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Marcelo Akira Hueda As concepções evolutivas no Vestiges of the natural history of creation (1844) de Robert Chambers e a proposta de Lamarck: um estudo comparativo Mestrado em História da Ciência Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2009

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Marcelo Akira Hueda

As concepções evolutivas no Vestiges of the natural

history of creation (1844) de Robert Chambers e a

proposta de Lamarck: um estudo comparativo

Mestrado em História da Ciência

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo

2009

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Marcelo Akira Hueda

As concepções evolutivas no Vestiges of the natural

history of creation (1844) de Robert Chambers e a

proposta de Lamarck: um estudo comparativo

Mestrado em História da Ciência Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História da Ciência sob a orientação da Prof. Doutora Lilian Al-Chueyr Pereira Martins.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo

2009

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HUEDA, Marcelo Akira

“As concepções evolutivas no Vestiges of the natural history of creation (1844) de Robert Chambers e a proposta de Lamarck: um estudo comparativo”

São Paulo, 2009 xiii, 77 p.

Dissertação (Mestrado) – PUC-SP Programa: História da Ciência

Orientadora: Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins

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Banca examinadora

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

Ass.: ____________________________________________________

Local e data: ______________________________________________

[email protected]

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Dedicatória

À minha esposa Kelly que me apoiou nos momentos difíceis e foi fonte de

inspiração.

Para você Laura que nos encheu de alegria.

Aos meus pais, Célia e Macoto.

Aos meus irmãos, Keiko e Masami.

Aos meus avós in memoriam.

À Profa. Lilian, pela paciência, compreensão, generosidade e sobretudo pelo

apoio nos momentos mais difíceis.

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Agradecimentos

A todos os professores do mestrado, especialmente Profa. Maria Elice e Prof.

Paulo.

À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo pela bolsa concedida.

A todos os colegas do mestrado pelo companheirismo e generosidade.

À tia Masa que sempre me incentivou a estudar.

À amiga Luciana pelo apoio dado na reta final desta pesquisa.

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RESUMO

Publicado anonimamente em 1844, o livro Vestiges of the natural history of

creation desencadeou uma das maiores discussões públicas que ocorreram durante o

século XIX. Seu autor, Robert Chambers, defendeu a transmutação dos seres vivos e a

origem de novas espécies através de causas naturais. O primeiro objetivo desta

dissertação é descrever algumas concepções “evolutivas” apresentadas neste livro e o

segundo é compará-las à versão final da teoria da progressão dos animais de Lamarck.

Esta dissertação contém uma introdução e quatro capítulos. O capítulo 1 discute

os precedentes evolutivos e o contexto geral no qual Chambers apresentou suas idéias

sobre a transmutação das espécies, tratando também de sua carreira e interesses

profissionais. O capítulo 2 lida com alguns aspectos das concepções evolutivas de

Chambers. O capítulo 3 oferece uma comparação entre as concepções de Chambers e

Lamarck mostrando suas similaridades e diferenças. O capítulo 4 apresenta algumas

considerações sobre o que foi discutido nos capítulos anteriores.

Este estudo levou à conclusão de que embora possam ser detectadas diversas

semelhanças entre alguns aspectos das concepções evolutivas de Chambers e as

concepções evolutivas de Lamarck, tais como o gradualismo, a progressão, o

uniformitarismo, as leis naturais e a não intervenção divina nos processos naturais, há

também diferenças tais como o modo pelo qual eles procuraram fundamentar suas

teorias. Enquanto Chambers apresentou exemplos obtidos principalmente a partir do

registro fóssil e alguns relacionados à presença de órgãos rudimentares e à embriologia,

Lamarck fez pouco uso do registro fóssil para fundamentar sua teoria. Em vez disso,

forneceu uma grande massa de fatos mostrando a existência de uma progressão entre os

grandes grupos de animais. O arranjo desses grupos em uma escala progressiva,

entretanto, não proporcionou uma fundamentação empírica para o que ocorreu em termos

cronológicos. Por outro lado, Chambers apresentou leis diferentes das apresentadas por

Lamarck. Entretanto, apesar de não propor uma lei tratando da tendência para o aumento

de complexidade existente na natureza em relação aos grandes grupos ou indivíduos

como Lamarck, esta idéia permeou as concepções de Chambers sobre a transmutação

das espécies.

Palavras-chave: História da evolução; transmutação das espécies; Chambers,

Robert; Lamarck, Jean Baptiste.

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ABSTRACT

Published anonymously in 1844, the book Vestiges of the natural history of creation

triggered one of the greatest public debates which took place in the 19th century. Its

author – Robert Chambers – proposed the transformation of living beings and the origin of

new species by natural causes. The first aim of this dissertation is to describe some

“evolutionary” concepts presented in the book. The second one is to compare them to the

final version of Lamarck’s theory on the progression of animals.

This dissertation contains an introduction and four chapters. Chapter 1 discusses

the evolutionary precedents and the general context in which Chambers presented his

views concerning the transmutation of species. It also describes his career and

professional interests. Chapter 2 deals with Chambers’ main evolutionary ideas. Chapter 3

provides a comparison between Chambers' and Lamarck's views, showing their similarities

and differences. Chapter 4 offers some final remarks on the subject.

This study led to the conclusion that although several similarities between

Chambers' and Lamarck's evolutionary ideas may be found in some respects, such as

gradualism, progression, uniformitarism, natural laws and no interference of God in natural

processes, there were also some relevant differences such as the way in which they

attempted to provide a foundation for their theories. Whereas Chambers presented many

arguments using the fossil records as well as some other ones related to rudimentary

organs and embryology, Lamarck made scarce use of the fossil record for the foundation

of his theory. Instead of this, he provided a huge mass of facts showing the existence of a

progression of the great taxonomical groups of animals. The arrangement of those groups

in a progressive scale, however, did not provide an empirical foundation for what had

happened in time. On the other hand, Chambers presented laws different from Lamarck's.

However, although he did not propose a law dealing with the increase of the complexity of

the great groups or individuals as Lamarck did, this idea permeated all of Chambers' ideas

on the transmutation of species.

Key-words: History of evolution; transmutation of species; Chambers, Robert;

Lamarck, Jean Baptiste.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………....1

CAPÍTULO 1 - PRECEDENTES DA PUBLICAÇÃO DO LIVRO VESTIGES OF

THE NATURAL HISTORY OF CREATION DE ROBERT CHAMBERS…………..5

1.1 Carreira e interesses profissionais.…..…………………..…………………….5

1.2 O contexto da publicação do Vestiges…...…...………………………………13

1.3 Algumas propostas evolutivas que antecederam a proposta de

Chambers……………………………………………………………………………..16

1.3.1 A proposta de Erasmus Darwin….…………………………………………..16

1.3.2 Lamarck……………………………..………………………………………….17

1.3.2.1 A teoria da progressão dos animais Lamarck………..………………….19

1.3.2.2 A origem dos seres vivos…………………………………………………..19

1.3.2.3 As causas da progressão dos animais..…………………….……………21

1.3.2.4 As leis gerais da progressão dos animais……………………….……....21

CAPÍTULO 2 - CONCEPÇÕES EVOLUTIVAS DE ROBERT CHAMBERS

EXPOSTAS EM VESTIGES OF THE NATURAL HISTORY OF CREATION

(1844)…………………………………………………………………………….……....24

2.1 Introdução………………………………………………………………………...24

2.2 Deus e as leis que atuam na natureza……… …………………………….…25

2.3 A origem da vida e a formação dos diferentes grupos de seres vivos….....27

2.4 A influência das condições externas na evolução………………. …….....…31

2.5 Evidências de que a evolução ocorre........................…………………….....32

2.5.1 O Registro fóssil………….…………………………………………………...33

2.5.1.1 Os primeiros fósseis……………………………………….........…………33

2.5.1.2 Fósseis da Era do Arenito Vermelho Antigo..…………………...………36

2.5.1.3 Fósseis da Formação carbonífera…………………………………..……37

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2.5.1.4 Fósseis da Era do Arenito Vermelho Novo……………………………….40

2.5.1.5 Fósseis da Era do Oólito……………………………………………………42

2.5.1.6 Fósseis da Formação do Cretáceo………………………………………..43

2.5.1.7 Fósseis da Era da Formação do Terciário………………………………..45

2.5.1.8 Fósseis das Formações Superficiais……………………………………...47

2.5.2. Evidências embrionárias e órgãos rudimentares……………………….…48

2.5.3 Exemplos em que a evolução está ocorrendo

atualmente………………………………………………………………………..…..55

2.5.4 A existência de espécies intermediárias…...........…………………………56

2.6 Algumas considerações……….. …………………….………………………..58

CAPÍTULO 3 - CHAMBERS, LAMARCK E EVOLUÇÃO ORGÂNICA….……….61

3.1 Aspectos em comum…………………………………………………………....61

3.2 Aspectos diferentes…………………………………………..….……...………65

3.3 Algumas considerações…………………………………………………...……68

CAPÍTULO 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS………………..………………………..70

BIBLIOGRAFIA………………….……………………………………………….……..74

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1

INTRODUÇÃO

O interesse pela evolução vem desde minha graduação em Ciências

Biológicas. Este interesse incluía também a história da evolução. Estudava com

muita curiosidade principalmente as idéias de Charles Darwin (1809-1882) e de

Jean-Baptiste Antoine de Monet de Lamarck (1744-1829).

Ao ingressar no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da

Ciência tomei contato com a minha orientadora que me sugeriu um estudo sobre

as contribuições de Robert Chambers (1802-1871) para a história da evolução. A

partir da leitura de fontes secundárias e de estudos da minha orientadora

definimos as contribuições de Chambers presentes em Vestiges of the natural

history of creation1 como objeto desta dissertação. Num segundo momento,

optamos por estabelecer uma comparação entre as concepções evolutivas de

Chambers e Lamarck.

O livro Vestiges of the natural history of creation foi publicado, de forma

anônima, em 1844. A obra causou um forte impacto no mundo britânico, pois se

tratava de um livro que propunha uma visão evolucionista do mundo vivo, fato que

não era comum nesse período2. Este impacto se deu tanto no sucesso editorial do

livro, foram 14 edições entre 1844 e 1890, quanto nas críticas que a obra

recebeu3.

Chambers ao propor que as espécies passam por um processo de evolução

orgânica se chocou com muitos naturalistas da época que não admitiam a

evolução. Além disso, Chambers incluía o homem como produto da evolução, fato

1 Vestígios da História Natural da Criação. 2 Ernst Mayr, The growth of biological thought. Diversity, evolution and inheritance (Cambridge,

MA:Belknap Press, 1982), pp. 381-382. 3 James A. Secord, “Introduction”, in Robert Chambers, Vestiges of natural creation and other

evolutionary writings (Chicago: Chicago University Press, 1994), p. xviii.

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2

que causou ainda mais celeuma. Outro fator que chamou muito a atenção do

público em geral e de naturalistas em particular, foi o anonimato de Vestiges4.

O autor, Robert Chambers, não era um naturalista 5 que fazia observações

e coletava espécimes. Foi um editor de uma importante enciclopédia, a Chambers’

Encyclopedia, e ainda atuava como escritor e jornalista que se interessava por

ciência. Chambers, portanto, baseou suas concepções evolutivas em leituras de

diversas obras de naturalistas, médicos e outros estudiosos do período.

Vestiges é uma obra que trata de vários assuntos. Estes vão desde a

evolução do universo, formação da Terra, aparecimento e desenvolvimento dos

seres vivos até a evolução humana.

Como já foi dito, até a publicação de Vestiges em 1844 pouco se discutia

sobre a transformação das espécies na Grã Bretanha6. Em termos cronológicos,

as concepções evolutivas de Chambers, estão situadas entre a teoria da evolução

de Jean-Baptiste Antoine de Monet de Lamarck (1808-1822) e de Charles Darwin

(1859). Com base nessa questão cronológica e no fato de existirem poucos

estudiosos que propunham o que chamamos atualmente de evolução orgânica

entre Lamarck e Darwin e, dentro de uma perspectiva diacrônica, faremos uma

comparação entre algumas concepções evolutivas de Chambers e Lamarck.

Nesse sentido, esperamos que esta dissertação possa trazer algumas

contribuições para a história da biologia e da evolução.

Consideramos que, dentro da história da biologia e da evolução, em

particular, essa a comparação mereça ser feita porque no levantamento realizado

na Current Bibliography da revista Isis e em outros bancos de dados de História da

4 A autoria de Vestiges foi revelada após a morte de Chambers, no prefácio da décima quarta

edição (1884) escrito pelo jornalista e amigo de Chambers, Alexander Ireland. 5 Cabe uma ressalva de que Chambers havia publicado alguns trabalhos sobre geologia baseados

em viagem e observações suas e também fora membro da Geological Society de Londres. No

Capítulo 1 desta dissertação aparecerão maiores detalhes sobre esses trabalhos. 6 Ernst Mayr aponta como razões para isso, por exemplo, o grande interesse pelas ciências

experimentais, já que o empirismo era muito forte. Além disso, a atividade em história natural

estava nas mãos de pastores da Igreja Anglicana, o que levava a uma crença na perfeição do

mundo criado por Deus e que, portanto, não admitia a evolução.

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3

Ciência,não encontramos nenhum estudo que comparasse as idéias desses dois

autores.

A partir do que foi apresentado, nosso primeiro objetivo será inicialmente

descrever algumas concepções evolutivas de Chambers expostas na primeira

edição de Vestiges (1844). O segundo objetivo será compará-las com a teoria da

progressão dos animais de Lamarck (1800-1822) 7.

Serão analisadas e comparadas questões acerca de:

• As características do processo evolutivo;

• Origem da vida;

• Desenvolvimento dos diferentes grupos taxonômicos;

• As leis e evidências que são utilizadas para descrever o processo evolutivo;

• Os mecanismos utilizados para explicar a evolução.

Além das fontes primárias analisadas, serão utilizadas fontes secundárias.

Estas compõem-se de artigos publicados em periódicos especializados em

História da Ciência tais como: Journal of the History of Biology, Revista da

Sociedade Brasileira de História da Ciência, Epistéme. Filosofia e História da

Ciência em Revista, Journal of the History of Ideas, British Journal for the History

of Science entre outros e em livros de outros historiadores tais como: Just before

Darwin: Robert Chambers and Vestiges de Milton Millhauser, The growth of

biological thought: diversity, evolution and inheritance de Ernst Mayr, Evolution:

The history of an idea de Peter J. Bowler, A teoria da progressão dos animais, de

Lamarck de Lilian A. -C. P. Martins e Victorian sensation: the extraordinary

publication, reception, and authorship of Vestiges of the natural history of creation

de James A. Secord dentre outros.

Esta é uma pesquisa sobre a História da Evolução dentro da linha de

pesquisa em História e Teoria da Ciência. Este tipo de pesquisa pretende lançar 7 Nesse sentido, iremos nos basear principalmente nos estudos de Lilian A.-C. P. Martins tais

como: A teoria da progressão dos animais de Lamarck; “O papel da geração espontânea na teoria

da progressão dos animais de J. B. Lamarck”; “A metodologia de Lamarck”, “A cadeia dos seres

vivos: a metodologia e epistemologia de Lamarck”; “Lamarck e as quatro leis da variação das

espécies”; “Lamarck, evolução orgânica e a adaptação dos seres vivos: algumas possíveis

relações”;”Lamarck y evolución orgánica: vida, materia y sus relaciones”.

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4

luz sobre a construção do pensamento científico, a formulação de hipóteses e de

teorias.

Além desta introdução, esta dissertação será dividida em 4 capítulos. O

Capítulo 1 apresenta o contexto da publicação de Vestiges, com uma breve

biografia de Robert Chambers e as idéias precedentes acerca de evolução. O

Capítulo 2 descreve as concepções evolutivas de Chambers presentes na primeira

edição do Vestiges. O Capítulo 3 compara alguns aspectos das concepções

evolutivas de Chambers com a proposta de Lamarck. O Capítulo 4 apresenta as

considerações finais sobre o que foi discutido nos capítulos anteriores.

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5

CAPÍTULO 1

PRECEDENTES DA PUBLICAÇÃO DO LIVRO VESTIGES

OF THE NATURAL HISTORY OF CREATION DE ROBERT

CHAMBERS

Este capítulo tem como objetivo inicialmente apresentar ao leitor o

personagem central desta dissertação, Robert Chambers (1802-1871),

comentando um pouco acerca de seus interesses profissionais. A seguir tratará,

de forma breve, do contexto científico dentro do qual se deu a publicação do

Vestiges of the natural creation (1844) bem como de duas propostas evolutivas

que antecederam a proposta de Chambers abordando a de Erasmus Darwin

(1731-1802) e a de Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (1744-

1829).

1 CARREIRA E INTERESSES PROFISSIONAIS

Robert Chambers nasceu em Peebles (Escócia), no dia 10 de julho de 1802

e faleceu em 17 de março de 1871, em St. Andrews (também na Escócia). Pode-

se dizer que os primeiros anos de vida de Chambers foram confortáveis em

termos materiais, já que seu pai, James Chambers, era um próspero fabricante de

algodão. Sua “fábrica” funcionava no terraço da casa onde viviam8.

A infância de Chambers foi marcada por muitas leituras. Milton Millhauser

escreve que aos dez anos Chambers tomou contato os principais romances do

século XVIII. Seu pai teve uma importante influência na sua formação de leitor ao

disponibilizar para ele diversos livros e a quarta edição da Enciclopédia Britânica.

8 Milton Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges ( Middletown/Conn.:

Wesleyan University Press, 1959), p. 11.

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6

Os interesses de Chambers se concentravam principalmente na literatura e na

ciência 9.

Chambers freqüentou a escola local de Peebles, onde teve aulas de leitura,

escrita e aritmética. No entanto, ele considerava que tinha aprendido muito mais

coisas com suas próprias leituras feitas a partir das obras de que dispunha em

casa e das obras de um livreiro, Alexander Elder, que circulavam pela cidade10.

Pode ser dito que Chambers foi um autodidata11.

Seus hábitos de estudos em casa foram em parte motivados por uma

deficiência com que ele nasceu. Chambers nascera com polidactilia. Tinha seis

dedos em cada uma das mãos e dos pés. Seus pais tentaram uma cirurgia para

corrigir o problema, mas ela não foi bem sucedida. Como conseqüência,

Chambers ficara meio coxo e sujeito a muitas dores. Sua infância, em decorrência

disso, se restringiu a várias leituras no interior de sua casa sem as brincadeiras ao

ar livre como que faziam parte da vida de muitos garotos da época 12.

A fábrica do pai de Chambers com o decorrer do tempo passou a não ser

tão bem sucedida como antes e devido à falta de pagamento de vários credores

acabou por ir à falência. Os Chambers então se mudaram de Peebles para

Edimburgo13.

Em Edimburgo as dificuldades financeiras continuaram a fazer parte da vida

da família de Chambers, com seu pai desempregado, e a família sustentada pelo

irmão mais velho, William Chambers (1800-1883). Aos dezesseis anos Chambers

deixou a escola voluntariamente por considerá-la demasiadamente dispendiosa

para a família 14.

William Chambers sustentava a família trabalhando como auxiliar de um

livreiro e convidou seu irmão Robert Chambers para trabalhar com ele. William

9 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 12. 10 Ibid., pp. 13-14.

11 W. C. Williams, “Chambers, Robert”, in: C. C. Gillispie, org., Dictionary of Scientific Biography (New

York: Charles Scribner’s Sons, 1981), vol.3, p. 191. 12 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 14. 13 Ibid., p. 15. 14 Ibid., p. 17.

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7

imaginou que os conhecimentos que Robert tinha dos livros poderiam ser

utilizados de uma forma prática, isto é, auxiliariam nos negócios com os livros15.

Juntos, os irmãos Chambers, abriram uma pequena livraria, no local onde

residiam com a intenção de comercializar alguns poucos títulos. Mais tarde William

abriria uma livraria só pra ele e Robert permaneceu, aos dezoito anos, trabalhando

sozinho16.

William e Robert Chambers prosperavam com seus negócios, e no início da

década de vinte de 1800 começaram a publicar revistas e pequenos livros. Robert

iniciou sua carreira como escritor, tratando de vários assuntos que iam desde

revistas de entretenimento, como a The Kaleidoscope até as tradições de

Edimburgo. Além disso, ele escreveu obras sobre a história e questões locais da

Edimburgo17.

Em 1832 o nome de Robert Chambers se tornou reconhecido pelo público

da Escócia através da publicação da obra History of Scotland e Life of Scott.

Nessa época, ele deu início à sua carreira de jornalista e divulgador de

conhecimentos com a publicação do Chambers’ Edinburgh Journal. Tal publicação

caracterizava-se por difundir conhecimentos para a população a preços

acessíveis, contribuindo assim, para o que Millhauser chama de educação para as

massas18. De acordo com Joel S. Schwartz, apesar da ocorrência de erros,

principalmente, pelo fato de Chambers não ter tido uma formação específica, o

Journal contribuiu para a divulgação da ciência19.

Com o sucesso da publicação do Chambers’ Edinburgh Journal, Robert

assumiu o cargo de redator da revista e junto com o irmão, William fundou a Casa

Editorial W. & R. Chambers20.

15 Ibid. 16 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 18. 17 Ibid., pp. 19-20. 18 Ibid., pp. 21-22. 19 Joel S. Schwartz, “Robert Chambers and Thomas Henry Huxley, Science Correspondents: The

popularization and dissemination of nineteenth century Natural Science, Journal of the History of

Biology 32 (1999): 343-383, nas pp. 351-353. 20 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 23.

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8

Sentindo que poderiam ampliar a divulgação de conhecimentos para além

do Journal, os irmãos Chambers criaram, em 1835, uma ambiciosa coleção com

fins educacionais, intitulada Chambers’ Educational Course. Entre os assuntos

tratados, estavam, literatura, história da ciência, filosofia natural, química e

geometria. No início os próprios irmãos se encarregaram de escrever os volumes

da coleção, porém, mais tarde passaram a contar com a colaboração de

especialistas21.

Robert Chambers (1802-1871)

21 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 25.

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9

Ao trabalhar com a elaboração dos volumes para a coleção Chambers’

Educational Course, Robert Chambers voltou a se interessar pela ciência. Desde a

infância, por influência de seu pai, Chambers gostava de ciência. A geologia,

seguida da “biologia” foram as ciências a que ele, começou a se dedicar desde

cedo com zelo e prazer22.

No ano de 1841, Robert Chambers foi eleito para a Royal Society de

Edimburgo. Nesta instituição ele tomou conhecimento das várias discussões sobre

variados temas de ciência, que iam da geologia, estudo da célula, paleontologia

até a astronomia. Em 1844 ele tornou-se membro da Geological Society de

Londres23.

A partir de 1840, Chambers iniciou uma discussão com vários cientistas da

época sobre os diversos assuntos que iriam compor o Vestiges. Dentre esses

estavam Sir Charles Bell (1774-1842), Neil Arnott (1788-1874), Edward Forbes

(1815-1854), Samuel Morinson Brown (1817-1856), Andrew Combe (1797-1847) e

George Combe (1788-1858)24.

Os cientistas citados no parágrafo anterior se dedicavam a diferentes áreas.

Charles Bell era médico, cirurgião e anatomista, cujas contribuições nesta área o

tornaram famoso por seus estudos dos nervos cranianos e pela descrição da

“Paralisia Facial de Bel”. Neil Arnott também era médico e se dedicava sobretudo

a questões de saúde pública, sendo um dos fundadores da Universidade de

Londres. Edward Forbers era um naturalista que se dedicava à geologia, zoologia

e botânica. Samuel M. Brown era um químico que se dedicava ao estudo das

propriedades das substâncias químicas, como as do carbono. Andrew Combe era

médico e se dedicava ao estudo da fisiologia e da anatomia do cérebro e foi um

promotor da frenologia 25. George Combe era escritor, advogado e também se

dedicava à frenologia.

22 Ibid., pp. 26-27. 23 Ibid., pp. 27-28. 24 Ibid., p. 29. 25 Era uma teoria que propunha que a faculdade mental se localiza em uma parte do cérebro e o

tamanho de cada parte é proporcional ao desenvolvimento da faculdade correspondente, sendo

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No ano de 1841 Chambers mudou-se de Edimburgo para St. Andrews. O

motivo alegado por ele era foram razões de ordem familiar. Na verdade, ele

desejava dispor de mais tempo e privacidade para trabalhar em sua obra, o

Vestiges. Ele já estava determinado a esconder, cuidadosamente, a autoria de sua

obra26.

As fontes utilizadas na pesquisa de Chambers passavam por Auguste

Comte (1798-1857), Lamarck, Pierre-Simon Laplace (1749-1827), Friedrich

Tiedemann (1781-1861), William Benjamin Carpenter (1813-1855), Karl Ernst von

Baer (1792-1876), Lambert Adolphe Jacques Quételet (1796-1874), James

Cowles Prichard (1786-1848), com estudos de obras primárias e secundárias,

fazendo uso também de conhecimentos populares e de artigos de enciclopédias.

A área em que podemos dizer que Chambers era “profissional” era a geologia.

Porém, ele se inteirou do restante dos temas através da leitura27.

Após a publicação de Vestiges de forma anônima, poucos amigos de

Chambers sabiam de seu segredo. Sua esposa, Anne Chambers, seu irmão

William e seus amigos Alexander Ireland (1810-1894) [no prefácio da décima

segunda edição é ele quem revela a autoria de Vestiges] e Robert Cox 28.

Alexander Ireland recebeu os manuscritos de Vestiges de Chambers por

correio. Em seguida os levou para o editor John Churchill. Em outubro de 1844, o

Vestiges of the Natural History of Creation estava disponível para o público29.

No ano seguinte, em 1845, ainda de forma anônima, Chambers publicou

Explanations: A sequel to Vestiges of the Natural History of Creation30, na qual

procurou responder as críticas aos Vestiges. Esta obra teve duas edições: a

primeira em 1845 e a segunda em 1846.

este tamanho indicado pela configuração externa do crânio. Com isso, admitia a possibilidade de

determinar o caráter e as características de uma pessoa. 26 Ibid., pp. 29-30. 27 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, pp. 30-31. 28 Ibid., p. 30. 29 Ibid., pp. 32-33. 30 Traduzindo para o português “Explicações: uma seqüência do Vestígios da História Natural da

Criação”.

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O Vestiges teve catorze edições entre 1844 e 1890. As onze primeiras

edições foram revistas pelo autor e a décima segunda contém uma introdução de

Alexander Ireland revelando sua autoria. A obra pode ser considerada um

bestseller de seu tempo, pois foram vendidas 23350 cópias entre 1844 e 1860 31.

Entre 1844 e 1860, Chambers se dedicou ao Vestiges. Havia as discussões

sobre sua distribuição com seu editor; o trabalho de elaboração das duas edições

de Explanations, além das dez revisões que Chambers fez do Vestiges. Para

Millhauser, estas revisões foram extensas, mudando muito o Vestiges de 1844 32.

A partir de 1846, o Vestiges deixou de ser a preocupação principal de

Chambers. Ele havia obtido prestígio no meio intelectual como escritor, jornalista,

editor e na educação popular e queria retomar parte desses trabalhos33.

Juntamente com o retorno ao estudo de temas relacionados à Escócia e de

literatura, no Journal e Chambers’ Educational Course, Chambers dedicou-se à

geologia. Fez viagens pela Europa para observar formações geológicas e

freqüentou vários congressos de geologia. Esteve em 1848 na Renânia [região da

Alemanha banhada pelo rio Reno] e na Suíça. No ano de 1849 visitou a Noruega e

a Suécia para observar os efeitos da ação glacial. E em 1855 esteve na Islândia e

Ilhas Faroe34.

As viagens com fins geológicos renderam a Chambers uma série de obras

técnicas sobre geologia. Entre elas: Ancient Sea Margins; Tracings of the North

Europe; Tracings of Iceland and the Faroe Island. Estas publicações

proporcionaram a Chambers uma nova reputação, a de cientista. No entanto,

como geólogo, ele não alcançou o mesmo reconhecimento que obtivera como

editor e escritor 35.

Além da dedicação à geologia, Chambers voltou-se, como já foi

mencionado anteriormente, a dedicar-se à literatura. Seus ensaios e trabalhos 31 James A. Secord, “Introduction”, in Robert Chambers, Vestiges of natural creationand and other

evolutionary writings (Chicago: Chicago University Press, 1994), p. xviii. 32 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 165. 33 Ibid., p. 166. 34 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 167. 35 Ibid., pp. 167-168.

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históricos foram reunidos em sete volumes e ele passou a colaborar regularmente

no Journal e a dedicar-se à editora W. & R. Chambers 36.

Em 1848 Chambers esteve muito próximo de ser eleito como Lord Provost37

de Edimburgo devido ao seu grande prestígio, mas isso não aconteceu. Pesavam

sobre ele suspeitas de que ele seria o autor do Vestiges. Esse rumor acabou por

minar suas chances de ser agraciado com essa honraria38.

Apesar desse contratempo com relação à eleição de Lord Provost, a Casa

Editorial dos irmãos Chambers e a vida deles continuavam a prosperar e em 1856,

William Chambers foi eleito Lord Provost. Robert submeteu-se a uma nova cirurgia

para corrigir sua polidactilia e desta vez ela foi bem sucedida 39.

No ano de 1858, os irmãos Chambers iniciam um dos mais ambiciosos

projetos de sua editora. Tratava-se da publicação de uma enciclopédia que iria

rivalizar com a Britannica, a Chambers’ Encyclopedia. Esta foi publicada em dez

volumes40.

O Vestiges tem a última edição (décima primeira) revista por Chambers em

1860. Nessa década, que foi a última de sua vida, o interesse de Chambers pela

ciência diminuiu e ele não publicou mais nenhuma obra sobre ciência. Sua obra

mais significativa nesse período, considerada por muitos a melhor, foi Book of

Days, publicada em 1864. Esta obra versava sobre temas populares da

Antiguidade, não necessariamente relacionados à Escócia e ao folclore41.

Com a morte de sua esposa, Anne, e de sua filha, Janet, Chambers passou

alguns anos de sua vida deprimido, cansado e com a saúde frágil. Esse período é

marcado por um grande interesse dele pelo espiritismo42. Porém, no final de sua

vida ele voltou-se para o Cristianismo43.

36 Ibid., pp. 168-169. 37 Um cargo equivalente ao de prefeito. 38 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, p. 3. 39 Ibid., p. 169. 40 Ibid., p. 171. 41 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, pp. 172-173. 42 O espiritualismo, na década de 1860, representava uma importante força religiosa e cultural na

Europa, espalhando-se tanto entre a população mais simples, como entre filósofos e cientistas. Na

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No ano de 1867, Chambers casou-se novamente. No final deste ano,

publicou sua última obra, Life of Smollett. No ano seguinte, recebeu um título

honorífico em Doutor em leis da Universidade de St. Andrews44.

Em 1870, a segunda esposa de Chambers faleceu e novamente ele

sucumbiu a uma crise de saúde, vindo a falecer no ano seguinte, no dia 17 de

março de 187145.

1.2 O CONTEXTO DA PUBLICAÇÃO DO VESTIGES

A possibilidade de que as espécies se transformam, isto é, “evoluem” não

era uma idéia bem vista na Grã Bretanha durante a publicação de Vestiges of the

natural history of creation em 1844. Predominava a teologia natural46 e a

interpretação da Bíblia, como modelos para a história da Terra e dos seres vivos47.

Grande parte dos naturalistas britânicos tinha uma ligação muito forte com a

Igreja Anglicana. Eles rejeitavam a possibilidade de que a vida pudesse ter

evoluído, já que isto contrariava os preceitos de que as espécies surgiram

conforme descrito no Gênesis, onde as espécies eram fixas.

França, podemos mencionar o exemplo do astrônomo Camille Flammarion que escreveu diversas

obras onde descreveu suas experiências espiritualistas e na Inglaterra o naturalista Alfred Russel

Wallace e Francis Galton, por exemplo. Na década seguinte o químico William Crookes viria a se

dedicar à investigação, em laboratório, dos fenômenos espiritualistas (Juliana Mesquita Hidalgo

Ferreira, Estudando o invisível. William Crookes e a nova força (São Paulo: Educ/ FAPESP, 2004),

pp. 26-27; 33. 43 Millhauser, Just before Darwin: Robert Chambers and Vestiges, pp. 174-176. 44 Ibid., pp. 186-188. 45 Ibid., pp. 188-189. 46 Essas idéias aparecem, por exemplo, na obra Natural Theology, de autoria do britânico William

Paley (1743-1805), que se dedicou principalmente à Filosofia em Cambridge, onde ele defendeu

que o plano existente na natureza era um forte argumento a favor da intervenção direta de Deus

nos fenômenos da natureza. Outros autores que adotaram idéias semelhantes foram Charles Bell

(1774-1842), anatomista de Edinburgh, e Charles Babbage (1792-1871), matemático de

Cambridge (ver a respeito em Bernard Cohen & Howard Mumford Jones (ed.), Science before

Darwin. An anthology of British Scientific writing in the early nineteenth century (London: Little,

Brown & Co, 1963), pp. 15-76. 47 Bowler, Evolution: The history of an idea (Berkeley:University of California Press, 1983), p. 96.

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Outro aspecto que dificultava a discussão de evolução das espécies nessa

época é que a idéia de evolução era associada ao materialismo. Tratava-se,

portanto, de uma idéia muito perigosa para muitos que desejavam manter o

mundo tal qual “designado por Deus, que planejara para nós um local definido

numa escala social pré-ordenada”48. No ano de 1839, por exemplo, a Inglaterra

passava por uma grande agitação social, na qual é questionado o capitalismo, a

Igreja, a exploração salarial, os privilégios clericais entre outras características da

sociedade inglesa49.

Chambers sabia que nesse contexto a publicação de Vestiges causaria

muita celeuma e receberia muitas críticas. Tendo isso em vista, ele resolveu

publicar sua obra de forma anônima.

Como já mencionamos anteriormente, a reação à publicação de Vestiges foi

terrível. O temor de que as idéias de Chambers prejudicassem a ordem social e a

religião era muito grande50. De acordo com Peter Bowler, “muitas revistas

publicaram críticas condenando o rude materialismo do livro como uma força que

deveria ser interrompida antes que minasse os fundamentos da religião e da

ordem social”51. No entanto, devemos lembrar que apesar dessas reações

desfavoráveis, o Vestiges, teve um grande sucesso público, com várias edições.

Houve uma grande perturbação em relação à autoria do Vestiges. Muitos

leitores ficaram pasmos com a ausência do nome do autor acompanhando o titulo

do livro. Seguiram-se muitas especulações de quem seria o autor. Nomes como

William Carpenter, George Comber, Andrew Crosse, Charles Darwin, e o do

próprio Chambers, entre outros, foram cogitados 52.

48 Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 97. 49 Adrian Desmond e James Moore, Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Trad. Cynthia

Azevedo ( São Paulo: Geração editorial, 2001), p.17. 50 Marilyn Bailey Ogilvie, Robert Chambers and the successive revisions of the Vestiges of the

natural history of creation ( Oklahoma: University of Oklahoma, 1973) pp. 17-18. 51 Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 134. 52James A. Secord, Victorian sensation: the extraordinary publication, reception, and secret authorship of

Vestiges fo the natural history of creation (Chicago/ London, University of Chicago Press, 2000), pp. 17-21.

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A maioria dos naturalistas e pensadores da época recebeu o Vestiges de

modo bastante desfavorável. Adam Sedgwick (1785-1873), por exemplo,

escreveu:

O mundo não pode suportar ser virado de ponta cabeça e estamos prontos

para empreender uma guerra mortífera contra qualquer violação de nossos

princípios e modos sociais ... é nosso princípio máximo que as coisas

devam se manter em seus próprios locais e se elas agem juntas para o

bem... se nossas gloriosas donzelas e mães de família não podem sujar

seus dedos com a faca suja do anatomista, tampouco podem envenenar

seus pensamentos radiosos e seus sentimentos pudicos ao ouvir as

seduções desse autor, que as apresenta com...uma filosofia falsa 53.

Além de Sedgwick, Thomas Huxley (1825-1895) criticou o Vestiges. Darwin,

através de sua correspondência com outros naturalistas, tinha uma série de

reservas à obra de Chambers, mas não teve muito interesse em discuti-la54. Alfred

R. Wallace (1823-1913) teve uma visão mais favorável do Vestiges do que Darwin,

e defendeu as idéias contidas no livro durante toda sua carreira55.

A idéia de progresso dos seres vivos presente em Vestiges era produto dos

séculos XVIII e XIX. Junto com a Revolução Industrial que transformou os mapas

econômico e social da Europa, estava sendo formulada a idéia de progresso que

iria se tornar um modelo dominante de mudança social. Esta idéia seria

disseminada tanto para as questões sociais como para o mundo natural, com a

ajuda da paleontologia porque no registro fóssil também se observava uma

progressão dos seres mais simples para os mais complexos56.

53 Adam Sedgwick, apud, Ernst Mayr, The growth of biological thought: diversity, evolution, and

inheritance (Cambridge, MA:Belknap Press, 1982), pp. 382. 54 Joel S. Schwartz, “Darwin, Wallace and Huxley, and Vestiges of the natural history of creation”,

Journal of the History of Biology 23 (1, 1990): pp. 127-153, na p.130. 55 Ibid., pp. 140-141. 56 Peter Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 97.

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1.3 ALGUMAS PROPOSTAS EVOLUTIVAS QUE ANTECEDERAM À

PROPOSTA DE CHAMBERS

1.3.1 A proposta de Erasmus Darwin

Ernst Mayr comenta que havia pouco interesse em evolução na Inglaterra

durante o século XVIII. A única exceção ocorreu da parte de Erasmus Darwin.

Uma das razões para essa falta de interesse, segundo Mayr, foi que a atividade

em história natural estava nas mãos de pastores da Igreja Anglicana, o que levava

a uma crença na perfeição do mundo criado por Deus57. Dentro desta perspectiva,

as espécies haviam sido criadas por Deus já adaptadas ao ambiente em que se

encontravam. As variações ocorreriam somente no sentido de formar variedades.

Assim, não haveria a transformação de espécies em outras.

Erasmus Darwin foi médico, botânico e poeta. Publicou Botanic Garden

(1791) e Temple of Nature (1803), livros que foram muito populares em seu

tempo. Além disso, foi avô de Charles Darwin. A obra na qual ele expressou suas

idéias evolutivas foi Zoonomia (1794-1796). Esta foi fruto de seus interesses em

medicina58. Este livro contém um capítulo sobre a transmutação.

Erasmus Darwin supôs que as mudanças nos seres vivos ocorriam

gradualmente numa forma de progressão da vida em direção de níveis mais altos

de organização. Ele era deísta e acreditava que Deus tenha designado os seres

vivos para se auto-aperfeiçoarem. O modo como os seres vivos se modificariam

estava relacionado com o que podemos chamar de “herança dos caracteres

adquiridos”59. Para o avô de Darwin, os seres vivos desenvolviam novos órgãos

para se adaptarem às condições do ambiente. Cada ser vivo, através de seu

esforço individual em se adaptar ao ambiente, desenvolvia características que

eram transmitidas para seus descendentes. Ao longo do tempo, essas

57 Ernst Mayr, The Growth of Biological Thought: Diversity, Evolution, and Inheritance (Cambridge,

MA:Belknap Press, 1982), pp. 339-340. 58 Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 85. 59 A idéia de herança dos caracteres adquiridos era amplamente aceita durante esse período. Não

se trata de uma idéia exclusiva de Lamarck. Charles Darwin também a aceitava.

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características constituíam um novo órgão 60. De acordo com Peter Bowler, a

reprodução sexual era, para Erasmus Darwin, a chave da atividade criadora da

natureza61.

1.3.2 Lamarck 62

Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck, Chevalier de Lamarck,

nasceu em Picardie na França em 1744 e faleceu em Paris em 1829. Na ocasião

de seu nascimento, a família de Lamarck passava por muitos problemas

financeiros, apesar de sua origem ser associada à antiga nobreza do norte da

França.

Aos doze anos Lamarck foi enviado à Escola de Jesuítas em Amiens afim

de que seguisse carreira eclesiástica, porém seu interesse se volta para a carreira

militar, na qual ele ingressou com o fechamento do seminário dos Jesuítas, em

1761.

Durante a carreira militar, na qual foi diversas vezes transferido Lamarck

tomou contato com diversos tipos da flora francesa. Com esse contato, ele

desenvolveu o gosto por botânica. Em 1768, Lamarck abandonou a carreira militar

devido a problemas de saúde. Logo em seguida ele começou a trabalhar num

banco em Paris onde estudou medicina por quatro anos, no entanto, sem se

graduar.

Durante o período, de 1768 a 1772, Lamarck adquiriu sua formação

científica básica. Em 1770 iniciou seus estudos, de forma autônoma e diletante,

sobre Botânica, Meteorologia e Química.

No ano de 1779 publicou um manual de Botânica que consumira nove anos

de estudo de Lamarck, a Flore françoise, publicada em três volumes. A obra foi

publicada com o apoio de Georges Louis Leclerc, conde de Buffon. A obra foi um

sucesso e rendeu e foi economicamente lucrativa para Lamarck. 60 Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 86. 61 Bowler, Charles Darwin. The man and his influence (Cambridge: Cambridge University

Press,1990), pp. 37-38. 62 Ver a respeito em Lílian A.-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck (Rio de

Janeiro:BooLink/Fapesp/GHTC, 2007), capítulo 1.

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A carreira acadêmica de Lamarck iniciou-se no mesmo ano em ele foi eleito

“Botânico adjunto” na Secção de Botânica da Academia de Ciências de Paris. Em

1789 ele foi nomeado “Botânico do Rei e guardião do herbário do Jardim do Rei”.

Ainda em 1790, Lamarck filiou-se à Societé d’Histoire Naturelle, da qual participou

ativamente.

Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829).

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Com a Revolução Francesa, Lamarck foi destituído do cargo de Botânico e

lhe foi oferecida a posição de “professor de zoologia dos animais inferiores,

insetos e vermes”, devendo também organizar as coleções do Museu de História

tanto de espécimes fósseis como atuais, relacionadas a esses animais. Lamarck

não tinha muitos conhecimentos de zoologia, e inicialmente, em 1794, familiarizou-

se com os animais inferiores do Museu Nacional (chamada anteriormente de

Jardim do Rei). Cerca de trinta anos depois, Lamarck concluiu a classificação e

organização das espécies de animais inferiores do Museu. A sua contribuição em

classificar os invertebrados (termo que ele criou) foi bastante significativa.

Até 1799, Lamarck não acreditava na transformação das espécies, como a

maioria dos naturalistas de sua época. Foi nesse ano que Lamarck mudou sua

visão e passou aceitar que as espécies se transformavam com o tempo63. Entre as

obras que Lamarck dedicou evolução das espécies, temos Philosophie zoologique

(1809); o volume 1 (introdução) da Histoire naturelle des animaux sans vértebras

(1815-1822), e Système analytique des connaissances positives de l’homme

(1820).

1.3.2.1 A teoria da progressão dos animais Lamarck

1.3.2.2 A origem dos seres vivos

Para Lamarck, Deus criou a natureza que ele definiu como um “um conjunto

de objetos metafísicos, constituído por leis e movimento”. Estes objetos

metafísicos “podiam ser observados nos corpos que existiam”. A partir das leis da

natureza, sem intervenção divina, e de forma progressiva é que surgem todos os

seres vivos.

Os primeiros seres vivos, os mais simples, segundo Lamarck, surgiram por

geração espontânea em ambientes aquáticos ou úmidos. Esta geração foi um

63 Ver a respeito da mudança de idéia de Lamarck em Richard W. Burkhardt, The spirit of system.

Lamarck and evolutionary biology. (Cambridge, MA:Belknap of Harvard University, 1977).

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fenômeno físico regido por duas forças opostas, a força de atração (como atração

universal) e a de repulsão (calórico e eletricidade)64.

Com o passar do tempo e circunstâncias favoráveis, os primeiros seres

deram origem aos outros seres. Estes foram aumentando sua complexidade e

deram origem às escalas animal e vegetal com as grandes “massas” (termo que

Lamarck dava para os grandes grupos de animais) dispostas em ordem crescente

de perfeição. No limite inferior da escala, estão os animais inferiores como os

infusórios e no superior está o homem. Este processo aconteceu no passado e

continua acontecendo no presente, segundo o naturalista francês65.

A natureza, em todas as suas operações, procedeu gradualmente; não

pôde produzir todos os animais de uma só vez: primeiro formou os mais

simples, passando destes aos mais compostos; estabeleceu neles

sucessivamente diferentes sistemas de órgãos particulares, multiplicou-os,

aumentou sua energia pouco a pouco e, acumulando essa energia nos

mais perfeitos, fez existirem todos animais conhecidos, com as faculdades

que neles observamos 66.

Para Lamarck, a progressão, de um nível para outro na escala animal está

sempre acontecendo, ou seja, tantos animais e vegetais continuam aumentando

sua complexidade. Estes não fazem parte de uma única cadeia, mas sim de duas

cadeias distintas, separadas pela origem, que apresentam semelhança na forma

inicial.

O animal mais simples para Lamarck seria o Monada termo. Desse modo é

a partir deste que os outros animais surgem. Para os vegetais, é provável que

Lamarck considerasse o Mucor viridescens o vegetal mais simples.

64 Lilian A.-C. P. Martins, “Lamarck e evolução orgânica : as relações entre o vivo e o não-vivo”,

Ciência & Ambiente 36 (2008): 11-21, na p. 18. 65 Martins, “Lamarck e evolução orgânica : as relações entre o vivo e o não-vivo”, p. 19. 66 Lamarck, Histoire naturelle des animaux sans vertèbretes (Paris:Verdière, 1815), v.1, p. 105.

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1.3.2.3 As causas da progressão dos animais

Para Lamarck havia duas causas para a progressão dos seres. Estas

seriam duas forças opostas. A primeira seria uma tendência a um aumento de

complexidade relacionada ao próprio “poder da vida”. Essa tendência dependeria

do movimento dos fluidos no interior dos animais. Quando esse movimento era

acelerado, haveria mudanças internas nos organismos, que levaria a um aumento

de complexidade. Como exemplo Lamarck diz que isso pode ser observado na

passagem de uma “massa” para outra, no caso do sistema branquial dos peixes e

do pulmonar dos répteis.

A segunda força ou causa é chamada por Lamarck de acidental ou

modificadora. Esta força resultaria da ação do meio ambiente que levaria a

“interrupções e desvios agindo sobre as partes externas e internas dos animais e

vegetais, modificando-as”. Como exemplo Lamarck comenta que há “raças” de

caracóis que apresentam antenas por terem necessidades diferentes em relação

às outras.

As causas que fazem um órgão se desenvolver e aumentar, fazem surgir

um órgão novo que não existia antes no indivíduo.

1.3.2.4 As leis gerais da progressão dos animais

Lamarck propôs quatro leis, nas duas últimas versões de sua teoria, para

explicar a evolução dos animais. A primeira lei diz que “há uma tendência na

natureza para o aumento de complexidade”. Esta lei foi apresentada na Histoire

naturelle des animaux sans vertèbretes por Lamarck da seguinte forma,

A vida, pelas suas próprias forças, tende continuamente a aumentar o

volume de todo o corpo que a possui, e a estender as dimensões de suas

partes, até um limite que lhe é próprio. 67

A tendência ao aumento de complexidade, que Lamarck expôs acima, é

inerente a vida. Essa tendência resulta de um movimento dos fluidos no interior do

67 Lamarck, Histoire naturelle des animaux sans vertèbretes, v.1, p. 151.

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indivíduo, os quais irão desenvolver os órgãos e aperfeiçoá-los. Como exemplo

Lamarck cita a transformação de um animal, desde o zigoto até a fase adulta. 68

Outro exemplo que Lamarck forneceu para a primeira lei é com referência

ao aumento de complexidade das espécies observadas na natureza, que se dá

dos mais simples para os mais organizados,

A natureza, produzindo sucessivamente todas as espécies de animais e

começando pelos mais imperfeitos e mais simples, terminando pelos mais

organizados, complicou gradualmente sua organização; esses animais,

tendo se espalhado geralmente por todas as regiões habitáveis do globo,

cada espécie recebeu pela influência das circunstâncias nas quais se

encontrou, seus hábitos que conhecemos e as modificações em suas

partes que a observação nos mostra 69.

Na segunda lei Lamarck explicou o surgimento de novos órgãos em “função

das necessidades que se fazem sentir e que se mantêm”. Lamarck esclareceu:

A produção de um novo órgão em um corpo animal resulta de uma nova

necessidade que surgiu e que continua a se fazer sentir e de um novo

movimento que essa necessidade faz nascer e mantém 70.

Lamarck relacionou a segunda lei com a terceira lei já que a produção de

um novo órgão está associada os seus hábitos e circunstâncias nas quais ele vive.

Segundo o naturalista francês:

Não são os órgãos, quer dizer, a natureza e as partes do corpo de um

animal que originam seus hábitos e suas faculdades particulares, mas são

ao contrário seus hábitos, sua maneira de viver e as circunstâncias nas

68 O que chamaríamos hoje de ontogênese. 69 Lamarck, Philosophie zoologique, v. 1, p. 266. 70 Lamarck, Histoire naturelle des animaux sans vertèbretes, v.1, p. 155.

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quais se encontram esses indivíduos que, com o tempo, constituem a forma

de seu corpo, o número e o estado de seus órgãos – enfim, as faculdades

de que gozam 71.

A terceira lei de Lamarck refere-se aos efeitos do uso e desuso, que estão

relacionados respectivamente ao desenvolvimento ou atrofia dos órgãos. Nas

próprias palavras de Lamarck: “O desenvolvimento dos órgãos e sua força e ação

estão em relação direta com o emprego desses órgãos” 72.

Entre os exemplos da terceira lei, Lamarck fornece para o caso do desuso,

os seguintes: “olhos vestigiais em animais que não os usam, como na toupeira”;

“as patas das serpentes, que teriam desaparecido pelo hábito de se arrastarem e

se esconderem sob ervas”. Para o uso os seguintes: “membranas entre os dedos

de aves aquáticas, formadas pelo exercício de esticar esses dedos, na água, para

nadar”; “os dedos recurvados de pássaros que pousam sobre as árvores,

desenvolvidos pelo hábito de segurar-se nos galhos com eles”.

A quarta lei de Lamarck refere-se a “herança dos caracteres adquiridos”, na

qual características adquiridas ou perdidas durante a vida dos organismos eram

transmitidas à prole. Uma das formas que Lamarck anunciou esta lei é a seguinte,

Tudo aquilo que a natureza fez os indivíduos adquirirem ou perderem

através das circunstâncias a que sua raça se encontra exposta há muito

tempo, e conseqüentemente pelo emprego predominante de tal órgão ou

pela constante falta de uso de tal parte, ela o conserva pela geração de

novos indivíduos que dela provém, desde que essas mudanças adquiridas

sejam comuns aos dois sexos, ou àqueles que produziram esses novos

indivíduos. 73

71 Idem, Philosophie zoologique, v. 1, p. 237. 72 Ibid., p. 158. 73 Lamarck, Philosophie zoologique, v. 1, p. 235.

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24

CAPÍTULO 2

CONCEPÇÕES EVOLUTIVAS DE ROBERT CHAMBERS

EXPOSTAS EM VESTIGES OF THE NATURAL HISTORY

OF CREATION (1844)

Este capítulo analisa algumas concepções evolutivas de Robert Chambers

(1802-1871) presentes na primeira edição do Vestiges of the Natural History of

Creation (1844). A escolha dessa edição foi motivada pelo fato da mesma

representar uma primeira versão de suas idéias sobre evolução orgânica, ou nos

termos da época, da transmutação. Além disso, por se aproximar mais em termos

cronológicos da proposta de Lamarck, já que temos o propósito de comparar as

idéias desses dois autores.

O objetivo é apresentar ao leitor uma visão geral da maneira pela qual

Chambers concebia o processo evolutivo e em que evidências ele se baseou para

fundamentar suas idéias. Para isso, foram selecionados alguns aspectos

relacionados à suas idéias evolutivas: a origem da vida; leis; o mecanismo e o

papel do meio ambiente na evolução orgânica.

2.1 INTRODUÇÃO

Antes de mais nada, gostaríamos de lembrar que Chambers não era um

naturalista strictu senso e que sua proposta se situa em termos cronológicos entre

a de Lamarck e a de Darwin. Como dissemos anteriormente, ele foi um editor de

Enciclopédia e a maior parte de suas idéias se apoiava em leituras e não em

observações ou na realização de experimentos.

Na ocasião da publicação dos Vestiges de forma anônima, como dissemos

anteriormente, embora na Alemanha, a transmutação fosse admitida por diversos

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naturalistas, a maior parte da comunidade científica britânica acreditava que as

espécies eram fixas, procurando uma harmonização com a tradição bíblica.

Naturalistas britânicos inspirados por William Palley (1743-1805), procuraram

relacionar as evidências apresentadas pelo registro fóssil às sucessivas criações

divinas74.

Chambers acreditava na transmutação das espécies. Para ele, a evolução

ocorre dos organismos mais simples para os mais complexos, ou seja, há uma

idéia de progresso que permeia a transformação das espécies. A idéia de

progresso não era original de Chambers já que estava bastante presente durante

todo o século XIX, conforme mencionamos no capítulo anterior desta

dissertação75.

Segundo Chambers, a evolução ocorreu no passado e continua ocorrendo

no presente através de um processo lento e gradual e é regida por leis naturais,

que atuam na natureza. Essas leis, para Chambers foram criadas por Deus, mas

não há uma interferência recorrente de Deus na formação de novas espécies.

De acordo com Ernst Mayr, Chambers aplicou os princípios do

uniformitarismo à natureza orgânica e assumiu o desenvolvimento progressivo

como uma história hipotética da criação dos organismos 76.

2.2 DEUS E AS LEIS QUE ATUAM NA NATUREZA

As principais leis, segundo Chambers, que influenciam a vida na Terra são

as atividades geológicas, as condições de luminosidade e atmosféricas. Estas

interferem na “lei de gestação das espécies”, a qual permite que uma espécie

origine outra.

74 Peter Bowler, Evolution. The history of a n idea (Berkeley:University of Califórnia Press, 1989), p.

111. 75 Ver a respeito em Robert Nisbet, A história da idéia de progresso (Brasília: Editora Universidade

de Brasília, 1985). 76 Ernst Mayr, The growth of biological thought. Diversity, evolution and inheritance (Cambridge,

MA:Belknap Press, 1982), p. 384.

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26

De acordo com Chambers, essas leis são universais. As mesmas leis agem

na natureza desde o início da Terra até o presente. Nesse sentido, ele assim se

expressou:

Se há alguma coisa mais marcante do que outra em nossas mentes pelo

curso da história geológica é que, as mesmas leis e condições da natureza

presentes para nós, existiram o tempo todo, embora a atuação de algumas

destas leis possa ser menos evidente hoje do que nas eras iniciais [da

Terra]. 77

Como exemplo dessas leis e condições naturais, Chambers mencionou

algumas atividades geológicas que modificaram as condições físicas do planeta,

tais como, o fluxo e refluxo dos oceanos, a ação dos ventos sobre as superfícies,

a atividade vulcânica e a elevação de montanhas 78.

Para Chambers, o que propiciou o aparecimento das diversas formas de

vida, foi a ação de Deus por intermédio de leis, que foram estabelecidas por Ele.

Porém, segundo Chambers, não houve uma lei de Deus para criar cada grupo de

organismos separadamente. Em suas palavras:

Esses fatos, claramente, mostram como todas as formas orgânicas do

nosso mundo estão ligadas [...]; como uma fundamental unidade permeia e

abrange todas elas, reunindo-as, do mais inferior líquen até o mais superior

mamífero, em um sistema em que toda criação dependeu de uma lei ou

decreto de Deus. Depois do que nós vimos, a idéia do exercício separado

[lei] para cada [grupo de organismos] deve aparecer totalmente

inadmissível 79.

77 Robert Chambers, Vestiges of the natural history of creation (London: John Churchill 1844), p.

146. 78 Ibid. 79 Ibid., p. 197.

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Para Chambers, o modo como Deus agiu para criar a vida, criando os

“progenitores de todas as espécies de modo pessoal ou por um esforço imediato”

não seria compatível com suas concepções de progresso gradual80. Ele explicou:

Como podemos supor um esforço imediato do poder criativo [de Deus],

[agindo] uma vez para criar zoófitos, outra vez para adicionar alguns

moluscos marinhos, e outra vez para trazer os conchíferos, novamente para

criar os peixes crustáceos, de novo para criar os peixes perfeitos, e assim

até o fim? Isso certamente seria considerar o Poder da Criação,

antropomorfizando-o ou reduzi-lo a uma característica que acompanha as

condutas simples da humanidade 81.

Para Chambers, há fortes evidências de que a criação do planeta e de seus

habitantes não foi o resultado da interferência de um Deus, de modo pessoal e por

esforços imediatos, mas sim de leis naturais, criadas por Ele, e que expressam

Sua vontade82. Estas leis atuam em todo o universo, passando pela formação dos

planetas e pela sucessão de espécies que apareceram na Terra, fato este

evidenciado pela geologia83. Desse modo se há vida na Terra com as condições

físicas aqui presentes, as mesmas condições podem existir em outros planetas 84.

Podemos perceber que Chambers seguindo o empirismo mais amplo de

Locke e Condillac, procurou explicar os fatos através de leis naturais. Estas teriam

sido criadas por Deus. O Deus de Chambers, entretanto, não interfere na

natureza.

2.3 A ORIGEM DA VIDA E A FORMAÇÂO DOS DIFERENTES GRUPOS DE

SERES VIVOS

80 Ibid., p. 153. 81 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 153. 82 Ibid., p. 154.

83 Ibid., p. 160. 84 Ibid., p. 161.

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Como já foi dito, Chambers propôs que a evolução ocorre de forma lenta e

gradual e que há uma idéia de progresso na evolução dos seres vivos.

Segundo o autor, o início da vida na Terra, se deu a partir do surgimento de

uma vesícula germinal simples (que seria o “ponto de encontro” entre a matéria

inorgânica e os seres orgânicos)85 por meio de uma “operação eletro-química”,

através de geração espontânea.

A vesícula nucleada, segundo Chambers, não só teria originado os

animálculos infusórios como também seria o início do desenvolvimento fetal, tanto

das plantas como dos animais:

Nós vimos que a vesícula nucleada é em si um tipo de ser completo e

independente de animálculos infusórios, assim como o ponto inicial do

desenvolvimento fetal dos mais avançados indivíduos da criação, tanto dos

animais como das plantas 86.

O segundo passo foi o progresso dessa vesícula simples para uma forma

mais avançada através do processo de geração: “Um progresso sob condições

peculiares e favoráveis da mais simples forma de ser para um mais complicado, e

isso por intermédio de um processo comum de geração”87. Um processo análogo,

segundo Chambers, podia ser observado na gestação dos mamíferos, onde um

ovo semelhante a um animálculo, com algumas semanas se parece com um

pintinho e em seguida é parecido com peixes e répteis até se tornar um adulto

[mamífero] e progenitor de outro. 88

Do modo acima descrito, como salientou James A. Secord, Chambers

utilizou um exemplo bastante familiar para o leitor, o desenvolvimento de um bebê,

85 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 204. 86 Ibid. 87 Ibid., pp. 204-205. 88 Ibid.

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para que ele compreendesse as origens do universo e a origem e formação de

novas espécies89.

Chambers considerava que era possível perceber a existência de uma

gradação dos diferentes grupos taxonômicos dos reinos vegetal e animal, dos

mais simples para os mais avançados. Ele comentou:

Já foi insinuado, como um fato geral, que existe uma gradação óbvia entre

as famílias do reino vegetal e animal que vai do mais simples líquen e

animálculos até as mais avançadas ordens de árvores dicotiledôneas e de

mamíferos 90.

A possibilidade de um arranjo dos diferentes grupos taxonômicos de

vegetais e animais em ordem crescente de perfeição sugeriu a Chambers que a

formação desses grupos, em termos cronológicos, teria se dado do menos perfeito

para o mais perfeito. Porém, essa não é uma evidência suficiente para chegar a

essa conclusão já que como ele mesmo defendeu o processo evolutivo é lento e

gradual e, ele sabia, não é passível da observação humana.

A possibilidade de se arranjar os grupos de animais e vegetais em ordem

crescente de perfeição, sugeriu a Chambers que a evolução ocorria no sentido de

propiciar um aumento de complexidade aos mesmos, à medida que se ascendia

na escala, o que se harmonizava com a idéia de progresso bastante difundida na

época.

A grande variedade de formas de seres vivos originou-se, segundo

Chambers, da “variação de um plano fundamental”. A variação deste ocorre para

que cada ser se ajuste às condições do ambiente onde ele vai viver. O plano

iniciou-se com os germes mais primitivos e os demais seres são avanços destes,

onde cada ser mantém uma afinidade com seu antecessor:

89 James A. Secord, “Introduction”, in Robert Chambers, Vestiges of natural creationand other

evolutionary writings (Chicago: Chicago University Press, 1994), p.xiv. 90 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 191.

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Começando do primeiro germe, o qual temos visto que é representante de

uma ordem particular de animais adultos, descobrimos que todos os outros

são meramente progressos daqueles [germes], com a extensão do seu dom

natural e de modificações das formas que são requeridas em cada caso

particular. 91

O princípio que permite a progressão dos seres vivos na Terra, segundo

Chambers, é a transformação do mais simples para o mais avançado a partir da

lei da gestação das espécies, à qual a produção de novos seres está subordinada.

Em suas palavras:

Os mais simples e mais primitivos tipos, sob uma lei [da gestação das

espécies] pela qual o modo de produção está subordinado, dão nascimento

a um tipo acima deles, estes novamente produzem novamente um

avançado [tipo], e assim por diante até o mais avançado 92.

Com relação ao tempo em que se deu a gestação de todas as espécies,

Chambers supunha que ele tenha sido muito grande, o que contribuía para a

dificuldade que a maioria das pessoas tinha em conceber a progressão das

espécies. Nas palavras de Chambers:

.

Deve-se ter em mente que a gestação de um simples organismo é obra de

somente alguns dias, semanas ou meses; mas a gestação (por assim dizer)

de toda criação é uma matéria que provavelmente envolve um enorme

espaço de tempo 93.

A idéia da longa duração do tempo geológico e do gradualismo permeiam

todo o pensamento evolutivo de Chambers.

91 Ibid., p. 192. 92 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 222. 93 Ibid., p. 210.

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2.4 A INFLUÊNCIA DAS CONDIÇÕES EXTERNAS NA EVOLUÇÃO

A luz e ar são provavelmente, segundo Chambers, importantes agentes que

atuam na transformação dos seres vivos. A luz é essencial para o

desenvolvimento embrionário e para mostrar isso, Chambers deu o exemplo de

girinos de rã, que durante seu desenvolvimento se forem privados da luz, podem

ter suas dimensões aumentadas tornando-se “girinos grandes”, mas não atingem

a forma adulta de rã,

Quando girinos são colocados em uma caixa perfurada e esta caixa é

mergulhada no Sena [rio], sendo a luz extraída, eles crescem até um

grande tamanho em sua forma original, mas não passam por metamorfoses

que os levam ao seu estágio adulto de rã 94.

Outro exemplo que Chambers forneceu a respeito da influência do ar e da

luz, é o de mães que vivem em quartos fechados e escuros, privadas, portanto, de

condições adequadas de ar e luz, geram uma maior proporção de crianças

deficientes 95.

O ar também é fundamental, segundo Chambers, para o progresso dos

seres vivos. Nesse sentido, como o gás carbônico é um elemento fatal para a vida

animal, sua quantidade no ar teve influência sobre o desenvolvimento dos seres

vivos. 96

Chambers acreditava haver uma relação entre o progresso da vida

orgânica, a purificação do ar e a difusão da luz:

Temos aqui indicações das causas para o progresso na purificação da

atmosfera e a difusão de luz durante as eras inicias da história da Terra,

com as quais o progresso da vida orgânica tem estado em conformidade.

94 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 228. 95 Ibid., p. 229. 96 Ibid..

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Uma ascensão na proporção de oxigênio e o fulgor da luminária central

podem ter sido a causa que impulsionou aqueles progressos de uma

espécie para outra que temos visto. 97

2.5 EVIDÊNCIAS DE QUE A EVOLUÇÃO OCORRE

Chambers foi levado a crer na existência de uma evolução orgânica a partir

de diversas evidências que encontrou, a saber:

● o registro fóssil, que segundo ele, expunha uma progressão dos seres vivos.

Este se harmoniza com sua idéia de progresso dos seres vivos já que na nos

estratos de rochas mais antigas são encontradas as formas mais simples de vida

e à medida que se avança para os estratos das rochas mais recentes se depara

com as formas mais complexas de seres até que se atinge as formas superficiais,

onde se encontram os organismos superiores;

● a existência de espécies intermediárias na evolução de uma espécie para outra;

● comparações de embriões de animais mais avançados com os de animais

inferiores;

● a presença de órgãos rudimentares nos organismos superiores;

● a comparação de órgãos que têm a mesma estrutura, mas desempenham

funções diferentes [homólogos];

● as analogias existentes entre o desenvolvimento embrionário humano e dos

seres inferiores;

● exemplos de evolução de espécies, que ele acreditava estarem ocorrendo em

sua época (caso da aveia e do ácaro);

● influência de condições externas no desenvolvimento de seres. Passar para a

parte de fundamentação.

Dentre as evidências acima mencionadas, constatamos que ele atribuiu

uma maior importância ao registro fóssil já que 1/3 do Vestiges é dedicado a esse

assunto, onde o autor procurou reconstituir a história dos seres vivos a partir dos

fósseis.

97 Ibid., pp. 229-230.

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Chambers denominou de modo diferente ao que adotamos atualmente as

diferentes eras e períodos geológicos. Ele iniciou a descrição do registro fóssil a

partir da Era do Arenito Vermelho Antigo, seguido da Formação Carbonífera, Era

do Arenito Vermelho Novo, Era do Oólito, Formação do Cretáceo, Era da

Formação do Terciário e por fim, a Era das Formações Superficiais. Além disso,

os nomes científicos dos organismos fósseis encontrados nos diversos estratos,

bem como os nomes dos organismos vivos, está grafado de modo diferente ao

utilizado atualmente. Nesse sentido, neste capítulo manteremos a grafia

empregada por Chambers, conforme aparece na primeira edição do Vestiges.

2.5.1.1. O registro fóssil

Embora reconhecesse, de modo análogo a outros estudiosos da época, que

o registro fóssil apresentava lacunas, isto é, havia (e ainda hoje há) ausência de

espécies intermediárias que seriam uma evidência da evolução Chambers

procurou utilizar exemplos do mesmo para corroborar a ocorrência de evolução

orgânica.

2.5.1.1 Os primeiros fósseis

Chambers comentou que os primeiros vestígios de seres vivos (fósseis de

zoófitos, pólipos e moluscos) haviam sido encontrados nos estratos de calcário98 .

Ele afirmou:

A hipótese da conexão das primeiras camadas de calcário com o início da

vida orgânica do nosso planeta é sustentada pelo fato de que nessas

camadas encontramos os primeiros vestígios de corpos de criaturas

animadas 99.

98 Peter Bowler propôs uma adaptação das eras geológicas, na qual essas rochas compõem hoje o

que chamamos de Cambriano e Ordoviciano. 99 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 57.

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Segundo Chambers, no calcário são encontrados fósseis de zoófitos,

pólipos e moluscos, os primeiros vestígios de criaturas animadas100.

Chambers ficou surpreso diante do aparecimento dessas criaturas ter

antecedido o surgimento das formas vegetais, já que estas representam um elo

necessário na cadeia de nutrição. Porém, ele considerou a possibilidade de terem

surgido plantas marinhas e outras formas simples de animais antes dos

zoófitos101, pólipos e moluscos porém, destas não terem encontrado condições

propícias que permitissem o processo de fossilização:

É provável que existissem plantas marinhas e também algumas formas

simples de vida animal antes desse período, embora compostos de

substâncias tão pequenas que não deixaram nenhum traço fóssil de sua

existência. 102

Chambers comentou que nos estratos de calcário estão preservadas as

primeiras formas de vida do nosso planeta: “Zoophyta [zoófitos], polyparia

[pólipos], crinoidea [crinóides], conchifera [conchíferos] e crustacea são as ordens

do reino animal encontradas nesses estratos”. Para o autor, é possível distinguir

facilmente as ordens de acordo com as características dos fósseis que foram

encontrados103.

Segundo Chambers, esses organismos possuem algumas características

gerais que se assemelham àquelas encontradas nos organismos atuais, mas se

levadas em conta suas características específicas, há diferenças entre ambos.

Além disso, essas formas não existem mais na Terra. Sua interpretação é que as

100 Ibid., p. 58. 101 Qualquer animal que se parecesse com um vegetal em relação à sua morfologia ou modo de

vida (R. J. Lincoln & G.A. Boxshall, The Cambridge illustrated Dictionary of Natural

History(Cambridge: Cambridge University Press, 1990). 102 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 58. 103 Ibid., p. 60.

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espécies se transformaram: “As espécies antigas deram lugar a outras, e que elas

estão representadas no grupo mais próximo de rochas” 104.

Passando ao próximo grupo de rochas, que ele chamou de Sistema

Siluriano 105, ele explicou que encontrados traços de vida em maior abundância e

e aparecem outros organismos tais como: fuci [fucus – sargaço], algas-marinhas e

peixes.

Além dos fósseis acima mencionados, Chambers mencionou vários outros

que podem ser encontrados no Sistema Siluriano, como: polypiaria; conchifera,

todos os organismos da “ordem” brachiopoda [braquiopódes] (bratula terrestre,

pentamerus, spirifer, orthis e leptaena; organismos da ordem mollusca (turritella,

orthoceras, nautilus e bellerophon); crustacea (trilobitas – trinucleus, asaphus,

calamene).106

Além dos anteriores, Chambers chamou a atenção para a presença de

fósseis de certos vermes encontrados em forma de espiral (convoluto), que são os

anelídeos ou vermes marinhos. Para ele, essas criaturas formam uma “tribo” de

criaturas ainda existentes (nereidina e serpulina) que são encontradas embaixo de

rochas da orla marinha.

A descoberta desses anelídeos é importante, segundo Chambers, porque

se trata de uma forma de transição, entre annulosa (vermes de sangue-branco) e

uma classe inferior de vertebrados (amphioxus e myxene). Ele explicou:

A ocorrência dos anelídeos é importante por conta de suas características e

status no reino animal. Eles são de sangue-vermelho e hermafroditas e

forma um elo de conexão entre os annulosa (vermes de sague-branco) e

uma classe inferior de vertebrados (amphioxus e myxene). 107

104 Ibid., p. 60. 105 Segundo a adaptação já comentada por Bowler é o que hoje consideramos o Siluriano. 106 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 62. 107 Ibid.

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Chambers se referiu a uma autoridade no Sistema Siluriano, o Sr. Philips

[John Phillips (1800-1874)], que defendia que os restos [fósseis] dos primeiros

animais vertebrados (pequenos peixes) que apareceram na Terra se encontravam

nos estratos do Sistema Siluriano108. Chambers notificou ainda a presença de seis

gêneros109 de peixes cartilaginosos.

2.5.1.2 Fósseis da Era do Arenito Vermelho Antigo

Depois de comentar sobre os fósseis do Siluriano, Chambers passou a

tratar dos fósseis da “Era do Arenito Vermelho Antigo” 110. Segundo este autor, em

termos geológicos, Chambers os mares da estiveram sujeitos a agitações

violentas e prolongadas cujas causas são, provavelmente, de origem vulcânica 111.

Nessa Era, não havia plantas e animais terrestres por que ainda não

haviam tinham sido formadas porções de terra firme112.

Em relação às formas de vida dessa Era, Chambers explicou que os

mesmos organismos marinhos encontrados no Siluriano continuaram a existir,

com uma diferença, aparecem fósseis de peixes em grandes quantidades e das

mais variadas formas113. :

Com relação à abundância de peixes, Chambers se referiu a Louis Agassiz

(1807-1873) a quem atribuiu a descoberta de cerca de vinte gêneros e sessenta

espécies de peixes 114.

Segundo Chambers, nenhum gênero dos peixes dessa era sobreviveu até

os dias de hoje. Provavelmente, a mudança gradual das condições físicas, tais

como variação da temperatura e profundidade dos mares, contribuíram para essa

extinção115.

108 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 63. 109 Chambers não mencionou quais são os gêneros. Ele mencionou fósseis de tubarões. 110 Segundo adaptação de Bowler, essa era corresponde ao que hoje chamamos de Devoniano. 111 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, pp. 66-67. 112 Ibid., p. 72. 113 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 67. 114Ibid., p. 68.

115 Ibid..

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Chambers enumerou alguns fósseis de peixes desse sistema. São eles:

cephalaspis, coccosteus, pterichthys, holoptychius. Tais peixes, segundo

Chambers, são inteiramente diferentes das espécies atuais, embora, a família do

esturjão tenha algum traço de afinidade sob alguns aspectos com eles 116.

Segundo Chambers, o cephalaspis pode ser considerado o mais inferior e

que ainda preserva certas características dos crustacea. Ele se assemelha muito a

um asaphus das formações inferiores 117.

Chambers mencionou o coccosteus considerado um marco no progresso da

criação dos peixes porque se trata de um organismo intermediário entre os

crustacea e os peixes. Este apresenta algumas características dos dois grupos

tais como a abertura da boca:

É surpreendente que, enquanto a cauda estabelece essa criatura entre os

vertebrados e peixes, sua boca aberta verticalmente é como aqueles

crustacea. Isso parece uma forte característica que marca o elo entre os

coccosteus e esses dois grandes departamentos [crustácea e peixes] do

reino animal 118.

Nessa época, não teriam ocorrido grandes mudanças em relação à

vegetação marinha em comparação à fauna. Para explicar este fato Chambers se

refere a Hugh Miller (1802-1856) que considerava que a presença de cal nos

oceanos era mais favorável à sobrevivência da flora do que da fauna. 119

2.5.1.3 Fósseis da Formação carbonífera

A formação carbonífera, para Chambers, propiciou um novo acontecimento

na história do planeta. A terra firme foi formada e a água doce surgiu, oriunda de

116 Ibid.

117 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 69. 118 Ibid. 119 Ibid., p. 72.

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chuvas que foram formando canais e se tornaram rios, lagos e fontes. Essas

condições geológicas permitiram o aparecimento dos organismos terrestres120.

Segundo Chambers, a formação carbonífera é composta de várias

camadas de “carvão”, cuja origem é a transformação da matéria da vegetação

terrestre por meio da pressão. Também são encontradas nessas camadas de

carvão, moluscos de água doce e poucos seres de origem marinha, como zoófitos

e crinóides, tão abundantes outrora 121.

Chambers se referiu a algumas características da Terra antes da formação

do grupo carbonífero. Haveria grandes quantidades de carbonato de cal foram

depositadas nos leitos dos oceanos, acompanhadas de ampla população de

corais e encrinites [acúmulo de ossículos de crinóides]. Nesse período, havia

alguns fragmentos de terra firme na Terra cobertos com uma luxuriante

vegetação122.

Segundo Chambers, as causas das grandes quantidades de carbonato de

cálcio existentes nessa época são devidas à extinção de uma grande população

de acritas [diversos invertebrados como esponjas, pólipos etc] marinhos 123.

Na formação carbonífera, segundo Chambers, o aparecimento de terra

firme propiciou o surgimento das primeiras florestas. As plantas que formavam

estas florestas, não existem mais hoje em dia 124.

Segundo Chambers, mais de trezentas espécies de plantas foram

verificadas na formação carbonífera 125.

Dentre as mais de trezentas plantas encontradas na formação carbonífera

Chambers, utilizando a classificação da época, mencionou as cryptogamia (que

correspondem a 2/3 das plantas encontradas na época), que segundo ele são

plantas desprovidas de flores e com tecido celular que incluem os liquens,

musgos, fungos, samambaias e algas marinhas e que chamou de plantas 120 Ibid., p. 76. 121 Ibid., p. 79. 122 Ibid., p. 80. 123 Ibid. 124 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 80. 125 Ibid., p. 82.

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inferiores. E acima delas as plantas com tecidos verdadeiros e com flores que são

as dicotiledôneas e as monocotiledôneas (que aparecem em menor quantidade) 126. Para Chambers, a sucessão de plantas nos estratos do carbonífero segue das

plantas mais simples para as mais avançadas. Nesse sentido, ele concluiu:

Agora é claro que a predominância dessas formas na sucessão marca

épocas sucessivas desenvolvidas pela geologia fóssil; o simples, em

abundância primeiro e o complexo depois 127.

O tipo de planta mais abundante nessa era, segundo Chambers, foi a

samambaia pteridium, com cerca de centro e trinta espécies. A descoberta desses

fósseis, para Chambers, revela que naquela época havia uma temperatura

tropical, já que essas espécies são hoje encontradas nas regiões com esse tipo de

temperatura 128.

Além dos pteridium, Chambers mencionou outros fósseis de plantas

encontrados no Carbonífero, tais como algumas espécies que se assemelham à

cavalinha (equisetaceae), licopódio (lycopodiaceae), lepidodendra.129

Dentre as raras plantas superiores encontradas, segundo Chambers, estão

as palmeiras (flabellaria e noegerathia) e coníferas (pinus e araucaria) 130.

Para Chambers, as coníferas constituem um elo de ligação entre as

monocotiledôneas e as dicotiledôneas. Em suas palavras: “As coníferas dessa Era

formam o princípio das árvores dicotiledôneas, das quais pode ser dito que elas

são as mais simples” 131.

126 Ibid., pp. 83-84. 127 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 84. 128 Ibid., pp. 84-85. 129 Ibid., pp. 85-86. 130 Ibid., pp. 87-88. 131 Ibid., p. 88.

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A fauna dessa era não era muito numerosa pois não havia condições

adequadas para o desenvolvimento dos animais, já que existia uma abundância

de gás carbônico e uma luxuriante vegetação132.

Para Chambers, dos poucos fósseis encontrados nessa era temos alguns

tipos de polypiaria e crinoidea. E uma variedade limitada de moluscos, conchíferos

e poucas espécies de peixes 133.

Chambers chamou a atenção para uma espécie de peixe, o Megalichthys

hibbertii, encontrado pelo Dr. Samuel Hibbert Ware (1782-1848), que apresentava

características sauróides que seria um elo entre os peixes e os primeiros animais

terrestres, que foram os répteis. Ele assim se expressou:

Alguns peixes têm uma característica sauróide, isto é, sua natureza se

assemelha à natureza do lagarto, um gênero dos répteis, que é uma classe

de animais terrestres, de modo que podemos dizer que aqui temos uma

primeira aproximação de um tipo de animal previsto para respirar na

atmosfera 134.

A intensa atividade vulcânica teria marcado o final dessa era levando à

extinção de muitos seres vivos, particularmente, do reino vegetal 135.

2.5.1.4 Fósseis da Era do Arenito Vermelho Novo

Na Era do Arenito vermelho Novo136, segundo Chambers, são encontrados

fósseis de zoófitos, conchíferos, e alguns grupos de peixes, como também

algumas plantas terrestres. Mas uma grande novidade para Chambers é o

aparecimento de um réptil com características de lagarto semelhante à família dos

monitors. 137 132 Ibid., p. 91. 133 Ibid., p. 90. 134 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p.90. 135 Ibid., pp. 92-93. 136 Segundo Peter Bowler, o que hoje chamamos de triássico. 137 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 95.

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A classe dos répteis, segundo Chambers, é uma novidade nessa era. Trata-

se, para Chambers de uma classe inferior de vertebrados que aparece logo após

os peixes. Esses répteis, para o autor, tinham um sistema respiratório imperfeito

que talvez fosse adaptado à atmosfera da época, a qual ainda não era adequada

para as aves e mamíferos. Os fósseis de répteis encontrados, segundo o autor,

têm uma relação com os grupos de lagartos e crocodilos atuais 138.

São encontrados nessa era espécies de ichthyosaurus e plesiosaurus que

eram grandes predadores de peixes. Também são encontrados lagartos enormes,

o megalosaurus, phytosaurus, mastodonsaurus. Ainda são encontrados fósseis de

pterodactyle, que era uma espécie de lagarto com asas. Os crocodilos eram

abundantes e alguns eram herbívoros, como os iguanodontes 139.

Chambers fez menção ainda aos fósseis de tartarugas que aparecem em

grande quantidade sendo que algumas delas apresentavam grandes dimensões.

Chambers mencionou a descoberta de Richard Owen (1804-1892) de um animal

da ordem dos batráquios, o labyrinthidon 140.

Segundo Chambers, nessa era são encontradas três das quatro ordens de

répteis descritas por Georges Cuvier (1769-1832): sauria, chelonia e batrachia,

estando ausentes as serpentes (ophidia) 141.

Os fósseis de plantas dessa era, segundo Chambers, são “poucos e

modestos”. Equiseta, calamites, samambaias e voltzia são os representantes do

reino vegetal142.

Segundo Chambers, ainda nessa era, são encontrados vestígios de

animais. Trata-se de várias pegadas. Algumas delas pertencem às tartarugas,

outras a um pequeno animal, semelhante ao crocodilo. Também há pegadas de

um animal denominado cheirotherium, que são parecidas com uma mão

humana143. 138 Ibid., pp. 96-97. 139 Chambers, Vestiges of the natural history of creation,pp. 97-98. 140 Ibid., p. 99. 141 Ibid. 142 Ibid., p. 100. 143 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 102.

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Nessa era, segundo Chambers, foram descobertos vestígios de um animal

que Richard Owen chamou de rynchosaurus. Este apresentava algumas

características singulares, como um corpo de um réptil e as patas e o bico de uma

ave. Para Chambers, seria uma espécie de elo entre os répteis e as aves 144.

Outra novidade nessa era, segundo Chambers, é o aparecimento dos

primeiros vestígios das aves. William Buckland (1784-1856), havia encontrado

pegadas de aves que pertenciam à ordem das pernaltas ou grallae 145.

2.5.1.5 Fósseis da Era do Oólito

Na era do oólito146, segundo Chambers, encontramos os primeiros vestígios

dos mamíferos. Trata-se, para Chambers, de um osso maxilar de um quadrúpede

que evidentemente era um insetívoro. Pelas peculiaridades do pequeno

fragmento, foi inferido que ele pertenceria à família dos marsupiais 147.

Para Chambers, a ausência de fósseis de mamíferos nas eras anteriores

não se devia à sua inexistência mas ao fato de eles não terem sido ainda

descobertos. Chambers considerava que os marsupiais seriam um elo entre os

vertebrados ovíparos e os mamíferos superiores 148.

Além desses marsupiais, Chambers se referiu às classes de animais

marinhos inferiores representadas por inúmeros fósseis. Dentre esses, se

destacam polypiaria, crinoidea e echinites. Nas palavras de Chambers: “Os

polypiaria eram tão abundantes que se formou todo um estrato [de rochas] com

eles. Os crinoidea e echinites também são extremamente numerosos” 149.

Além dos anteriormente mencionados, de acordo com o autor, eram

bastante numerosos os fósseis de moluscos. Entre eles foram encontrados

vestígios de ammonites e beleminites. Foram encontrados também fósseis de

144 Ibid., p. 103. 145 Ibid. 146 Segundo Peter Bowler, corresponde ao que hoje chamamos de Jurássico. 147 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 111. 148 Ibid., p. 112. 149 R. Chambers, Vestiges of the natural history of nreation, p. 108.

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muitos peixes (acrodus, psammodus, pycnodonte, lepidoide) 150 além de fósseis

de imensos sáurios carnívoros das eras precedentes (ichthyosaurus, plesiosaurus)

bem como novos gêneros (cetiosaurus e mososaurus)151. Quanto aos répteis

terrestres, Chambers afirmou que eles são abundantes. São encontradas espécies

da era precedente, como tartarugas, trionyces, pterodactyle, crocodilos e o

pliosaurus. Este último, de acordo com este autor, seria um elo entre os

plesiosaurus e crocodilos 152.

Outra novidade nessa era, segundo Chambers é a descoberta dos

primeiros vestígios de insetos. Entre estes, Chambers mencionou uma libélula

encontrada nas imediações de Oxford 153.

Com relação às plantas, Chambers explicou que nessa era foram

encontrados fósseis de cycadeae, além de samambaias, Lilia, equisetaceae e

coníferas. As algas como nas eras anteriores também estão presentes. 154

2.5.1.6 Fósseis da Formação do Cretáceo

A formação do Cretáceo, segundo Chambers, apresenta fósseis de nautili,

nummuli, cyprides entre outros. Chambers mencionou que Christian Gottfried

Ehrenberg (1795-1876) tinha encontrado plantas marinhas microscópicas nas

formações rochosas relacionadas a essa era 155. Além disso, foram encontradas

cerca de cinqüenta e sete espécies de animais microscópicos, sendo eles

infusórios e polythalamia 156, os que ainda existem atualmente em várias partes da

Terra 157.

Chambers constatou que as espécies de moluscos marinhos, de répteis e

de mamíferos haviam sofrido mudanças desde era do Cretáceo: “Espécies de

150 Ibid., p. 109. 151 Ibid., p. 110. 152 Ibid. 153 Ibid., p. 111. 154 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 108. 155 Ibid., p. 118. 156 Um grupo de foramíneferos. 157 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 120.

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moluscos marinhos, répteis e mamíferos mudaram repetidas vezes desde a era

cretácea”158.

Segundo Chambers, todos as “ordens” comuns e mais observáveis de

habitantes dos oceanos, com exceção dos cetáceos haviam sido encontradas na

formação cretácea: fósseis de zoófitos, radiolários, moluscos, crustacea, sáurios

marinhos e peixes cartilaginosos. Os répteis, para Chambers, também estão

presentes, como as tartarugas, crocodilos e o mosossauro que, segundo ele,

parecia ter um lugar intermediário entre monitor e iguana159.

Com relação às plantas dessa era, Chambers afirmou que o sargaço era

abundante nos oceanos. Também são encontrados confervas [uma espécie de

alga marinha]. Da vegetação terrestre, segundo o autor, são encontrados fósseis

principalmente de samambaias, coníferas e cicadáceas160.

Foram encontrados alguns fósseis de aves por Gideon Algernon Mantell

(1790-1852). Tratava-se aparentemente de alguns ossos de aves pernaltas.

Foram encontrados também alguns vestígios de uma família de aves nadadoras

do tamanho de um albatroz 161.

A ausência de mais fósseis de aves, de acordo com o autor dos Vestiges,

não deve ser vista como negativa. Para ele, esses animais existiram é só não se

formaram fósseis por falta de circunstâncias adequadas para a fossilização. Ele

explicou:

Animais [aves], dos quais não encontramos nenhum vestígio nessa

formação particular, podem, contudo, ter vivido naquela época e pode ter

havido simplesmente circunstâncias desfavoráveis para que esses vestígios

não fossem preservados para nossa inspeção162.

158 Ibid., p. 120. 159 Ibid., p. 121. 160 Ibid., pp. 121-122. 161 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 123. 162 Ibid.

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Segundo Chambers, podemos perceber uma progressão, do inferior para o

superior, dos seres ao estudarmos os seus vestígios, “com os vestígios

encontrados em todas as séries de rochas, podemos ver um claro progresso por

toda parte, dos tipos inferiores de seres para os superiores” 163.

2.5.1.7 Fósseis da Era da Formação do Terciário

Nas camadas de rochas do Terciário, segundo Chambers, encontramos

uma nova série de animais e quanto mais avançamos nas camadas, descobrimos

cada vez mais espécies idênticas às espécies atuais164.

Chambers adotou a divisão de Charles Lyell (1797-1875) para o Terciário

que compreende quatro sub-períodos: Eoceno, Mioceno, antigo Plioceno e Novo

Plioceno.

No Eoceno, segundo Chambers, encontramos várias espécies de

moluscos, dos quais algumas ainda vivem. A principal novidade é o aparecimento

de grandes mamíferos, representados pelo grupo pachydermata 165, cujas

características os aproximam do tapir da América do Sul. Nas palavras do autor:

“Algumas espécies desses animais são paleotherium, anthracotherium,

anoplotherium e lophiodon. Todos eles são herbívoros” 166.

São encontrados, no Eoceno, novos répteis, alguns deles adaptados à água

doce e várias espécies de aves aparentadas com as atuais, tais como: cotovia,

maçarico, codorna, buzardo, coruja e pelicanos. Também são encontradas

espécies de mamíferos aparentadas ao arganaz, esquilo, gambá, guaxinim,

gineta, raposa e lobo 167.

O Mioceno, segundo Chambers, ainda tem como organismos

predominantes, os pachydermata e o tapir, o qual é o mais abundante. Além do

tapir, são encontrados fósseis de espécies aparentadas com o glutão, urso,

163 Ibid., p. 124. 164 Ibid., pp. 126-127. 165 Chambers adota esse grupo da classificação de Cuvier. 166 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 128. 167 Ibid.

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cavalo, porco e vários felinos. Aparecem pela primeira vez fósseis de mamíferos

marinhos, como focas, golfinhos, peixes-boi, morsas e baleias168.

No Plioceno, segundo Chambers, os pachydermata desapareceram e foram

substituídos por outros animais aparentados às famílias do elefante, hipopótamo e

rinoceronte. Trata-se, para Chambers, dos mastodontes e mamutes 169.

Também são encontrados fósseis, segundo Chambers, do megatherium e

megalonyx. Chambers comentou que pela primeira vez haviam sido encontrados

fósseis de bois, cervos e camelos 170.

Chambers considerava que os quadrumana (macacos) e os homens

formam, após os felinos, o primeiro grupo na escala dos animais. Entretanto, este

fato não tinha merecido até então a atenção dos naturalistas. Ele esclareceu:

É observado que são trazidos para a parte superior [da escala animal] os

felinos, ou carnívoros, ocupando um ponto consideravelmente elevado na

escala animal, mas ainda é deixado um espaço em branco para os

quadrumana (macacos) e para o homem, que conjuntamente formam, como

será visto mais tarde, o primeiro grupo na escala 171.

Chambers mencionou que muitas vezes são encontrados fósseis de

animais em lugares que hoje eles não existem mais. É o caso de fósseis de

macacos, ossos da mandíbula e dentes, encontrados no Brasil, nas montanhas do

Himalaia e na Inglaterra. Além disso, na Inglaterra, juntamente com os fósseis

mencionados foram encontradas cerca de trinta espécies de quadrúpedes,

aparentados de rinocerontes, anoplotherium, cervos, antílopes, cão verdadeiro,

grandes gatos, doninhas e lebres 172.

Além dos fósseis de quadrumana encontrados na Inglaterra, Chambers se

referiu à descoberta de fósseis de duas espécies de macacos encontrados em 168 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 129. 169 Ibid., pp. 130-131. 170 Ibid. 171 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 131. 172 Ibid., pp. 131-132.

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outras partes do mundo, nas montanhas do Himalaia e no Brasil. Trata-se do

semnopithecus e do protopithecus. Ele explicou:

O primeiro [encontrado nas montanhas do Himalaia] sendo uma grande

espécimen de semnopithecus e o segundo [encontrado no Brasil], ainda

maior, pertencendo a um grupo de macacos americanos, mas de um novo

gênero, e denominado pelo seu descobridor, Dr. Lund [Peter Wilhel Lund

1801-1880], de protopithecus. 173

2.5.1.8 Fósseis das Formações Superficiais

O progresso da criação orgânica, segundo Chambers, pode ser percebido

nos fósseis encontrados nos vários estratos de rochas descritos até o início da Era

das Formações Superficiais, que para ele, antecedia o surgimento do homem:

Agora completamos nosso exame nas séries de rochas estratificadas, e

traçamos em seus fósseis o progresso da criação orgânica até a época que

parece anteceder o aparecimento do homem 174.

São encontrados nessa era, segundo Chambers, fósseis de várias

espécies, tais como ossos de elefantes, rinocerontes, bisões, lobos, cavalos,

cervos, felinos, aves, mamutes, mastodontes, búfalos e outros animais de

espécies extintas e de espécies que ainda vivem 175.

Chambers admitia que o homem participou desse progresso da criação

ocupando o posto mais elevado, sem, contudo, deixar de relacioná-lo com o

registro fóssil, já que é dito que o homem é uma criação recente na Terra, fato

este que se relaciona à ausência de fósseis de seres humanos:

173 Ibid , p. 132. 174 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 134. 175 Ibid., p. 144.

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Não há casos satisfatórios e autênticos de vestígios de seres humanos

encontrados, exceto em depósitos obviamente de data moderna; uma prova

razoavelmente forte de que a criação da nossa própria espécie é um evento

comparativamente recente 176.

2.5.2. Evidências embrionárias e órgãos rudimentares

De acordo com Chambers, outro tipo de estudo que trazia evidências

favoráveis à evolução orgânica era a comparação de estruturas e órgãos de

diferentes espécies que apresentam a mesma origem no seu estágio inicial de

desenvolvimento embrionário, mas que depois adquirem funções e formas

diferentes, conforme a espécie.

Segundo Chambers, para “propósitos análogos”, ou seja, realizações de

mesmas funções, estão presentes em diversos animais, órgãos diferentes para a

realização destas. Comentou que a respiração dos peixes e dos mamíferos é feita

por órgãos diversos: guelras nos primeiros e pulmões no segundos. E que estes

órgãos não são modificações de um mesmo órgão, mas sim órgãos diferentes. No

entanto, ele afirmou que os mamíferos, em seu estágio inicial de desenvolvimento

embrionário apresentam guelras que no decorrer do processo de desenvolvimento

do embrião desaparecerão. Já nos peixes, os pulmões não aparecem e, quando

muito, são percebidos numa forma rudimentar, a bexiga natatória 177.

A esses órgãos que não se desenvolvem, mas que estão presentes em

algum estágio de desenvolvimento nos animais, Chambers chamava de órgãos

rudimentares 178. Além dos exemplos descritos acima, Chambers explicou que

algumas serpentes possuem patas, embora estas não sejam utilizadas para a

locomoção. Outro exemplo apontado por Chambers é o desenvolvimento dos

dentes nos mamíferos terrestres e nas baleias. Segundo Chambers, estas

possuem dentes quando embrião, mas que depois esses dentes regridem e são

176 Ibid. 177 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p.193. 178 Trata-se de uma evidência evolutiva que até hoje é considerada a favor da evolução.

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substituídos pelas barbatanas, ao passo que os animais terrestres certamente têm

estruturas rudimentares de barbatanas em sua organização 179.

Outro exemplo de “parentesco” entre os organismos que Chambers

forneceu é o pescoço da girafa, que apesar do tamanho, apresenta o mesmo

número de ossos de um pescoço de um porco. Além desse exemplo, Chambers

mencionou o cóccix do ser humano como um vestígio de uma cauda que não se

desenvolveu. Ele assim se expressou:

O homem não tem cauda, mas a noção [de que o homem poderia ter uma

cauda] de um filósofo foi muito ridicularizada no último século. Porém, isso

ocorreu sem fundamento, já que os ossos de uma extremidade de cauda

estão presentes em um estágio não desenvolvido no cóccix do ser

humano180.

Mais um exemplo que Chambers utilizou para sugerir a existência de uma

ligação entre diversos mamíferos é de que a pata do morcego possui ossos muito

parecidos com os da mão do ser humano. Em suas palavras: “[Morcego] tem uma

membrana [em sua mão], comumente chamada de asa, formada principalmente

sobre ossos que correspondem precisamente àqueles ossos da mão do

homem”181.

Chambers também utilizou como hipótese de progresso dos animais, o

desenvolvimento embrionário dos organismos e a sua comparação com as

“formas permanentes”, no qual um organismo passa por uma série de mudanças

semelhantes às “formas permanentes” de várias ordens de animais inferiores a ele

na escala dos seres182.

Entre os exemplos que Chambers forneceu está o do ser humano. Primeiro

o homem passa por um estágio embrionário que é semelhante a um animálculo.

179 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 193. 180 R. Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 195. 181 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 196. 182 Ibid., p. 198.

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Em seguida, ele passa por estágios que se assemelham aos encontrados nos

peixes, répteis, aves e de mamíferos inferiores até atingir sua maturidade. O autor

mencionou inclusive que o homem apresenta uma característica típica dos

macacos, o osso intermaxilar, no seu estágio final de desenvolvimento:

De acordo com os estágios finais de sua carreira fetal, ele [homem] exibe

um osso intermaxilar, que é uma característica típica de um macaco

perfeito; esse [osso] é suprimido e pode ser dito que ele deixou de ser um

tipo de símio e se tornou uma verdadeira criatura humana 183.

Além de comparar o desenvolvimento do embrião de animais com as

formas presentes em outros organismos, Chambers afirmava que certos órgãos

passam também, durante as fases embrionárias, por estágios de órgãos adultos

dos animais inferiores a eles na escala animal. Por exemplo, o cérebro do homem

e o coração dos mamíferos. Em relação a este Chambers último, Chambers

afirmou que ele passa por fases onde é semelhante ao de um inseto, de um peixe

e de um réptil:

Esse órgão, nos mamíferos, consiste em quatro cavidades, mas nos répteis

em somente três e nos peixes de duas apenas, ao passo que num animal

articulado é meramente um tubo prolongado. Agora num feto de mamífero,

no estágio inicial, ele tem a forma de um tubo prolongado; e pode ser dito

que o ser humano tem então um coração de um inseto. Subseqüentemente

ele é reduzido e aumentado e se torna dividido pela contração em duas

partes, um ventrículo e uma aurícula; ele é agora o coração de um peixe.

Uma subdivisão da aurícula mais tarde origina uma câmara tripla, como o

coração da tribo dos répteis; por fim, o ventrículo sendo também

subdividido, ele se torna um completo coração de mamífero. 184

183Ibid., p. 199.

184 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 201.

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Chambers voltou a comparar e a procurar estabelecer uma relação de

parentesco entre os animais avançados com os mais inferiores ao propor que os

primeiros passam por estágios do desenvolvimento embrionário que são

semelhantes aos segundos. Tal semelhança não é com o organismo adulto e sim

com o embrião e o feto. Para ilustrar essa idéia, Chambers elaborou o diagrama

abaixo. 185

Nesse diagrama, Chambers propôs que o embrião de peixes, répteis, aves

e mamíferos estão juntos em A. Neste ponto, os dos peixes divergem, os demais

seguem juntos até C, no qual os répteis se separam. Mamíferos e aves caminham

juntos até D, onde as aves se separam. Os mamíferos seguem até M, que é o

posto mais avançado da criação. Ele explicou:

O feto de todas essas classes supostamente progride em uma condição

idêntica até A. Nesta os peixes divergem e passam adiante para uma linha

à parte e peculiar a eles mesmos, até [atingir] seu estado maduro em F. Os

répteis, aves e mamíferos seguem juntos até C, onde os répteis divergem

do mesmo modo e avançam até R. As aves divergem em D e seguem para

B. Os mamíferos então seguem adiante em linha reta para o posto mais alto

de organização em M 186.

185 Ibid., p. 212. 186 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 212.

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Segundo Chambers, o diagrama esboçado e explicado, contém as

principais ramificações, mas pode haver outras dentro destas para originar as

diferentes ordens, tribos, famílias e gêneros dos animais. Ele explicou:

Esse diagrama mostra somente as principais ramificações; mas o

leitor deve supor a existência de outras, representando as

secundárias diferenças de ordens, tribos, famílias, gêneros, etc, se

ele deseja estender essa visão para toda variedade de seres no reino

anima 187.

Chambers pressupôs que para ocorrer o desenvolvimento de tais embriões

seria necessário um “alongamento em linha reta de uma parte da gestação sobre

um pequeno espaço”. Este alongamento se daria através de certas forças

externas que operariam sobre o sistema parturiente [desenvolvimento

embrionário] 188.

Para Chambers, há uma influência (favorável ou desfavorável) das

condições externas sobre o desenvolvimento embrionário. Ele procurou

exemplificar isso nos seres humanos afirmando que indivíduos da “raça negra” por

viverem em condições desfavoráveis preservariam as características associadas

ao barbarismo, mas que quando os mesmos indivíduos passaram a viver em uma

região de clima temperado e numa classe social alta, a “face e aparência se

tornaram muito refinadas”. 189

As condições externas também podem, segundo Chambers, fazer com que

haja um retrocesso em vez de progresso no desenvolvimento do embrião. Como

exemplos, ele menciona que, pessoas bem formadas [fisicamente] e de boa

187 Ibid. 188 Ibid., p. 213. 189 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 217.

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aparência podem originar, devido a uma dieta ruim ou privações físicas, crianças

com deficiências 190.

Outro exemplo que Chambers mencionou foi a ocorrência de certas

“monstruosidades” observadas em fetos humanos como um coração imperfeito

que apresenta três câmaras, portanto semelhante ao de um réptil, em vez de

quatro. Tal defeito, segundo Chambers, é decorrência de uma falha no poder de

desenvolvimento da mãe, seja ele conseqüência de uma saúde fraca ou de

condições de vida miseráveis. 191

Chambers fez uma analogia da produção de novas formas de seres vivos

na Terra com o desenvolvimento da gestação de uma mulher grávida:

A produção de novas formas [de seres], como mostrado nas páginas do

registro geológico, tem sido nada mais do que um novo estágio do

desenvolvimento na gestação, um evento simplesmente natural, e resultado

de algumas poucas circunstâncias surpreendentes e maravilhosas, como o

silencioso progresso de uma mãe de uma semana para outra da sua

gravidez 192.

Chambers elaborou um diagrama baseado numa escala apresentada por

John Fletcher na obra Rudiments of Physiology. Fletcher, segundo Chambers,

criou uma escala na qual o cérebro de cada animal passa, durante seu

desenvolvimento embrionário, por estágios nos quais ele é parecido com o

cérebro de animais inferiores a ele. O cérebro do homem é no primeiro mês

semelhante ao cérebro de um animal invertebrado; no segundo com o de um

peixe ósseo; no terceiro com o de uma tartaruga; no quarto com o de uma ave; no

quinto com o de um roedor; no sexto com o de um ruminante; no sétimo com o de

190 Ibid., p. 218. 191 Ibid., pp. 218-219. 192 Ibid., p. 223.

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um digitígrado193; no oitavo com o um quadrúmano [macaco]; e no nono com o

cérebro humano. 194

Entretanto, de acordo com James Secord, Chambers na primeira edição

confundiu dois modelos conflitantes sobre o desenvolvimento embrionário. O

primeiro, de Friedrich Tiedmann e Etienne Serres, que defendia que os estágios

embrionários recapitulam as formas adultas dos organismos progressivamente

superiores. O segundo, de Karl Ernst von Baer, que envolvia um processo de

diferenciação ramificadado geral para o específico (conforme ilustra o diagrama da

p. 212 da primeira edição do Vestiges) 195.

Chambers considerou que tanto a classificação de Cuvier como a escala de

Fletcher se harmonizavam com a idéia de progresso dos seres, já que ambas

exibem uma sucessão de organismos semelhante à encontrada no registro fóssil.

Ele comentou:

É uma evidência maravilhosa a favor de nossa hipótese, que uma escala

formada tão arbitrariamente deva coincidir em tal semelhança com nosso

conhecimento atual da sucessão das formas de animais sobre a Terra, e

que essas séries se harmonizem tão bem com a visão dos fisiologistas

modernos sobre o progresso de um órgão embrionário da mais avançada

ordem de animais 196.

Entretanto, não podemos considerar que a possibilidade de arranjo dos

seres em uma escala de perfeição, seja uma evidência de que ocorreu evolução.

Uma coisa é esse arranjo. Outra coisa é o que sucedeu cronologicamente e que

não foi observado pelo homem.

193 São animais que andam sobre os dedos, como os gatos e os cachorros e a maior parte dos

mamíferos, com exceção dos humanos e ursos, e poucos outros. Digitígrados geralmente movem-

se mais rápido e mais silenciosamente do outros tipos de animais e normalmente, têm maior

facilidade de caça. 194 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, pp. 223-224. 195 Secord, “Introduction”, in Chambers, Vestiges of the natural creation, p. xvii. 196 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 225.

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55

Percebemos, entretanto, que houve um grande esforço por parte de

Chambers para, através das informações disponíveis na época, utilizar o registro

fóssil para corroborar a existência de uma evolução orgânica. Além disso, ele

mostrou uma familiaridade muito grande com as descobertas e contribuições feitas

por estudiosos da época. Teve também o cuidado de dar o crédito aos autores de

todas essas contribuições. Concordamos com James A. Secord em que

“Começando com os domínios relativamente não controvertidos da astronomia e

geologia, o Vestiges mostra como os modelos de desenvolvimento já estavam

sendo defendidos pelas melhores autoridades”197

2.5.3 EXEMPLOS EM QUE A EVOLUÇÃO ESTÁ OCORRENDO ATUALMENTE

A evolução de uma espécie para outra, segundo Chambers, não só ocorreu

no passado como pode ocorrer atualmente e ser observada diretamente na

natureza enquanto ela está acontecendo198.

Um dos casos em que a evolução pode ser observada atualmente, segundo

Chambers, é a progressão de animálculos encontrados nas infusões vegetais. Ele

explicou:

Uma progressão nas formas de animálculos em uma infusão vegetal, do

mais simples para o mais complicado é uma espécie de microcosmo,

representando toda a história do progresso da criação animal mostrado pela

geologia 199.

Como se pode perceber, Chambers aceitava a existência da geração

espontânea. Essa idéia era aceita por muitos estudiosos respeitados na época. A

publicação da primeira edição dos Vestiges (1844) antecedeu ao debate sobre a

197 James A. Secord, in Vestiges of natural creationand other evolutionary writings, p. xiii. 198 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 219. 199 Ibid., p. 220.

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56

geração espontânea dos infusórios que envolveu Felix Archimède Pouchet e Louis

Pasteur, entre 1858 e 1864 na França200.

Outro caso a que Chambers se referiu foi a transformação da aveia em

centeio, ou seja, de uma espécie em outra. Em locais onde se havia semeado

aveia, segundo Chambers, após certo tempo surgia em seu lugar centeio 201. Ele

comentou: “Revela-se que quando a aveia é semeada em sua época habitual e

mantida plantada durante o verão e o outono, e no inverno, uma pequena safra de

centeio é colhida perto do verão seguinte”202.

O caso da aveia, segundo Chambers, consistia no valioso exemplo do

desenvolvimento de uma espécie para outra203.

2.5.4 A EXISTÊNCIA DE ESPÉCIES INTERMEDIÁRIAS

Uma das maiores críticas às teorias evolutivas é a ausência de formas

intermediárias entre duas espécies diferentes. Nesse sentido, Chambers procurou

oferecer diversos exemplos, encontrados no registro fóssil.

Dentre os exemplos apresentados, estão os fósseis de anelídeos (ou

vermes marinhos) encontrados no sistema siluriano. Esses anelídeos apresentam

sangue-vermelho e são hermafroditas constituindo, segundo o autor, um elo entre

os annulosa (vermes de sague-branco) e uma classe inferior de vertebrados

(amphioxus e myxene)” 204.

Outro exemplo mencionado por Chambers são os fósseis de coccosteus

encontrados na Era do Arenito Vermelho Antigo, organismos que ele considerou

intermediários entre os crustacea e os peixes por apresentar características de

ambos os grupos 205.

200 Ver a respeito em Lílian A.-C. P. Martins & Roberto de A. Martins, “Geração espontânea:dois

pontos de vista”, Perspicullum 3 (1, 1989): 5-32. 201 Trata-se, segundo Bowler, de uma superstição popular da época. 202 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 221. 203 Ibid. 204 Ibid., p. 62. 205 Ibid., p. 69.

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No que se refere ao reino vegetal para Chambers, as coníferas seriam um

elo de ligação entre as monocotiledôneas e as dicotiledôneas: “As coníferas

formam o princípio das árvores dicotiledôneas, das quais pode ser dito que elas

são as mais simples”206.

O elo de ligação entre os peixes e répteis seria o Megalichthys hibbertii,

uma espécie de peixe com características sauróides:

Alguns peixes [Megalichthys hibbertii] têm uma característica sauróide, isto

é, compartilham da natureza do lagarto, um gênero dos répteis, que é uma

classe de animais terrestres, de modo que podemos dizer que aqui temos

uma primeira aproximação de um tipo de animal previsto para respirar na

atmosfera 207.

Segundo Chambers, o rynchosaurus, que apresenta algumas

características singulares, como um corpo de um réptil e as patas e o bico de uma

ave seria uma espécie de elo entre os répteis e as aves 208.

Chambers apontou os struphionidae (aves parecidas com o avestruz) como

uma espécie intermediária entre as aves e os mamíferos. Ele justificou sua visão

pelo fato dessas aves apresentarem asas imperfeitas ou não desenvolvidas,

diafragma e saco urinário (órgãos ausentes nas outras aves) e penas cuja

natureza, segundo ele, se aproxima daquela do pêlo. 209

O ornitorrinco, segundo Chambers, pertence a uma classe inferior de

mamíferos. Algumas de suas características, bico e pé palmípede, o aproximam

das aves210.

Para Chambers, a família de marsupiais é um elo entre os vertebrados

ovíparos e os mais avançados mamíferos211. 206 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 88. 207 Ibid., p. 90. 208 Ibid., p. 103. 209 Ibid., p. 195. 210 Ibid., p. 195. 211 Ibid., p. 112.

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2.6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Como foi possível perceber neste capítulo, Chambers aceitava a

transmutação das espécies e que esta estava sujeita a diversas leis como a “lei da

gestação das espécies”, as atividades geológicas, as condições de luminosidade,

a lei do aumento da complexidade, etc. O processo seria lento e gradual dentro de

uma visão uniformitarista da natureza. Embora deísta, Chambers colocou Deus

fora do processo natural. Ele apenas teria criado as leis.

Dentro da concepção empirista de ciência que se aceitava de um modo

geral na época, ele procurou documentar a existência de diversos fatos que

corroboravam a evolução orgânica. Estes fatos diziam respeito à embriologia

comparada, aos órgãos rudimentares e principalmente ao registro fóssil. Essas

evidências foram utilizadas mais tarde por Charles Darwin e até hoje são aceitas

para defender a evolução.

Alguns historiadores criticam as idéias evolutivas de Chambers,

considerando-as simplistas e ingênuas. Para Peter Bowler, Chambers defendia

uma idéia de progresso em vez da adaptação dos seres vivos e para explicar esta

idéia ele fez uso de leis um tanto vagas que chamava de “Criação por lei”. Ainda

para Bowler, Chambers não propôs um mecanismo natural para explicar a

evolução. 212

Consideramos algumas dessas críticas um pouco injustas já que Chambers

propôs sim um mecanismo para a transmutação como bem colocou Secord. Este

mecanismo consiste em uma simples extensão da reprodução. Em suas palavras:

“Leves atrasos na gestação significam que um tipo inferior poderia,

ocasionalmente originar um tipo mais elevado”213. Entretanto, ele poderia ter

explicado mais e exemplificado algumas de suas leis como as atividades

geológicas, por exemplo.

Temos que, no entanto, recordar que Chambers era um representante da

era vitoriana e se baseou nos conhecimentos científicos de sua época. A idéia de

212 Peter J. Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 135. 213 Secord, “Introduction”, in: Chambers, Vestiges of the natural creation, p. xvii.

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progresso fazia parte do contexto da época. Desse modo, não consideramos justo

criticá-lo por isso.

O registro fóssil apresentado por Chambers oferece a evidência mais forte

da sua idéia de evolução. W. C. Williams também aponta para este fato214.

Chambers dedicou quase metade de Vestiges aos fósseis encontrados nos

diferentes estratos procurando mostrar que havia uma transformação de formas

mais simples para as mais complexas bem como formas intermediárias. Através

do registro fóssil Chambers pôde observar que os seres vivos evoluíram

lentamente e gradualmente.

Ernst Mayr, também menciona que a utilização do registro fóssil procurando

mostrar que as espécies se transformaram do mais simples para o mais complexo

é um dos pontos fortes do pensamento evolutivo de Chambers, já que ele

percebeu: i) que a fauna evoluiu, ao longo do tempo geológico; e ii) que as

mudanças eram lentas e graduais.215

Concordamos com Lilian A.-C. P. Martins216, que afirma que Chambers

tinha um bom conhecimento de Geologia e Paleontologia, fato este que

proporcionou um bom uso dos conhecimentos dessas áreas de estudo para

fundamentar suas idéias evolutivas.

Ainda com relação ao registro fóssil apresentado por Chambers, Bowler

aponta que ele não era consistente com idéia de progresso que ele defendia já

que apresentava saltos e a ausência de espécies intermediárias 217.

Consideramos que nessa crítica há um pouco de exagero por parte de Bowler.

Sabemos que o próprio Chambers reconhecia esse problema, pois mencionou

diversas vezes que em alguns casos muito provavelmente não houve condições

214 W. C.Williams, “Chambers, Robert”. in: C. C. Gillispie, org., Dictionary of Scientific Biography,

vol 3, p. 192. 215 Ernst Mayr, the growth of biological thought. Diversity, evolution and inheritance (Cambridge,

MA:Belknap Press, 1982), p. 383. 216 Lilian A.- C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais, de Lamarck, p. 418. 217 P. J. Bowler, Evolution: The history of an idea, p. 139.

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60

adequadas que possibilitassem a fossilização, fato que Marilyn B. Olgivie também

reconhece 218.

É importante ressaltar que a descrição e análise das idéias de Chambers

aqui desenvolvida se concentrou na primeira edição de Vestiges (1844). As

opiniões dos autores que aqui confrontamos restringem-se às primeiras edições

(da primeira a terceira219). A maior parte dos historiadores focaliza seus estudos

na última edição revista por Chambers (1860). Porém, para a presente pesquisa, a

primeira edição é a mais apropriada porque é a que está mais próxima,

cronologicamente, da obra de Lamarck. Não tivemos acesso à edição de 1860,

mas consideramos que a análise da mesma merece ser feita, já que foi publicada

praticamente no mesmo ano de Origin de Darwin (1859).

218 M. B. Olgivie, Robert Chambers and the successive revision of the Vestiges of the natural

history of creation (Oklahoma: University of Oklahoma ) p. 115. 219 A segunda e a terceira edição de Vestiges apresentam poucas variações, pois foram

reimpressas no ano de 1845 devido ao grande sucesso do livro.

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61

CAPÍTULO 3

CHAMBERS, LAMARCK E EVOLUÇÃO ORGÂNICA

O objetivo deste capítulo é estabelecer algumas comparações entre alguns

aspectos do pensamento evolutivo de Robert Chambers presentes na primeira

edição da obra Vestiges of the natural history of creation (1844) com alguns

aspectos presentes na teoria na teoria da progressão dos animais de Lamarck

(1800-1822)220, conforme aparece nas diversas obras que ele publicou a partir de

1800 tratando do assunto221.

Para fazer esta comparação selecionamos os seguintes aspectos:

• As características do processo evolutivo;

• A origem da vida e dos diversos grupos taxonômicos;

• O mecanismo pelo qual a evolução ocorria/ocorre;

• O papel de Deus no processo evolutivo;

• As leis naturais;

• As evidências utilizadas para corroborar suas idéias.

3.1 Aspectos em comum

Como já foi dito anteriormente, em termos cronológicos, a contribuição de

Chambers se situa entre as contribuições de Lamarck (1800-1822) e de Charles

Darwin (1859). Entre a publicação da última obra onde Lamarck apresentou suas

idéias sobre evolução orgânica (1822) e o Vestiges de Chambers (1844) se

220 É importante lembrar que a teoria de evolução de Lamarck aqui exposta é baseada na obra de

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, A teoria da progressão dos animais, de Lamarck (Rio de Janeiro: Booklink/ FAPESP, 2007).

221 Essas obras são principalmente a Philosophie zoologique (1809); o primeiro volume da Histoire

naturelle des animaux sans vertèbres (1815) e a Hydrogéologie (1802).

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passaram 22 anos. Sabemos que Chambers tomou conhecimento das idéias de

Lamarck já que se referiu às mesmas no Vestiges.

Chambers e Lamarck, assim como Darwin, consideravam que a

modificação das espécies se deu/dá através de um processo lento e gradual.

Tinham uma visão uniformitarista da natureza, onde não haveria espaço para

grandes catástrofes que destruiriam tudo mas somente as catástrofes locais como

furacões, terremotos, por exemplo.

Ambos os autores eram deístas pois acreditavam que Deus, embora

considerassem que Deus não interferia diretamente na natureza222. Para eles,

Deus criou as leis naturais e essas leis é que possibilitaram tanto a origem da vida

como a transformação das espécies.

Como vimos no capítulo anterior, Chambers assim se expressou quanto a

atuação das leis naturais:

Se há alguma coisa mais marcante do que outra em nossas mentes pelo

curso da história geológica é que, as mesmas leis e condições da natureza

presentes para nós, existiram o tempo todo, embora a atuação de algumas

destas leis possa ser menos evidente hoje do que nas eras iniciais [da

Terra]223.

Chambers e Lamarck admitiam a geração espontânea para a origem da

vida. Para o último, a vida surgiu com a ajuda do calor, luz, eletricidade e umidade.

Lamarck se expressou assim:

222 Ver sobre a visão de Lamarck sobre Deus em Lilian A. C. P. Martins, “Lamarck, evolução

orgânica e materialismo: algumas relações”. Pp. 11-38, in: João Quartim de Morais (org),

Materialismo e evolucionismo. Epistemologia e história de conceitos. (Campinas:Unicamp, 2007),

nas pp. 22-24; 35. 223 Robert Chambers, Vestiges of the natural history of creation (London: John Churchill, 1844), p.

146.

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63

A natureza com a ajuda do calor, da luz, eletricidade e umidade, forma as

gerações espontâneas ou diretas na extremidade de cada reino dos corpos

vivos, onde se encontram os mais simples desses corpos224.

Já para Chambers, a origem da vida se deu a partir do surgimento de uma

vesícula germinal simples (que seria o “ponto de encontro” entre a matéria

inorgânica e os seres orgânicos) por meio de uma “operação eletro-química” 225.

Assim, pode-se perceber que ambos se referiam à eletricidade. Embora

Lamarck não mencionasse uma “vesícula germinal”, se referiu a seres vivos muito

simples, “esboços de organização” que teriam originado os outros226.

Com relação à origem dos diferentes grupos taxonômicos, Chambers

acreditava que eles tivessem surgido da progressão dos seres mais simples para

os mais complexos através da “lei da gestação das espécies”. Chambers explicou:

Os mais simples e mais primitivos tipos, sob uma lei [da gestação das

espécies] pela qual o modo de produção está subordinado, dão nascimento

a um tipo acima deles, estes novamente produzem novamente um

avançado [tipo], e assim por diante até o mais avançado 227.

Lamarck denominava os diferentes grupos taxonômicos de massas que

eram apresentadas em uma ordem linear de perfeição. Supunha que os grupos

mais simples teriam dado origem aos mais complexos, de modo semelhante a

Chambers. Lamarck escreveu:

Observando o estado em que se encontram os animais invertebrados, fica-

se convencido de que a natureza, para produzi-los, procedeu gradualmente

do mais simples para o mais composto. Ora, tendo por objetivo chegar a 224 Lamarck, Philosophie zoologique (Paris: Dentu,1809), vol. 2, p. 80. 225 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 204. 226 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, “Lamarck e evolução orgânica: as relações entre o vivo e o não

vivo”, Ciência & Ambiente 36 (2008): 11-21, na p. 18. 227 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 222.

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64

um plano de organização que permitisse um maior aperfeiçoamento (aquele

dos animais vertebrados), plano bastante diferente daquele que ela foi

forçada a criar previamente para chegar a ele, sente-se que entre esses

numerosos animais, deve-se encontrar não um só sistema de organização

que se aperfeiçoou progressivamente, mas diversos sistemas muito

distintos, cada um deles devendo iniciar-se a partir daquele em que cada

órgão de primeira importância começou a existir 228.

Nota-se que, nas citações anteriores, tanto Lamarck, quanto Chambers

admitiam uma idéia de evolução que envolvia o progresso dos seres vivos.

Chambers explicava que a progressão inicia-se com o primeiro ser vivo e se

estendia até os seres mais complexos:

Começando do primeiro germe, o qual temos visto que é representante de

uma ordem particular de animais adultos, descobrimos que todos os outros

são meramente progressos daqueles [germes], com a extensão do seu dom

natural e de modificações das formas que são requeridas em cada caso

particular 229.

Lamarck se expressou desse modo com relação à progressão dos animais:

A natureza, em todas as suas operações, procedeu gradualmente; não pôde

produzir todos os animais de uma só vez: primeiro formou os mais simples,

passando destes aos mais compostos; estabeleceu neles sucessivamente

diferentes sistemas de órgãos particulares, multiplicou-os, aumentou sua

energia pouco a pouco e, acumulando essa energia nos mais perfeitos, fez

existirem todos animais conhecidos, com as faculdades que neles

observamos230.

228 Lamarck, Philosophie zoologique, vol. 1, p. 163. 229 Chambers, Vestiges of the natural history of creation, p. 192. 230 Lamarck, Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (Paris: Verdière, 1815), v.1, p. 105.

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65

Assim, nas concepções dos dois autores, que utilizam tanto a palavra

“progresso” como a palavra “progressão” existe a idéia de que a evolução caminha

no sentido de proporcionar um aumento de complexidade aos grandes grupos

taxonômicos.

Devemos lembrar que ambos os autores eram representantes do século

XIX quando a idéia de progresso esteve bastante presente, inclusive em relação à

ciência.

Um outro aspecto que é semelhante na concepção dos dois autores é a

utilização da presença de órgãos rudimentares nos animais superiores como

evidência da evolução orgânica. Lamarck utilizou como exemplo a presença de

dentes em fetos de baleia, que haviam sido descobertos por Geoffroy Saint-

Hilaire. Além disso, ambos os autores colocam o homem como estando no topo da

escala evolutiva.

3.2 Aspectos diferentes

Uma das principais diferenças que podemos apontar em relação às

concepções evolutivas de Chambers e Lamarck foi a maneira pela qual eles

procuraram fundamentá-las. Foi a partir da segunda década do século XIX que os

estudos geológicos e paleontológicos tiveram um desenvolvimento maior, e

Chambers aproveitou-se desses estudos utilizando evidências do registro fóssil

para corroborar a evolução das espécies. Lamarck não utilizou o registro fóssil

para fundamentar suas idéias embora tivesse a seu dispor exemplos de formas

fósseis, intermediárias e atuais de moluscos a seu dispor. Assim, ele poderia ter

utilizado alguns desses exemplos para corroborar sua teoria. Ele se preocupou

mais em mostrar exaustivamente que os grandes grupos de animais (“massas”)

poderiam ser agrupados em ordem crescente de perfeição sugerindo que,

provavelmente, esta teria sido a ordem seguida pela natureza. Nesse sentido, a

proposta de Chambers se diferenciou bastante, pois a utilização de evidências

paleontológicas foi bastante grande. Como mostramos no capítulo anterior, 1/3 de

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Vestiges foi dedicado ao registro fóssil como uma das principais evidências

evolutivas de sua concepção de progresso da vida na Terra 231.

Com relação ao mecanismo pelo qual a evolução ocorre, Chambers

ofereceu como explicação a atuação de leis naturais, sobre o que ele não deu

muitos detalhes. São elas: as atividades geológicas, as condições de

luminosidade, atmosféricas e a lei de gestação das espécies, a qual permite que

uma espécie dê origem a outra. Talvez o exemplo mais ilustrativo seja essa última

lei. Já Lamarck, na versão final de sua teoria, explicou com mais detalhes que a

evolução ocorre através de quatro leis. A primeira lei diz que “há uma tendência na

natureza para o aumento de complexidade”. Lamarck assim se expressou:

A natureza, produzindo sucessivamente todas as espécies de animais e

começando pelos mais imperfeitos e mais simples, terminando pelos mais

organizados, complicou gradualmente sua organização; esses animais,

tendo se espalhado geralmente por todas as regiões habitáveis do globo,

cada espécie recebeu pela influência das circunstâncias nas quais se

encontrou, seus hábitos que conhecemos e as modificações em suas

partes que a observação nos mostra 232.

Na segunda lei, Lamarck explicou o surgimento de novos órgãos em

“função das necessidades que se fazem sentir e que se mantêm”. Lamarck

afirmou quanto à segunda lei:

A produção de um novo órgão em um corpo animal resulta de uma nova

necessidade que surgiu e que continua a se fazer sentir e de um novo

movimento que essa necessidade faz nascer e mantém 233.

231 Não cabe aqui descrever a análise do registro fóssil apresentada por Chambers, já que ela está

exposta em detalhes no capítulo anterior. 232 Lamarck, Philosophie zoologique, v. 1, p. 266. 233 Idem, Histoire naturelle des animaux sans vertèbres, v.1, p. 155.

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Em relação a esta segunda, lei se percebe uma influência bastante grande das

circunstâncias na modificação das espécies.

Lamarck relacionou a segunda lei com a terceira lei já que a produção de

um novo órgão está associada os seus hábitos e circunstâncias nas quais ele vive.

Segundo Lamarck:

Não são os órgãos, ou seja, a natureza e as partes do corpo de um animal

que originam seus hábitos e suas faculdades particulares, mas são ao

contrário seus hábitos, sua maneira de viver e as circunstâncias nas quais

se encontram esses indivíduos que, com o tempo, constituem a forma de

seu corpo, o número e o estado de seus órgãos – enfim, as faculdades de

que gozam 234.

A terceira lei de Lamarck refere-se a “lei do uso e do desuso”, a qual

condiciona o desenvolvimento ou atrofia dos órgãos ao seu uso ou desuso.

Lamarck a enunciou da seguinte forma, “O desenvolvimento dos órgãos e sua

força e ação estão em relação direta com o emprego desses órgãos”. 235

Lamarck também enunciou a terceira lei da seguinte forma,

Em todo animal que não ultrapassou o limite de seus desenvolvimentos, o

emprego mais freqüente de um órgão qualquer, se mantido, fortifica pouco

a pouco esse órgão, desenvolve-o, aumenta-o e lhe dá um poder

proporcional à duração desse emprego, enquanto que a falta constante de

uso de tal órgão o enfraquece sensivelmente, deteriora-o e diminui

progressivamente suas faculdades, acabando por fazê-lo desaparecer236.

234 Idem, Philosophie zoologique, v. 1, p. 237. 235 Idem, Histoire naturelle des animaux sans vertèbres, v.1, p. 158. 236 Lamarck, Philosophie zoologique, v. 1, p. 235

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A quarta lei de Lamarck refere-se a “herança dos caracteres adquiridos”, na

qual características adquiridas ou perdidas durante a vida dos organismos eram

transmitidas à prole. Uma das formas que Lamarck enunciou esta lei é a seguinte:

Tudo aquilo que a natureza fez os indivíduos adquirirem ou perderem

através das circunstâncias a que sua raça se encontra exposta há muito

tempo, e conseqüentemente pelo emprego predominante de tal órgão ou

pela constante falta de uso de tal parte, ela o conserva pela geração de

novos indivíduos que dela provém, desde que essas mudanças adquiridas

sejam comuns aos dois sexos, ou àqueles que produziram esses novos

indivíduos 237.

Diferentemente de Lamarck, Chambers utilizou, além do registro fóssil já

apontado anteriormente, comparações de embriões de animais mais avançados

com os de animais inferiores; comparação de órgãos que têm a mesma estrutura

mas desempenham funções diferentes [homólogos]; e analogias entre o

desenvolvimento embrionário humano e os seres inferiores; exemplos de

transformações de espécies observáveis na atualidade (“transformação da aveia

em centeio”)

3.3 Algumas considerações Podemos considerar que Chambers e Lamarck apresentavam mais

semelhanças que diferenças em suas concepções evolutivas propriamente ditas:

gradualismo, uniformitarismo, leis naturais, Deus colocado fora no processo

natural; idéia de progresso.

As diferenças se concentram sobretudo nas evidências que Chambers

utilizou para corroborar a evolução, tais como o registro fóssil entre outras. Não

podemos censurar Lamarck por isso já que ele publicou suas obras num momento

237 Ibid.

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em que o registro fóssil era pouco conhecido e que foi a partir de 1820 os estudos

geológicos e paleontológicos tiveram um desenvolvimento maior.

Pode-se dizer que Lamarck explicou a transformação dos seres vivos com

mais detalhes através de suas quatro leis. Devemos também lembrar que ele era

um naturalista e deu diversos exemplos (alguns bem escolhidos, outros nem tanto)

do uso e desuso, da formação de um novo órgão, etc. Chambers, que não era um

naturalista, não lidou com esta parte238.

238 Lilian A.-C. Pereira Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, pp. 205-217.

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70

CAPÍTULO 4

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo inicial desta dissertação, conforme apresentado na introdução,

era descrever algumas concepções evolutivas de Robert Chambers presentes na

primeira edição do Vestiges of the natural creation (1844). O segundo objetivo era

compará–las com a teoria da progressão dos animais de Lamarck. Os aspectos

selecionados para a discussão foram: as características do processo evolutivo; a

origem da vida; o desenvolvimento dos diferentes grupos taxonômicos; as leis

naturais e as evidências utilizadas para corroborar o processo evolutivo.

Através desta pesquisa percebemos que Chambers acreditava na

transmutação e que essa acontecia sempre no sentido de proporcionar um

progresso, uma progressão das espécies que se caracterizava por um aumento de

complexidade. Além disso, que esse processo era lento e gradual, como atestava

o registro fóssil. Nesse particular, ele dedicou um espaço considerável de seu livro

a documentar com uma série de exemplos oferecidos pelos estudos da época,

principalmente geológicos e paleontológicos, essa progressão. Ele admitia a

existência de leis naturais como, por exemplo: algumas atividades geológicas que

modificaram as condições físicas do planeta; as condições atmosféricas e de

luminosidade e a “lei de gestação das espécies”.

Chambers procurou explicar em uma linguagem acessível ao leitor a origem

das espécies (a partir da vesícula nucleada) e a formação de novas espécies,

comparando esses processos com a gestação dos mamíferos, daí a “lei da

gestação das espécies”. Segundo o autor, Deus, embora fosse o criador das leis

naturais, não interferia na natureza. Por outro lado, Chambers procurou apresentar

ao leitor evidências da ocorrência da transmutação utilizando, além dos exemplos

do registro fóssil, exemplos da embriologia comparada; órgãos rudimentares e

espécies intermediárias.

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As críticas feitas com relação ao mecanismo que Chambers propunha para

a evolução por historiadores, como Peter Bowler, algumas vezes são exageradas,

já que Chambers, por exemplo, propôs um mecanismo, que foi a lei de gestação

das espécies, como assinalou James Secord, contrariando a interpretação de

Bowler. No entanto, concordamos com as críticas de que algumas de suas leis,

como as de atividades geológicas, por exemplo, carecem de exemplos e mais

explicações.

Consideramos que nosso segundo objetivo, a comparação entre as

concepções evolutivas de Chambers e Lamarck quanto aos aspectos

selecionados, foi importante porque, como mencionamos na introdução, não

encontramos trabalhos em história da ciência que comparassem suas idéias. E

como já foi dito, a última versão da teoria da evolução de Lamarck é de 1822 e

Vestiges surgiu em 1844 e nesse período houve poucas contribuições

significativas sobre evolução.

Nesse sentido, pudemos constatar que as concepções dos dois autores

considerados, apresentam algumas semelhanças com relação às características

do processo evolutivo que seria lento e gradual envolvendo uma idéia de

progresso/progressão em relação às espécies; uma visão uniformitarista dos

fenômenos naturais; a presença de leis naturais que regem a transformação das

espécies; embora ambos sendo deístas, colocavam Deus fora do processo

natural.

As diferenças entre Chambers e Lamarck se dão, sobretudo, na forma

como procuraram corroborar suas idéias. Chambers amparou-se principalmente

no registro fóssil239 e Lamarck utilizou pouco este registro240. Chambers

apresentou também evidências da embriologia comparada; órgãos rudimentares e

espécies intermediárias entre as formas fósseis e atuais.

239 Vale lembrar que cerca de 1/3 de Vestiges é dedicado ao registro fóssil. 240 É importante lembrar que a paleontologia teve um grande desenvolvimento a partir de 1820 e,

portanto, Lamarck não dispunha de tantas informações sobre o registro fóssil, mas como apontado

por Lilian A.-C. P. Martins, ele poderia ter feito uso de alguns exemplos disponíveis na época.

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A forma pela qual Chambers e Lamarck apresentaram as leis que regem a

transformação também foi diferente. Ao contrário do que Lamarck fez, pelo menos

em relação a três de suas quatro leis, Chambers não se deteve em explicar as leis

que propôs ou dar exemplos de sua ação. Neste caso, é importante lembrar que

Chambers não era um naturalista como foi Lamarck e que, portanto, não

observava e descrevia espécies como Lamarck fez, por exemplo, ao documentar a

progressão existente nos grandes grupos taxonômicos que integravam a escala

animal. Entretanto, esse arranjo não implicava em que a natureza tivesse

procedido nessa ordem ao produzir os diferentes grupos de animais, ou seja, não

oferecia evidências empíricas nesse sentido.

Outra diferença que encontramos diz respeito ao próprio teor das leis.

Chambers, por exemplo, não mencionou o uso e desuso e a herança de

caracteres adquiridos, presentes em duas leis de Lamarck. Porém, embora não a

apresentasse como lei, a idéia de progresso permeia toda a sua teoria.

Se considerarmos que Chambers não era uma naturalista e que

fundamentava suas idéias a partir da leitura de trabalhos de naturalistas e

estudiosos de outras áreas da época e considerava as evidências que eles

apresentavam, estando, portanto, a par do que estava ocorrendo em termos

científicos na época, sua obra merece ser levada em consideração.

A recepção de Vestiges, como apontada no capítulo 1, não foi favorável ao

seu autor. Muitos naturalistas da época criticaram o Vestiges, não só por não

apresentar uma visão consistente da evolução dos seres vivos, mas também por

apresentar evidências ingênuas, simplistas e errôneas. Ao fazermos a análise de

suas concepções evolutivas verificamos que essas críticas foram exageradas

porque na concepção empirista de ciência que se acreditava na época, Chambers

procurou corroborar suas idéias evolutivas a partir de evidências que eram

apresentadas pelos estudos da época, algumas das quais foram utilizadas por

Darwin para corroborar sua teoria e algumas delas são até hoje utilizadas a favor

da evolução, tais como, o registro fóssil, a embriologia comparada, os órgãos

rudimentares e as espécies intermediárias.

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Os fatores que contribuíram para as críticas dirigidas às concepções

evolutivas presentes no Vestiges na época de sua publicação não consistiram

objeto de estudo desta dissertação. Apesar disso, encontramos indícios de que

grande parte delas (mesmo levando em conta as eventuais falhas, inconsistências

e lacunas metodológicas encontradas nessa obra) se deveu ao fato de o tema

transmutação não ser aceito pelo mundo britânico. Esta rejeição estava

relacionada tanto a motivos religiosos, quanto por sua associação ás

transformações sociais que ocorriam na época. Portanto, uma das importantes

contribuições de Chambers foi pôr o tema evolução das espécies em evidência

neste contexto bastante desfavorável241.

A última edição de Vestiges (1860) revista por Chambers foi publicada

praticamente no mesmo ano do Origin of species (1859) de Darwin e sua

recepção não provocou tanta discussão quanto a de 1844. Um estudo desta

edição merece ser feito para verificar quais foram as modificações que Chambers

realizou e por que razão não foram muito discutidas.

241 Darwin na quarta edição do Origin of species publicou um texto no qual analisou algumas

concepções evolutivas precedentes às suas. Entre elas, Darwin mencionou o Vestiges, que para

ele foi importante porque “despertou a atenção para o assunto [evolução], combateu os

preconceitos existentes e preparou o terreno para a aceitação de outros pontos de vistas análogos”

[Charles Darwin, Origin of species (London: John Murray, 1866), pp. xvi-xvii.

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