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LUGARES (NO) COMUNS NAS EPOPEIAS: CONSIDERAES GERAIS SOBRELUGARES (NO) COMUNS NAS EPOPEIAS: CONSIDERAES GERAIS SOBRE AS PRINCIPAIS OBRAS PICAS BRASILEIRASAS PRINCIPAIS OBRAS PICAS BRASILEIRAS
Marcela Vernica da Silva
(Doutoranda UNESP)
RESUMORESUMO: Como o prprio ttulo indica, pretendo, na presente comunicao, apontar algumas caractersticas comuns no gnero pico para, em seguida, estender esse assunto ao tratar das poesias picas brasileiras do sculo XVIII. Assim, tomarei como corpus trs obras representativas desse momento, a saber, O Uraguai (1769) de Jos Baslio da Gama, Vila Rica (1773) de Cludio Manuel da Costa e O Caramuru (1781) de Frei Jos de Santa Rita Duro. Essas trs produes possuem pontos de semelhana pela escolha do gnero, pela associao de sua escrita ao modelo retrico e potico, pela escolha de um heri portugus e, em partes, pela caracterizao dada ao habitante indgena e a elementos da cultura brasileira. A necessidade de adaptar a poesia aos tempos atuais (de produo) e ao cenrio brasileiro fez com que a prpria construo pica se modificasse, ganhando nuances diferentes do modelo clssico e suscitando discusses sobre a filiao dessas obras ao gnero em questo.
PALAVRAS-CHAVEPALAVRAS-CHAVE: Epopeia; O Uraguai; O Caramuru; Vila Rica.
IIntroduontroduo
A epopeia at meados do sculo XX tinha forma e assunto restritos,
entendida como a forma maravilhosa que os povos jovens davam histria
(ETIEMBLE apud CHAVES, 2000, p.49). De acordo com Chaves (2000), atualmente,
esse gnero reconhecido pela diversidade de suas formas histricas. Se aceita,
deste modo, que existam epopeias criadas nos primrdios da histria de um povo e
epopeias tardias, de criao oral e popular, eruditas e individuais, religiosas e
mitolgicas, epopeias cujas histrias baseiam-se em lendas e outras que partem de
acontecimentos histricos ou que inventam aventuras romanescas:
Que a ao seja simples ou complexa; que ela se estenda por um ms ou por um ano, ou que dure mais tempo; que a cena seja fixada para uma direo, como na Ilada, que os heris viagem de mar em mar, como na Odissia, que seus heris sejam desafortunados, furiosos como Aquiles, ou piedosos como Enias; que haja um personagem principal ou vrios; que a ao se passe na terra ou no mar; sobre a chegada Africa, como nOs Lusadas, na Amrica, como a Araucana; no Cu, no Inferno, sobre os limites de nosso mundo, como nO Paraso de Milton; isto no importa: o poema ser sempre um poema pico, um poema herico, a menos que algum encontre um novo ttulo proporcional ao se mrito. (CHAVES, 2000, p.50)
Tal concepo demonstra a necessidade de uma reviso sobre a noo de
pureza de gneros. Nenhum gnero literrio encontra-se em estado puro. Essa ideia
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foi um engano da esttica clssica. em decorrncia da predominncia de um gnero
sobre o outro que se designa pertencer ao lrico, pico ou dramtico. (STAIGER
apud DONOFRIO, 2004, p.13). Assim, interessante pensarmos na vertente
designada apolnea,1 por Nietzche, no como um momento homogneo, acabado,
sem insero de caracteres novos, pois a epopeia brasileira j demonstra seus traos
no comuns e no clssicos.
Como a explanao acima indica uma viso atual sobre a diviso e
caracterizao dos gneros importante reconhecer que no sculo XVIII esta
concepo no estava formada na mentalidade dos poetas. Ainda segundo Chaves
(2000):
O reconhecimento da historicidade do conceito e prtica da poesia pica impe a prvia percepo do que o sculo XVIII entendia por epopeia, bem como o conhecimento das caractersticas particulares que ento apresentava. [...] no grande perodo do classicismo moderno, em que se insere a potica setecentista, os fundamentos da poesia pica so basicamente extrados da fenomenologia da epopeia greco-latina, em especial a de modelo homrico, julgada a forma pica por excelncia. [...] radicam-se na viso de Homero, como poeta primevo e autntico e no entendimento da sua epopeia como a forma mais nobre e perfeita de poesia, o posicionamento da pica no topo da hierarquia literria e sua definio como poesia inicial e como imagem global do universo, ou melhor, a ideia da constituio arcaica do gnero, assente no funcionamento do esprito primitivo, essencialmente mitolgico e dominado por histrias sagradas, e a de seu carter enciclopdico, de sntese e de crenas, conhecimentos e valores de um povo. (CHAVES, 2000, p.51)
Assim, as epopeias, para serem reconhecidas como tal deveriam ser
compostas de acordo com os padres antigos, correndo o risco de ferir o decoro, caso
no o fizessem.
Aps a publicao de Os Lusadas, o modelo camoniano passou a ser objeto
de imitao e mutaes por poetas brasileiros, entre outros, pois o poema conseguiu
reunir os elementos comuns do gnero sem colocar de lado as mudanas ocorridas
aps o Renascimento, principalmente no campo da religio e da transformao dos
deuses pagos em recursos de ornato do texto. Tais mudanas tambm foram
absorvidas pelos poetas brasileiros do sculo XVIII, que buscavam a filiao completa
ao gnero, mas diante de questes religiosas, patriticas e at mesmo culturais no
poderiam absorver por completo os elementos da poesia antiga. Essa emulao,
1 No que tange literatura ou artes em geral podemos designar como apolneas as manifestaes que remetem ordem, prudncia, exatido e harmonia e de dionisacas as manifestaes relacionadas ao desmedido, ao caos e a selvageria. Em termos gerais, os termos relacionam-se com os mitos gregos de Apolo e Dionsio.
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entretanto, redundou em crticas a tais poetas e na no filiao de suas obras ao
gnero pico por alguns receptores das obras e tericos posteriores.
Entre os sculos XVI e XVIII houve uma proliferao de edies, tradues e
invenes de picos no panorama hispano-luso-colonial. Tal fase foi denominada
Siglo de Oro e pautava-se nas determinaes das artes retricas e poticas e
procuravam mold-las (as produes) segundo as especificaes do gnero. Entre os
picos considerados como modelo desta fase esto Os Lusadas de Cames, A
Eneida de Virglio, a Ulissia de Gabriel Pereira de Castro, a Farslia de Lucano, La
Henriade de Voltaire e a Jerusalm Libertada de Tasso, alm das obras histricas
como a Monarchia Indiana der Juan de Torquemada, a Historia de la conquista de
Mexico, de Antonio de Solis e Vila Rica de Cludio Manuel da Costa etc.
So, segundo Highet (1978), aspectos da poesia pica do sculo XVIII o
recurso mitologia e a assuntos greco-romanos, a manuteno da estrutura da poesia
antiga, a concepo da histria das naes europeias modernas como continuao da
dos gregos e romanos, a descrio da natureza e dos eventos em termos clssicos, a
imitao ou adaptao dos episdios das epopeias antigas, a evocao dos mortos,
profecias, o conclio de deuses, o catlogo de heris, a narrao de aventuras
extraordinrias e de grandiosas cenas de multido, a invocao s musas e a outras
divindades, o emprego de smiles e comparaes de Homero, Virglio e outros autores
da Antiguidade, a introduo de novas palavras e tipos de frases modelados no latim e
no grego.
O autor divide as epopeias renascentistas em quatro grupos: epopeias de
imitao direta da pica greco-latina (como exemplo, cita Franciada); epopeias de
aventuras heroicas contemporneas escritas moda antiga (como Os Lusadas);
epopeias romanescas de cavaleiros medievais (como, por exemplo, Orlando Furioso)
e epopeias crists de modelo clssico (como O Paraso Perdido).
Houve tambm no sculo XVIII, em decorrncia da volta ao clssico, uma
adeso potica horaciana, que apesar de seguir a de Aristteles possua suas
especificidades. Assim, tal potica foi a mais utilizada pelos neoclssicos. Para
Horcio, a poesia pica deveria ter como matria assunto srio e til e deveria ser
composta a partir dos preceitos da unidade e simplicidade, da fixao do estilo, da
delimitao do assunto, do nicio, o qual deveria ser in medias res, da diviso das
partes e, por fim, deveria existir a necessidade de coerncia e respeito pelos aspectos
histricos e tradicionais na composio de personagens de fico, assim como a
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concepo da poesia como pintura e como entrelaamento de fico (criao) e
verdade.
Uma das maiores autoridades, no que diz respeito teoria da pica
setecentista, Voltaire. Segundo Chaves (2000),
[...] o criador de Candide mostra-se adepto da liberdade e com um gosto mais atual. Insurgindo-se contra a ligao que os modernos estabelecem entre a literatura e as cincias, isto , entre o domnio da imaginao e dos conhecimentos positivos, filosficos e morais, sustenta que a poesia se funda no sentimento e no na razo e, portanto, que a verdade e excelncia poticas variam no tempo e espao. Assim, considera falsas e inteis a maior parte das regras, aceita apenas os princpios baseados na natureza humana e no bom gosto, mostra certa dificuldade em aceitar o maravilhoso; inclina-se para os assuntos histricos de carter patritico. Ao mesmo tempo, adota as noes clssicas de simplicidade e desenvolvimento lgico e gradual da ao, em funo das quais insiste no princpio de que os episdios no devem destruir a unidade do assunto, acata a frmula virgiliana do incio in medias res como mais adequada, tanto para a concentrao e dramaticidade da ao como para assegurar o interesse do leitor, e subordina a verdade histrica aos interesses estruturais, no hesitando em inventar, em alterar ou suprimir fatos para salvaguardar a conciso e coerncia poticas. (CHAVES, 2000, p.60)
Voltaire em sua obra La Henriade coloca em prtica sua teoria de crtico e,
tanto sua obra potica como a teoria a respeito da composio dos poemas picos de
seu tempo, sistematiza para seus leitores alguns pontos at ento conflitantes e
sustenta teoricamente a produo dos poetas setecentistas.
As obras O Uraguai (1769), Vila Rica (1773) e Caramuru (1781) possuem
pontos de semelhana pela escolha do gnero, pela associao de sua escrita ao
modelo retrico e potico, pela escolha de um heri portugus e, em partes, pela
caracterizao dada ao habitante indgena e a elementos da cultura brasileira. Castello
(1999) as considera uma trilogia dos picos brasileiros do sculo XVIII. Para o autor as
trs obras apresentam-se sob formas tradicionais e transformadas, e sob a presena
do modelo camoniano, mas inteiramente voltados para uma temtica representativa
da histria do Brasil Colnia (CASTELLO, 2004, p.118.).
O Uraguai, de Baslio da Gama, considerada a primeira epopeia nos moldes
clssicos em lngua portuguesa sobre fatos acontecidos no Brasil. Como j foi
mencionado anteriormente, a narrao atribui a responsabilidade da guerra
exclusivamente aos jesutas, cujo motivo foi a determinao do Tratado de Madri
(1750) para que os Sete Povos das Misses, liderados por jesutas espanhis,
deixassem as terras do Rio Grande do Sul (pertencentes aos portugueses) e fossem
para o Uruguai (terras pertencentes aos espanhis), onde estavam instalados ndios
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liderados por jesutas portugueses, ou seja, o tratado ordenava a troca, ficando os
jesutas espanhis em terras espanholas e os portugueses em terras portuguesas.
Essa ordem no agradou os jesutas e os ndios que, assim, iniciaram uma guerra em
que as tropas dos portugueses e espanhis liquidaram os povos indgenas.
A matria foi escolhida por ser de certa projeo na histria nacional, apesar
de poder ser contestada quanto grandiosidade. Porm, quanto forma, o poema
possui dimenses para ser associado ao gnero, pois possui 1377 versos distribudos
em cinco cantos, ou seja, trata-se de um poema mediano. J no que respeita ao tema,
pode-se dizer que corresponde a um dos topos mais antigos da tradio pica, que o
tema do guerreiro que remonta a Homero. Quanto aos componentes da epopeia
clssica, O Uraguai apresenta a proposio, a invocao, inicia-se in medias res,
possui retrospeco, prospeco e eplogo.
As inovaes que quebram a estrutura dos poemas picos, e que foram
motivo de crticas na poca de sua primeira circulao, posteriormente foram
consideradas qualidades do poeta, que, exercendo sua liberdade criadora, conseguiu
escrever uma obra bem estruturada e com elegncia potica. Um dos fatores que,
segundo Chaves (2000), fazem com que a obra fuja tradio o fato do exrdio
preceder a invocao e a proposio na cena:
Fumo ainda nas desertas praiasLagos de sangue tpidos, e impuros,Em que ondeo cadveres despidos,Pasto de corvos. Dura inda nos valesO rouco som da irada artilheria. (CHAVES, 2000, p.75)
Tal antecipao instiga o leitor a lanar-se em uma batalha e a experimentar
sentimentos de compaixo s vtimas e repulsa pelas atrocidades da guerra. Aps
esse procedimento, a narrativa assume novamente caractersticas clssicas, inserindo
a invocao s Musas, cujo papel honrar o heri pico, ou seja, Gomes Freire de
Andrade, general vencedor da batalha.
Ao atribuir o herosmo ao general Gomes Freire de Andrade, o autor de O
Uraguai no poderia desconsiderar a fora blica de Portugal e da Espanha diante dos
ndios, que lutavam com armamentos rsticos. Na antiguidade clssica os heris
lutavam com seus armamentos primitivos e, desta vez, o heri, tendo frente um
exrcito blico, lutou contra os armamentos rsticos dos ndios, considerados povo
rude:
Musa, honremos o Heroe, que o povo rudeSubjugou do Uraguay, e no seu sangueDos decretos reaes lavou a affronta
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Ai tanto custas, ambio de imprio! (Id., Ib., p.75)
possvel, a partir deste trecho, perceber as mudanas que apareciam diante
do poeta que tinha que atribuir herosmo a um personagem to diferente do ideal
antigo, cuja ao hoje pode ser inclusive considerada covarde. Baslio da Gama
conseguiu mostrar esse embate, delineando seu heri com caractersticas humanas,
as quais se baseiam no cumprimento das ordens recebidas. Tambm deixa marcada a
postura corajosa dos ndios em episdios como o da sua incurso noturna ao
acampamento do exrcito portugus, concedendo certo herosmo a esses
personagens tambm.
Outro ponto interessante em O Uraguai a motivao do Heri que no
pretende a fama eterna, mas sim a obteno de benefcios para a sociedade que o
general representa. J a sequncia de fatos na narrativa que atribuem aos jesutas o
papel de viles tambm no aparece gratuitamente no poema: relaciona-se com o
apoio que Baslio da Gama dava ao conde de Oeiras, futuro Marqus de Pombal, que
via os religiosos como empecilhos sua ao iluminista na colnia, ou seja, o poema
no possui apenas finalidade esttica, mas tambm instrutiva e tambm serve para
demonstrar o vnculo poltico do poeta.
importante observar outro tema comum poesia pica clssica a
interveno dos deuses que neste momento vinculada natureza divinizada.
Assim, tem-se a ao do ptrio Rio, aliado dos ndios, pois em alguns episdios,
suas guas acalmam-se para a passagem de Cacambo e Cep.
Outro fato merecedor de destaque por romper com o tradicional o fato de
em seu texto no existir a atuao no poema do plano mitolgico ou cristo. J o
sobrenatural, considerado como plano infernal na narrativa, ocorre poucas vezes,
como, por exemplo, na apario do espectro de Cep a Cacambo. Interessante notar
que a possibilidade de contato com os mortos na epopeia j pode ser considerado
pressuposto da origem semidivina de um heri, mas neste momento no o heri que
detm esse sinal e sim o ndio. Tambm, como substituio do orculo, to comum na
epopeia clssica, quem detm esse poder de viso futura a ndia Lindia (a favor
dos ndios) e as feitiarias so atribudas Tanajura. Assim, interessante a inverso
de papis feita pelo poeta, que de modo sutil, provoca a reflexo acerca do herosmo
na epopeia.
A obra Vila Rica, de Cludio Manuel da Costa, segundo as notas do autor,
recebe esse ttulo, pois se trata de um poema de louvor fundao da capital da
cidade mineira, transformada de arraial em vila, e assim chamada Vila Rica de
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Albuquerque (hoje conhecida como Ouro Preto) e fundada no dia 8 de outubro de
1711. A fundao ocorreu quando o Governador Antnio de Albuquerque Coelho de
Carvalho fez uma reunio, contando com a participao de Manoel Pegado Serpa
como secretrio, na qual elegeu vereadores e juzes que tomaram posse no dia 7 de
julho de 1710.
A narrao do poema tem como elemento principal a viagem histrica do
governador Antonio Albuquerque s Minas Gerais para pacificar a regio que
vivenciava a chamada Guerra dos Emboabas, confronto travado de 1707 a 1709,
entre os desbravadores vicentinos (bandeiras paulistas) e um grupo formado por
portugueses e outros imigrantes do Brasil, apelidados de emboadas e liderados por
Manuel Nunes Viana. Tal fato, na ocasio em que foi escrito, correspodia a um
acontecimento relativamente recente e, portanto, no constituia matria aconselhvel
para a composio de uma epopeia, segundo os parmetros de composio clssicos.
O autor dedica sua obra ao Senhor Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, que era um dos nomes mais importantes do cenrio poltico da formao de
Vila Rica. Alm da Dedicatria, o poema apresenta um Prlogo, com argumentaes
do autor sobre o gnero e o assunto de seu poema, alm de um documento extenso
denominado Fundamento Histrico, espcie de dissertao histrica que permite a
contextualizao do leitor sobre o assunto do poema. Trata-se, de certa forma, de
localizar o poema em um terreno histrico, e, por isso, mais do que literrio, o poema e
seus anexos podem ser considerados documentao importante neste contexto do
Brasil Setecentista.
Vila Rica compe-se de 10 cantos em versos decasslabos. Sua proposio
se encontra nas quatro primeiras estrofes e nela o autor exalta a fundao da cidade
de Vila Rica e a memria de Antnio de Albuquerque Coelho de Carvalho. J nestas
estrofes se detecta a importncia que o autor d a este personagem, que pode ser
associado a um heri pico, caracterstica que se assemelha, como foi dito, aos
poemas picos de Baslio da Gama e Santa Rita Duro.
A invocao j adquire contornos especficos ao ser dirigida a um rio da
regio, o Ribeiro do Carmo, ou seja, a inovao se d no sentido desta invocao
no ser associada s musas ou a alguma outra entidade, mas sim a um elemento da
natureza local, no caso um rio, Ribeiro do Carmo, j personificado nA Fbula do
Ribeiro do Carmo escrita anteriormente e emulada pelo poeta em Vila Rica. A
dedicatria, por sua vez, como em outros poemas da poca, direcionada a um
governante ou nobre portugus e, no caso do poema claudiano, esta ofertada ao
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Conde de Bobadela. A obra tambm adquire especificidade no que diz respeito ao
modelo seguido, ou seja, estrutura pica, que possui contornos de enredo tornando
a obra labirntica, assim como eram as matas percorridas pelos desbravadores e
depois pelo governador Albuquerque, heri da ao.
H, durante todo o texto, as presenas mticas de personagens cujas
caractersticas foram tiradas do original grego, porm com traos e nomes
provenientes da cultura indgena. o caso, por exemplo, de Itamonte e Eulina (verso
da sereia indgena Ipupiara). Esses elementos, tambm utilizados nO Uraguai, so
mostras de que a epopeia se adapta a novas realidades e a novas culturas. Percebe-
se que, apesar de no poema de Cludio Manuel da Costa os personagens terem
influncias de picos europeus, elas tambm necessitam de suas particularizaes.
Assim, percebe-se que o poeta recorre a elementos folclricos, como, por exemplo, o
personagem curupira, para a composio do maravilhoso.
A narrativa composta por uma breve apresentao do Brasil Colonial, que,
posteriormente, dar enfoque narrao do descobrimento das Minas buscando
levantar detalhes desta explorao. As aes se desenvolvem de forma paralela no
poema, na qual podemos focalizar a importncia dada ao personagem Albuquerque e
a passagem amorosa entre a ndia Aurora e o colono Garcia Rodrigues Pais (um
canto lrico na epopeia, imitao de outros poemas do gnero).
Por epopeia entende-se um conjunto de feitos heroicos produzidos por uma
nao, cuja narrao mesclada entre personagens histricos e mitolgicos e feita em
versos heroicos. Por esta concepo e pela diviso a que o poema obedece, Vila Rica
insere-se na tradio pica, porm, alm dessas caractersticas, existem outras que
permeiam este gnero. Massaud Moiss afirma que:
O poeta pico se caracteriza pela dilatao do eu ao infinito de suas possibilidades, a ponto de romper suas prprias barreiras e invadir o plano do no-eu. Antes enclausurado [...] o eu agora se abre, se expande at ilimitadas fronteiras, a fim de abarcar inteiramente o mundo exterior [...]. O mundo do poeta, que antes se circunscrevia a seu microcosmos subjetivo, agora deve ampliar-se at se tornar a totalidade da viso do mundo nacional, e universal. (MOISS, 1975, p.69)
A partir desta definio pode-se compreender melhor a dimenso do conceito
de pico e, Cludio Manuel da Costa, apesar de organizar seu texto nesses moldes,
no confere a ele um carter grandiloquente o suficiente, por no apresentar a
dilatao necessria a este gnero. Assim, sua obra pode ser considerada mais
rapsdica que propriamente pica, ou seja, composta de fragmentos de cantos
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picos tradicionais ou populares que no possui dimenses para ser considerada uma
epopeia. Assim, para finalizar essa questo, o prprio Cludio Manuel da Costa, em
seu Prlogo, nos explica:
Leitor, [...] no meu intento sustentar que eu tenho produzido ao mundo um poema com o caracter de pico, sei que esta felicidade no conseguiram at o presente aqueles homens, a quem a fama celebra laureados na Grcia, na Itlia, em Inglaterra, em Frana, e nas Hespanhas. Todos se expozeram a censura dos crticos e todos so argidos de algum erro ou defeito... (RIBEIRO, 1903, p.149)
De acordo com Erich Auerbach, a antiga crtica esttica dominante at o fim
do sculo XVIII:
[...] se perguntava que forma uma obra de arte de um determinado gnero, uma tragdia, uma comdia, uma poesia pica ou lrica, devia ter para ser perfeitamente bela; tendia a estabelecer para cada gnero, um modelo imutvel, e julgava as obras segundo o grau com que se aproximavam desse modelo; procurava fornecer preceitos e regras para a poesia e a para a arte da prosa (Potica, Retrica) e encarava a arte literria como a imitao de um modelo modelo concreto se existisse uma obra ou um grupo de obras (a Antiguidade) consideradas perfeitas ou modelo imaginado, se a crtica platonizante exigisse a imitao da idia do belo, que um dos atributos da divindade. (AUERBACH, 1972, p.27)
Se a ordem que vigorava na produo artstica desta poca alimentava a
ideia de obra perfeita, como aquela a que a Potica e a Retrica estabeleciam nada
mais natural que o desejo dos autores de produzir seus escritos, de modo a serem
apreciados segundo esse gosto. Cludio Manuel da Costa no fugia regra: seus
textos, poticos ou no, levavam em considerao os ditames, que podem ser
vislumbrados em Vila Rica e nas demais composies que acompanham esse poema
(Carta Dedicatria, Prlogo e Fundamento Histrico, este ltimo, pode, inclusive, ser
considerado um texto em prosa parte).
Um exemplo da presena da Retrica, na Carta Dedicatria do poema Vila
Rica, est ntido j no tratamento extremamente formal e no tom laudatrio com que
Cludio Manuel da Costa dedica sua obra autoridade local. Ele se repete em outros
textos, porm ainda mais ntido na prpria composio de Vila Rica, com a
dedicao de sua obra ao Conde de Bobadela:
E vs honra de Ptria, gloria bellaDa casa e do solar de Bobadella... (RIBEIRO, 1903, p.181)
Essas caractersticas tambm podem ser percebidas com a transformao de
Albuquerque em heri:
Trajando as galas de maior decencia
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Nos paos do senado o here entrava. (RIBEIRO, 1903, p.258)
Encontra-se tambm dentro da Retrica o chamado tpico da falsa modstia,
caracterstica negativa que o autor tenta apontar na sua obra, com o intuito de ser
modesto, o Prlogo de Vila Rica traz um exemplo desta caracterstica: trata-se da
no inteno em considerar sua obra uma Epopeia (ver exemplo na quinta citao).
O uso das metforas aparece colocando tona as riquezas de Minas Gerais,
o que tambm pode ser considerada caracterstica presente no gnero pico:
Eulina, que nas graas no recaCompetir c`o a deidade que o mar cria,De transparente gara se vestia,Toda de flores de ouro matisada:A cabea de pedras tem tocada,Deixando retratarem-se as estrellasEm seus olhos; to ricas, como bellasMuitas nynfas em roda a esto cercando,Nas lindas mos nevadas sustentandoOs thesouros, que occulta e guarda a terra. (RIBEIRO, 1903, p.236)
A partir dos dados apontados, possvel concluir que o texto Vila Rica de
Cludio Manuel da Costa, por ter sido composto de acordo com as prticas de escrita
daquela poca, ou seja, regras do bem falar propostas pelas Retricas antigas, e por
apresentar tendncia a essa dualidade espacial Europa x Brasil, expressa todas essas
caractersticas.
O espao, no poema dividido pelo espao histrico e pelo espao narrativo.
No primeiro, encontramos a situao do escritor diante destes dois pases, que tende
a um sentimento de inconstncia por parte do eu-lrico (encontra-se dividido em
relao ao espao que habita) e no segundo, a presena da Retrica e da Potica
como condutoras da organizao do texto regido pelas normas vigentes no perodo
histrico em questo.
Portanto, conclui-se que o espao um elemento muito importante na
composio de Vila Rica, e a prova disto est no prprio ttulo da obra, que faz
meno ao assunto referente formao da cidade, caracterstica comum aos
poemas picos, que procuram louvar heri, povo ou nao, inserindo no ttulo a
referncia ao tema a ser louvado.
O Caramuru, publicado em 1781, segundo Silva (1987) identifica-se com o
gnero pico pela articulao de elementos especficos como o verso, a estrofe, o
canto, proposio, invocao, episdio lrico etc, que revelam a inteno literria de
realizar esse gnero textual.
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Composto por dez cantos em oitava-rima, com a narrao dos feitos de Diogo
lvares Correa, que, vtima de um naufrgio, chega ao litoral brasileiro com alguns
companheiros e recebido por uma tribo de ndios antropfagos. Feito prisioneiro, o
heri recolhe entre os destroos da embarcao arma de fogo e munio. Ao ser
preparado para o sacrifcio, Diogo lvares dispara a arma de fogo causando espanto
nos ndios que no tinham conhecimento da existncia da plvora. Assim, o uso do
armamento conferiu a Diogo poder e admirao, uma vez que os ndios, maravilhados,
passaram a v-lo como divindade. A situao da narrao j indica um desafio a ser
superado pelo escritor pico do sculo XVIII: contar com o poder do armamento blico
movido plvora: objeto no existente no cenrio antigo e que poderia diminuir a
heroicidade de um personagem, uma vez que apenas sua fora fsica ou estratgia
no caberiam nessa nova realidade.
O poder garantiu o casamento de Diogo lvares com uma ndia chamada
Paraguau fazendo com que passasse a desempenhar papel de mediador nas
relaes entre colonizador e nativos, sendo denominado de Caramuru (homem trovo
em linguagem indgena). Deste modo, Diogo lvares, ser histrico, e Caramuru, ser
mtico, garantem ao personagem os elementos necessrios para a constituio de um
heri pico.
Por aliar o maravilhoso pago ao cristo, retomando a mitologia clssica e
destacando os valores religiosos do cristianismo, podemos inseri-lo no contexto da
epopeia camoniana.
Para dar credibilidade documental aos seus versos o poeta pauta-se nas
citaes, garantindo a veracidade das informaes, ao enveredar pela descrio da
terra, do clima e dos hbitos e costumes dos ndios, ao mesmo tempo em que se
prende a acontecimentos presumivelmente histricos, seguindo a tradio dos
primeiros cronistas do sculo XVI, e, ao mesmo tempo, aderindo ao esprito
racionalista da poca em que vive. Ao descrever a figura do ndio, com seus costumes
e tradies, acaba, contudo, perdendo de vista a objetividade pretendida, criando
caricaturas que habitam uma natureza paradisaca, encarnando heris inocentes ou
demonacos na relao com o branco conquistador.
Dentre as chamadas epopeias brasileiras, pode-se dizer que O Caramuru
utiliza com mais rigor as regras formais da epopeia. Segundo Silva (1987):
Caramuru uma epopia autntica, chega mesmo a superar as extrapolaes da matria pica que ameaam a qualificao pica do heri. Teoricamente identificado com o modelo pico renascentista, traz, todavia, devido a nova concepo literria, inovaes particulares que integram a epopia expresso literria d sculo
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XVIII. Embora alienando a brasilidade pela adoo da tica cultural do colonizador, conseqncia da opo pela ideologia do civilizado, alinha-se, ao lado de O Uraguai, na etapa inicial do percurso pico brasileiro, contribuindo para a afirmao da tradio pica. (SILVA, 1987, p.43)
ConclusoConcluso
A partir da breve leitura dos poemas O Uraguai, Vila Rica e Caramuru conclui-
se que a epopeia entre os sculos XV e XVIII evolui e modifica-se, assumindo
diferentes contornos, objetivando uma adequao ao cenrio contemporneo.
justamente essa adequao que dita o modus facendi dos poemas brasileiros, que,
apesar de buscarem uma pureza de gnero, esbarram em dificuldades quanto
caracterizao do heri pico, que, a partir de ento, passa a possuir outras
qualidades que no a fora fsica. Tem-se, por exemplo, no heri Baslio da Gama
suas qualidades ilustradas, em Albuquerque, suas atitudes pacifistas e em Diogo
lvares sua liderana (imposta pela arma de fogo).
Observa-se tambm nas trs obras supramencionadas a questo da
descrio da natureza, muitas vezes descrita como locus horrendus e da dificuldade
de estabelecimento de um plano mtico neste cenrio selvagem. Assim, percebe-se
em O Uraguai a motivao mtica a partir da personagem Tanajura, em Vila Rica, por
exemplo, a transposio da mitologia greco-latina para as personagens alegricas
Eulina e Itamonte, por exemplo, e no Caramuru a proximidade entre a personagem
Moema (que se atira nas guas por no suportar a perda de seu amado) e a figura
folclrica da Iara (sereia).
Referncias bibliogrficasReferncias bibliogrficas
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