Manuelzão #49

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49 ano 11 dezembro de 2008 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Rios: enterrados vivos Semi-árido: riquezas mal aproveitadas Poluição difusa: quase ninguém quer ver Coisas Esquecidas

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algumas ilustrações + algumas fotos + diagramação

Transcript of Manuelzão #49

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49ano 11dezembro de 2008

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Rios:enterrados vivos

Semi-árido: riquezas mal aproveitadas

Poluição difusa:quase ninguém quer ver

Coisas Esquecidas

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Informativo do Projeto Manuelzão UFMG e de suas parcerias

institucionais e sociais pela revitalização da bacia hidrográfica

do Rio das Velhas.

CoordenaçãoGeral: Apolo Heringer [email protected] 2010 e NuVelhas: Thomaz da Matta MachadoBiomonitoramento: Marcos Callisto, Carlos Bernardo Mascarenhas e Paulo PompeuRecuperação vegetal: Maria Rita Muzzi e Nadja Horta de SáMobilização social e educação ambiental: Marcus Polignano e Rogério SepúlvedaComunicação Social: Elton AntunesPublicações: Eugênio Goulart e Letícia MalloyCentro de Informação e Documentação: Carolina Saliba

Redação e EdiçãoElton Antunes (MTb 4415 DRT/MG), Humberto Santos (MTb 12658 DRT/MG), Filipe Motta, Gabriella Hauber, Isabela Almeida, Juliana Afonso, Pâmilla Vilas Boas, Sâmia Bechelane, Stéphanie Bollmann e Taís Ahouagi

Diagramação e IlustraçãoBruna Araújo, Délio Faleiro, Filipe Alonso e Stephanie BoaventuraFoto capa: Stephanie BoaventuraProjeto gráfico: Atelier de Publicidade do curso de Comunicação Social da UFMG, sob a coordenação de Bruno Martins. Equipe: Délio Faleiro, Filipe Alonso, Renata Romeiro e Stephanie BoaventuraImpressão: Posigraf

É permitida a reprodução de matérias e artigos, desde que citados a fonte e o autor. Os artigos assinados não exprimem, necessariamente, a opinião dos editores da revista e do Projeto Manuelzão.

Universidade Federal de Minas GeraisDepartamento de Medicina Preventiva e Social Internato em Saúde ColetivaAvenida Alfredo Balena, 190, 8º andar / 813Belo Horizonte - MG CEP: 30130-100(31) 3409-9818 www.manuelzao.ufmg.br [email protected]

Parcerias e Patrocínio

colaboração

51 municípios da Bacia do Rio das Velhas

Prefeitura deBelo Horizonte

Comitê da Bacia do Rio São Francisco

Coisas esquecidas

11Rios enterrados

Preço da águaQuem vai fechar a conta

Meta 2010 Aberto para balanço

Tratamento de água Santo de casa...

FotografiaFlashes de um lugar esquecido

Internato rural1978, o ano em que saímos de casa

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#49. ano 11 . dezembro de 2008

Cemitério das águas

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leia outras poesias e desenhos produzidos pelos alunos da e.e. Pe. João de Santo antônio em nosso site. (www.manuelzao.ufmg.br)o Projeto manuelzão recebe cartas, músicas, poesias e mensagens eletrônicas de vários colaboradores. Nesta coluna, você confere trechos de algumas dessas correspondências. envie também sua contribuição. Participe da nossa revista! [email protected]

Lamento da Margem(...) outrora as águas barrentas cantavamno fluir da correnteza. e as cheias traziam as redes dos pescadores, as fogueiras, o alarido dos pássaros, os moleques, as brincadeiras de atirar pedras. era bom olhar os círculos concêntricos que as águas desenhavam na superfície do rio. outrora era bom. Hoje. Desastres... (...) os rios estão secando. as margens terão futuro?Lina Maria Lisboa da Silva, Academia Itajubense de Letras — Belo Horizonte , por e-mail

Cinzas, apenas cinzasCaí de uma árvore ainda semente,fui regada através das águas onde a chuva era abundante,(...) Fui sombra para pescadores do Rio das VelhasFui aconchego para casais de namorados, lazer para famílias nos finais de semanaSerrada pelo homem, separada em pedaços, (...) onde os gritos internos do meu cerno, sentindo nos balançosdas minhas verdes folhas caídas, sem vida e carregadas pelas águas mansas do Rio das Velhas,Cortada em pedaços para satisfazer o homem, virei carvão aqueci lareiras, churrasqueiras e fogões, hoje sou apenas cinzas, ainda, apenas cinzas.

Carlos Roberto P. Santos, Belo Horizonte, por e-mail

erramosa autoria da matéria “entrando pelo ralo”, edição 48, é de Jés-sica antunes, Daniel maia e Samuel andrade, não de Jessica Soares, Daniel maia e Samuel andrade, como nela aparece.

Lacunas

C a r t a a o l e i t o r m a n i f e s t a ç õ e s

Caro leitor,

o fio da meada desta edição são as lembranças. e não apenas aquelas de um tempo que não volta mais. É o caso de alguns córregos e ribeirões de Belo Horizonte, que sucumbiram ao progresso e ao asfalto. Como se lembrar deles, se hoje jazem há mais de sete palmos de nossa percepção? (p.11).

e se algo nem é percebido por todos, como se lembrar dele? a po-luição difusa está aí, mas muitos se esquecem dela (p.6). o ato de não lembrar pode lançar ao esquecimento coisas importantes que deveriam manter-se vivas no nosso cotidiano. Como o preço da água (p.4), os bastidores do seu tratamento (p.10) e as potencialidades do semi-árido brasileiro (p.20).

elas, as lembranças, também podem vir em flashes: fragmentadas, recortes do tempo ou fotografias. esses vãos constituem múltiplas histórias de um lugar sem memória (p.15). atenção médica? lembra disso? Ganhou força, e as ruas, com o Programa de Saúde da Família (p.16). o aniversário do internato em Saúde Coletiva (internato Rural) convida a rememorar a trajetória dos últimos 30 anos para planejar, para “lembrar” do futuro (p.18). outro que olha para seu percurso e traz suas recordações é Valter Vilela (p.23).

ah, quase esquecemos... o ano chega ao final e está na hora de ava-liar o trabalho feito e planejar 2009: o “balancete” da meta 2010 (p.8). Boa leitura e recordações.

PS: nossa fotógrafa realmente esqueceu as chaves na cadeira depois de fazer a foto da capa desta edição.

As coisas tangíveistornam-se insensíveis

à palma da mãoMemória - Carlos Drummond de Andrade

“Sabe-se disso há muito tempo, mas os governos sempre tentaram varrer

essa realidade para debaixo do tapete.”

SECRETáRIo ESTADUAL Do MEIo AMBIENTE DE São PAULo, Francisco Graziano, SoBRE A LISTA DoS

MAIoRES DESMATADoRES Do PAíS. 08/10 (VEJA)

“Eu não li a lista! Confiei no Ibama.”carlos Minc, MINISTRo Do MEIo AMBIENTE,

AMARELANDo, DEPoIS DE DIVULGAR UMA RELAção DoS MAIoRES DESMATADoRES Do PAíS, EM QUE o INCRA

APARECE CoMo CAMPEão. 08/10 (VEJA)

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(Vc x 0,01 + V

co x 0,02 + Kg

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Esse é o cálculo sobre a cobrança pelo uso da água do Velho Chico. Ele foi aprovado na última plená-

ria do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBH-SF) em reunião que aconteceu entre os dias 29 e 31 de outubro, em Aracaju, Sergipe. Essa discussão vem sendo feita desde 2006 e pretende estabelecer os valores para cobrança para a calha do rio – os valores para os afluentes serão decididos por seus comitês. o cálculo soma volume de água captado, volume con-sumido e volume de efluentes – normalmente, esgo-to – lançado no leito. Para cada metro cúbico de água captado por segundo (1m3 = 1.000 litros) se paga um centavo. Para cada m3 de água consumida, dois cen-tavos e para cada quilo (kg) de esgoto lançado, sete centavos. Por exemplo: uma empresa de saneamento que capte dez m3 de água por segundo e consuma sete, pagaria dez centavos de água captada, mais 14 pela água consumida. Ela ainda pagará sete centavos para cada kg de esgoto lançado.

Entre os objetivos da cobrança estão a arrecadação de recursos para aplicação nos planos de recursos hí-dricos das bacias, provocar no usuário a percepção de que a água é um bem econômico e o incentivo ao seu uso racional.

Segundo a especialista em recursos hídricos, Ma-rilene Ramos, professora da Fundação Getúlio Vargas, o instrumento deve levar em conta a qualidade, o uso da água na bacia e seu nível de escassez. “A cobrança deve incidir sobre captação e lançamento de efluentes. E para qualquer tipo de usuário – o doméstico, o setor de saneamento, o industrial, o setor agrícola, o elétri-co”, explica.

o cálculo é baseado nos possíveis valores para cada tipo de usuário e suas conseqüências financei-ras. A idéia é que ela não inviabilize nenhuma ativida-de. Existem variáveis que são incluídas no cálculo da cobrança de acordo com as especificidades de alguns usuários. No São Francisco, por exemplo, o preço a ser pago pela agricultura será dividido por 20, como forma de minimizar os impactos econômicos.

Cada maCaCo no seu galhoApesar das considerações às partes envolvidas, as

negociações estão longe do consenso. Parte do setor agrícola – atividade forte no Médio São Francisco – é contra a cobrança. “o setor não suporta mais um cus-to adicional”, argumenta o economista e presidente da Associação dos Irrigantes do Norte de Minas, orlando Machado. “Você vai cobrar um percentual de quem não está conseguindo pagar conta de energia?”, questiona. Para ele, os benefícios que o setor traz ao meio ambien-te, como a retenção da água da chuva no lençol através das plantações, compensariam o não pagamento.

Já a Associação dos Irrigantes da Bahia é favorável à cobrança, apesar das ressalvas. Segundo o diretor de Meio Ambiente da entidade, José Cisino Lopes, “a questão do valor é que ainda é discutível. Somos gran-des usuários de água. Qualquer centavo no metro cú-bico é muito dinheiro”.

Mas já não pagamos pela água? Hoje, o consumi-dor residencial paga pelo tratamento da água, não por seu uso. A previsão é que cada empresa de saneamen-to repasse os custos diretamente para o consumidor. Segundo o presidente do CBH-SF, Thomaz da Matta Machado, a média do aumento nas contas domésticas será de 80 centavos por mês. Contudo, as empresas de saneamento municipais, Sistemas Autônomos de água e Esgoto, acreditam que o peso da cobrança sobre elas é maior que sobre as empresas estaduais, como a Co-pasa. Durante a plenária ficou acordado que o preço será o mesmo para todas as empresas de saneamento.

outro forte grupo de usuários é a indústria. os re-presentantes da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais se colocam como favoráveis ao pro-cesso. “o próprio usuário participa da definição de quanto, como e onde vai aplicar. É diferente de uma compensação ambiental”, explica a consultora do ór-gão, Patrícia Boson. Segundo ela, a relação custo/be-nefício para o setor é vantajosa: com a perspectiva de investimentos em tratamento, algumas empresas não precisariam tratar a água antes de consumí-la.

A discussão sobre a cobrança pelo uso da água no Velho Chico envolve setores e interesses divergentes. E uma fórmula difícil de calcular

Filipe motta e Juliana aFonsoestudantes de Comunicação Social da uFmG

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No setor hidrelétrico já existe a cobrança, instituída com a criação da Agência Nacional de águas (ANA), em 2000, que recolhe o dinheiro. Porém, ela não retorna o valor integralmente para os comitês onde a cobrança foi feita. Foi aprovada, na plenária de Aracaju, uma de-liberação solicitando ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos que 7,5% desse recurso seja para a agência de bacia do São Francisco. A ANA argumenta que como o setor elétrico brasileiro é interligado, não se pode esta-belecer qual é a bacia de origem do recurso. “Você pode estar pagando em BH uma energia que vem da água de Itaipu”, exemplifica o especialista em recursos hídricos da ANA, Giordano Bruno de Carvalho. A ANA arrecada cerca de R$ 150 milhões por ano com essa cobrança, R$ 25 milhões só no rio São Francisco.

mais de umaE as águas da transposição do Velho Chico? o es-

tabelecimento do preço da água também traz para a roda esse debate. Thomaz da Matta Machado afirma que são duas as linhas de pensamento. Sem cobrá-la, o CBH fica com poucos recursos para se manter financei-ramente. Em compensação, a cobrança faria com que o Comitê ficasse dependente da transposição e, princi-palmente, a legitimasse.

“o plano diretor da bacia do rio São Francisco defi-ne que só pode haver transposição para abastecimento humano quando comprovada a escassez de água”, lem-bra Thomaz. Na fórmula de cobrança da transposição foi criada uma variável denominada “prioridade”. No caso

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de transposição para o consumo humano a variável é 1 ou menor que 1. Para outros casos, como a agricultura e a indústria, a variável é maior que 1. “A polêmica fica na variável da transposição”, relata Thomaz. Um raciocí-nio é o de que transposição não tem que ser incentivada, tem que cobrar mais. outro, é de que, quando há escas-sez, não se deve pagar a mais.

E a discussão veio em dobro. Aracaju, capital de Sergipe, também é abastecida por transposição do São Francisco. Thomaz assegura que a transposição de Ara-caju irá seguir as mesmas diretrizes.

outra peça do quebra-Cabeçao órgão responsável pela gestão dos recursos finan-

ceiros captados com a cobrança é a agência de bacia. Elas são órgãos públicos executivos ligados ao comitê. outra possibilidade são as chamadas entidades equi-paradas, associações sem fins lucrativos que exercem funções de agência. As cobranças de bacias federais são feitas pela ANA e as estaduais pelos órgãos de gestão de recursos hídricos de cada estado. Em Minas, a função cabe ao Instituto Mineiro de Gestão das águas. Esses ór-gãos repassam o valor arrecadado para as agências, que o aplicam de acordo com as decisões dos comitês.

Se não tem agência, porque definir um preço? A dis-cussão sobre a agência ainda precisa ser solucionada para a implementação da cobrança na bacia do rio São Francisco. A instalação desse órgão envolve três posi-ções distintas. Uma delas é a contratação de uma entida-de que possa atuar como agência, idéia encabeçada pela ANA. outra refere-se à criação de uma nova agência. Há também a proposta de ampliação da agência da bacia do Rio das Velhas, a Peixe-Vivo, para a região da calha do São Francisco. os comitês do Alto São Francisco, do rio Pará e do rio Paraobepa já manifestaram interesse.

A situação na bacia do Rio das Velhas é praticamente inversa à do São Francisco: tem agência, mas não tem preço. o presidente do CBH Velhas, Rogério Sepúlveda, afirma que o estudo sobre a cobrança na região ainda será realizado. “Há previsão para o início da cobrança [do Velhas] no segundo semestre de 2009”, diz.

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manuelzão Dezembro de 2008

C a m i n h o s d o m u n d o

Mais sujo do que pareceFontes de poluição estão distribuídas por toda a bacia. A chuva aciona o gatilho para que cheguem à agua

gabriella hauber e taís ahouagiestudantes de Comunicação Social da uFmG

Uma cidade em que não há lançamento de esgoto nos cursos d’água. Ele é recolhido e levado às es-

tações de tratamento. As águas dessa cidade são lim-pas? Provavelmente não. Há outros tipos de poluentes que chegam aos cursos d’água junto com a chuva. A sujeira que fica acumulada nos telhados, nas ruas, nas calçadas, nos pátios, nos estacionamentos, nas árvo-res, a graxa e a gasolina dos carros, o lixo que não é recolhido e até a fumaça das fábricas e automóveis são exemplos do que podemos chamar de poluição difusa.

Como o próprio nome indica, é uma poluição que está espalhada ao longo de uma bacia, sem que se consiga determinar exatamente de onde ela vem. “Não tem um único ou alguns pontos facilmente identificá-veis de lançamento, como no caso de esgotos domés-ticos ou industriais. Quando ocorre uma precipitação, as águas do escoamento vão conduzir essas fontes de poluição aos cursos d’água”, explica o professor de Engenharia Hidráulica da UFMG, Nilo Nascimento. Se-gundo ele, se considerarmos o período de um ano, a carga difusa é bem menor do que a de esgoto. Porém, durante as chuvas, a poluição difusa pode ser signifi-cativamente maior, já que é levada em grande volume para os cursos d’água.

Apesar de seus impactos serem conhecidos, as iniciativas de medição e controle do problema ainda são tímidas. o Instituto Mineiro de Gestão das águas (Igam) realiza o monitoramento da qualidade da água por meio do Programa águas de Minas. Entretanto, segundo a química do Igam, Wanderlene Nacif, as pesquisas não se aprofundam sobre as fontes dessa poluição, pois o foco é nos cursos d’água em si. Esse monitoramento não consegue distinguir, por exemplo, o quanto da poluição é proveniente de fontes difusas e de fontes pontuais, como o esgoto.

poluição desgovernadaNão há, no poder público, especificação de quem

deva se responsabilizar pelos resíduos de fontes difu-sas. No caso das empresas de saneamento, por exem-plo, elas se responsabilizam apenas pelos esgotos. “Concentra-se muito os esforços para tratar o esgoto achando que só tratá-lo vai resolver o problema [de poluição] dos corpos hídricos”, critica o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge Henrique Prodanoff. De acordo com o professor Nilo Nascimento, o que o poder público pode fazer é elaborar uma legislação que promova a redu-

nas trincheiras de infiltração, a água

que escoa pelo asfalto é retida e filtrada por

material geotêxtil e por uma camada de

brita. Periodicamente, os poluentes devem ser

removidos.

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ção dos impactos da poluição, estipulando, por exemplo, a vazão limite que será lançada pelo escoamento das águas da chuva na rede pública de drenagem. outras medidas são de ordem tecnológica, como a implementação de obras que evitem que essa poluição chegue aos cursos d’água.

No Brasil, as ações de controle da poluição difusa ainda se concentram no campo da pes-quisa. Em Belo Horizonte, há o projeto Switch, Gestão Sustentável das águas para a Saúde das Cidades do Futuro, desenvolvido sob a co-ordenação da organização das Nações Unidas. Dentro desse projeto, a UFMG, em cooperação com a Prefeitura de Belo Horizonte, controla o escoamento de alguns cursos d’água, como o córrego Vilarinho, em Venda Nova. “Nós esta-mos desenvolvendo um projeto visando adap-tar a área para o controle de poluição difusa. Hoje, ela funciona mais para o controle de es-coamento” (ver box), afirma o professor Nilo. Segundo ele, o projeto Switch está tentando fazer um monitoramento mais detalhado, co-letando águas em pontos de concentração de sedimentos, como em bocas de lobo, para fa-zer a análise de cargas difusas.

Água Filtrada“São duas formas principais de abater a

poluição difusa: medidas de planejamento e de educação ambiental ou intervenções, com obras de engenharia civil”, diz Prodanoff. Fa-

lar de planejamento e educação ambiental vai desde o trabalho de limpeza urbana da Prefei-tura até medidas que todo cidadão sabe que deveria tomar: não jogar lixo no chão e reco-lher as fezes dos animais, por exemplo.

Também existem técnicas de engenharia que evitam que a poluição difusa chegue aos cursos d’água. Bacias de detenção e trinchei-ras de infiltração são exemplos disso. “Sim-plesmente pelo fato de reter a água em um reservatório, o material que estava sendo transportado decanta para o fundo”, expli-ca Prodanoff. De acordo com ele, após essa água ser liberada, recolhe-se o sedimento acumulado, que deve ser levado para o ater-ro sanitário.

Em Belo Horizonte, há oito reservatórios de contenção de cheias: Lagoa da Pampulha, Barragem Santa Lúcia, Avenidas Liége e Vilari-nho (Venda Nova), duas bacias na Av. Cardoso (Aglomerado da Serra), o Parque Nossa Se-nhora da Piedade e o Parque 1° de Maio. Esses reservatórios foram construídos pela Prefeitu-ra, a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) faz a manutenção.

No caso das trincheiras, assim como no uso de pavimento poroso e aumento de áreas permeáveis, o princípio é a infiltração. Jorge Prodanoff explica que o solo funciona como um filtro natural. Ele retém a poluição, a água chega ao lençol freático e, após algum tempo, pode ser reutilizada.

Não é só do meio urbano que vem a poluição difusa. A utilização de inseticidas, agrotóxicos e fertilizantes na agropecuária e as fezes dos animais também são poluentes difusos que alteram a qualidade dos cursos d’água. Para o professor do departamento de Carto-grafia do Instituto de Geociências da UFMG, Philippe Maillard, um dos maiores problemas é que o governo, muitas vezes, incentiva a utilização desses produtos tó-xicos.

Da mesma forma como no meio urbano, na zona ru-ral a poluição difusa pode ser controlada de duas ma-neiras: na própria fonte ou evitando-se que chegue aos rios. Possíveis soluções seriam desenvolver produtos

menos tóxicos e adotar medidas na própria prática agrícola para reduzir o escoamento superficial. “De-pendendo do sentido em que o fazendeiro vai arar seu pasto, incentiva ou diminui o escoamento. Ele pode também escolher épocas sem chuva para despejar os agrotóxicos”, exemplifica Philippe.

Uma das barreiras para evitar que a poluição di-fusa chegue aos rios é a própria vegetação. As matas ciliares, veredas e florestas ajudam na contenção dos produtos tóxicos, mas são ainda mais eficientes no controle de coliformes fecais. “o gado defeca perto do rio, se tiver uma faixa pequena de mata ciliar onde o gado não entra resolveria”, afirma Philippe.

Sujeira de todos os lados

dois em umPor trabalharem basicamente

com os princípios de infiltração

e/ou armazenamento, as bacias

de detenção e trincheiras de

infiltração reduzem o volume de

água que escoa pela superfície.

Parte do volume que iria alagar

ruas e se deslocar rapidamente por

superfícies impermeáveis, podendo

causar prejuízos para as pessoas

e o meio ambiente, vai para essas

estruturas. essa água carrega

consigo o sedimento “lavado”

durante a precipitação, que se

depositará no fundo das estruturas.

Com um mecanismo, dois problemas

resolvidos. o professor nilo

nascimento reforça a importância

de levar em consideração essas duas

funções na fase do projeto. “ mesmo

em obras recentes, a questão do

sedimento ainda não é pensada, pois

complexifica um pouco o projeto.

mas ela evita problemas com a

manutenção e limpeza que terão que

ser feitas mais tarde”, diz ele.

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manuelzão Dezembro de 2008

2010 bate à portaConheça os avanços e desafios para que se possa navegar, pescar e nadar no Velhas

marina torresJornalista

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É preciso ser mais objetivo“os prazos estão ficando cada vez mais curtos e a meta ainda está

muito ligada a saneamento básico. nós precisamos romper com

isso. a agricultura está afastada, a indústria não tem respeitado

as metas de qualidade da bacia.

a semad está num ritmo de trabalho bom. Belo horizonte está

fazendo um trabalho interessante e Contagem também. algumas

prefeituras do interior têm feito estações de tratamento de esgoto.

mas, grosso modo, as prefeituras precisam melhorar uns 70%, os

empresários uns 80% e o governo do estado, sobretudo, dar ritmo e

integrar os órgãos e instâncias governamentais. ser mais sistêmico,

mais objetivo.” (apolo heringer lisboa, coordenador geral do Projeto

manuelzão.)

Chegamos ao final de 2008. E, quando se fala na Meta 2010, parece haver uma contagem regressiva para

que seja possível navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas, em sua passagem pela Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Mas, afinal, estamos no caminho certo para alcançar esse objetivo? o ritmo dos trabalhos vai permitir que a proposta seja efetivada dentro do prazo estabelecido?

saneamento bÁsiCoDesde que o Projeto Manuelzão propôs a Meta 2010,

ao final da expedição realizada no Velhas em 2003, era bastante claro que seria imprescindível coletar e tratar esgotos que estavam sendo despejados diretamente nas águas da bacia. De lá pra cá, houve investimento em ações de saneamento e já é possível perceber mudanças.

Este ano, três intervenções em Belo Horizonte se destacam como avanços: as obras para implantação do tratamento secundário na Estação de Tratamento de Esgoto do Ribeirão da onça (ETE onça), a instalação dos interceptores nas sub-bacias dos córregos da Serra e do Isidoro.

o interceptor do Isidoro, em operação desde novem-bro, aumenta de forma significativa o volume de esgoto que chega à ETE onça. Lá, em 2010, os efluentes come-çarão a passar por tratamento secundário, para tornar mais apurada a despoluição. Atualmente, nem 70% da poluição presente no esgoto é removida pela ETE onça. Com o tratamento secundário, a remoção será de aproxi-madamente 90%. As obras para que esse processo ocor-ra tiveram início em março deste ano.

Se o interceptor do Isidoro, com sete quilômetros de extensão, é uma intervenção importante na bacia do onça, o interceptor da Serra eliminou muitos lançamentos indevidos de esgoto na bacia do Arrudas. Juntas, as duas obras fazem chegar mais 250 litros de esgoto por segundo às ETEs onça e Arrudas. Com isso, segundo o gerente da Superintendência de Serviços e Tratamentos de Efluentes da Copasa, Ronaldo Matias, o percentual de esgoto trata-do em Belo Horizonte deve subir de 60 para 65%.

Além de BH, mais 24 municípios fazem parte da área de atuação da Meta 2010 e também neles têm ocorrido ações de saneamento. Nas cidades atendidas pela Co-pasa, Ronaldo Matias destaca que serão concluídas, no

t r i l h a s d o v e l h a s

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primeiro semestre de 2009, duas ETES na bacia do Ribei-rão da Mata: a de São José da Lapa e da Nova Pampulha, em Vespasiano.

Além disso, ele afirma que está em licitação a obra de complementação do esgotamento sanitário de Santa Luzia. Serão implantados interceptores e uma ETE para tratamento de todo o esgoto da cidade. A intervenção representa um investimento de 42 milhões de reais, com previsão de 24 meses de obra.

Entre as cidades onde as ações são de responsabili-dade das autarquias municipais de saneamento, Itabiri-to e Caeté estão em fase de implantação de intercepto-res e ETEs, com previsão de término em 2010. os dados são da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).

Um importante indício da melhoria na qualidade da água é a volta de peixes a municípios bem próximos de Belo Horizonte. o dourado, encontrado em águas me-nos poluídas, em 2000, subia o Velhas até a região de Corinto, cerca 400 km de rio abaixo da capital (e 250 km acima da foz). Agora já é visto a cerca de 60 km de BH, próximo a Lagoa Santa e Jaboticatubas (sobe 587 km da foz).

mobilizaçãoPara revitalizar a bacia do Velhas, intervenções como

coleta e tratamento de esgoto não são suficientes. Além das obras, é preciso que a população se comprometa com a causa e adote práticas favoráveis à preservação.

Para mobilizar a sociedade a favor da Meta 2010, uma estratégia adotada foi a realização de seminários. Nesses encontros, os participantes assistem a palestras de educação ambiental e apresentações sobre as obras

previstas para a região. A comunidade discute os proble-mas locais e constrói sugestões de como cada um pode colaborar com a revitalização do Velhas.

Até o final de 2008, serão 16 seminários. Mais de 1.600 pessoas já participaram. São representantes do poder público, de empresas e da sociedade civil, prin-cipalmente membros de núcleos Manuelzão, associa-ções comunitárias, escolas e centros de saúde. Algumas questões, comuns a todas as localidades, têm sido cons-tantes nos debates, como a importância da educação ambiental, reciclagem do lixo e diminuição do consumo de sacolas plásticas.

Em alguns encontros foram discutidas obras já reali-zadas. No seminário do Alto Isidoro, por exemplo, foram apresentadas as intervenções do Drenurbs nas sub-ba-cias dos córregos Baleares, Nossa Senhora da Piedade e Primeiro de Maio. Nessas regiões, houve construção de interceptores de esgoto, reassentamento de famílias, recuperação de margens e construção de parques linea-res, com resultados concretos de melhoria ambiental na bacia do onça.

Duas sub-bacias que ainda serão atendidas pelo Drenurbs também sediaram seminários: Bonsucesso e Engenho Nogueira. Nesses casos, os participantes dis-cutiram as intervenções previstas e muitos defenderam a revitalização dos cursos d’água, afirmando que não querem canalização.

Também houve encontros nas sub-bacias do Ribei-rão da Mata, Itabirito, Caeté/Sabará e em Nova Lima. Está previsto para o dia 12 de dezembro o seminário final de 2008, que irá reunir representantes de várias regiões para fazer uma avaliação geral das ações de mobilização.

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EMA atenção ao uso da terra

“acredito que é perfeitamente possível nadar no rio das velhas no

trecho metropolitano, onde estamos concentrando nosso esforço.

a orientação do governo do estado é manter determinadamente

esse objetivo. a mobilização da sociedade civil e o trabalho do

Projeto manuelzão, de alerta permanente no acompanhamento

das ações também, ajudam o próprio governo a manter o seu

ritmo em relação a esses temas. e espero que esse trabalho de

mobilização engaje cada vez mais as pessoas, porque não podemos

imaginar a meta 2010 apenas como um projeto do governo ou do

Projeto manuelzão.

uma vez consolidado o esforço que estamos realizando para

coleta e tratamento de esgoto, temos que botar uma atenção mais

forte em relação ao uso da terra, para evitar erosão, assoreamento,

e, sobretudo, estimular os agricultores a novas práticas agrícolas

de conservação do solo e da água.” (José Carlos Carvalho, secretário

estadual de meio ambiente e desenvolvimento sustentável.)

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manuelzão Dezembro de 2008

C a m i n h o s d o m u n d o

Joga fora... no rio?

Resíduos gerados nas estações de tratamento de água são descartados de forma inadequada

Carol abreu, JessiCa soares e viCtor vieiraestudantes de Comunicação Social da uFmG

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A água dos rios passa por um longo percurso até estar pronta para o consumo. Nas Estações de Tratamento

de água (ETA), depois de captada da natureza, ela rece-be produtos químicos, enfrenta filtros e tanques. Só que desde a instalação da primeira ETA, esse processo pro-duziu mais que apenas água potável.

Como resultado do tratamento é produzido uma mis-tura de substâncias conhecida como lodo. Ele é consti-tuído pelos restos de produtos químicos utilizados no processo e pelas impurezas existentes no trecho do rio onde foi captada a água para tratamento. o destino des-ses resíduos: o curso d’água.

Segundo o pesquisador da Companhia de Sanea-mento do Paraná (Sanepar), Cleverson Andreoli, mais de 90% das estações de tratamento de água do Brasil lançam o lodo no rio. A destinação inadequada dos resí-duos gera vários impactos ambientais. Além de provocar o assoreamento do rio, essa prática eleva a concentra-ção de substâncias indesejadas. “Você faz um processo de tratamento, e volta aquela sujeira toda para o curso d’água. É um contra-senso”, afirma o engenheiro sanita-rista Alaor Castro.

bela Fama, hein?Cerca de 40% da água que sai das torneiras da região

metropolitana de Belo Horizonte vem do Rio das Velhas. A água é tratada na ETA do distrito de Bela Fama, em Nova Lima, que produz seis mil litros de água tratada por segun-do. Em funcionamento desde 1967, a estação de Bela Fama ainda não possui uma Unidade de Tratamento de Resíduos (UTR) e descarta o lodo gerado no processo de purificação no Velhas.

o processo de captação reduz o volume do curso d’água e o despejo dos resíduos no rio eleva a concentração de im-purezas. “Como ele [o lodo] é devolvido pontualmente, é um impacto muito profundo”, aponta Alaor Castro.

os dados referentes a abril deste ano, do relatório de monitoramento do Instituto Mineiro de Gestão das

águas, comprovam as alterações no rio. A concentra-ção de sólidos em suspensão aumenta mais de 40 ve-zes no trecho próximo à área de despejo do lodo, em relação à nascente do rio. A presença desses resídu-os torna a água mais turva e prejudica a passagem de luz. Essa mudança é responsável pela diminuição dos níveis de fotossíntese e pode levar a um desequilíbrio ambiental.

Segundo a Copasa, a construção da UTR de Bela Fama começou em maio de 2007. “A Copasa vem prome-tendo resolver o problema há pelo menos quinze anos”, afirma a superintendente-executiva da Associação Mi-neira de Defesa do Ambiente, Dalce Ricas. o engenheiro sanitarista e analista de produção de Bela Fama, Gabriel Monteiro, explica que as obras estão atrasadas e prevê que ainda haja novo adiamento devido a empecilhos fi-nanceiros e burocráticos. A UTR “foi projetada há quase três anos, então houve defasagem dos valores e quanti-dades”, esclarece.

e depois?

o problema dos resíduos não se encerra na constru-ção da UTR. Sua destinação ainda deve ser pensada e o aterro sanitário é a alternativa mais comum. Em Bela Fama, a solução adotada não é diferente. De acordo com Alaor, “essa é uma discussão muito forte na ETA [Bela Fama] porque o volume de sólidos é monumental. Se você faz um aterro, está fazendo disposição de um mate-rial que poderia ser matéria prima”, adverte.

Matéria prima que pode ser usada desde a produção de tijolos ao cultivo de flores. o engenheiro Cleverson Andreoli afirma que algumas estações de tratamento do Brasil já começaram a fazer uma gestão mais respon-sável. Ele cita o programa de pesquisa da Sanepar, que envolve universidades, entidades governamentais e ter-ceiro setor. Além de propor novos usos para o lodo, as pesquisas em andamento buscam formas de reduzir sua produção.

eta de Bela fama: qualidade da água do velhas cai pela metade no trecho

seguinte à estação

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Rios vêm sendo enterrados desde a fundação de Belo Horizonte e desaparecem do cotidiano dos moradores da capital

pâmilla vilas boas e stéphanie bollmannestudantes de Comunicação Social da uFmG

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Em Belo Horizonte, pegue a Avenida Prudente de Mo-rais, desça em direção à Rua São Paulo, passando

pela Praça Marília de Dirceu. Atravesse a Avenida do Contorno, vire à direita no túnel e siga até chegar à Sil-viano Brandão. Alternativa para fugir do trânsito? Expli-cação para quem está perdido? Não. Tudo isso são rios, enterrados por baixo dessas avenidas, e que, há muitos anos, poderiam ser vistos serpenteando a cidade.

Atualmente, dos 673 quilômetros de cursos d’água existentes na capital mineira, cerca de 175 encontram-se canalizados. Destes, 134 estão cobertos por ruas, aveni-das e outras construções. Na região central de Belo Ho-rizonte, as várzeas e os fundos de vales deram lugar às edificações e já é quase impossível avistar algum curso d’água. Leitão, da Mata, da Lagoinha e Pastinho são cór-regos substituídos por largas avenidas: Prudente de Mo-rais, Silviano Brandão, Antônio Carlos e Dom Pedro II.

Na descrição do cronista Alfredo Camarate, que vi-venciou a construção da capital, o arraial do Curral del Rei era composto por “verdejantes jardins de onde viam freqüentes virações embalsamadas dos perfumes das flores e dos córregos de águas limpas em meio a pitores-cas rochas por baixo de uma vegetação frondosa, fresca e luzente”. Como esse arraial se transformou em uma ci-dade com quilômetros de cursos d’água encobertos por camadas de concreto e asfalto? Vire a página para des-vendar esses córregos ocultos.

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rios no xadrezUm dos motivos que levou a Comissão

Construtora, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis, a escolher o terreno do então Curral del Rei para a construção da nova capital de Minas no final do século XIX, foi a regularidade do terreno. “Várias localida-des foram estudadas e ele [Aarão Reis] es-colheu a que os estudos apontaram como a área mais dócil à ocupação, locais suaves, com presença de córregos para o abasteci-mento”, conta a professora de urbanismo da UFMG, Maria das Graças Ferreira. A área escolhida era composta, majoritariamente, pela várzea do Arrudas e dos vários córre-gos e ribeirões que nele desaguavam.

Como construir a capital em meio a tan-tos cursos d’água? Na concepção de Aarão Reis e também de muitos urbanistas da época, o projeto arquitetônico da cidade deveria se sobrepor às características fí-sicas da área escolhida. Embora o relató-rio da comissão técnica apresentasse uma preocupação em catalogar o relevo, os cur-sos d’água e as demais características na-turais do terreno, toda essa pesquisa não se refletiu no projeto que deu origem à ci-dade. “A impressão que dá é que de fato se tinha uma preocupação com abastecimen-to, para que não houvesse enchentes, áre-as alagadiças, doenças. Mas, na hora em que ele faz a transposição dessa idéia, do diagnóstico para a prática projetual, isso se perde”, afirma Maria das Graças.

o desenho de Aarão Reis era rígido e definia dois tipos de xadrez superpostos em diagonais. Quando o projeto é colocado sobre o terreno reservado para a cons-trução da cidade, percebe-se

que os cursos

d’água atravessam esse traçado da cida-de no meio das quadras, ruas e avenidas (ver mapa). o traçado “brigava” com o ter-reno que, apesar de suave, não era plano, devido à existência dos vales dos diversos córregos afluentes do Arrudas. Segundo Maria das Graças, quando Aarão Reis pro-põe esse traçado, ele já está pressupondo canalização.

Dentro da própria Comissão Constru-tora existiam opiniões divergentes. Para o engenheiro sanitarista Saturnino de Bri-to, então responsável pelo abastecimento de água e pela modificação do regime dos cursos d’água da nova capital, o traçado da cidade poderia ter sido concebido de forma diferente. Para que os cursos d’água não passassem no interior dos quarteirões, ele defendia a construção de ruas e avenidas que seguissem os cursos d’água naturais, em vez das vias largas e retas, proposta por Aarão Reis, que se sobrepunham aos córregos.

o projeto de Saturnino não mencionava como os cursos d’água seriam modificados, mas só seria possível com a canalização, seja em seção aberta ou em seção fechada. “Ele está propondo canalizar de qualquer forma, mas, no mínimo, a manutenção é mais simples do que ter um córrego passan-do embaixo do prédio”, conta a professora Maria das Graças. Entretanto, o plano de Saturnino não foi aceito pelo coordenador geral da Comissão Construtora, Aarão Reis, que optou por seu próprio projeto.

Ainda que o traçado proposto por Sa-turnino não tenha sido aceito, ele acabou

por influenciar outros urbanistas. o engenheiro e urbanista

Lincoln Continentino é um exemplo. Baseado nas idéias de Saturnino, ele propôs a construção de avenidas sanitárias.

Continentino elaborou um plano que, na época,

não foi colocado em práti-ca, mas que serviu para nor-

tear ações futuras. “Dentro dessas propostas estavam a Prudente de Morais, Uruguai, Silviano Brandão, Pedro II, que são todas avenidas e

têm um curso d’água passando em baixo”,

explica Maria das

Graças. Naquele contexto, a canalização e o fe-

chamento dos córregos eram tidos como uma solução. Segundo o engenheiro sani-tarista José Roberto Champs, aquela era a engenharia da época. “Canalizava-se por-que aumenta a velocidade da água, evacua com maior rapidez, impedindo as inunda-ções. Naquele período predominava o con-ceito de que a água era nociva e precisa-va ser evacuada o mais rápido possível”, lembra. E essa não era a concepção ape-nas dos especialistas da época. Moradores próximos aos córregos de BH acreditavam (e acreditam) que canalizar e tampar os córregos era o melhor caminho.

por baixo do progresso

As lem-branças das pessoas que conviveram com os cór-regos em leito natural nem sem-pre são positivas. Alice Bittencourt, que mora per-to da Aveni-da Silviano Brandão, se recorda das brincadeiras de criança, mas não deixa de dizer da situa-çãodos córregos em leito natural. Alice, que completou cem anos e mora na região desde que nasceu, se lembra que na época em que o bairro Sagrada Família estava no início de sua urbanização “era tudo mato e a Silviano Brandão era um córrego estreiti-nho [o córrego da Mata] que a gente pula-va e brincava”. Apesar das brincadeiras no córrego, Alice o prefere fechado. “Sauda-des a gente tem, mas não deixa nenhuma recordação boa não. Enquanto não chovia estava tudo muito bom, mas começava a chover, pronto, acabava. Era aquele barro, aquela porcariada toda”, conta Alice.

Ismael Acácio, 70 anos, hoje morador do bairro Vilarinho, lembra que antigamen-te os rios eram todos abertos e que na re-gião da Avenida Pedro II e da Afonso Pena os carros passavam ao lado dos córregos. “os rios eram limpinhos. A gente fazia até

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de piscina, deixava encher e nadávamos, até bebíamos a água”, conta. Ismael fala de benefícios para o meio ambiente de ter um rio em leito natural, mas, olhando para a situação do seu bairro, não consegue ima-ginar que isso aconteça na atual Belo Hori-zonte: “era bonito, a maior parte do rio era coberta de pedra natural. Tinha arvoredo. Mas hoje, fechado é melhor. Porque tem muita sujeira. Na Vilarinho, onde eu moro, toda vez que tem chuva dá a maior enchen-te, leva casa, leva tudo”.

Marcos Antunes, 42 anos, que traba-lha nas proximidades da Avenida Bernardo Vasconcelos, acredita que só seria possível manter um rio em leito natural se as pesso-

as tivessem consciência da importância dele e não jogassem lixo. Do con-trário, o melhor é manter

os rios fechados.Já Nelson Dornelas, 60

anos, que trabalha em um comércio em frente ao ribei-

rão Arrudas, ao lado da Praça da Estação, entende que a cana-lização faz parte de

um conjunto de obras que representam o pro-

gresso e a evolução da cidade. “Fazemos parte do

progresso. ou você tem pro-gresso, ou vai viver primitiva-

mente. Com o córrego, você tem que passar em pontes. Hoje eles

alargaram as avenidas porque o tráfego não comporta mais rio. As gran-

des metrópoles chegaram a esse ponto”.

dessa para melhorAtualmente, entre os especialistas, a

percepção tem começado a mudar e a cana-lização nem sempre é vista como solução. A partir da década de 1980, novas compreen-sões sobre a gestão e o manejo das águas começam a surgir. Segundo o engenheiro sanitarista José Roberto Champs, foram três os motivos: o mau funcionamento das canalizações, o alto custo de implantação dos canais fechados e a pressão ambien-tal.

Ao canalizar, os córregos precisam ser retificados, o que aumenta a velocidade da água e pode provocar fortes inundações na cidade. Na Avenida Prudente de Morais, as inundações eram freqüentes e a situação só foi resolvida com a construção da bar-ragem Santa Lúcia. Além disso, as obras de canalização e manutenção das galerias são caras. Segundo Champs, “manter o curso d’água em leito natural é praticamente de

Córrego Cachoeirinha, que passa debaixo da avenida Bernardo vasconcelos, na região nordeste de Belo horizonte

ribeirão arrudas, que passa debaixo da avenida dos andradas, na região Central de Belo horizonte

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graça, ele já está em leito natural. Se você for implantar uma avenida fica muito mais caro”. E ele completa: “é de seis a oito mi-lhões de dólares por quilômetro de cana-lização de concreto”. Ainda que para pre-servar o córrego em leito natural algum dinheiro seja gasto para coletar o esgoto e combater a erosão, “isso é obrigação do prefeito e da Copasa, mais dia menos dia vai ter que fazer”, acredita Champs.

o engenheiro ressalta que foi a par-tir da década de 1980 que os estados e as prefeituras começaram a ter secretarias de meio ambiente, o que fez com que as ques-tões ambientais passassem a fazer parte das políticas públicas. “A pressão ambien-tal começou a defender a idéia de que as águas deveriam estar limpas. Não adianta deixar um esgoto escoando dentro da cida-de, tem que ser água limpa”, afirma.

A modificação na gestão de recursos hí-dricos em Belo Horizonte começou a partir de 1999, quando foi criado o Plano Diretor de Drenagem que deu origem ao progra-ma Drenurbs (Programa de Saneamento Ambiental de Belo Horizonte). Esse plano trouxe novos conceitos que passaram a ser adotados como políticas públicas para

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reverter a tradição de canalização. José Roberto Champs acredi-ta que tentar integrar os rios à paisagem, como faz o Drenurbs, ao invés de canalizar, é um avanço. Porém, segundo ele, algumas políticas da Prefeitura ainda mantêm conceitos atrasados. “Algu-mas ações como canalização, revestimentos inadequados como a Avenida Bacuraus e do córrego Tamboril, na região Norte da cida-de, entram em confronto com o conceito do plano diretor”, explica Champs.

onde a vista não alCançaDeixar um rio em leito natural permite uma maior infiltração da

água, mantém o equilíbrio ambiental e é importante para a pre-servação da bacia. Além disso, o rio também é um importan-te elemento da paisagem. No artigo A percepção em análises ambientais, o arquiteto Lineu Castello fala da importância da água para a percepção sensorial das pessoas: “trata-se de um dos símbolos reconhecidamente mais importantes da natureza no habitat urbano. Mais do que produzir meras satisfa-ções visuais, a água costuma ser responsável por um amálgama de experiências sensoriais que envolvem os cinco sentidos”.

Maria das Graças conta que quando lecionava na Escola de Ar-quitetura da UFMG, ela precisava apresentar imagens de cidades que mantém seus rios em leito natural, como Maringá, no

Paraná, para que os alunos acreditassem que é possível manter os rios abertos. “Eles sempre questionam: não é possível deixar um rio aberto, ele não é fedorento?”, lembra Maria das Graças. “Um menino de primeiro grau, às vezes até mais velho, fala que não tem curso d’água aqui em BH, só o Arrudas, porque não vê o rio. Cadê rio? Cadê córrego? Não existe. Eu mesma, logo que cheguei aqui, um dia perguntei, não tem rio nessa cidade não? Porque em Recife tem para todo canto”, acrescenta Maria das Graças, natural da capital pernambucana.

A canalização, somada ao fato de os córregos em leito natural que ainda restam estarem quase todos poluídos, fez com que a água desaparecesse do cenário de Belo Horizonte como um ele-mento natural. Além disso, como grande parte do esgoto de BH é lançada nos cursos d’água, muitas vezes é difícil distinguir o que é esgoto e o que é córrego.

Nos arredores da Avenida Bernardo Vasconcelos, na região nordeste de BH, passa o córrego Cachoeirinha que tem uma parte canalizada em seção fechada e outra em seção aberta. orlando Sil-va, 63 anos, morador da região, conta que o trecho aberto é muito fedido e poluído. Por isso ele é a favor de canalizar todo o córrego em seção fechada. “Eles jogam esgotos todos os dias. É um mau cheiro danado. Se você for descendo na parte do rio aberto, você vê a água mudando de cor, porque tem uma fábrica aqui perto que joga tinta no rio”, descreve.

Para Champs, estamos passando por um processo de transição e a população também está vendo os problemas que a canalização trouxe para a cidade. “Ficamos um século praticando um tipo de política pública para os recursos hídricos. A mudança para outra política radicalmente diferente não acontece da noite para o dia. É um problema cultural, de cultura técnica, urbanística e do cidadão, que foi educado de que deveria esconder os rios”, relata.

o síndico Evandro Barreto, 47 anos, que trabalha perto do ri-beirão Arrudas desde 1977, acredita que quando um rio é canali-zado, ele deixa de ser rio para virar esgoto. “Eu acho que cobrir o rio é um negócio meio polêmico. Rio é vida. Se fizesse um trabalho de revitalização desde a nascente até os afluentes, aí sim seria in-teressante”. E acrescenta: “eu tenho criança pequena e tenho que falar para elas: você lembra que tinha um rio aqui embaixo? o Ar-rudas? Perdemos uma história”.

Córrego do leitão, que passa debaixo da avenida Prudente de morais, na região sul da capital

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Lembranças de um lugar sem memóriaFotografia evoca histórias de uma antiga mina desativada em Itabirito

Um buraco fundo. Muito fundo. E uma cor que deixa aparecer a ação do sol sobre a terra. Nada que nun-

ca se tenha visto. Terra trincada e água pouca. Uma típica imagem de devastação. Itabirito, município de Minas Ge-rais, a 55 quilômetros de distância de Belo Horizonte.

Poucas informações. Ninguém conseguia me dizer ao certo que lugar era aquele que a foto mostrava. Até que encontrei um senhor, antigo operador de máquinas para mineração. “Esse lugar é a mina arriada. A terra da-qui foi usada para encher a mina da Cata Branca”. Hel-mer Celso Ferreira afirmou com segurança, olhando para a foto e apontando com o dedo.

Reconhecimento comum para quem já viveu nas pro-ximidades. “Morava com a minha família. Lá era um lu-gar muito frio e alto”. Muito mato e muitas pedras, vege-tação típica daqueles morros cheios de minério.

Era de lá que se extraíam metais preciosos. Quase 200 anos atrás. Mineração na mina de Cata Branca. Em 1844, com o desabamento da mina, a atividade se en-cerrou por completo. Até hoje não se sabe o número de mortos nem o prejuízo que o acidente trouxe. A não ser a visível mudança na paisagem, percebida pela foto. o que de fato aconteceu?

Poucas coisas ficaram. Talvez as lendas e, certamen-te, as lembranças de Gilmara Braga, chefe da divisão de Memória e Patrimônio de Itabirito: “desde pequena eu escutava os casos de assombração lá em Cata Branca. As pessoas mais velhas contavam que apareciam cor-

rentes arrastando, que eram os escravos que morreram com o desabamento. E gritos, escutavam-se gritos de dentro da mina”.

a arte que silenCiaTodos os olhares que envolvem Cata Branca não

seriam suficientes para encher um pedaço de papel. o espaço é mais conhecido pelo desconhecimento. A ima-gem “presa” à fotografia é esse não-saber. Consciente ou não, a foto silencia. Alguns não reconhecem o local, outros se chocam com a imagem.

As percepções sobre a foto se misturam. Ao lembrar-se da Cata Branca de sua infância, Gilmara vê uma nova paisagem. Conta que a Vale, proprietária do local, tem planos: transformar o espaço em um parque de visita-ção turística e pesquisa arqueológica. A proposta é uma cláusula de compensação ambiental. “Cata Branca seria um grande espaço turístico de renome nacional”. outros, porém, pensam em preservar. Esperança de Ayrton Cel-so Ferreira, antigo minerador industrial. “Hoje eu estou vendo aquela área ali, que é tombada [como] patrimônio, sendo vendida”.

Mas, para alguns, a região não remonta ao passa-do. Nem ao futuro. o movimento é outro, é atemporal. Um não-afeto. “Tem vigilância e tem preservação. Mas, se você for lá, não tem nada além das ruínas”. Visão do coordenador-executivo da Vale, Júlio Nery.

Única certeza? o dono da foto. Frans Kracjberg, es-cultor e artista plástico polonês. Quando morador de Ita-birito, na década de 1960, ficou longe do “homem bran-co”. Vivia dentro de uma Kombi, no meio do mato. Uma escolha nada inusitada para quem sobreviveu à Segun-da Guerra Mundial, mas perdeu toda a família. A vida de Kracjberg influenciou sua arte. Medo da raça humana, que ele expõe ao mostrar os problemas que o meio am-biente enfrenta pela ação do homem.

Ainda assim, um não-saber. ou pouco saber. Klever-son Cordeiro, historiador responsável pela pesquisa de Cata Branca resume bem. “A mina é um espaço lendário e praticamente desconhecido”. A foto que o diga.

Juliana aFonsoestudante de Comunicação Social da uFmG

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C u i d a r

Um médico da comunidade que vai à casa das pesso-as, conhece a história das famílias, torna-se amigo.

Seria um profissional que foi esquecido no tempo? Quem já viu as primeiras propagandas do Programa Saúde da Família (PSF) reconhece um resgate desse passado - ou uma tentativa. “É difícil falar que o médico representa tudo isso, apesar do que o PSF propõe: um médico ge-neralista, que atende a família em todo o ciclo vital, da criancinha até o vovô”, afirma o coordenador do Internato Rural da Faculdade de Medicina da UFMG, Antônio Leite.

A prática do PSF não é tão colorida quanto se faz ver na publicidade, mas parte de uma idéia interessante. Além do médico, um dentista, um enfermeiro e agentes comunitários de saúde compõem cada equipe. Com a pretensão de superar o modelo tradicional, em que as pessoas só são atendidas quando estão doentes, o Mi-nistério da Saúde começou a implantar o programa em 1994. Hoje, são 25 mil equipes multiprofissionais distri-buídas por mais de 5 mil municípios e cerca de 90 mi-lhões de habitantes atendidos, o que equivale a quase metade da população brasileira.

Ô de casa! Tem saúde?Avanços e contradições do Programa Saúde da Família, o programa do governo federal que tenta mudar as bases do Sistema Único de Saúde

luiza muzzi e taís ahouagi*estudantes de Comunicação Social da uFmG

os números impressionam, mas parecem destoar das notícias que se tem sobre a saúde no país. E desto-am mesmo. “Ter essas equipes não quer dizer que elas trabalham com qualidade. Muitas vezes, o médico não fica no município, não cumpre a carga horária. Mesmo em alguns lugares que cumprem esses princípios, ainda há a forma como trabalham com a comunidade”, admite o gerente do projeto Saúde em Casa, da Secretaria de Es-tado de Saúde de Minas Gerais (SES), Fernando Lelis. o Saúde em Casa é um programa estadual complementar ao PSF, do governo federal. Para o mestre em Saúde Pú-bica, Ivan Batista, um dos grandes problemas do PSF é a lentidão com a qual o programa vem se expandindo. “A gente fica eternamente em transição. Cuba implementou [o PSF] em oito anos, Canadá em menos de dez”, critica.

desCulpe, estamos em obrasNão é da noite para o dia que se muda toda uma con-

cepção de trabalho. Mesmo que essa noite venha duran-do 14 anos. “A proposta do PSF é fazer promoção e pre-venção. É a parte mais difícil, que é mudar hábitos. Todos os médicos que tivemos aqui querem só consultar”, con-ta a secretária de Saúde de Monjolos, município cerca de 250 km ao norte da capital mineira, ângela de Assis. o município adota a estratégia desde 1996. “Não é só o médico, a comunidade adora consultar”, completa. Itabi-rito, município mineiro entre Belo Horizonte e ouro Pre-

iluStRação: BRuNa aRaúJo

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to, só em 2005 adotou a estratégia do Saúde da Família e lida com uma outra transição. “A gente tem uma população ‘pronto-socorro-depen-dente’. Ela tenta driblar o sistema o tempo todo: vai à noite, quando as unidades básicas estão fechadas, aí o pronto-socorro tem que atendê-las”, conta a secretária de Saúde do município, Valéria Mariana. De acordo com Fernando Lelis, um ter-ço das internações em Minas Gerais são por doenças como pneumonia, asma, bronquite e diarréia, que po-deriam ser resolvidas por uma aten-ção primária eficiente, ou seja, com o primeiro atendimento nos centros de saúde. Além de melhorar a qua-lidade de vida dos pacientes, ela se refletiria em economia para os co-fres públicos.

“Se você pensar que uma equipe vai ser responsável pela promoção, prevenção, recuperação e reabilita-ção de uma comunidade, é uma tare-fa bastante ousada. É fácil de falar, mas não é tão fácil de fazer”, ressal-ta o professor do Internato Rural, Ho-rácio Faria. Difícil mesmo é garantir toda essa atenção seguindo as dire-trizes do próprio Ministério da Saú-de, que recomenda que cada equipe do PSF se responsabilize por até 4,5 mil pessoas. “As equipes trabalham com uma relação população-equipe muito grande. Boa parte do tempo é gasto com a função de recuperação da saúde, pois as pessoas estão do-entes, alguém tem que cuidar”, afir-ma o professor. “Se o médico ficar só atendendo 40 consultas por dia,

que vínculo vai ter com a comuni-dade? Em poucos meses ele se es-gota, vai embora e a população mal conheceu aquele sujeito”, adverte o professor Antônio Leite.

Tornar-se médico do PSF não é algo atrativo. “Indo para uma cidade, [o médico] não sabe se vai continuar lá, porque se mudar a administração ele pode ser demitido. Se for para uma cidade pequena, será o único profissional, o que significa que fica-rá à disposição o tempo todo, mes-mo que tenha no contrato o horário comercial”, afirma Horácio.

Talvez por isso, o programa tem sido visto como um espaço de pas-sagem para os jovens médicos. É o caso da médica do Centro de Saúde Don orione, na região da Pampulha, em Belo Horizonte, Luciana Cala-zans. Ela se formou em Medicina na metade deste ano e optou por tra-balhar antes de fazer as provas para residência, em 2009. Com a intensa rotatividade entre os profissionais, dificilmente o médico chega a criar o vínculo necessário para ser de fato o médico da família. Para um dos coordenadores do Projeto Ma-nuelzão e professor do Internato Rural, Marcus Vinicius Polignano, esse quadro também é explicado pela formação acadêmica, já que a própria faculdade induz ao caminho das especialidades.

o Fio da meadaPor meio da assistência primá-

ria básica, o PSF coordena toda uma rede integrada de saúde. “Se é a

equipe que conhece a população e que está ali próxima, é ela que tem maior facilidade de identificar as necessidades da população e mos-trá-las para os demais pontos de atenção à saúde”, afirma Fernando Lelis. No entanto, a proposta de um trabalho integrado da unidade bási-ca de saúde com as especialidades e os hospitais não tem funcionado tão bem assim.

Fernando Lelis, da SES, conta que o médico da família é reconhe-cido como aquele que não resolve, apenas indica os especialistas. Se a assistência básica não for bem orga-nizada, o que acontece é um verda-deiro pingue-pongue com o usuário, que vai de um médico para outro e de um hospital para outro.

Ivan Coelho reconhece alguns pontos que dão mérito ao progra-ma: “em praticamente todos os lu-gares em que foi implantado, me-lhorou muito o acesso da população aos serviços, os índices de morta-lidade infantil caíram substancial-mente e os problemas crônicos me-lhoraram”. Segundo ele, o aumento da área de cobertura de vacinação também é um indicador de que os programas de promoção e preven-ção de saúde adquiriram mais po-tência e capacidade.

*Colaboração do estudante de Co-municação Social Leonardo Freitas

o papel do agente comunitário de saúde é estratégico. Ele não precisa ter formação superior e não pode resolver os problemas médicos dos pacientes, mas é o primeiro conta-to do usuário com o Sistema Único de Saúde. Em visitas pe-riódicas, o agente, que mora sempre na região em que tra-balha, entra nas casas, conversa com as famílias, observa os hábitos e verifica se o que falta ao usuário é atendimen-to médico ou condições sociais. A secretária de Saúde de Monjolos, ângela de Assis, exemplifica: quando os agentes começaram a visitar as casas do município, os moradores

garantiam que cloravam a água. Mas não era bem isso que ocorria de verdade. Para que as pessoas se convencessem da importância desse hábito, a sensibilidade dos agentes foi fundamental. o professor da Faculdade de Medicina da UFMG, Antônio Leite, lembra que, para que a complexida-de dessa abordagem seja completa, o PSF precisa levar em conta a relação entre meio ambiente e saúde: “a equipe teria que saber se há contato com esgoto, se o lixo é reco-lhido, se a pessoa mora perto de uma rede de alta tensão ou de um duto de gás. Tudo isso tem a ver”.

Vizinho Ativo

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C u i d a r

Década de 1970 no Brasil. Numa época em que contrariar os dirigentes do Es-

tado era perigoso, um grupo de professo-res e estudantes de Medicina quer difundir ideais como participação comunitária e di-reito da população ao atendimento médico. Para uns, ousadia; para outros, subversão. Nascia, em janeiro de 1978, o Internato em Saúde Coletiva da UFMG, mais conhecido como Internato Rural.

o estágio, obrigatório, é exercido por todos os alunos que cursam o 11º período na Faculdade de Medicina da UFMG. São 34 os municípios mineiros atualmente con-veniados com o Internato Rural e que rece-bem, a cada trimestre, dois novos estagiá-rios (ver box). orientados por professores supervisores, que viajam periodicamente às cidades, os alunos desempenham diver-sos tipos de atividades ligadas ao sistema de saúde local.

vanguarda assistidaÀ época da criação do Internato Rural,

vivia-se a chamada “crise de formação mé-dica”. os cursos formavam profissionais

voltados para especialidades médicas, en-quanto as necessidades básicas da popu-lação eram pouco assistidas. Por sua vez, o acesso ao sistema de saúde era privilégio somente dos que possuíam recursos finan-ceiros ou pagavam o INPS (Instituto Nacio-nal de Previdência Social).

A disciplina foi formalmente introduzida no curso quando o currículo foi reavaliado, em meados da década de 1970. Sua inspi-ração direta veio de um estágio voluntário realizado por um grupo de alunos no Vale do Jequitinhonha. Naquele momento, as unidades do Centro Regional de Saúde de Diamantina experimentavam um modelo de medicina mais generalista, em oposição ao tradicional. Por causa disso, o Internato Rural elegeu como raio de atuação o Norte de Minas, com o apoio da Secretaria Esta-dual de Saúde, que capacitou auxiliares de saúde, e do Banco Mundial, que financiou a infra-estrutura. Com os anos, a disciplina foi se expandindo para regiões como Vale do Mucuri, oeste de Minas e Vale do Aço.

Vários alunos recorreram à Justiça para não cursarem o estágio, tanto por posição

A “crise” dos 30Após três décadas, a trajetória do Internato Rural da UFMG aponta para a necessidade de repensar seu papel

SâMIA BECHELANEestudante de Comunicação Social da uFmG

diferentes momentos do internato rural. À esquerda, estagiários em Jequitibá, em 2005.

FotoS: aCeRVo iNteRNato RuRal iluStRação: FiliPe aloNSo

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política contrária às práticas do Internato quanto pelo receio de exercerem a Medici-na “sozinhos”. Com o tempo, a resistência foi se afrouxando e o Internato pôde servir como referência a várias outras escolas de Medicina. Hoje as Diretrizes Curriculares Nacionais determinam que todo curso de Medicina no país deve ter um estágio na área de saúde coletiva, como é, pelo me-nos em tese, o Internato Rural.

Segundo o coordenador-geral do Inter-nato Rural e também professor da discipli-na desde 1982, Antônio Leite Radicchi, vá-rios atores que participaram do Internato se destacaram no movimento da reforma sanitária, ocorrida no Brasil nos anos 80 e institucionalizada com a criação do Siste-ma Único de Saúde, o SUS, pela Constitui-ção de 1988. os alunos tiveram um papel importante na luta e conquista desse siste-ma de saúde, ou seja, na universalização da assistência. “Fomos uma geração formada para a saúde pública, para ocupar cargos e preencher um projeto de reforma sanitá-ria”, afirma a ex-aluna Vanuza Fortes. Ela pertenceu a uma das primeiras turmas do Internato, em 1979, e hoje é psiquiatra pe-rita da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais.

e agora?Hoje, “a dificuldade maior é definir um

projeto coletivo para todos os superviso-

res”, avalia o também professor do Inter-nato Rural, Horácio Pereira Faria. Recém-chegada do estágio em Brumadinho, a 66 quilômetros de BH, a estudante do 11º pe-ríodo, Michelle Mendonça, conta que na época de sua turma “aconteceu de tudo. Pessoas que só trabalharam com atendi-mento, outras com atendimento e planeja-mento e algumas que não atenderam sozi-nhas em momento algum”.

Michelle, por exemplo, dividiu sua car-ga horária semanal entre o atendimento ambulatorial e o planejamento e gestão da saúde, materializados na coleta, análise e monitoramento de dados referentes à saú-de no município. Entretanto, o hoje profes-sor do Internato e aluno da primeira turma, Thomaz da Matta Machado, acredita que o que ainda predomina no Internato Rural é o assistencialismo. “o que a disciplina fez foi tirar o aluno de dentro de um hos-pital, onde só tinha raropatia [tratamento de doenças raras], para aprender dentro do próprio sistema de saúde. Mas agora ele atende a doenças do mundo real: essa é a diferença”.

Para a estudante do 11º período, Elisa Lin, que cursou o estágio em Morada Nova de Minas, a 280 quilômetros da capital, o pequeno espaço na grade curricular para disciplinas sobre planejamento e gestão favorece o predomínio da prática ambula-torial. “Isso parte também do que o pro-

fessor planeja e quer que a gente estude”, ressalta. o professor Horácio, que orienta projetos de medicina preventiva em Pira-pora, não vê isso como um problema. “Cla-ro que o trabalho às vezes aumenta, por-que tenho que recuperar esses conceitos e contextualizá-los em cada realidade. Mas sinto que é minha obrigação, parte do meu trabalho, que é a discussão mais teórica”, pondera.

Do ponto de vista da formação médi-ca, é consenso entre professores e alunos a importância do Internato Rural. “A gente aprende a ser médico, desenvolver o rela-cionamento médico-paciente e a autono-mia”, garante Elisa. Para Vanuza, a grande herança foi a conquista de uma ética. “Se a gente estava se formando como médicos, tínhamos um compromisso social”, reitera. Quanto ao caráter de extensão do Interna-to, Antônio Leite acredita que a atuação não tem conseguido irradiar políticas de saúde nos planos micro e macro regionais, como já fez antes. “o Internato Rural foi uma experiência exitosa, mas temos que repensá-lo. Senão a gente vai ver sempre o município como um cenário de prática”, reflete.

Parceriasa atuação do internato rural acontece por

meio de um convênio entre os gestores do

município e a universidade. Quando ele

é rompido, buscam-se outras cidades no

estado. muitas vezes, o rompimento se dá

por questões políticas. “Quando muda o

político pode ser que ele [o professor] seja

identificado como do grupo anterior”,

conta antônio leite.

Saúde é muito mais que atendimento mé-dico: está diretamente associada às condi-ções sócio-ambientais da população. Embo-ra hoje isso pareça óbvio, há 11 anos talvez não fosse bem assim. A partir dessa percep-ção nasceu, em 1997, o Projeto Manuelzão, a partir da atuação de professores e alunos do Internato Rural em municípios da bacia do Rio das Velhas.

Ao propor a conjugação de saúde, meio ambiente e cidadania, “ele é uma tentativa de recolocar a saúde coletiva junto com a questão ambiental”, explica Thomaz, que é também um dos coordenadores do Projeto. Ainda assim, ele reconhece o predomínio das práticas assistencialistas nas dez ci-

dades da Bacia onde o Internato atua. Para ele, o ideal do Manuelzão é que todo aluno participasse do planejamento nos subco-mitês de bacia hidrográfica. “Isso acontece raramente”, ressalta.

Para o coordenador-geral do Interna-to, Antônio Leite Alves, o Manuelzão é um exemplo de influência do Internato Rural na política regional de saúde. Ele acredita que o surgimento do Projeto foi o último cho-que significativo do Internato. “No momen-to, a conjuntura está nos empurrando para o município, e está limitado. E a experiên-cia do Manuelzão, positiva em muitos as-pectos, precisa ser resgatada”, sinaliza.

Além do que se vê

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manuelzão Dezembro de 2008

e n t r e v i s t a

Quais são as principais potencialidades do semi-árido brasileiro?Eu enumero sete maravilhas do semi-árido, riquezas econômicas que não necessitam do artificialismo da irrigação. São três do mun-do animal: a piscicultura, a apicultura e a caprinocultura (criação de cabras). Do mundo vegetal, temos o umbuzeiro, o cajueiro, a carnaúba e fibras vegetais, como o algodão e o caroá [espécie de bromélia sertaneja], uma fruta que produz uma fibra fortíssima.

Por que esses recursos podem ser considerados potencialidades?A piscicultura porque temos águas próprias, sem nada de polui-ção. Temos 1,5 milhão de hectares de lagos artificiais. Temos uma vegetação que, para se prevenir da seca, é rica em flores e a abelha vai à procura delas. E como são flores silvestres, é produzido um mel orgânico, sem nenhum tóxico. Temos um campo para desen-volver a caprinocultura, com raças da região e de fora. o umbu e o caroá resistem bem à seca. Há um parque fantástico de caju nos estados do Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, principalmente, com a produção da castanha. A carnaúba é uma palmeira nativa que produz uma cera que é o melhor isolante do mundo. E somos grandes produtores de algodão colorido. São cores naturais que dão um preço realmente mais elevado.

Esses recursos são bem explorados no semi-árido?São pouquíssimo explorados, alguns mais do que outros. A capri-nocultura está bem avançada, a piscicultura também, a apicultura precisa avançar muito mais. o caroá está abandonado e pode se recuperar e se tornar uma grande riqueza. o algodão está se desenvolvendo, principalmente, por causa da produção de cores diversificadas.

“Eldorado” brasileiro

Um lugar próspero, fértil, água em abundância, frutos e animais espalhados por todos os cantos. Essa seria uma utopia para

o semi-árido? o ex-diretor do Departamento Nacional de obras Contra as Secas e ex-diretor da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco, Manoel Bomfim, conta que não. Autor do livro A potencialidade do semi-árido brasileiro, o nordestino, engenheiro civil e hidrólogo, mostra que as riquezas naturais exis-tem, só que pouco aproveitadas.

O semi-árido possui riquezasnão tão escondidas assim

gabriella hauberestudante de Comunicação Social da uFmG

manuelzão Dezembro de 2008

Foto:aRquiVo PeSSoal

“O semi-árido acorda, neste novo século, em

busca do seu pleno desenvolvimento. Não mais

expõe a cara da região estampada na figura da vaca morta. Nem o chão

rachado da lagoa. Este é o Nordeste do passado”

Trecho do prefácio de A potencialidade do semi-árido brasileiro

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O que falta para que sejam mais bem explorados?É incentivo do governo. Não só financeiro. É mostrar à sociedade nordestina o valor dessa riqueza que temos, é a convicção de mostrar que dá para produzir. Não viver só sonhando com a irrigação. Não temos como irrigar, as nossas águas são limitadas, embora tenhamos muita água acumulada.

Qual, então, é a potencialidade hídrica do semi-árido brasileiro?Construímos no semi-árido um parque hídrico fantástico durante o século XX. Temos dois rios correntes, o São Francisco e o Parnaíba, e entre eles construímos um parque de açudes, de águas captadas dos riachos inter-mitentes. Hoje, temos 37 bilhões de metros cúbicos de água acumulada no semi-árido que dariam plenamente para todas as nossas atividades.

Como essa potencialidade poderia ser mais bem aproveitada?o que falta são as obras complementares. Não temos um sistema robusto de adutoras [canalização que transporta água]. Você tem um grande lago, um grande açude, e a água fica exposta à evaporação. os açudes se tornam verdadeiros cemitérios de água, porque não foram feitas as obras complementares, que são as adutoras, fazer com que as águas dos açudes viajem. Cada açude é um pólo hídrico que tem que levar água para as comunida-des que estão em volta. E isso é o que não se fez. Temos água demais, não precisamos da transposição do rio São Francisco para nada. Temos água nos nossos reservató-rios, o que falta é essa distribuição da água.

E por que isso ainda não é feito?É uma questão de ordem administrativa, de prioridade do governo. Temos no Nordeste 70 mil açudes. Mas são açudes que têm uma atividade ociosa, produzem muito pouco e o açude pode servir muito mais às sociedades. o grande problema é a rede de adutoras, que não temos o suficiente. o que o governo precisa é fazer essas obras complementares.

A população tem conhecimento dessapotencialidade toda?A população que vive lá sabe, sente, mas não tem essa sensibilidade de analisar tudo isso que eu estou analisando. A população vive morrendo de sede. Falam que a Paraíba é pobre de água, mas a Paraíba tem água uma vez e meia além de suas necessidades, o Ceará tem quatro vezes mais água do que necessita, o Rio Gran-de do Norte tem duas vezes e meia mais água do que necessita. Então temos água excedente, o que precisa é aproveitar e fazer essas águas “funcionarem”.

No seu livro, você vê com otimismo as perspectivas de

reconhecimento da potencialidade do Nordeste. Há indícios de que as coisas estejam mudando? Vejo com otimismo, mas não é um otimismo sonhador. É um otimismo fundamentado numa realidade existen-te. Não vivo sonhando ‘ah se nós tivéssemos umbu na região’. Temos umbu, falta desenvolver isso comer-cialmente, agricolamente. São essas riquezas que o Nordeste tem e não sabe. Isso num país europeu seria uma coisa fantástica.

Mas há indícios de que esses recursos estão sendo mais bem aproveitados?Há muitos. Hoje, o caju já é uma riqueza que represen-ta, na balança comercial, muito valor. o que podemos é multiplicar por dez essa riqueza que produzimos. o umbu é ainda uma riqueza muito extrativista. Nós po-demos ter grandes fazendas de umbu e produzir muito umbu, mas não produzimos ainda.

Quais os benefícios econômicos e sociais que o melhor aproveitamento desses recursos traria tanto para o semi-árido como para outras regiões?Nós deixaríamos de ser pobres. Seríamos tão ricos quan-to os sulistas. Teríamos uma condição per capita muito maior, um índice de Desenvolvimento Humano muito superior ao que temos. Vivemos no seio de uma riqueza sem saber tirar proveito, sem explorar essa riqueza de uma maneira econômica. o que falta realmente é esclarecimento, conhecimento e maior proximidade do governo com esses problemas, para que a gente venha realmente aproveitar toda essa potencialidade.

Em relação às obras da transposição do São Francisco, elas já afetam as regiões envolvidas?São obras preliminares. Há problemas de concorrência e ainda não foi dada a ordem de serviço. Eu acredito que eles vão resolver isso e começar a tocar as obras por aí. Mas eles vão parar, vão abandonar.

Por que você acredita que as obras serão abandonadas?Já temos no Nordeste mais de 40 obras abandonadas. Temos grandes projetos de irrigação que estão abando-nados, sistemas de adutoras que estão abandonadas. E essa obra vai se paralisar também. Uma mudança de governo qualquer paralisa essas obras.

Caso a obra seja concluída, como ela modificará a região, numa perspectiva para daqui a 20 anos?A transposição não tem nada para modificar. Ela vai levar uma água que não precisa ser levada. o Nordeste tem 37 bilhões de metros cúbicos de água. A transposi-ção, se um dia vier a funcionar, vai levar dois bilhões de água para o Nordeste, 5% da água que nós já temos. A transposição não vai suprir em nada os problemas do Nordeste brasileiro.

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manuelzão Dezembro de 2008

a C o n t e C e

o Projeto Manuelzão, em parceria com o Ceapa-MG (Central de Penas Alternativas do Estado de Minas Gerais), realizou uma série de encontros semanais de educação ambiental com 18 destinatários de penas e medidas alternativas. Além de módulos teóricos, que ocorreram na Faculdade de Medicina da UFMG, os encontros contaram também com visitas e dinâmicas em parques e áreas próximas a córregos e áreas verdes de Belo Horizonte. o objetivo foi fazer com que os destinatários refletissem a respeito das ques-tões ambientais e adotassem um novo posicionamento em relação ao meio ambiente. Foram oito módulos, no total, sempre aos sábados. os trabalhos terminaram no dia primeiro de novembro.

A edição de outubro da revista britânica New Scientist defende que a busca por crescimento econô-mico está matando o planeta e precisa ser repensada. A publicação pinta um quadro em que todos os esforços para desenvolver combustíveis limpos, reduzir as emis-sões de carbono e buscar fontes de energia renováveis podem ser inúteis enquanto nosso sistema econômico continuar em busca de crescimento a qualquer preço. A revista aponta que o tamanho do Planeta é fixo e que os recursos são finitos. No mesmo mês, a oNG ambien-talista WWF lançou o relatório Planeta Vivo 2008. De acordo com o estudo, caso o modelo atual de consumo e degradação ambiental não seja modificado, é possível que os recursos naturais entrem em colapso a partir de 2030, quando a demanda pelos recursos ecológicos será o dobro do que a Terra pode oferecer. o relatório Planeta Vivo 2008 pode ser encontrado no site www.wwf.org.br.

Aceitando a pressão

Depois de muito vai e vem, o impasse continua: nada definido em relação ao Decreto que torna mais rígida a Lei de crimes ambientais. Assinado pelo presidente Lula em Julho de 2008, o Decreto acrescenta novas exigências e punições à Lei de crimes ambientais. Dentre elas, a criação de reserva ambiental em 20% da área das propriedades rurais e multas e embargos à comerciali-zação de produtos agropecuários, vindos de propriedades localizadas em áreas de proteção ambiental. Ambientalistas aprovaram, repre-sentantes do agronegócio contesta-ram e pressionaram. o Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, acabou voltando atrás e aceitou revisar o Decreto. Entre as modificações está a suspensão da vigência por um ano para declaração de reserva legal e, por conseqüência, das multas previstas. Minc garantiu, porém, que a revisão não afrouxará a Lei. Depois de audiências, discussões e reuniões, a versão final do Decreto ainda não foi divulgada. Enquanto isso, representantes do agronegócio continuam cobrando a publicação das alterações.

Consumo com fim

Penas Alternativas

a C o n t e C e

Foto: aRquiVo PRoJeto maNuelzão

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P e r f i lP e r f i l

Casa, Copasa e Comitês

“Velho de guerra” na Copasa, Valter Vilela entrou para a

companhia de saneamento antes mesmo de ela existir. ou melhor, em 1973 ele entrou para o antigo Demae, o Departamento Municipal de água e Esgoto. Anos mais tarde o órgão se fundiria com a Comag, Companhia Mineira de Saneamento, para criar a Copasa. Valter sempre lá, por muito tempo trabalhando no setor de Planejamento e, mais tarde, como superintendente de projetos.

Vindo do Triângulo Mineiro para estudar Engenharia Civil na UFMG, diz que não tinha noção de que iria trabalhar com meio ambiente. “Foi em 1990 que foi criada a área de Meio Ambiente na Copasa”, conta Valter. “Sempre tive uma tendência. Lia muito, estudava sobre o assun-to. Aí o presidente da Copasa, Chalib Castelo Branco, me convidou para estruturar a superintendência”. Na época, a atenção para o meio am-biente ainda era pequena na empre-sa. Ele lembra sobre a maneira como

as pessoas viam o assunto: “aque-les xiitas querendo salvar o mico leão dourado”, diziam. Hoje, obser-va, a postura mudou.

do Campo ao marDa fazenda da família no Triân-

gulo, em Prata, onde passava as férias quando criança, conta que brincava solto, no meio do mato. Até hoje costuma visitar o lugar. “Vai menos que antes, porque é longe”, conta a esposa Vanusa. “Uma vez ele pegou a caminhonete, juntou um monte de mudas de árvore e levou para plantar”. Valter ri ao se lembrar do caso: “quando voltei, as formigas tinham comido tudo!”

Com dois filhos, Thiago, de 29, e Bruno, de 27, o casal está junto há 30 anos. Conheceram-se na praia. Como mineiros que se prezam, em Guarapari. “Estava sentada na areia e o vi passando – nunca o tinha visto. Virei para o meu avô e falei: é com esse aí que eu vou casar”, rememora Vanusa. Valter descon-versa, com um sorriso largo no ros-to: “Ela fala, mas isso aí é história dela”. o fato é que, um ano depois da troca de olhares à beira-mar, se casaram.

sonhando aCordado“o Valter é uma pessoa muito

coerente”, avalia o coordenador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa. os dois trabalharam juntos por muito tempo na criação do Co-mitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, em 1998, e depois como membros. Valter foi secretário do ór-

gão durante três mandatos e hoje é vice-presidente. Também é membro de dois outros comitês, represen-tando a Copasa nos rios Paraopeba e São Francisco.

Dos comitês, trouxe para a em-presa a idéia de se trabalhar os re-cursos hídricos através de ações por bacia, não por regiões do estado ou por município. “Com o trabalho na área eu cresci muito, conheci muita gente e aprendi muita coisa. Tenho muito mais bagagem do que tinha antes”, avalia.

Em dois anos, Valter deve se apo-sentar, mas não quer largar a causa dos recursos hídricos. Quer continu-ar participando dos comitês de ba-cia hidrográfica, por meio de outras instituições que lidam com a causa. “Quem sabe eu não entro para o Ma-nuelzão!”, brinca ele, como quem parece não estar cansado de levar trabalho para casa. Às vezes, Val-ter acaba até sonhando com as coi-sas. “Muitas vezes você sonha com umas coisas interessantes. É sonhar acordado, sabe. Às vezes você está vendo um filme e... opa! Dá certo!”, conta ele, que gosta de um cinema nos momentos de folga.

Mas, para descansar, nada como a companhia dos amigos. Parte do grupo, muitos já aposentados pela Copasa, o acompanha desde a épo-ca de Guarapari, quando conheceu Vanusa. “Não pode faltar o boteco com a turma. Na sexta-feira é sagra-do”. Novamente rindo, ele emenda a fala e aponta para o gravador: “isso aí você vai cortar, né? Não coloca na matéria, não!”.

Filipe mottaestudante de Comunicação Social da uFmG

Valter Vilela: plantou árvores, fez família e ainda teve tempo para Copasa e comitês de bacia

o engenheiro valter vilela deu

importantes contribuições

para a política de recursos hídricos

em minas Gerais

Foto

: Fil

iPe

mo

tta

Page 24: Manuelzão #49

Além de garantir a sua água, a Copasa está trabalhando

para garantir a vida nos rios de Minas.

Quando se fala na Copasa, a gente logo pensa

na água pura e saudável que chega todos os

dias na nossa casa. Mas o trabalho da Copasa

vai muito além disso. A Copasa preserva mais

de 24 mil hectares de matas que protegem as

nascentes e mananciais, pois eles são a principal

fonte de abastecimento das nossas cidades. E

depois que você utiliza a água, a Copasa ainda

se preocupa com o tratamento dos esgotos.

Só para você ter idéia, as Estações de Tratamento

de Esgoto do Arrudas e do Onça estão ajudan-

do a trazer a vida de volta ao Rio das Velhas

e conseqüentemente ao Rio São Francisco.

Além disso, a Copasa já opera 16 Estações de

Tratamento de Esgoto nas cidades que fazem

parte da bacia do Rio das Velhas. O objetivo é

cumprir a Meta 2010, idealizada pelo Projeto

Manuelzão, e abraçada pelo Governo de Minas,

que prevê a navegação, a pesca e a natação no

Rio das Velhas a partir de 2010. São obras como

essas que estão ajudando na preservação dos

nossos maiores patrimônios: os rios de Minas.

Mas você também precisa fazer a sua parte.

Utilizar água com responsabilidade é a única

forma de garantir o nosso futuro. Aprenda a

respeitar a natureza. Por que quem preserva

o meio ambiente preserva a própria vida.

Adr_Copasa_Inst_20,2x27,1_V2cm.i1 1 22.02.08 11:41:21