que o futuro

estivesse garantido para o grupo fiel – mas sim um entusiasmo escatológico – que

exige ruptura total com o passado, colocando seu foco na ação do presente, e

pensando não em termos de uma fidelidade do grupo, mas individual.462

Flusser considera ainda que Jesus definiu a escatologia – que ele identifica

com a história da salvação - numa estrutura tripartida, em que aparecem a

escatologia realizada e a futura: O primeiro período foi o “bíblico” que culminou com a carreira de João Batista. O segundo teve início com seu próprio ministério, no qual o reino do céu irrompia. O

460 Sobre os diferentes pontos de vista a respeito da escatologia, MERZ, A. E THEISSEN, G., op.cit., p.265-302; STAUDINGER, “Reino de Deus”, Dicionário Bíblico Teológico, p.364-368. Recentemente, vários autores retomaram a perspectiva de uma escatologia futura para a mensagem de Jesus, a partir da idéia da vinda do Messias e da relação escatologia-apocalíptica. Ver Também a discussão sobre a interpretação acerca da vinda do reino de Deus, ZABATIERO, “basilei,a”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.2036-2045. 461 BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.41. Concordam com essa perspectiva JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.166; MEIER, Um judeu marginal, p.77 et.seq. Ele chega a afirmar: “há dez ou vinte anos não teria sido necessário repisar os ensinamentos de Jesus sobre um reino escatológico futuro. (...) Em anos recentes, alguns estudiosos têm questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um reino escatológico que haveria de chegar em breve.” P.79. Uma pesquisa que ignora essa perspectiva é a de CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, onde ele conceitua escatologia como “negação do mundo em geral, que pode incluir desde a escatologia apocalíptica (...), passando pelos seus modelos místicos e utópicos, até chegar às possibilidades ascéticas, libertárias ou anarquistas.” P.274. 462 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.175. Ele explica a origem do termo entusiasmo escatológico: “a expressão é uma tradução livre do ‘entusiasmo da presença escatológica’ (Enthusiasmus eschatologischer Gegenwärtigkeit) de Martin Buber, cunhado em Zwei Glaubesweisen (1959) em Werke I (1962), 707.” p.174. J. ROLOFF aponta essa expectativa como uma marca de Mateus e sua comunidade. A Igreja no Novo Testamento, p.176

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terceiro período será inaugurado com o advento do Filho do Homem e do Último Julgamento, num tempo futuro que é desconhecido por todos.463

Se considerarmos as exposições acima, chegaremos à conclusão que a

pregação de Jesus não somente é escatológica, como também está alinhada aos

valores judaicos relativos às profecias de salvação.464 Mas, até que ponto o dito de

Mt 5,17-20, e especialmente a expressão “até que passem o céu e a terra” se

coaduna com o conceito de escatologia que foram apontados? Até que ponto é um

dito escatológico?

4.4.2.3.

A escatologia no dito

Para fazer essa análise a respeito da escatologia no dito, vamos nos ater

temporariamente ao versículo 18 em si, desconectado da perícope, ou seja,

perceber um pouco de seu sentido a partir de seu material original, a fonte Q. O

pesquisador B. L. Mack analisou o material de Q numa perspectiva diferente das

demais, tentando chegar a um grupo social e religioso definido: a “comunidade de

Q”.465 O material de Q foi dividido pela pesquisa em três camadas: a mais antiga

(Q1), a intermediária, que mostra uma mudança ideológica na comunidade (Q2), e

a mais recente, que é feita de acréscimos nas demais, na mesma linha ideológica

de Q2 (Q3).

Para Mack, Mateus pode ter feito parte da comunidade de Q, e elaborou seu

material a partir dos ensinos de Q em diálogo com o já conhecido evangelho de

Marcos. Mas Mateus deu uma nova dinâmica na história de Jesus, também por

meio de material exclusivo, e pelo qual ele projetou um Jesus mestre, conectado

com as grandes tradições de Israel, e o mais importante, com ensinamentos que

463 FLUSSER, D. op.cit. p.218. Essa distinção também é indicada por KÜMMEL, Síntese Teológica do Novo Testamento, p.53-60; e MERZ, A. e THEISSEN, G. op.cit., p.298 et.seq. 464 Mesmo considerando que “as crenças populares não eram, à época, de forma alguma uniformes, em matéria de escatologia e messianismo”. GRELOT, P., A esperança judaica no tempo de Jesus, p.125. 465 MACK, O livro de Q, p.117 passim. A tese do autor, baseado na análise dos ditos de Q de Kloppenborg, parte da pressuposição que o material de Q hoje nos evangelhos de Mt e Lc era originariamente um documento que já continha elementos redacionais, e que pode ser dividido em três camadas, sendo a mais antiga Q1, e assim por diante. O estudo dessa camada mais antiga concluiu se tratar de uma comunidade de indigentes, que criticavam duramente a ordem social vigente, mas não tinham nenhuma pretensão escatológica, nem se articulavam em termos apocalípticos. As camadas mais recentes, no entanto, inseriram a figura de João, e elementos típicos da mentalidade popular em termos apocalípticos. Assim, tudo indica que passados alguns anos da experiência original, a comunidade mais primitiva de seguidores de Jesus se uniu a comunidades mais ortodoxas do ponto de vista de crenças e expectativas. Os evangelhos seriam reflexos dessa segunda experiência, e não da comunidade original seguidora de Jesus, apontado como filósofo cínico, segundo a análise do material de Q1.

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“captavam as melhores intenções das normas éticas judaicas baseadas na Torá, e

tornavam-nas acessíveis até para os gentios.”466

Em relação à perícope, Mack assume uma posição mais ortodoxa: Mateus

teria inserido material de Q em blocos distintos, juntamente com material próprio.

O Sermão do Monte foi um desses blocos, onde trabalhou a questão da Lei. Sobre

isso Mack sintetiza:

O ponto de comparação entre a lei e os ensinamentos de Jesus é que o ensinamento de Jesus atinge o cerne daquilo que a lei de Moisés pretendia. Para Mateus, a devoção apropriada era uma questão de atitude, perfeição de espírito e controle da vontade. Mateus tinha lido Q e desejava que seus leitores compreendessem as sentenças de Q como instruções sobre as intenções éticas da lei judaica. Ele achava que os ensinamentos de Jesus funcionavam de modo a resolver a confusão provocada pelo fim do segundo estado templário, validando a lei de Moisés como aquilo que permaneceu constante enquanto o resto desabava. Mateus dizia que Jesus “cumpria” as promessas e as previsões da épica de Israel.467

Contra essa visão de Mack encontramos Oporto, que também analisou Q e

demonstrou que já na primeira metade do século XX a fonte Q começava a ser

vista como um documento que, existindo ou não em forma literária, influenciou

Mateus e Lucas em suas composições do Evangelho. Mas as diferenças entre Q de

Mt e de Lc podem ser explicadas inclusive com a possibilidade de várias versões

do documento.468

Passemos a análise do dito sobre o céu e a terra do v.18469, a partir do lugar

onde Mack e Oporto o situaram no documento Q, para tentar chegar ao nosso

objetivo de identificar ou não uma interpretação escatológica para o verso. Mack

coloca o dito como “regras para a comunidade”470, e o insere na camada de Q3.

Considerando que essa camada segue a mesma linha ideológica de Q2, na análise

de Mack, e que essas duas camadas estão marcadas por pensamento apocalíptico

466 Ibid., p.176 et.seq. Pelo fato do evangelho de Mateus ter se destacado na Igreja Antiga, Mack considera que Mateus “sepultou Q na imagem fictícia de Jesus como sábio judeu.” P.179. 467 Ibid.,, p.178. A análise de Mack parte da premissa do texto como construção de Mateus, na linha de Overman e outros. Só esse aspecto já nos coloca em perspectivas diferentes em relação ao texto. 468 OPORTO, Ditos primitivos de Jesus, p.14 passim. Segundo ele, hoje se trabalha com a hipótese de que o documento Q tenha existido em forma escrita, sem se menosprezar o valor da tradição oral, que é anterior a ele. 469 Na verdade, ambos seguem mais a ordem lucana dos disto de Q. Isso foi feito pelo fato de se considerar que Lucas respeitou mais suas fontes – em termos de ordem do texto – do que Mt. É possível constatar isso comparando Mt, Mc e Lc, onde este é muito mais fiel à fonte de Mc que o primeiro. Assim, por dedução, acredita-se que Lc tenha respeitado a ordem do documento Q, se considerarmos também que existiu esse documento manuscrito. Ibid., p.26 et.seq. 470 Cf. MACK, O livro de Q, p.98.

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129

misturado ao movimento da sabedoria, temos então um indício de um dito

escatológico.

Oporto insere na seção “o reino de Deus está dentro de vós (Q 16,13-

17,21)”471, e não diferencia camadas literárias entre os ditos. Para ele esse dito faz

parte de um grupo cujo núcleo comum é voltado para os de dentro da

comunidade. A partir de alguns critérios de análise do bloco,472 a conclusão de

Oporto é que “destaca-se a radicalidade da opção por Deus, que exclui todo tipo

de compromisso com este mundo e fundamenta um comportamento novo.”473

Podemos afirmar que essa interpretação é escatológica? Talvez sim, considerando

que o não compromisso com esse mundo nos levaria a uma expectativa de outro,

futuro.

A conclusão até aqui é que, analisando a expressão “até que passem o céu e

a terra” dentro da perspectiva do documento Q, ele tem um caráter escatológico

sem, no entanto, deixar isso evidente. A escatologia nesse caso parece ser um

pano de fundo, o cenário contextual – seja da pregação de Jesus, seja da

comunidade de Mateus – como afirmado acima. Será que a exegese desse dito,

feita à luz da perícope, nos ajuda a afirmar seu caráter escatológico? Vejamos a

partir de uma análise literária, dentro do contexto do evangelho como um todo.

O verbo ge,nhtai é usado com freqüência em Mateus, além de 5,18. Aparece

com o sentido de “tornar-se” ou “tornar” em 10,25; 18,13; 23,15; 23,26; 24,32;

“tiver” em 18,12; “nascer” em 21,19; “aconteça” ou “acontecer” em 24,20; 24,21;

24,34; “suceder” em 26,5. Considerando o conteúdo das passagens, o texto de

24,34 é o que mais tem relação com 5,18.474 Em ambos os textos aparece a

expressão “até (sem) que tudo aconteça”.475 [e[wj a'n pa,nta (tau/ta) ge,nhtaiÅ]. O

471 CF. OPORTO, op.cit., p.43. 472 OPORTO explica os critérios desse modo: “os estudos redacionais de Q descobriram uma série de recursos que serviram para agrupar e relacionar ditos ou composições originalmente independentes. Esses recursos podem ser formais, como a repetição do mesmo esquema, a colocação de certos elementos no início ou no final de uma seção etc.; ou de conteúdo, como a aparição recorrente de alguns temas (...).” Ibid., p.31. 473 Ibid., p.44. 474 Cf. apontado pela sinopse de BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles. Curioso é que o verbo ge,nhtai está sempre numa fala de Jesus, com exceção de 26,5, quando as autoridades usam esse verbo. 475 Que é a tradução para 5,18 também em nossa exegese, cf. vimos na análise textual e tradução. A dificuldade, na exegese, está no doublé de “até que”, cf. discussão em TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.241 et.seq.

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fato de 24,34 estar inserido num discurso profético, com aspectos escatológicos,

fortalece em grande parte a idéia da escatologia em 5,18.476

O verso seguinte também tem um conteúdo muito próximo de 5,18: é a

afirmação de que “o céu e a terra passarão, mas a minha palavra não passará” [o

ouvrano.j kai. h` gh/ pareleu,setai( oi de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsinÅ]. Esse dito

afirma a autoridade de Jesus e sua palavra, de forma que as palavras de Jesus são

permanentes como a própria Lei, e tem correlação de termos com o v.18, no verbo

[pare,lqh|], que pode ser traduzido por “passar por”, “vir”, “transcorrer”.477 Isso

indica a garantia de que as profecias irão valer pelo tempo que for necessário.478

O dito sobre a validade da Lei e dos Profetas tem ainda uma correlação com

outro texto de Mateus, em 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram

até João” [pa,ntej ga.r oi profh/tai kai. o no,moj e[wj VIwa,nnou evprofh,teusan\].479

Esse texto indica o fato da Lei e os Profetas terem sua validade até a chegada de

João, seja pelo cumprimento, seja porque ele representa o fim do tempo

profético.480 Para tanto é preciso que toda a Lei, e cada aspecto dela tenha valor.

Mas, como conciliar o fato de que nem um pequeno “iota” vai perder seu

valor, se o próprio Jesus faz uma revisão da Lei (de acordo com as antíteses de

476 Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.235 et.seq. A dificuldade está em torno da expressão “essa geração” [h genea. au[th] que será testemunha dessas coisas. Se considerarmos a geração de Jesus, então o sermão profético nem mesmo deve ser encarado como escatológico, quando muito contendo elementos apocalípticos (cf. vv.27-31). A maneira de ver realmente como dito escatológico dependeria de uma interpretação dessa geração como a humanidade como um todo. A verdade é que no sermão presente (passado, na verdade, se pensarmos na destruição de Jerusalém ocorrida antes da redação do evangelho) e futuro estão em tensão nesse texto. Ver BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.347 passim, esp.358-359; No entanto, CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.596, interpreta como sendo a geração do tempo de Jesus, mesmo considerando que o sermão trate de passado, presente e futuro (p.581), como Também. MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.274. Para eles a geração de Jesus viu a inauguração do reino de Deus, e a profecia tem o sentido de trazer esperança, não medo. Com isso ganha o caráter de texto apocalíptico, não escatológico. J. MALDONADO considera um hebraísmo que significa o gênero humano. Comentario a los cuatro Evangelios, p.439. 477 Cf. RUSCONI, C., Dicionário do Grego do NT, p.357. 478 VERMES, G., O Evangelho Autêntico de Jesus, p.342. Ele entende que a “admoestação sobre cronologias escatológicas e sinais premonitórios, também pertence ao núcleo da mensagem autêntica de Jesus.” Esse dito consta em todos os sinóticos, e nos remonta a Is 40,8: “Seca-se a erva, e cai a flor, porém a palavra de nosso Deus subsiste eternamente”. FLUSSER considera que essa afirmação em Mt 24,34-35 seria a original e a as expressões em 5,17 e 18 foram inseridas lá por Mateus, devido sua aparência “externa” com 24,34-35. Jesus, p.50. 479 Cf. VERMES, op.cit., p.401. Ele relaciona esse dito com o sermão profético Mt 24, “Minha palavras não passarão”, ou seja, Mt veria no ensino de Jesus a nova Torá, com duração permanente. Também verificar uma possível contradição, por conta da pressão da parte não judaica da comunidade, quando se compara com Mt 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João”. 480 Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.327. et.seq.; FLUSSER, Jesus, p.111 et.seq.

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21-48)? Para entender bem o sentido do v.18, é preciso explicá-lo pelo seu

precedente, e não pelo seguinte. O dito do v.17 não trata de acréscimos ou

adições, mas de aperfeiçoamento, ou seja, um desenvolvimento.481 Mateus

trabalha com a forma alterada de Lucas, o qual apontou para a permanência

absoluta da Lei. Ao citar o iota e o til, fica claro que está pensando em termos de

redação e conteúdo. Para ele a interpretação do v. 18 depende do sentido do v.17,

por causa da partícula “porque” [ga,r].482

Banks prefere considerar o centro do dito na expressão “nem um yod nem

um qots (til)”, que mostra a continuidade da validade da Lei nos menores

detalhes.483 Essa validade, porém, está atrelada às duas cláusulas temporais que

antecedem e seguem ao ponto central. Por isso o centro do versículo está na

expressão “até que passem o céu e a terra”. Muitos consideram deve ser

interpretada como uma expressão idiomática que na verdade significa “nunca”.

Para outros, como uma expressão que indica que a Lei só vale durante a presente

era. Mas nenhuma das duas interpretações sintetiza totalmente o sentido da

expressão; como demonstra a análise feita a partir do paralelo de Lc 16,17, é uma

figura de retórica que demonstra o quão difícil é que a Lei perca sua validade.484

Por isso, há quem afirme que se trata de uma escatologia “oculta” no sermão

do monte, como Bornkamm: “as exigências de Jesus trazem em si mesmas ‘as

coisas últimas’, sem que precisem obter sua validade e urgência da candência dos

quadros apocalípticos. Elas próprias conduzem até os limites deste mundo, mas

não descrevem seu fim.”485

Quem também trata da expressão como figura de linguagem é Charles, para

quem as declarações de Jesus em 5,18-19 empregam a hipérbole. O uso de termos

que apontam para detalhes atende a certas expectativas das escolas rabínicas, onde

o estudo se dá pelas minúcias. Colocando em termos apocalípticos, a passagem

dos céus e da terra (cf. Mt 24, onde ele se manifesta), Jesus afirma a natureza

481 LAGRANGE, Évangile selon Saint Matthieu, p. 95. Ela completa, comparando a Lei com uma semente. A Lei muda da mesma forma como uma semente muda, quando uma pequena molécula dela se modifica, e gera o fruto. Nenhum de seus elementos deve cair antes que a obra de Deus seja concluída. Não se trata de uma defesa dos mandamentos de forma exterior, seja o menor deles, mas é o princípio novo que regula o todo. Não há nada na Lei, que tenha um propósito de conclusão, e que deva permanecer até o fim do mundo. 482 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.242 et.seq. 483 Cf. Também VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26; FITZMEYER, Comentário Bíblico “San Jerônimo”, p.185. 484 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.233 et.seq. 485 BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.183.

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duradoura do padrão ético. Além disso, os menores aspectos da obrigação ética

permanecem, falando em termos apocalípticos, até que o novo céu e terra

apareçam. Por que, aos olhos de Mateus, Jesus é tão duro quanto aos menores

detalhes da Lei como permanentes? E por que essa preocupação assemelha-se a

noções legais contemporâneas? O discurso hiperbólico utiliza exageros para

causar efeito, e o efeito é para enfatizar durabilidade.486

Por isso, as duas partes do versículo que expressam uma possível

escatologia não podem se referir ao mesmo assunto, pois se assim fosse seria uma

redundância no texto. Não deve ser interpretado também como “até que tudo seja

realizado”, seja pela realização das profecias, seja pela observância da Lei.

Mesmo os pequenos traços devem responder à vontade de Deus, que tem a

intenção da Lei como uma grande unidade.487 A interpretação pode estar

vinculada ao princípio do “amor e mutualismo”, que tornam a Lei válida e

permanente.488

A favor da escatologia no texto, pode-se pensar que mesmo a morte e a

ressurreição não revogaram a Lei. O Sentido então é escatológico, pois aponta

para uma consumação final, “até que a terra e o céu passem.”489 Entretanto, alguns

apontam que há uma dificuldade no texto no tocante à repetição de expressões; e

por isso não seria possível pensar como uma expressão escatológica, mas como o

cumprimento de toda a vontade de Deus em Jesus Cristo.490

Contra ela, no entanto, Charles comenta que muitos interpretam as palavras

“até que tudo aconteça” à luz do interesse escatológico de Mateus em outras

partes, como se tratasse da morte e ressurreição, à Igreja, ou à Parousia. A

linguagem apocalíptica nos obriga, no entanto, a entender “tudo” em termos da

validade permanente e não escatológica da história da salvação.491

486 CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58. 487 LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95. Quanto à segunda cláusula temporal, “até que tudo aconteça”, Banks aponta três formas de serem interpretadas: (a) como evento escatológico que põe fim a essa era; (b) a realização da Lei ou da vontade de Deus; (c) o cumprimento das Escrituras do AT na pessoa e obra de Cristo. 488 Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94. 489 Cf. MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.129. 490 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.147; 70. Essa interpretação concorda com Sab de Salomão 18,4, Baruc 4,1.4; Esdras 9,37, que falam da força permanente da Lei, sem haver nos textos aspectos de escatologia. J. GNILKA lembra que “uma antiga determinação cristológica identifica Jesus com a Sabedoria divina”. Jesus de Nazaré, p.239. 491 CHARLES, J.D. “Do not suppose that I have come”, p. 58.

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Para Kümmel, no entanto, a expressão “eu vim”, e o dito contextualizado no

Sermão do Monte aponta para o fato de Jesus saber bem o significado de sua

vinda e, em geral, perceber sua missão em termos escatológicos, no plano da

salvação.492

Barth justifica sua posição, afirmando que Mateus adota a idéia do sacrifício

de Cristo e o interpreta como a graça está na verdade estabelecendo o juízo, a

justiça de Deus. Em sua vida e morte Jesus cumpriu obedientemente toda justiça,

aqui para Mateus a Lei não pode ser abolida. Ele realiza isso também por meio de

seu ensino, e sua atitude como o servo humilde, que cumpre toda justiça no lugar

dos pecadores, ao mesmo tempo em que intenta estabelecer o juízo de Deus.

Nesse caso vale também a premissa dualista juízo/salvação das profecias do

Antigo Testamento.493

Numa linha intermediária, Vermes entende que, considerando a idéia de

Jesus sobre a vinda do reino – de forma iminente – e como ele desprezava

preocupações por tempos e épocas494, dando maior importância ao valor do tempo

vivido hoje495, a observância da Lei é fundamental para manter a fidelidade a

Deus. Nesse sentido, “o que ele se esforçou em enfatizar era a devoção interior

para o devoto individual do Reino do céu. Em resumo, ele adotou, intensificou e

tentou corajosamente injetar no judaísmo do povo comum o magnífico

ensinamento profético da religião do coração.”496 Seria essa uma escatologia

realizada, ou uma expectativa escatológica iluminando o presente?

Do ponto de vista da comunidade, Barth entende que Mateus está

preocupado em responder ao grupo conservador da comunidade em sua defesa da

Lei. Assim, é uma luta que permanece, mesmo com as mudanças e dificuldades

enfrentadas após os anos 70 d.C. Transparece então que o evangelista foi

envolvido nessa luta contra os que desejavam abolir a Lei, em oposição com

aqueles que achavam que ele devia enfatizar a validade da Lei.

A pergunta pelo motivo da Lei existir cabe nesse contexto, e Mateus

consegue fazê-la, numa perspectiva cristológica. O mesmo não se dá no judaísmo,

pois ele pode perguntar por que o mundo foi criado e pode responder: por causa

492 KÜMMEL, W.G., Síntese teológica do Novo Testamento, p.77; 92. 493 BARTH, G. op.cit., p.149. 494 Cf. Lc 17,20; Lc 12,16-21. 495 Cf. Mt 6,33ss; Lc 12,31. 496 VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.177 et.seq.

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da Lei; mas ele não pergunta por que a Lei existe. A resposta de Mateus é: ela é

um instrumento da execução escatológica da vontade de Deus, que é a obra de

Cristo. Isto é, apesar da Lei apontar para a vontade de Deus, ela não é o mesmo

que a vontade de Deus, que é realizada através da obra de Cristo; a vontade de

Deus é superior à Lei como objetivo, a Lei serve a ela. 497

Ao comentar a cláusula temporal do dito “até que tudo aconteça”, Vermes

aponta que considerada separadamente, essa expressão pode indicar simplesmente

a “natureza continuamente obrigatória da Torá”, e assim as necessidades da Igreja

palestina estariam resolvidas. De outro lado, pensando na Igreja gentia, a

interpretação dessa cláusula está interligada a Mt 11,13: “Porque todos os profetas

e a lei profetizaram até João.” Assim também se deveria interpretar o v.17, como

cumprimento das profecias. No entanto, contrariando uma ou outra possibilidade,

o fato é que em Jesus a Lei tinha sentido duradouro, e o dito, sendo autêntico,

retrata uma religiosidade fiel aos valores tradicionais israelita, em especial a

Torá.498

4.4.3. Síntese conclusiva sobre a escatologia no dito

Da forma como a perícope se apresenta em Mt 5,17-20, deve ser

considerado escatológico? Em nossa opinião a perícope é mais do que figura de

linguagem, e deve ser entendido no sentido escatológico sim, tomando por base

alguns aspectos já apontados anteriormente:

� O versículo 18, proveniente de Q, faz parte de uma camada mais

elaborada, que tem o pensamento escatológico como base teológica.

� O comportamento novo que se exige da comunidade tem como horizonte

a entrada no reino dos Céus, que faz parte da escatologia futura da pregação de

Jesus.

� A idéia de afirmar a passagem dos céus e da terra está diretamente ligada

à passagem do tempo presente, deste éon. Jesus tinha essa mentalidade

escatológico-apocalíptica de dois éons, o agora e o futuro. 497 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.148. Cf. Gênesis Rabba, § 1. “R. Bannaah said: the world and what it contains was created only for the sake of the law.” G.N. STANTON chega a se posicionar sobre o assunto, entendendo que, caso se leia “até que tudo se cumpra”, se referindo a Jesus, então o que não se pode deixar de cumprir são as palavras de Jesus e não a Lei. A Gospel for a new People, p.300. 498 VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq.

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� A validade da Lei no dito está vinculada a cláusulas temporais, que

indicam na verdade sua eternidade.

� Mateus também compartilha dessa idéia escatológica. Não dá a ela

apenas uso metafórico, mas pensa em termos futuros, pois associa-a à vinda do

Filho do Homem, que julgará a toda a humanidade (especialmente os capítulos 24

e 25).

� Além disso, o cumprimento pessoal de Jesus de todos os aspectos da

vontade divina e da Lei que a expressa não encerrou o tempo presente, a história

atual, indicando uma reserva escatológica no texto.

� Concluindo, a Igreja, comunidade de Cristo no mundo, continua a

observância da vontade de Deus – a Lei – como antecipação e condição para a

participação no reino dos Céus que cumprirá efetivamente a palavra de Jesus.

4.5. O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn th/| basilei,a|

tw/n ouvranw/n (v.19) Depois de afirmar a escatologia no texto, que indica a validade permanente

da Lei, temos um dito em que Jesus se dirige aos discípulos e seu compromisso

com o ensino e prática da Lei. O v.19 – material exclusivo de M – continua a idéia

central da perícope, e tanto pode ser analisado em relação direta com o v.18, por

seu conteúdo, 499 quanto em relação ao v.17, por sua estrutura antitética.500 19 Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos céus; aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus.

A estrutura do dito é diferente dos demais. R. Bultmann já apontou que o

dito faz parte do conjunto de palavras jurídicas e regras da comunidade, e o v. 19

demonstra claramente que o sentido de “anular” e “cumprir” do v.17 está

diretamente relacionado à prática concreta da comunidade.501 Por outro lado,

Bultmann considera que o v. 19 forma, junto com o v.10, uma grande introdução

499 Cf. BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95. 500 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. A questão literária e redacional foi pontuada no cap. 2, por isso aqui trabalharemos somente com as conclusões, com o objetivo de interpretar o sentido do texto. 501 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176.

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para as antíteses, a partir de fontes diversas. 502 W. Trilling considera que o v.19

forma uma unidade com o v.18, e assim se ente e explica melhor. Ou o v.19 foi

escrito para comentar o v.18, ou o v.18, em sua forma atual, pode ser considerado

uma unidade de tradição fechada.503 O dito tem uma estrutura jurídica bastante

forte, e que encontram fundamento na tradição de Mateus, bem como em sua

redação. Um exemplo é 12,32, um dito que combinou a tradição de Mc (Mc 3,29)

com a fonte Q (Lc 12,10), e se tornou um refrão colocado harmonicamente. Da

mesma forma as sentenças sobre o “atar” e “desatar” (16,19; 18,18), o que indica

que a forma de pensamento que está por trás do dito é tipicamente judaico-

rabínica.504

A quem o dito foi dirigido, já que sua linguagem é bastante concreta e

prática? Há várias maneiras de se interpretar a questão. O dito pode ter sido

colocado visando os helenistas, talvez o próprio Paulo,505 ou ter sido criado no

conflito entre a Igreja judeu-cristã e setores da Igreja que mostraram descaso com

a Lei, em sua observância mais estrita. Seria uma posição mais conservadora da

comunidade, que coloca em Jesus a normativa de prática.506 Outra possibilidade é

dele fazer a distinção entre a comunidade de Mateus (que guarda e ensina os

mandamentos) e a liderança judaica (que viola e ensina, cf. 23,3.23). A

comunidade cumpre quando aplica os princípios de amor e misericórdia,

ensinados e praticados por Jesus.507 Ou ser dirigida a setores que tiveram uma

atitude mais liberal em relação à Lei de Moisés, e que foram entendidos como

negligentes pela comunidade judeu-cristã da Palestina, à qual Mateus se

reporta.508

502 Ibid., p.546. Esse material está unido a um grupo de palavras de natureza um tanto diversa. Trata-se das que não exprimem, de maneira alguma, uma tomada de posição em relação à Lei vétero-testamentária, mas que contém prescrições para a comunidade cristã, cf. op.cit. p.176. 503 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.257 et.seq. No entanto, el aponta que os resultados da pesquisa realizada até hoje não falam a favor de nenhuma das duas interpretações. 504 Ibid., p.258. 505 BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, p.98. 506 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. Para que não se entenda de forma puramente legalista, o v.20 clareia o sentido dessa observância por parte dos discípulos. 507 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94; ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.48. 508 LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. Mas para isso v. 19 deve tratar de mandamentos específicos, e não da Lei como um todo. Como Também Trilling, que avalia que ordem de obedecer, e ensinar, a todos os mandamentos demonstra que há uma unidade em todos, e expressam a vontade de Deus. Assim, é uma resposta a uma doutrina mais liberal, que não considerava determinados preceitos da Lei obrigatórios. TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.258 et.seq. Também BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167.

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R. Banks, a favor da idéia de setores internos da comunidade, considera que

o dito tem por alvo um determinado grupo “carismático” de judeu-cristãos para

quem ele escreveu. Existe uma forte possibilidade, nesse caso, de que Mateus

tenha interpretado e aplicado o dito de 5,19 de um modo similar. O melhor modo

de entender o “menor dos mandamentos” é pensar nas orientações concretas de

Jesus para a comunidade, a partir de sua própria prática. Assim, o contexto

original do dito seria o próprio ministério de Jesus, o qual, com sua interpretação e

atitude em relação à Lei, deixou o exemplo para os seus discípulos, que deveriam

segui-lo completamente.509

P. Bonnard, por outro lado, considera que v.19 repete e intensifica o v.18, o

qual tem relação com Lc 16,17. A dificuldade está em enquadrar o próprio Jesus

nessa ordenança, pois é possível ver no evangelho o fato dele não observar as

menores prescrições legais vétero-testamentárias de forma meticulosa, sobretudo

aquelas referentes ao sábado e à pureza ritual. Por isso alguns supõem que o dito

de fato se origine de setores judaizantes da comunidade (crentes fiéis à Lei de

acordo com o ensino rabínico ou fariseu) que Mateus integrou no texto. Disso se

compreende que é uma maneira de ver a Lei tipicamente rabínica, e sublinhar a

sua permanente e absoluta autoridade, mas a partir da interpretação de Jesus, e que

o dito do v.18 “até que tudo aconteça”, nem se refere à morte de Jesus na cruz,

nem ao pleno cumprimento dos discípulos, mas ao fim do mundo.510 As diferentes

análises demonstram que havia conflitos internos na comunidade, especialmente

pela forma como deviam se relacionar com a Lei, considerada por muitos como

ultrapassada, depois que Jesus se manifestou.

O sentido do “menor mandamento” pode nos ajudar a perceber o grau de

dificuldade experimentado pela comunidade. Sem dúvida demonstra um conflito

entre observar e ensinar e fazer o oposto. Aqui são os mestres de ensino que são

colocados em evidência. “A tarefa dos mestres é assegurar a realização das

Escrituras como cumpridas por Jesus.”511 Ele considera o sentido de “violar”

equivalente ao de “anular”, mas o acento aqui está em mandamentos específicos,

como os das antíteses (5,21-48), bem como de outros demonstrados por Jesus –

509 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 et.seq. 510 BONNARD, P., L’Évangile selon Saint Matthieu, p.61 et.seq. 511 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.192.

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honrar aos pais (15,3-4) cumprir o decálogo (19,17-19) e o maior de todos, o

mandamento do amor, a Deus e ao próximo (22,36-40).512

A contraposição entre grande-pequeno e a diferenciação entre preceitos

“graves” e “leves” e também a correspondência de medida entre o cumprimento

dos mandamentos e a hierarquia no reino dos céus indica que não pode haver

crítica nem descuido em relação à Lei. A frase contem alusões a um sitz im Leben

concreto, não muito claro no v.17. Para D. Marguerat, o significado de “menores

mandamentos” [mi,an tw/n evntolw/n] tem a ver com uma distinção halákica que os

rabinos faziam entre o menor e o maior mandamento, instituindo uma hierarquia

entre eles. O que determina a diferença é o grau de esforço para cumprir o

mandamento ou que tenha uma recompensa escatológica menor. Dessa forma,

Marguerat considera que Mt retoma a questão do “iota ou um pequeno sinal”, que

são os corolários da Lei.513 Os preceitos graves envolviam questões éticas, com

isso preceitos “leves” ou “graves” eram diferenciados de acordo com a dificuldade

do cumprimento.514 Caso o v.19 se refira realmente à Lei de forma estrita (sem um

ponto de modificação), então ele deve ser visto como um dito muito conservador,

um tanto deslocado do contexto de 17,18 e 20.515

G. Barth afirma que Mateus clarifica que a congregação é ordenada a fazer:

em primeiro lugar, em sua interpretação da Lei e em segundo na exigência por

imitação. Mas qual é a relação de uma com a outra? É o que indica 19,21: “Disse-

lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e

terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.”, bem como a conclusão das

antíteses: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos

céus.” (5,48). Há uma exigência de perfeição na prática individual, que será

resultado da interpretação correta das Escrituras – a partir da interpretação dada

por Jesus – e da prática correta – como imitação de Jesus. Nisso está o seguimento

de Cristo, que é a mesma coisa que o radical cumprimento da Lei, e se dá

especialmente por uma prática do amor e misericórdia na mesma medida que

512 Ibid., p.192 et.seq. 513 MARGUERAT, M., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq. Cf. a análise sobre o iota e o pequeno sinal no cap.2, na análise textual. 514 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.901ss; TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.260; FITZMEYER, J., Comentario Bíblico San Jerônimo, p.186; BANKS, R. “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 , que também pensou no Decálogo como fonte da avaliação dos maiores e menores mandamentos. Porém o temo evlaci,stwn não permite pensar dessa forma. 515 Cf. STANTON, G.N. A gospel for a new people, p.300 et.seq.

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Jesus ensinou e praticou.516 A comunidade é chamada a um agir justo que deve

estar conectado ao ensinar, ao procedimento do discípulo, que é justo porque

ensina a justiça, e que faz com que outras pessoas se tornem justas.517

D. Marguerat analisa ainda que a forma aponta para o direito sagrado, no

sentido de deliberar sobre o lugar dos menores mandamentos da Lei, e revelara o

juízo no reino dos Céus, para quem negligenciá-los. O verbo lu,ein significa

“declarar não válido”, como uma autorização para a transgressão, enquanto

dida,skein designa um ensinamento incitando os crentes a não mais considerar

como normativos os mandamentos de menor importância. “Fazer e ensinar:

também para ao judaísmo estas duas modalidades de observância da Lei

constituem uma unidade indissolúvel.”518

J. Fitzmeyer entende que são os fariseus que praticam e ensinam a não

observância da Lei. O fato de Jesus não ter observado as prescrições tradicionais

acerca do sábado e das normas de pureza levítica foi sempre motivo de

controvérsia. Jesus demonstra que não recomenda aos discípulos aquilo que ele

mesmo não observa, por isso a ordenança está submetida à interpretação de Jesus,

que revelou a lei perfeita e completa.519 Flusser dá um passo mais concreto na

interpretação: o sentido do menor dos mandamentos não se refere às questões

rituais, mas o que tange o relacionamento humano. Isso se harmoniza com a idéia

do cumprir o grande mandamento – amar a Deus e ao próximo – como

cumprimento de toda a Lei e os Profetas.520

Mas há uma grave advertência para quem anular qualquer desses

mandamentos. E como entender essa advertência? As implicações de “perder”,

“anular” ou “relaxar” um dos “menores” mandamentos – e ensinar aos outros –

são consideráveis. Envolvem uma perda de “posição” no “reino dos céus” (5,19).

Em outra parte do Evangelho de Mateus, Jesus emprega a noção de “posição” no

reino dos céus, de acordo com o tema da retribuição divina (conf. Mt 18,4; 20,16;

e especialmente, 23,2-12).521

516 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.102 et.seq. 517 Cf. BONNEAU, op.cit., p.212. Nesse sentido o autor relaciona a ação do justo com a do profeta. 518 MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq.. Mas, como aparece em Mt 23,3, Mateus dá primazia à ação sobre o ensinamento. 519 FITZMEYER, J., Comentario Bíblico”San Jerônimo”, I, p.186. 520 FLUSSER, Jesus, p.65. 521 CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58 Em Mt 18 Mateus usa mikrw/n - alternando com paidi,a - designa os cristãos, que precisam da graça divina e da salvação que é dada

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Carter entende que o fato do castigo – ser chamado mínimo no reino dos

Céus – estar na passiva do futuro aponta para o julgamento de Deus. É ele quem

ai designar os grandes e os pequenos. Isso não indica exclusão, pois não diz que

ficarão “de fora” (como em 13,41s.49s; 25,31-46), mas aponta para recompensas

no reino futuro que podem ser dadas ou não a cada um. Na segunda parte, a

premissa positiva é reforçada, pois aqueles que praticarem e ensinarem os

mandamentos do modo como o foram por Jesus, serão grandes no reino.522

Contra essa posição, porém, Marguerat aponta a dificuldade do versículo,

que está em entender a hierarquia do menor no reino dos Céus. Parece ser uma

idéia dos círculos judeu-cristãos preocupados com a questão da Lei, engajados em

promover a comunhão eclesial, ao mesmo tempo em que condenam os

adversários. A infração provocaria apenas uma medida de desqualificação no

reino e não sua total exclusão. Mas isso está em desacordo com o pensamento

rabínico, e parece ser uma idéia estranha ao ambiente de Mateus.523 A partir do

contexto dos v.18 e 20, outra interpretação se torna necessária: a ênfase não está

na moderação do julgamento, mas nas terríveis conseqüências da negligência na

observância dos mandamentos. Aqui se estabelece a correlação entre a prática e o

juízo escatológico; a condenação estará sobre o transgressor, mesmo do menor

dos mandamentos. Isso responde, de certo modo, aos rabinos judeus que

ensinavam a considerar um mandamento maior ou menor que os demais,

desconsiderando o todo da Lei.524 Da mesma forma, Bonnard entende que as

expressões “menor” ou “maior” não exprimem a idéia de hierarquia no reino dos

Céus, mas são expressões judaicas que designam a exclusão ou participação no

Reino.525

Quanto a expressão utilizada por Mateus – “reino dos céus” [basilei,a tw/n

ouvranw/n] - tem o mesmo sentido de “reino de Deus” em Mc e Lc, e se deve a por ele. Ou seja, de um modo geral, mikrw/n se refere positivamente ao grupo, pois para entrar no reino dos Céus é preciso ser como uma criança (18,3) e mais: o que for pequeno como uma criança será grande no reino (18,4), um paradoxo nos moldes de Jesus. Do mesmo modo, as bem-aventuranças apontam positivamente para os pobres, os famintos, os mansos, os que choram. Cf. BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.122. 522 CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.192 et.seq. Como Também LAGRANGE, Èvangile selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. O juízo para a negligência não é ficar de fora totalmente, mas ser pequeno no reino dos Céus. 523 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.134. Ele cita o Abot 2,1: “Sois aussi attentif à un commandement léger qu’à un commandement supérieur, parce que tu ne sais pas quelle recompense será donnée aux commandements.” 524 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.135. 525 BONNARD, L’Évangile selon Saint Matthieu, p.62.

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peculiaridades lingüísticas e teológicas. Esse termo está mais próximo do

ambiente semita - o ambiente original de Mateus - do que do helênico – ambiente

de Mc e Lc. Nos sinóticos “reino dos céus/de Deus” é um conceito escatológico,

considerando não apenas o futuro, pois Jesus já se manifestou para realizar a

vontade de Deus, e apontou para a consumação plena no futuro. É uma

escatologia em vias de realização.526

A salvação na basilei,a estabelece uma nova ordem das coisas, e a cidadania

é constituída pelos pecadores (Mt 9,13), que devem agora ter uma nova atitude

misericordiosa (Mt 5,48; 7,12). Mas há também posição e hierarquia na basilei,a,

e havia na comunidade de Mateus a recorrência no tema. Até entre os discípulos

havia disputas sobre quem seria o maior, às quais Jesus didaticamente mostrava a

nova lógica do reino (cf. Mt 10, 20-28).527 A comunidade vivia também sob essa

expectativa.528

4.6. A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20)

O versículo que encerra a perícope é considerado por muitos como uma

introdução às antíteses529, mas de qualquer modo, complementa o conteúdo de 17-

20, e contém elementos comuns a todo o Sermão do Monte, bem como ao

evangelho de Mateus em geral. Um dos elementos de ligação se trata dos grupos

antagonistas à comunidade de Mateus, que refletem os adversários de Jesus em

seu próprio ministério. Por outro lado, há um reforço na idéia de cumprir a justiça,

acima dos escribas e fariseus, para que possam entrar no reino dos Céus. 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.

526 ZABATIERO, “basilei,a”, Dicionário Internacional de Teologia do NT, p.2035; 2045. 527 O relato paralelo de Mc 10, 33-45, mostra que foram Tiago e João quem pediram a Jesus para se assentarem a sua direita e esquerda no reino. Mateus pode ter colocado a pergunta na boca da mãe deles para minimizar o fato, tendo em vista a importância de ambos para as igrejas cristãs palestinenses, o que só vem fortalecer a historicidade do relato. Cf. análise de FABRIS, Os Evangelhos I, p.309. 528 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.295. Ele comenta: “Os desejos de posição, respeito e status entram nos sonhos escatológicos dos homens. Por isso é digno de nota que Jesus tenha dado apenas um conteúdo concreto ao Reino de Deus: ele apresenta a salvação escatológica como uma grande ceia.” 529 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176; BANKS, “Matthew’s understanding of the Law”, p.242; Alguns pensam na perícope toda com esta função: FITZMEYER, Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.187; PARISI, “Giustizia superiore e fede ‘estroversa’. La morale sociale da ‘un punto de vista’ della Scrittura”, p.51

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4.6.1. A controvérsia com os escribas e fariseus

O dito abre com a expressão “porque vos digo que” [le,gw ga.r u`mi/n o[ti],

que tem certa correlação com a expressão “em verdade vos digo” do v.18.530 A

conjunção “porque” [ga.r] indica a ligação redacional com os versículos

antecedentes, mesmo tendo origem diferente dos demais.531

As diretrizes da comunidade, além de enfrentar diferentes pontos de vista

internos quanto à validade da Lei, enfrentavam dificuldades externas provenientes

de outros grupos judaicos, e suas respectivas interpretações da Lei. No primeiro

capítulo já vimos a configuração desses grupos de acordo com fontes históricas e

outras evidências - especialmente os escribas e os fariseus -; agora nos interessa

apontar a controvérsia deles com Jesus, a partir do v.20, bem como da forma

como Mateus os retratou.

Que Jesus teve conflitos com alguns setores do judaísmo, está claro pelos

testemunhos nos sinóticos, tanto da tradição de Mc, quanto da tradição de Q.

Mateus reproduz ambas as tradições e acrescenta ainda material extra que, sem

dúvida, acirrou os ânimos de ambos os lados. Há diversos motivos provocadores

de conflitos com os fariseus, descritos no Evangelho: o fato de Jesus se associar

com pecadores; o desvio dos discípulos em seguir os preceitos que

regulamentavam a alimentação, a pureza e a guarda do sábado532, conforme

apresentado acima. A inserção desse dito junto com os demais sobre a Lei atende

à tendência de Mateus em criticar os oponentes religiosos.533 A liberdade de Jesus

diante da Tradição dos Pais e da própria Lei foi o principal motivo da controvérsia

com os fariseus e escribas: isso é mostrado nos conflitos no sábado (12,1-14, e

par).534 Mesmo assim, é bom salientar que Jesus os considerava “intérpretes

oficiais da lei bíblica e a quem se deve obediência (Mt 23,2-3).”535

530 J. JEREMIAS conjetura a possibilidade do dito original ter começado com Amém, mas ter-se perdido depois para essa formulação menos intensa. Estudos no Novo Testamento, p.141. 531 Cf. BANKS, R. op.cit., p.241; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p.262. 532 Cf. GARCIA, P.R. O Sábado do Senhor teu Deus, p.125. Para ele, associar os fariseus aos rabinos – ou judaísmo rabínico – é uma incorreção, pois necessariamente um não corresponde ao outro. Por isso, a exemplo de Jacob Neusner, Garcia chama o judaísmo do período de Mateus de Judaísmo Formativo. 533 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.241. 534 Cf. BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167. 535 SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus, p.177.; cf. Também FLUSSER, D., Jesus, p.46.

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J. Jeremias distingue os dois grupos: “os escribas são os mestres da teologia,

que se formaram depois de anos de estudo; os fariseus, ao contrário, não são

teólogos, e sim grupos de leigos piedosos.”536 Para ele, a citação de escribas e

fariseus em 5,20 mostra uma estrutura tripartida no Sermão que está diretamente

relacionada ao sentido do termo “justiça”: dos teólogos, dos leigos piedosos e dos

discípulos de Jesus, considerando sua interpretação sobre os escribas e fariseus

citada acima.537

Com efeito, após a introdução (5,3-19) e o enunciado do tema (5,20), a primeira parte do Sermão mostra a controvérsia entre Jesus e os teólogos sobre a interpretação da Escritura (as seis grandes antíteses de Mt 5,21-48: “Eu, porém, vos digo...”). Na segunda parte, á à justiça dos fariseus que Jesus se opõe e, efetivamente, a esmola, a observância das três horas de oração e o jejum caracterizam esses piedosos grupos de leigos (6,1-18). A última parte expõe a nova justiça dos discípulos de Jesus (6,19-7,27). O tema desta didaquê tripartida é, portanto, o comportamento cristão em oposição ao dos seus contemporâneos judeus.538

G. Bornkamm, no entanto, entende que o dito do v.20 usa os escribas e

fariseus com exemplo, mas não são eles o alvo primário da perícope como um

todo.539 Talvez a idéia fosse demarcar um exemplo negativo para assegurar o

comportamento da comunidade. É o que aponta G. Barbaglio:

No v.20, passa-se a determinar o comportamento subjetivo em relação à palavra normativa de Deus, revelada plenamente por Cristo. A práxis farisaica e rabínica resulta radicalmente inadequada. Os discípulos são chamados a uma obediência que, por extensão e intensidade, lhe seja superior. Trata-se de uma condição necessária para entrar no Reino da salvação final.540

Tudo indica que a exposição de Jesus tem como objetivo o comportamento

dos discípulos, mas sem dúvida, da mesma forma, ao menos como Mateus

organizou o Sermão, trata da forma como a comunidade irá contrapor as atitudes

dos escribas e fariseus.541

Como visto acima, sempre que Jesus se posicionava em questões referentes

à Lei, Mateus colocava num contexto de polêmica com os fariseus e escribas.

536 JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.99. 537 BULTMANN define os escribas como “simultaneamente teólogos, educadores do povo e juristas.” Teologia do Novo Testamento, p.49 538 Idem, p.100. 539 BORNKAMM, G., op.cit., p.167. 540 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. TRILLING acrescenta: “su autoridad entra en conflicto con la autoridad de la cadena de tradición rabínica y a la vez la substituye, porque es algo definitivo”. EL verdadeiro Israel, p.257. 541 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.193. Ele comenta: “O objetivo de Jesus, completando e interpretando a vontade de Deus previamente revelada, é a justiça/retidão, a realização da vontade salvífica de Deus por seus seguidores (ver 3,15; 5,6.10). Esta obra está definida contra a dos escribas e fariseus.”

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Também é possível encontrar os escribas e fariseus questionando as palavras e

atitudes de Jesus, sempre de forma negativa.542 De acordo com a classificação de

Berger,543 citamos abaixo o quadro das narrativas - somente em MT, seja a partir

de Mc, da fonte Q, de fonte própria – consideradas controvérsias entre Jesus e os

seus oponentes:

Perícope Situação/tema Grupo antagônico

9,10-13 Comer com os publicanos e “pecadores” Fariseus 9,14-17 A questão do jejum Discípulos de João 12,1-8 A questão de colher espigas no sábado Fariseus

12,9-14 A cura no sábado Fariseus 12,22-32 Jesus e belzebu Fariseus 12,38-42 A recusa do sinal Escribas e Fariseus 13,53-58 O profeta em sua pátria Povo de Nazaré 15,1-19 A questão da pureza Escribas e Fariseus 16,1-4 Outra vez a recusa de sinal Fariseus e Saduceus

16,5-12 O fermento dos grupos antagônicos Fariseus e Saduceus 17, 24-27 O imposto do Templo Cobradores de Impostos 19,1-12 A questão do divórcio Fariseus

21,14-17 A aclamação das crianças Sacerdotes e escribas 21,23-27 A autoridade de Jesus Sacerdotes e anciãos 22,15-22 O imposto de César Discípulos dos fariseus e

Herodianos 22,23-33 Sobre a ressurreição Saduceus 22,34-40 O principal mandamento Fariseu, Intérprete da Lei 22,41-46 Sobre o filho de Davi Fariseus

O quadro544 nos mostra, de forma bastante clara, que o grupo ao qual Mt

mais se refere são os fariseus545. Das 18 passagens selecionadas, eles são citados

12 vezes, sendo 2 vezes com os escribas (12,38-42; 15,1-19) e 2 vezes com os

saduceus (16,1-4; 5-12). Em outra ocasião são citados com os herodianos (22,15-

22). O que aparentemente é um contra-senso histórico – a aliança entre os fariseus

e seus rivais, os saduceus – é explicada por alguns como provável, considerando

que ambos os grupos tenham se unido para enfrentar um adversário comum. Essa 542 MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.52 et.seq. 543 BERGER, K., Formas literárias do Novo Testamento, p.77-78. Ele amplia a classificação de DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, p.247. Um aspecto curioso levantado por Bultmann é que, segundo sua análise das controvérsias, os interlocutores dos diálogos de disputa originalmente não eram pessoas ou grupos definidos. Somente num estágio mais avançado, a tradição os caracterizou como fariseus ou escribas. BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.71. 544 Por motivos didáticos excluímos da lista relatos em que a controvérsia é interna, entre os próprios discípulos (como em 19,13-15; 20,20-28; 26,6-13), ou quando não estava bem definida a origem do questionamento (como em 12,46-50; 18,1-5; 19,16-30). 545 SALDARINI comenta que Mateus altera, em várias passagens, o grupo antagonista, de escribas para fariseus. As outras passagens onde isso acontece são: 9,34 e 12,24. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.173 passim.

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união já aparece em João Batista (Mt 3,7-10), e também quando vão interpelar

Jesus, não a respeito da Lei - assunto que gerava entre eles mesmos muita

discrepância - , mas a respeito dos sinais de Jesus como Messias (16,1-12). Depois

do fato, Jesus admoesta os discípulos sobre o fermento dos dois grupos: fariseus e

saduceus.546

No tocante à relação “escribas e fariseus” não há muitos pontos de contato

entre eles, a não ser no fato de ambos questionarem Jesus sobre aspectos da Lei e

da prática. Mesmo assim, há muito mais citações para os fariseus do que para os

escribas. A. Saldarini comenta que “normalmente os escribas são omitidos e os

fariseus acrescentados nas passagens onde existe confronto com Jesus. Os fariseus

são vistos por Mateus como opositores mais ativos de Jesus do que os escribas.

Embora os escribas permaneçam como adversários, o papel deles é restrito, tanto

como contestadores de Jesus, quanto como líderes de Jerusalém.”547

Em relação à disputa sobre a Lei com os fariseus, nos relatos de

controvérsia, há um entendimento de que, em Mt 12,1-8, Cristo determina o

centro de gravidade da Torá, indica o lugar do qual ela deve ser lida, e revela o

sentido último que testemunha dele. A controvérsia surgiu como uma nova

disputa confessional, não entre os judeu-cristãos helenistas e os conservadores,

mas entre a comunidade de Mt contra o judaísmo farisaico. Ambos concordam

com a validade da Lei, mas discordam quando se trata de sua interpretação, por

causa da Lei. 548

Sobre Mt 12,9-14, F. Vouga aponta os temas dominantes são os mesmos da

perícope anterior. Também aqui o problema é com a tradição sinagogal549. Mas F.

Vouga entende que a polêmica contra a sinagoga não mais, segundo a redação de

546 CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.135 et.seq.; SALDARINI, op.cit., p.179 et.seq., que também comenta: “Mateus usa os grupos principais do judaísmo – os fariseus e os saduceus – como símbolos de falsos mestres, em conflito com Jesus”. 547 SALDARINI, A., op.cit., p.176. 548 Cf. VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.48. Também J. COMBLIN, “As linhas básicas do Evangelho segundo Mateus”. Ele afirma: “o Evangelho se opõe às tradições humanas dos escribas e fariseus, assim com à confusão que fazem entre lei divina e tradições humanas. (...) Dessa maneira, Mateus já ataca a maneira como os escribas e fariseus aplicam a Lei. Ele ataca também diretamente a concepção da Lei e de justiça que adotaram.” P.24 549 Sobre a sinagoga, W. CARTER faz uma interessante análise. Quando Mateus trata do episódio em que Herodes sabe do nascimento do Messias (2,1ss), ele afirma que foram “reunidos” [sunagagw.n] os sacerdotes e escribas. Carter comenta: “O verbo reuniu é a forma verbal de ‘sinagoga’, uma instituição da qual Jesus será distanciado (‘a sinagoga deles’, 4,23; 9,35; 12,9; 13,54; 23,34) e que receberá consistentemente má reputação (p.ex., 6,2.5; 10,17; 23,6) (...) Seu uso aqui representa a oposição da aliança a Deus e Jesus como os típicos mas condenados comportamentos dos centros de poder.”O Evangelho de São Mateus, p.113.

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Mt, é um debate real. Antes, os opositores de Jesus pertencem a um judaísmo do

qual os destinatários de Mt estão distantes, e aponta para um movimento judeu-

cristão palestinense de língua aramaica, que testemunha a bondade de Deus, à

margem ou contra a obediência farisaica da Lei.550 J. Roloff comenta que os

escribas e fariseus conhecem “o centro inequívoco, da vontade de Deus na lei,

qual seja, o mandamento do amor, esquivando-se, porém, do seu

cumprimento.”551

Quanto aos escribas, Mateus é bem mais tolerante em relação a eles. É bem

verdade que eles são apresentados, de um modo geral, como questionadores de

Jesus (“E eis que alguns dos escribas diziam entre si: Ele blasfema.” 9,3). Mas Mt

procura mostrar Jesus com muito mais prestígio junto ao povo do que os escribas

(cf. o final do Sermão do Monte, “Porquanto os ensinava como tendo autoridade;

e não como os escribas.”7,29). Provavelmente essa falta de autoridade dos

escribas esteja em conexão com a advertência de Jesus em 23,3: “Todas as coisas,

pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais

em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem”.552

A marca da tolerância de Mateus quanto aos escribas está na parábola do

escriba, em Mt 13.52: “E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca

do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas

novas e velhas.” Os discípulos de Jesus eram conclamados a serem como um

escriba, interpretando a Lei, mas dentro do critério do reino dos Céus. Sobre isso

Brown comenta:

O argumento aqui mostra que nem toda a interpretação e aplicação estão erradas. Jesus e os discípulos se ocupam com elas. Estão erradas, no entanto, quando deixam de ressaltar o verdadeiro significado da lei, e quando substituem a palavra de Deus pela tradição humana.553

Na verdade, muito já se disse que o retrato descrito a respeito dos fariseus –

bem com dos escribas – no evangelho é um tanto distorcido, anedótico até, para

550 VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.63. 551 ROLLOF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.174. GNILKA, no entanto, lembra que mesmo os fariseus em si não formavam um grupo homogêneo, conf Também vimos anteriormente. Só para citar as mais importantes, no tempo de Jesus havia a escola de Hillel e a de Shammai, cada uma tentando estabelecer sua interpretação da Lei como a mais autêntica. Jesus de Nazaré, p.248. 552 Cf. SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.171 et.seq. Também CHARLES, que comenta: “Absurdly scrupulous in their tithing on mint, anise and cumin, which were used for medicinal as well as culinary purposes, Pharisees neglected the more “weighty” matters of social ethics—e.g., justice and mercy (23:23-24). The result was an ethical monstrosity in and of itself.”, “Do not Suppose that I come”, p.58 et.seq. 553 BROWN, “lu,w”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1980.

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reforçar a superioridade de Jesus frente aos seus adversários.554 Mesmo assim, é

incorreto afirmar que o evangelho de Mateus seja anti-semita, apesar das severas

críticas presentes em passagens exclusivas, especialmente o cap.23, usado por

muitos como exemplo de anti-semitismo. Na verdade, o que está em jogo é auto-

preservação do grupo diante da oposição da sinagoga, e a fé em Jesus como o

intérprete da Lei por excelência.555 Por isso, sempre vamos ter que relativizar o

grau de oposição que eles realmente fizeram a Jesus.556

4.6.2. O sentido da justiça superior: perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh plei/on

“Justiça” – heb. qdc, gr. dikaiosu,nh - é um termo que designa no AT uma

relação conectiva: entre o jurídico e o salvífico; entre Deus e os homens. Aponta

para uma conduta relacionada com a comunidade, de fidelidade a ela, regulamenta

o relacionamento entre as pessoas, por isso tem estreita relação com a

“misericórdia/amor” [dsx].557

No NT há diversos conceitos para “justiça”, todos vinculados ao sentido

semita de relação, ação concreta, e não ao sentido grego de um ideal de virtude.558

Paulo foi quem mais tratou do assunto, numa perspectiva um pouco diferente

daquela de Mateus.559 Mas depois de Paulo, Mateus é quem mais utiliza o termo.

Na verdade, nos evangelhos, “justiça” [dikaiosu,nh] é um termo tipicamente

mateano – aparece sete vezes em Mt (Mt 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32) e apenas

554 Mesmo considerando os aspectos apontados por FLUSSER, Jesus, p.44 et.seq., sobre a rejeição que os fariseus sofriam por parte de diversos grupos judaicos, conf. capítulo 1. 555 Cf. a análise de HAGNER, D., “Matthew: Apostate, Reformer, Revolutionary?, p.206 et.seq. Também CARTER, W., O Evangelho de Jesus, p.54 passim. Ele comenta: “Crucial para compreender a comunidade (grandemente) judaica de Mateus comprometida com Jesus, é o reconhecimento de estar envolvida numa luta local no interior de uma sinagoga por seu lugar em uma tradição comum. (...) A audiência de Mateus é dessa forma uma grupo judeu em tensão com a comunidade da sinagoga ainda configurada por e comprometida com as tradições judaicas comuns.” P.63. 556 J. GNILKA Também faz essa advertência. Jesus de Nazaré, p.265 ets.seq. 557 OTTO, “Justiça (AT)”, Dic Bib Teo, p.222 et.seq. 558 KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.224. 559 Essa diferença foi analisada, por ex, por ZUMSTEIN. Ele levanta a questão, que muitos também relacionam, de que conceito de justiça em Mateus e Paulo é diferente. Enquanto para este, a justiça se apresenta na forma como Deus justifica o pecador, que a recebe pela fé, Mateus indica que o crente, ao cumprir a Lei, pode aspirar à justiça, cujo caminho foi apontado por Jesus no Sermão do Monte. Mateus o Teólogo, p.43. Ver Também a discussão levantada por BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.159 et.seq.

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uma vez nos outros sinópticos (Lc 1,75).560 É um tema central no Sermão do

Monte, pois aparece ali cinco vezes.561

Quanto ao sentido de “justiça” para a compreensão de 5,17-20, Carter

comenta que há várias maneiras de interpretá-lo562. Analisando o termo, porém,

entende que a melhor maneira de compreender a “justiça” – ele denomina

“justiça/retidão” - leva em conta que Deus age como justo ao agir em

conformidade com a Aliança na qual se comprometeu de salvar o povo (cf. 51,14;

65,5; Is 46,13; 51,5-8). Em contrapartida, o povo de Deus é justo na medida em

que se mantém fiel às exigências da aliança. Ou seja, para haver justiça plena, é

preciso haver o agir de Deus de forma salvífica, ao mesmo tempo em que os

homens cumprem suas exigências.563 Isso se dá, de forma especial, no relato do

batismo de Jesus, e esse seria o sentido de “cumprir toda a justiça” de 3,15.564

Com esse ato, Jesus se tornou o “modelo e fundamento possibilitador”565 de uma

justiça superior. O texto de 21,32 tem relação com 3,15. Nele, Jesus afirma que

“João veio a vós no caminho da justiça”, numa disputa a respeito de sua

autoridade com os “príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo” (cf. v.23).

Aqui “justiça” representa a obediência de João ao mandato de Deus e sua

pregação pelo arrependimento, e a qual meretrizes e publicanos aderiram.566

De um modo geral, Mt usa o termo “justo” para quem vive e age de acordo

com a vontade de Deus, e o agrada. Isso está relacionado aos justos e profetas do

AT (em 13,17 e 23,29.35), como para pessoas contemporâneas a Jesus (como

560 Cf, BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.138 et.seq. 561 MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.60. 562 CARTER, W., op.cit., p.143. “(1) Alguns argumentam que o termo sempre se refere à atividade salvífica de Deus. (2) Alguns sugerem que sempre se refere a homens realizando a exigência de Deus. (3) Outros sugerem que ambos os elementos estão presentes: dom divino e ação humana. (4) Ainda outros argumentam que os usos são inconsistentes e necessitam ser determinados caso por caso”. G. BARBAGLIO entende que “justiça”, “no primeiro evangelho, quer dizer fidelidade nova e radical à vontade de Deus.” Os Evangelhos (1), p.91; Cf. PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia superiore e fede ‘estroversa’.” P.57 et.seq; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p. 263 et.seq.; BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.139 et.seq.; TASKER, R.V.G. Matthew: An Introduccion and Commentary, p.67 et.seq. 563 Cf. BULTMANN. R., Teologia do Novo Testamento, p.49. 564 CARTER. W., O Evangelho de São Mateus, p.143; MARGUERAT, D. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.136 et.seq.; BORNKAMM, G., “End-Expectation and Church in Matthew”, p.36 et.seq. Nesse texto ele afirma a necessidade do Messias cumprir a plena vontade de Deus na terra, desde que foi proclamado como “Filho de Deus”; G. BARTH acrescenta a idéia de “dom escatológico” para a justiça cumprida por Jesus, e como apontado acima, se deu pela sua humilhação de se colocar no mesmo nível dos pecadores. “Matthew’s understanding of the Law”, p.140. 565 ROLOFF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.175. 566 Cf. MARGUERAT, D. Le jugement, p.292 passim.

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José, em1,19), e ainda para os fiéis escatológicos, que seguiram a Jesus e se

apresentarão a ele no fim (25,37.46).567 Por outro lado, pode-se pensar que a ética

exigida a partir da justiça é inteiramente encarada a partir da perspectiva do juízo.

Quando a justiça humana está vinculada à vontade divina, sanciona o juízo de

Deus.568

Nesse último sentido esta a importância do substantivo “justiça”, pois para

entrar no reino dos Céus, é preciso ter a “justiça superior”569, que supera a dos

escribas e fariseus. É onde o Sermão do Monte demonstra ter um centro temático:

a prática de uma justiça que exceda qualquer outra, que não seja baseada nos

ensinos de Jesus.570 Como Bornkamm comenta:

Isto se torna claro justamente nas antíteses do Sermão da Montanha. Nelas, a exigência de Deus se torna extremamente simples. (...) “...as antíteses mostram que Jesus já considerou a mentalidade como ação; ela têm por objetivo a obediência até à ação concreta: ‘Quem ouvir estas minhas palavras e as puser em prática...!’.571

Assim, o v.20 aprofunda o apelo à obediência total. Mas de forma polêmica,

pois a justiça exigida é a total obediência à Lei, conf. demonstrado nos v.17-19. A

originalidade de Mt, para Zumstein, está no “comportamento de acordo com a

vontade de Deus que abre as portas da salvação. A ética torna-se a única via que

conduz à aprovação divina.”572 Sobre isso Overman comenta:

Em nenhum ponto o comportamento e a resposta dos membros da comunidade de Mateus recebem mais atenção e ênfase do que no Sermão da Montanha. Aqui, Mateus dá destaque aos “testes de “comportamento” para falsos profetas da comunidade (7,15-23). A noção distintiva em Mateus de “conhecer alguém por seus frutos” é uma maneira pela qual enfatiza repetidamente certos comportamentos e ações para o verdadeiro seguidor de Jesus. A parábola dos construtores sensato e insensato também destaca a conexão entre ouvir e fazer

567 KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.225. 568 MARGUERAT, D., Le jugement, p.138. Ele complementa: “La justice n’est pas envisageane en dehors de la Torah, une justice ‘meilleure’ que celle des scribes et pharisiens encore moins qu’une autre.” P.138 et.seq. 569 Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.87; Outras possibilidades: “Justiça melhor”, BORNKAMM, Jesus de Nazaré, p.175; “Justiça/retidão superior”, CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.193; “Obediência/observância”, BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.118; “Fidelidade”, CAMACHO e MATEUS, O Evangelho de Mateus, p.64., 570 Cf. BORNKAMM, G.,Jesus de Nazaré, p.175 et.seq. 571 Ibid., p.178 et.seq. THEISSEN analisa que essa prática, de renúncia à violência e amor ao próximo “não se fundamentam no relacionamento com Deus, mas também no relacionamento com outras pessoas. Inegavelmente, o distinguir-se de outros grupos é um importante impulso para a concretização dessa exigências.” Sociologia da cristandade primitiva, p.103. 572 ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.42. Banks afirma que o sentido da justiça deve ser entendido em termos de “conduta” e do modo como é utilizada, e por isso fica melhor no sentido quantitativo do que qualitativo. Esse sentido é enfatizado tanto no v.19 quanto nas perícopes das antíteses (21-48), bem como é a perspectiva geral do Sermão do Monte. BANKS: “Matthew’s understanding of the Law”, p.242

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(7,24ss). (...) Quando Mateus fala em justiça no Sermão da Montanha, ele se refere ao comportamento e às ações esperados dos membros da comunidade.573

E qual é o agir esperado? É um agir a partir da exigência de uma justiça

absolutamente nova, que exceda em muito a justiça dos escribas e fariseus, e por

isso seja mais perfeita.574 O dito apresenta o verbo perisseu,w, que significa

“abundar”, “ser a mais”, “sobrar”.575 É um verbo muito utilizado na linguagem

paulina,576 mas que Mt também usa algumas vezes: duas vezes com sentido de

advertência para os discípulos (Mt 13,12; Mt 25,29) e uma vez como crítica aos

fariseus (12,34). Também aparece nas duas narrativas da multiplicação dos pães,

em 14,20 e 15,37, ao descrever a abundância de alimentos, mesmo após a partilha.

O dito de 13,12 fala sobre dar e tirar, inserido dentro da explicação sobre a

parábola do semeador: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância;

mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.” Vem de Marcos, e

aponta para o perigo da pessoa conhecer os mistérios do reino e não corresponder

a eles. Da mesma forma, em 25,29, em outra parábola (dos talentos) Jesus adverte

sobre “enterrar” o dom entregue a cada um: “Porque a qualquer que tiver será

dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado.”;

pode se referir àqueles que ouviram o Evangelho e não o tomaram com convicção,

antes se fecharam à sua proposta.577 Nos dois ditos, o resultado de quem acolheu e

viveu é a abundância [perisseuqh,setai]. Quem não o fez, perderá até o que não

tem (seria uma falsa justiça?).

Já o dito de 12,34 é uma severa crítica dirigida aos fariseus: “Raça de

víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em

abundância no coração, disso fala a boca.” Está inserido numa perícope de Q578,

mas é material exclusivo de Mateus, pois essa afirmação não consta da paralela.

Ao mesmo tempo, Nestlé-Aland aponta que é paralela de Mt 7,15-20, uma palavra

dirigida aos discípulos, advertindo-os dos “falsos profetas” [yeudoprofhtw/n], que

não dão bons frutos.579 O verso seguinte dessa perícope é muito revelador: “Nem

573 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.98. 574 LAGRANGE, M. Évangile selon Saint Matthieu, p.96. 575 RUSCONI, C. “perisseu,w”, Dicionário do grego do NT, p.370. 576 Cerca de 25 vezes, em várias formas verbais, como em Fp 1,9.26; 1 Co 14,12; 2 Co 8,7s; 9,8; 15,58; Cl 2,7; etc. 577 Cf. MAZZAROLO, Evangelho de Mateus, p.203; CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.365. 578 Paralelo em Lc 6,43-45. 579NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.62.

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todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz

a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (7,21), pois aponta claramente o critério

para entrar no reino dos Céus: seguir ao Senhor e praticar seus mandamentos. E

aqui retornamos ao princípio de 5,20.

Em 5,20, o adjetivo plei/on - “cheio”, “numeroso” – se junta a perisseu,sh,

dando a este uma intensidade afirmativa, por isso se traduz “exceder em

muito”.580 É essa expressão que vai determinar a medida da justiça que os

discípulos terão que praticar: superior a dos grupos contemporâneos que se

arrogam como intérpretes da Lei.581 Jesus valorizou as exigências do Decálogo,

mas propõe uma vivência nova, com uma ótica renovada; as antíteses demonstram

como ele tratou da essência da Lei que deveria ser praticada.582 Sem isso há um

enfático “de modo nenhum” [ouv mh.] que aponta para a impossibilidade de se

entrar no reino dos Céus.583

Mas, como analisou L. Goppelt, não é um mero acumular de atos isolados

de justiça que darão esse resultado, que é o motivo de fracasso dos fariseus,

segundo Mt. “Trata-se de uma total dedicação a Deus e ao próximo, dedicação

essa que determina inteiramente o relacionamento entre ambos.”584 Essa

exigência, vinda do próprio Jesus, foi acolhida por Mateus de maneira irresoluta, e

certamente dirigida vida de sua comunidade.585

Considerando o que apontamos aqui, não é de se admirar que o ensino sobre

a justiça superior tenha, em sua essência, uma idéia escatológica. Ou seja, a

recompensa pela fidelidade aos ensinos de Jesus não se dará nesse mundo, mas no

580 RUSCONI, C., “perisseu,w”, “plei/oj”, Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.370, 376; RIENECKER, Chave Lingüística do NT Grego, p.10 581 TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.264. 582 PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia superiore e fede ‘estroversa’.” P.54. F. V. FILSON acrescenta: “The gospel brings mercy, comfort, and divine help, but it does not cancel the demand of God for faithful and complete obedience to his will. A commentarya on the Gospel according to St. Matthew, p.84. 583 Cf. JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.100; Também STANTON, A Gospel for a new People, p.322.; 584 GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.457. Paralelamente, Lucas trabalha esse tema na Parábola do “Bom” Samaritano (Lc 10,30-37), a qual aponta para o verdadeiro cumprimento do amor ao próximo: servir a qualquer pessoa necessitada de uma ajuda concreta. Não importa quem o faça, será esse que demonstrará amor ao próximo. Em Mateus o samaritano estaria cumprindo a justiça superior. 585 Cf. KÜMMEL, Síntese Teológica do Novo Testamento, p.165. Ele comenta: “houve pelo menos círculos na comunidade primitiva que praticavam uma adesão conseqüente à observância tradicional das leis, exigindo comportamento semelhante de todos os adeptos do Cristo ressurrecto.” Podemos pensar que a comunidade de Mateus é herdeira ou foi formada a partir desse “setores”. Cf. STANTON, A Gospel for a new people, p.50.

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reino dos Céus. O final do Sermão do Monte ilustra a exigência de Jesus em

forma de advertência para a comunidade. Na perícope de 7,21-23, consta o

seguinte: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas

aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (v.21) Há uma relação

direta entre o agir segundo a vontade de Deus e o entrar no reino dos Céus.

Segundo a perícope, o que determina a entrada é a prática do amor, que não é

citado textualmente, mas está subjacente ao tema, tendo em vista, que elementos

como a prática do exorcismo, da profecia e da realização de milagres não

qualificam ninguém como tendo feito a vontade de Deus.586

É a respeito da comunidade, em última análise, que pairam as principais

advertências do texto de 5,17-20. Sua prática deve ser de tal modo no mundo que

brilhe intensamente (5,16) e seja reconhecida por todos como prática da justiça.587

No final do evangelho de Mateus (28, 19-20), como proposta de continuidade,

está de novo a dupla exigência de praticar e ensinar. A obediência exigida aos

discípulos é também estendida a todos os que aderirem à fé pelo batismo, os quais

serão ensinados de acordo com a orientação do mestre. Ele por sua vez, continuará

presente na Igreja, seja pela sua pessoa, seja pelos seus ensinos sendo vivenciados

pela comunidade.588 Sobre isso, J. Roloff comenta: “A dimensão escatológica da

igreja, o seu pertencimento ao reino dos céus, manifesta-se visivelmente diante do

mundo na sua prática da vontade de Deus.”589 De forma escatológica a Igreja,

hoje, manifesta a justiça superior, em busca da perfeição, como Jesus solicitou:

“Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (5,48).

Assim, pode-se dizer que “justiça e perfeição são dois aspectos da mesma

coisa”.590 Ou seja, assumindo na vida a ética do amor que Jesus ensinou e

praticou.

586 MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.123. Sobre a justiça comenta: “Os que procedem sem lei é porque fabricam e agem segundo suas leis próprias, alteram a ética e a justiça para obter ganhos da iniqüidade (Is 10,1-2; Mq 3,1-3).” Também BARBAGLIO, G. Os Evangelhos (1), p143 et.seq. completa, a respeito do amor: “Não o carisma, mas o amor é a sua verdadeira carteira de identidade, que será reconhecida pelo Senhor como condição para o ingresso no Reino.” P.144. 587 Cf. MALDONADO, J. Comentario a los cuatro evangelios, p.247. 588 Cf. BARBAGLIO, 418 et. seq. 589 ROLOFF, A Igreja no Novo Testamento, p.175; cf. Também BARTH. “Matthew´s understanding of the Law”, p.150. P. BONNARD afirma sobre a escatologia presente na exigência de Jesus: “c’est dasn cette atmosphère de joie eschatologique et de fidélité miraculeuse qu’il faut replacer cer versets et ceux qui suivent (21-48). L’Évangile selon saint Matthieu, p.62. 590 GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.456. Ou, no dizer de GNILKA: “a suma da ética de Jesus é o amor.” Jesus de Nazaré, p.223.

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5. Conclusão

Jesus é a personalidade mais importante da história ocidental, mesmo para

quem não é cristão confesso ou teólogo. Mesmo assim, sua relação com seu

ambiente judaico é algo estudado com profundidade há apenas algumas décadas.

Os estudos levados a efeito desde o início do século vinte, no entanto,

possibilitaram uma maior compreensão da mensagem de Jesus em seu próprio

contexto sócio-cultural. O principal aspecto para que se pudesse ampliar tal

conhecimento foi o estudo de textos judaicos contemporâneos a Jesus, e a análise

da estrutura social de seu tempo. História e análise social caminhando juntas para

tentar completar o quadro que os evangelhos canônicos apenas apontam.

Nesse sentido a presente pesquisa procurou perceber qual é a relação de

Jesus com a Lei e os Profetas, e como a atitude dele foi compreendida e

vivenciada pela comunidade de Mateus, que tem profundas raízes no Judaísmo.

Havia na pesquisa, então, alguns aspectos fundamentais que precisavam ser

discutidos: a compreensão geral sobre a Lei e os Profetas entre os judeus do

primeiro século; e a compreensão particular de Jesus sobre o assunto.

Para realizar a tarefa foi destacada a perícope de Mt 5,17-20, dentro do

conjunto dos evangelhos sinóticos, como sendo a que melhor representava essa

relação e expressava tanto o pensamento de Jesus como a resposta da comunidade

às exigências feitas por ele, em seu próprio Sitz im Leben. O estudo do evangelho

de Mateus tem demonstrado que ele é, ao mesmo tempo, um texto cristão, com

conteúdo eclesiástico bastante marcante e até exclusivo (o único evangelho que

usa o termo “igreja” [evkklhsi,a]), e um texto próximo da cultura judaica, por

diversos aspectos, dentre eles o apoio incondicional à Lei e o uso do ensino de

Jesus de forma bastante próxima dos mestres judeus. A comunidade de Mateus

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era composta de cristãos-judeus que seguiam a Jesus, mas desejavam manter-se

fiéis às raízes judaicas as quais estavam ligados, seja na Antioquia ou na Galiléia.

Ao mesmo tempo, a comunidade de Mateus vivia a crise da destruição do

templo (70 d.C.), e o antagonismo de outros grupos, os quais desejavam fortalecer

a identidade de seu grupo nesse ambiente. Assim, é provável que o evangelho de

Mateus tenha surgido como resposta documental para setores internos – pessoas

que não concordavam com o estilo judaico da comunidade – e externos – os

grupos judeus antagônicos. Para que essa resposta fosse convincente e forte o

suficiente, era necessário que fosse fundamentada nos ensinos do próprio Jesus, o

líder por excelência do grupo.

Quanto aos grupos antagônicos, os mais citados no evangelho são os

fariseus e os escribas, dois grupos que se fortaleceram após o declínio do grupo

sacerdotal, por conta da destruição do templo. Mas eram grupos polêmicos,

criticados não só por Jesus (e ainda mais por Mateus), como também por outros

grupos contemporâneos, que nada tem a ver com a propaganda protocristã do

primeiro século.

A análise da perícope de Mt 5,17-20 levou em conta essas premissas gerais,

e metodologicamente, utilizou várias abordagens, que se concatenam no corpo da

própria pesquisa. Como metodologia para a exegese, foram utilizados

principalmente o método histórico-crítico, que ajudaram a perceber como o dito

foi construído redacionalmente na forma como se apresenta na perícope. Ficou

patente que os v.18-19 formam uma unidade interna aos v.17,20, que se tornam

uma moldura. Quanto à dependência nessa estrutura, no entanto, tanto se pode

afirmar a primazia de 17,20 como ditos mais antigos, quanto o contrário.

A partir dessa análise percebemos que, apesar da exclusividade do dito em

Mateus, e de sua mão redacional claramente verificável, a perícope é uma junção

de tradições antigas que vem de fonte exclusiva (M) na maior parte, e da fonte

comum a Lucas (Q) no caso do versículo 18.

Por outro lado, ficou claro que essa perícope não está isolada no todo do

evangelho, mas forma um conjunto com sentido e objetivo coerente. Do ponto de

vista contextual, de fato, introduz a seção seguinte do Sermão do Monte, onde são

colocadas as antíteses (5,21-48), e mais adiante as normas de comportamento da

comunidade (6,1-7,12). É possível estabelecer, assim, uma relação temática entre

o v.17, com 5,21-48 (o pleno cumprimento da Lei), e o v.20 com 6,1-7,12

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(praticar a justiça superior). Como confirmação de ambos os motivos, a

declaração de que a Lei continuará valendo (v.18), e que ensinar e praticar essa

Lei seria a condição para entrar no reino dos Céus (v.19).

As principais questões que se colocaram frente ao tema e ao texto tem a ver

com a autenticidade do dito, o fundamento judaico do dito, e se o conteúdo dele é

escatológico ou não.

Quanto à autenticidade, há uma corrente que a questiona e outra que a

defende. Para os que a questionam, o princípio é simples: Jesus não foi um

questionador ferrenho do Antigo Testamento e da cultura judaica, e a comunidade

faz afirmações como sendo de Jesus que intensificam essa relação. Para que possa

sobreviver, a comunidade coloca na boca de Jesus a defesa da Lei, coisa que o

próprio Jesus nunca fez (Bultmann). Mesmo assim, essa corrente concorda que

Jesus de fato teve papel de escriba, e como tal, teve autoridade para interpretar as

leis à medida que julgava necessário (Bornkamm). Mas é possível que o grupo

antagônico fosse de “dentro” e não de “fora”. Ou seja, alguns afirmam que o

embate se dava no interior da comunidade, na discussão sobre seguir ou não a Lei.

Assim, a perícope aponta para um grupo conservador dentro da própria

comunidade de Mateus (Barth, Fabris, Gnilka, e outros).

A corrente que defende a autenticidade segue uma linha de raciocínio a

partir da análise literária em si. Para ela, o dito expressa uma base aramaica que

demonstra a autoridade de Jesus e tinha correlação com ditos comuns da Galiléia

contemporânea a Jesus (J.Jeremias). Para outros, no entanto, em oposição à

corrente que não aceita o dito como autêntico, faltam provas que possam afirmar

veementemente que ele é inautêntico (Kümmel). E por esse motivo interpretam o

dito como autêntico, considerando como mais importante o sentido que ele tem,

do que a discussão sobre a autenticidade em si. Para esses, o sentido do dito é o

fato que Jesus rompe com tradições consideradas infiéis à Lei, por conta da

casuística da tradição dos anciãos. A comunidade teria resgatado tradições sobre

Jesus e a Lei que em geral foram ignoradas (Banks, Mateos e Camacho, Ladd,

Martin). Por isso, alguns chegam a ter uma certa imparcialidade sobre o assunto

(Theissen, Stanton, Carter). De um modo geral, o que essa corrente defende é que

o fato do dito ser exclusivo de Mateus não significa automaticamente que não

possa ser autêntico.

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Por isso foi necessário fazer uso da criteriologia proposta pela third quest, a

terceira onda de pesquisas a respeito do Jesus Histórico. Essa criteriologia é

também passível de análise crítica, mas foi adequada para a presente pesquisa.

Para o estudo da perícope de Mt 5,17-20 se leva em conta o fato de Jesus ter

realmente utilizado o ensino como a principal forma de proclamar a mensagem,

mesmo que não a tenha colocado por escrito ou sistematizado. Foram utilizados

os critérios da Múltipla Atestação, da Plausibilidade Histórica, do

Constrangimento, da Rejeição e da Execução e o Critério do Estilo de Jesus.

Seguindo esses passos, chegou-se à conclusão que há fortes indícios para

considerar o dito como autêntico. Os principais motivos foram: a estreita relação

com seu mundo judaico, o estilo do dito, que aponta para categorias aramaicas, e

o fato de que a Igreja não seguiu essa postura de fato, ou seja, foi exclusiva de

Jesus.

No tocante ao substrato judaico do dito, duas abordagens ajudaram a

compreender a relação de Jesus com a Lei e suas exigências para seus seguidores.

Por um lado, a análise temática a respeito do assunto permitiu verificar que não é

possível pensar Jesus fora de seu contexto sócio-cultural. Ele foi realmente um

judeu observante da Torá, manteve os costumes de seu povo e tinha uma piedade

baseada nas antigas tradições israelitas. No entanto, Jesus teve autoridade, como

profeta, como mestre, e como intérprete da Lei, que o qualificou a interpretar os

preceitos que contrariavam premissas fundamentais da vontade de Deus. Aliás, foi

na busca por cumprir a vontade de Deus que Jesus cumpriu a Lei. Não como um

fim em si mesmo, mas como um princípio para a vida.

Considerando esse sentido, ficou constatado que Jesus questionou certas

interpretações por parte de grupos judeus contemporâneos, especialmente os

escribas e os fariseus. Questões como o Sábado e a pureza levítica, interpretados

casuisticamente, foram revistos por Jesus, que se colocou acima de tradições

humanas. Por outro lado, certos preceitos do Decálogo, que permitiam violência

ou eram vagos nas implicações práticas, foram intensificados por ele. Jesus

proibiu a vingança, além de outras atitudes que tornavam o próximo objeto do

desejo egoísta daqueles que tentavam distorcer a Lei. A conclusão coerente a que

se chega é que Jesus levou o cumprimento da Lei ao nível de uma ética

inigualável para seu tempo. A ética do amor a Deus e ao próximo como pleno

cumprimento da vontade de Deus (cf. Mt 22,34-40).

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A outra maneira como foi percebido esse substrato judaico se deu pela

análise semântica dos ditos, agora partindo da premissa que são autênticos. Jesus

utiliza expressões de forte cunho messiânico (o “Vegw,” enfático), que marcaram

muitas das suas falas. A idéia do cumprimento é muito mateana, mas é atestada

paralelamente em textos rabínicos que, de alguma forma, polemizam não com

Mateus, mas com Jesus591. O termo grego plerw/sai - “cumprir” - demonstra que

há vários sentidos que podem ser aplicados ao dito, mas o principal deles é o

cumprimento da vontade salvífica de Deus, que aponta para a Lei não como fim

em si mesma, mas orientadora para uma prática voltada para o amor.

Outro termo que auxiliou na percepção da raiz judaica é o avmh.n, considerado

por alguns como a verdadeira voz de Jesus nos evangelhos (J.Jeremias). O termo

tem dois aspectos de importância para a nossa pesquisa. (1) Evidencia a

autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre verdadeiro, cujo

ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. (2) Aponta o respeito por

tradições de ditos que tivessem início com esse termo, mantendo a afirmação na

língua original, apenas transliterando para o grego.

Por fim, o termo “justiça” - dikaiosu,nh - tem em Mateus relação de

significação com o qdc do Antigo Testamento, ao contrário de uma idéia helênica

de justiça. Jesus afirmou a justiça dentro do imaginário judaico, o qual se refere às

atitudes concretas que uma pessoa irá realizar a partir da instrução (Torá) que terá

recebido. O conceito helênico trata do termo a partir de um ideal, ao contrário do

dito de Jesus. Isso é relevante pelo fato de se perceber que a perícope de Mt 5,17-

20 não trata de um ideal a ser alcançado, como foi interpretado no passado, mas

de uma prática vivencial concreta, que deve ser regida pelo princípio do amor.

Esses três termos em particular são indícios de que há um substrato

aramaico ao texto, o que pode significar duas coisas: ou a comunidade de Mateus

tem suas bases na língua aramaica, ou a maior parte do material de ditos de

Mateus vem do próprio Jesus. Nesse segundo caso, o que se percebe é a busca da

comunidade em manter-se fiel ao projeto original de Jesus, que é uma releitura da

forma como a Lei estava sendo interpretada e vivenciada. Mas, qual é o fim da

fidelidade à Lei, e até quando irá durar sua validade? Essas perguntas, que

591 Como o caso do Shabbat 116a, citado no capítulo 3, que diz, em tom irônico: “Eu não vim para tirar algo da lei de Moisés Antes vim para acrescentar à lei de Moisés”.

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provavelmente surgiram na vivência da comunidade, são respondidas de uma

maneira que dá margem à compreensão do dito como sendo escatológico.

Essa é a terceira grande questão de nossa pesquisa. A perícope deve ser

entendida como escatológica no seu todo, ou apenas em partes? Ou ainda, ela tem

elementos escatológicos de fato ou não? Tratar da perspectiva escatológica,

conquanto não seja o centro da discussão nesse caso, é importante para entender

especialmente dois trechos: “até que passem o céu e a terra”, e “não entrarão no

reino dos Céus”, além da idéia de “pequeno” e “grande” no reino.

Considerando que Jesus compartilhou com seus contemporâneos o conceito

básico de escatologia, vinculado a antigas tradições proféticas, teremos

sumariamente a idéia de uma referência a um tempo futuro, que superará a

situação atual. Ou seja, se deve pensar em termos de uma descontinuidade

histórica, entre o agora e o futuro, como algo que só poderia ser realizado por

Deus. Ao mesmo tempo, Jesus lidou com o novo conceito popular de apocalíptica,

em que o futuro chega para encerrar a presente ordem, instaurando uma ordem

transcendente e divina.

Nossa pesquisa verificou que o dito de Mateus tem realmente um cunho

escatológico, somado a uma característica de hipérbole, própria do ensino de

Jesus. A escatologia no dito tem por objetivo alertar a comunidade, fazê-la

vigilante na observância da Lei, de acordo com os ensinos de Jesus, que deveriam

ser repassados e praticados continuamente. Ditos similares em Mateus (por

exemplo, em 13,12 ou 25,29) colocam o ensino numa perspectiva de futuro, a

partir da prática da justiça superior, realizada no cotidiano, mas com vistas a algo

maior, transcendente, o reino dos Céus. Ou, como se percebe na literatura

apocalíptica judaica anterior a Jesus, a observância da Lei no tempo presente

garante a participação no reino futuro.

Por isso a prática da Lei não pode ser confundida com atos isolados de

justiça contados de forma linear, mas de uma dedicação completa ao cumprimento

da vontade salvífica de Deus, da mesma forma que Jesus. Essa justiça superior –

em relação às demais interpretações da Lei, opostas a de Jesus – tem na lei do

amor o máximo de seu cumprimento. Essa idéia do amor como cumprimento

pleno da Lei está indicada tanto na base judaica da pesquisa quanto em sua base

escatológica. É a expressão visível da perfeição divina, que só pode ser realizada

pela comunidade de seguidores de Jesus.

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Assim, nossa pesquisa aponta para o fato de que a relação entre Jesus e a

Lei está centrada na ética do amor, e nas exigências concretas que essa ética

pressupõe. Para Jesus, significou vivenciar o amor de forma intensa, responder

por ele, responsabilizar-se pelo próximo, mesmo que este seja incapaz de

corresponder. E fez isso até a morte, não de forma isolada, mas como ápice de sua

entrega pelo próximo, pois sua vida o impeliu a isso. Cumpriu toda a Lei, e assim

cumpriu toda a vontade salvífica de Deus. Para a comunidade de Mateus,

representou perseverança na perseguição, solidariedade para com os aflitos que

também se sentiam desprotegidos e incapazes de praticar a justiça.

Não sabemos ao certo o que aconteceu com a comunidade de Mateus, se foi

absorvida pelas comunidades gentílicas no processo de construir uma igreja

“católica”, ou se simplesmente se isolou em seu projeto de um “novo” Israel, a

ponto de deixar de existir como grandeza comunitária. Mas o fato é que a firmeza

doutrinária pela qual a comunidade vivia deve servir de exemplo para as

comunidades cristãs atuais. Se há um acento teológico que deve ser trazido para

nossa prática hoje é a convicção de ensinar e praticar – grandezas que devem

existir unidas, e nunca separadas – a Lei segundo a interpretação de Jesus. O

ensino sem a prática é igual ao farisaísmo condenado em Mt 23,2-3; a prática sem

o ensino será como não plantar quando se tem a semente à mão: em pouco tempo

esta deixará de existir.

Mas, sem dúvida, a grande prática cotidiana que é exigida por Jesus tem a

ver com a ética do amor. É ela que deve orientar cada atitude e todo o ensino que

o seguidor de Jesus deseja realizar. Qual um escriba, iniciado no reino dos Céus, é

o discípulo de Jesus, o qual analisa sempre o que é “novo” e o que é “velho”,

mediante o ensino do amor.

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