Manuel lopes ecocrítica
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FLAGELADOS DO VENTO LESTE: O “PAISAGÍSTICO” TAMBÉM REVELA.
Fabiana Móes Miranda
Quando se acusou os romances cabo-verdianos, como o de Manuel Lopes, de
serem ―paisagísticos‖ não se podia ter idéia de que na atualidade a paisagem, que tem
mais haver com o ambiente que a romântica ―cor-local‖, poderia se tornar um objeto
propício para a crítica literária. A idéia negativa sobre a ―pintura de paisagens‖
encontra-se em Manuel Ferreira (1979, p.64), embora o autor questione esta afirmação
crítica: ―Pretendeu-se, infundadamente, acusar de ―paisagística‖ (e de muitas coisas
mais) a ficção cabo-verdiana subscrita pelos claridosos, não sabemos se, em grande
parte, com o pensamento em Manuel Lopes.‖
Esta paisagem que constitui a obra de Manuel Lopes não precisa ser entendida
apenas numa contextualização espacial, ou seja, o lugar onde o texto localiza sua
narrativa. A crítica ambiental – ou ecocrítica – poderia contribuir em vários aspectos
para uma atualização crítica do romance Flagelados do Vento Leste, uma vez que,
investiga como se inter-relacionam, de forma cultural, o mundo humano e o mundo
natural.
Embora não utilizarei os textos ligados ao ecocriticismo, tentarei partir de
algumas das principais questões que são oferecidas para uma articulação crítica entre
ambiente e literatura. Lembro, finalmente, que o recorte ambiental não estará em
desarmonia com a estética do autor, uma vez que em entrevista ao Semanário África
(1988, p.67), quando procura demonstrar que a situação do arquipélago e do homem
que o cultiva é uma questão tão geográfica quando histórica e política.
Com meu livro Os Flagelados... não pretendi denunciar por denunciar,
ou remexer feridas dolorosas, mas apenas lembrar que a espada de
Dâmocles está permanentemente suspensa sobre a cabeça de quem faz
agricultura em Cabo Verde, de quem vive dela. (LOPES apud
VENÂNCIO, 1992, p. 68).
Desta forma não podemos desarticular o romance com a representação do meio-
ambiente e os efeitos da natureza sobre as condições humanas, e, apesar das questões
sociais, que se conjugam a partir do clima adverso, não podemos ver esta união como
apenas simbólica ou romantizada entre homem e o espaço físico.
1. Espaço: Geografia e Linguagem
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As formas de articulação que mencionei, entre ecocrítica e o romance de Manuel
Lopes, se mostram coerentes como qualquer outra análise crítica que se proceda de
forma interdisciplinar. Uma análise assim permite, por exemplo, o que o próprio autor
colocou quando demonstra a problemática da densidade populacional de Cabo Verde e
o período de estiagem:
Não procurei assim denunciar casos episódicos, mas uma situação
histórica, generalizada, que se repete ciclicamente em todo o
arquipélago desde o seu achamento pelos cavaleiros henriquinos, em
1460, até aos nossos dias, 1959. Quero dizer que os «flagelados»
aconteceram desde que o nosso arquipélago começou a ser povoado; e
as estatísticas são impressionantes: em 1900 a população de Cabo
Verde pouco excedia os 150 000, para repetir, a papel químico, o
mesmo quantitativo em 1950! A partir das medidas tomadas em 1959,
outro drama se esboça: o aumento populacional processa-se de forma
explosiva, ultrapassando em flecha o limite da sustentação dos
modestos recursos alimentares. (LOPES apud VENÂNCIO, 1992,
p.68).
Certamente, existe mais de uma questão nesta observação do autor, que não
fundamentaria apenas o aspecto ambiental de sua obra, mas as preocupações sociais
correm paralelas aos ―recursos alimentares‖ e ao alto índice de desemprego (citado
pouco depois por Lopes). O autor não deixa de afirmar que as atitudes políticas, após a
separação com Portugal, foram positivas, pois permitiram ações contra as crises em
Cabo Verde. Também, não podemos esquecer que estamos relacionando o período em
que o romance foi escrito e os contingentes a ele relacionados.
Uma segunda afirmação sobre o romance e sua relação ao meio-ambiente (na
forma como se expressa através do texto, já que não podemos dizer que a idéia sobre
ambiente naquele período fosse idêntica a que fazemos na atualidade) é a observação de
José Carlos Venâncio (1992, p.15), ―Os Flagelados do Vento Leste tem como
personagens principais o vento que sopra do Sara, o Harmatão, do continente africano,
baptizado em Cabo Verde por ―Vento Leste‖, e os seus efeitos: a seca.‖
Concluir que o Vento Leste, e não os flagelados, é o protagonista não invalida os
personagens humanos que vão sendo destruídos como a plantação pelo vento, mas
permite que se sobressaia, como compreende Manuel Lopes, a relação – não de
casualidade, nem de ―uma fatalidade e por isso limitado na visão do autor-narrador‖
como afirma Manuel Ferreira (1977, p.64), entre a geografia humana e a geografia
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física. De certa forma, estas são condições primárias que diferenciaram Cabo Verde de
sua metrópole, Portugal.
Ainda segundo Manuel Lopes a escassez de recursos naturais fez com que
Portugal não se interessasse integralmente por Cabo Verde e isso, muitas vezes,
permitiu uma ―independência‖ maior, pois contribuiu para certa autonomia cultural
cabo-verdiana. Um exemplo, mencionado por Hamilton Russell (1991), é a própria
linguagem, em que o crioulo se manteve tão forte quanto o português: ―nas ilhas de
Cabo Verde, por exemplo, estimativas colocam o número de pessoas cuja materna e
única língua é o crioulo como 70% da população total.‖1 Como a linguagem é tomada
como um fator de domínio político do colonizador, a colocação de Manuel Lopes
poderia ser aceita como uma resistência na forma ―híbrida‖ do crioulo.
Entretanto, os próprios escritores cabo-verdianos, que também, valorizam esta
diglossia (aliás, são muitos os dialetos falados nas ilhas de Cabo Verde), como Manuel
Veiga, que embora desejassem oficializar o crioulo, consideram autores como Camões e
Fernando Pessoa patrimônios do povo africano de língua portuguesa. Essa relação com
os autores portugueses – valorizando tanto a língua quanto a literatura – vem em
contrapartida de uma criação literária que misture o crioulo com o português. Isto
oferece uma originalidade aos escritos cabo-verdianos, principalmente depois da
independência das colônias portuguesas na África.
Junto com estes fatores está a polêmica se o termo lusofonia é ou não pertinente,
uma vez que parece oferecer uma língua standard, que na realidade não existiria. Como
afirma Luadino Vieira, autor angolano, ―morreram angolanos na guerrilha por estarem a
ensinar a língua portuguesa. E, se calhar, ensinamos muitos mais angolanos a ler e
escrever a língua portuguesa do que o estado colonial durante os anos em que
infelizmente nos dominou.‖ É desta forma que o autor considera a língua portuguesa
―um troféu de guerra‖.
Em relação ainda a linguagem africana, existe o seu caráter de oralidade, que
problematiza uma outra forma de espacialidade, a da relação com o Outro. A relação
física e de conhecimento estabelecida na transmissão, através de ritos e narrativas, da
memória cultural do povo africano, é também uma questão biológica, segundo Alfredo
Margarido: ―Isso passa-se de maneira completamente diferente nas suas sociedades com
escrita, nas quais a memória já não é essencialmente biológica.‖(1980, p.107) E mais
1 ―In Cape Verde islands, for example, estimates put the number of people whose maternal and only
language is Creoule at about seventy percent of the total population.‖
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adiante, ressalta a ―presença da escrita, entendida como técnica de dominação, capaz de
modificar tanto as relações interculturais como interétnicas.‖(1980, p. 108). Para o
autor, a cultura da oralidade justificou o aparecimento tardio de uma literatura na África
Negra, embora, seria mais correto imaginar a narrativa oral como uma forma também
literária, embora não grafada.
Contudo, não podemos determinar tudo isso com a relação ―tal sociedade, tal
texto‖ como já justificada por certa crítica. O que se procura é saber como estes
elementos se encadeiam e se recriam textualmente.
2. Espaço: Nhô Isé e Lestada
No romance Flagelos do Vento Leste, Manuel Lopes representa um dos muitos
períodos de estiagem na ilha de Santo Antão,
para a região central dessa ilha, na zona de sequeiros onde fui
encontrar dos mais genuínos trabalhadores agrícolas de Cabo Verde,
vítimas privilegiadas das estiagens do arquipélago. Ali convivi com os
homens da terra, da enxada, do trabalho duro, com os seus dramas
reais; para melhor observação e convivência comprei uma pequena
propriedade e construí uma casinha. Cheguei a pegar na enxada para
lhes mostrar que também sabia cavar como eles. Criei amigos. Criei
amizades e confiança. O período de terrível estiagem que ali passei
(ano de 1942) inspirou-me mais tarde Os Flagelados do Vento Leste.
Talvez para fugir ao gesto de Pilatos. (LOPES, 1979, p.68)
Mas, se apesar do romance não ser uma simples transposição da realidade para o
texto, podemos verificar que a realidade está enquadrada sobre dois aspectos diferentes:
o do homem e o da natureza. Estes dois aspectos vão se unindo até formar um único
quadro, que é a migração de todo um povoado. O homem é mostrado na figura principal
de José da Cruz, o agricultor obstinado que não aceita a deixar seu espaço. A natureza é
mostrada nas constantes mudanças do Céu.
A primeira relação entre o Céu e nhô Isé ocorre num sonho, onde o agricultor vê
a figura de um anjo derramando um balde de água sobre a Terra. A partir deste sonho,
que é tomado como uma premonição, o protagonista começa a semear o milho em pó,
esperando a chuva.
Uma noite José da Cruz foi para cama animado. Cheirava-lhe que o
tempo ia mudar de um momento para outro. Dormiu profundamente.
De manhã cedo acordou agitado, sentou-se no esteirado. A transição
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do sono para a vigília foi tão brusca, que ele teve a impressão de que
escorria água. (LOPES, 1979, p. 16).
A chuva que José da Cruz chama de ―esmola de Deus‖ e ―esmola do Céu‖ não
parecia convencer os outros vizinhos a abrirem cova e colocarem o pouco milho que
ainda possuíam. Só Manuelinho e João Felícia o seguiram na plantação. Mas, o Céu
agia contrario ao trabalho dos homens, agitando os ventos, como o rei Eolos:
Frente a frente, como irmãos inimigos, a monção úmida cede terreno
ao alisado do Norte que a empurra para lá dos limites necessários. Só
quando este adormece, ou se esquece da sua missão de limpeza — e
isso é tão raro! - é que a umidade surge do Atlântico Sul, invade a
atmosfera com as cautelas de quem entra pela porta traseira, chegam
as nuvens, acastelam-se, pesam, encobrem o sol; nas camadas
superiores as gotículas gelam, os grãos de gelo engrossam,
desequilibram-se, são atraídos pela força da gravidade, tombam as
primeiras gotas de chuva por vezes em meio de uma sarabanda de
vento quase tempestuoso — é o começo das águas. (LOPES, 1979,
p.24).
Por sucessivas vezes, o Céu vai mudar, prometendo a chuva e depois afastando
as nuvens: ―Acontece que o Nordeste acorda a tempo de não permitir a formação de
todo este cerimonial.‖ (LOPES, 1979, p. 24) Nhô Isé acompanha cada alteração,
erguendo o seu canhoto para o alto. Pressagiando na umidade e nas mudanças naturais,
―aspirou o ar, impregnado de um cheiro gordo e bom a terra saturada. Sentiu-o penetrar-
lhe o sangue como uma comida substancial entrando num estômago faminto.‖(LOPES,
1979, p.31).
Após uma forte chuva, que serviu para fazer brotar o milho, as mudanças
recomeçam e é a viúva Aninhas que faz o primeiro augúrio, quando conta sobre um
vento que arrastou uma criança. Neste meio tempo, entre a luta de nhô Isé e o Céu,
aparece um forasteiro português, Miguel Alves, que viajou até as ilhas unicamente para
rever Maria Alice, a professora do povoado. Os dois tinham se conhecido num barco –
novamente Manuel Lopes traz para a narrativa um casal que se apaixona durante uma
curta viagem, como ocorre em Galo cantou na Baía.
O aparecimento de Miguel Alves, que se mostra interessado em comprar as
terras em que trabalha nhô Isé, se transforma, para o lavrador, numa nova esperança,
imaginando que o novo proprietário se interessaria em auxiliar até mesmo com um saco
de cimento, que era tudo o que José da Cruz queria para fazer uma covoada que serviria
para plantações de batata, mandioca e cana.
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―Todo mundo vivia contente porque o Céu era amigo da Terra.‖ (LOPES, 1979,
p. 66). Mas, o vento quente já estava soprando. E o narrador demonstra a luta da
natureza contra a natureza: a Terra e o Céu.
Outubro começou com vento rijo. Os milharais dobrados para o sul, as
canas, de folhas sacudidas, cavalgando umas sobre as outras. Só em
certas covoadas, em certas vertentes, as plantas tomavam direções
diversas devido aos desvios do vento; punham uma nota discordante
no mundo geral; havia recantos onde redemoinhos semeavam a mais
completa indisciplina. As raízes agarravam-se tenazes à terra, numa
vontade quase humana de sobrevivência — não cediam um palmo de
vida à fúria danada do nordeste. E a crosta verde dos campos ondulava
até o litoral, como um mar viscoso que transbordasse dos cumes da
serrania. (LOPES, 1979, p.62).
Então, começa a luta do homem: ―o homem tornava-se força contrária às forças
da Natureza.‖ (LOPES, 1979, p.95) Entretanto, não há um afastamento do homem com
o que ele semeou, pois existe a cumplicidade que faz com que ―os milharais agitavam-
se aflitamente, como pedindo socorro aos homens.‖ (LOPES, 1979, p.94) Para José da
Cruz tudo o que ocorria era um mandato de Deus e essa luta com o Céu era uma luta
com Deus. Uma luta impossível, que apenas se pode constatar pela Lestada.
José da Cruz assistia, impotente, à desintegração irremediável. Donde
estava, podia observar o vizinho Manuelinho, plantado, como
espantalho, no terreiro da sua casa onde, dois dias antes, à claridade da
lua, estivera tocando viola entre raparigas cantadeiras; e, mais abaixo,
o compadre João Felícia, encarapitado num lombo de terra perto da
sua casa. Entre as piteiras, na curva do caminho no alto da assomada,
a viúva Aninhas sacudiu os braços como os feijoeiros e as
aboboreiras. (LOPES, 1979, p. 94).
Todos estes acontecimentos levam para a parte central do romance de Manuel
Lopes, aos flagelados. Com a perda da colheita, o povo faminto começa a abandonar a
terra, partindo a procura de uma nova região em que possam se empregar – a idéia é
trabalhar nas Obras Públicas do Posto. Entretanto, precisam fazer uma longa caminhada
e muitos vão morrendo pelo caminho. José da Cruz resolve ficar, ainda imaginando uma
mudança favorável do Céu. Neste romance africano não é a guerra que dispersa os
homens e mulheres de seus lugares de origem, a fuga em massa ocorre pela ―luta
silenciosa, de vida ou de morte.‖ (LOPES, 1976, p. 95).
O homem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam fora dessa
medida, e o homem não se podia incriminar pelo que sucedia fora da
sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos
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homens, mas o dever do homem era lutar mesmo contra esses
desígnios. (LOPES, 1979, p. 95).
A obstinação de José da Cruz acarretará na sua ruína e na de sua família –
embora, os que tenham escapado das desgraças naturais não tenham tido melhor chance
na caminhada. Mais adiante, quando nhô Isé finalmente tenha deixado sua terra,
partindo a esmo, ele encontrará nhô Lourencinho, um proprietário de terras, que o
reconhecerá. Tanto como Miguel Alves - que só tinha sonhos, chegando a expulsar João
Felícia e sua filha de sua propriedade, pois, a visão de criaturas famintas se mostrava
como uma realidade que não lhe interesava - nhô Lourencinho também parece não
perceber a miséria de nhô Isé e nem de nenhum daqueles flagelados. Para ele José da
Cruz, havia caído por não trabalhar como um homem. ―Agora, ouve uma coisa, homem,
ouve o que vou dizer: o que te falta é endireiteza, ouviste? Dignidade. Eu não sabia que
te faltava dignidade. Isso é que eu não sabia. Caíste muito baixo.‖ (LOPES, 1979, p.
231).
As palavras de nhô Lourencinho colocam um fim a existência de José da Cruz,
todo o seu trabalho se mostrou, até mesmo, não reconhecido. E sua destruição ocorre
em comunhão com a natureza e com o Céu. ―Uma grande nuvem negra abafou o sol. As
montanhas, de repente, desabaram. Todas as luzes se apagaram e as trevas envolveram a
ilha. E quando a árvore tombou e o tronco se desfez na escuridão, José da Cruz caiu
desamparado.‖ (LOPES, 1979, p. 233).
3. Espaço: Leandro e os Pássaros.
Em Flagelados do Vento Leste encontramos um romance que se insere no romance.
O romance na montanha narra a vida do filho mais velho de nhô Isé: Leandro. Leandro
é pastor e vive isolado numa montanha, tanto por seu trabalho como por ser uma pessoa
solitária, ele poderia representar uma ―consciência selvagem‖. Sua própria aparência o
coloca fora do convívio normal com os outros homens, o rasgão em sua boca faz com
que as pessoas desconfiem dele. Durante a seca, Leandro pensando na própria
sobrevivência e na de sua família torna-se um salteador, roubando assim os que passam
pelas montanhas.
Mas, podemos imaginar a figura de José da Cruz como a árvore (lugar dos
antepassados), que tem raízes bem firmes ao solo, podemos ver em Leandro a
representação pelos pássaros, ou melhor, como o corvo.
![Page 8: Manuel lopes ecocrítica](https://reader038.fdocumentos.tips/reader038/viewer/2022100507/55995bf41a28abe60a8b4776/html5/thumbnails/8.jpg)
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No começo do romance nos é apresentado dois corvos Becente e Becenta, que
tentam roubar os grãos de milho colocados nas covas. O trabalho de Mochinho e de
seus irmãos – todos meio-irmãos de Leandro – e também de todas as crianças do
povoado, é espantarem os corvos. ―Becente e Becenta observaram as manobras e
concluíram que as medidas tomadas eram semelhantes às práticas anteriores; os homens
não tinham inventado nada de novo que diferisse dos processos conhecidos.‖ (LOPES,
1979, p. 45).
As crianças passavam o dia espantando os corvos, lançando pedras e fazendo
barulho para afastá-los. Mochinho, que se achava ―homem‖ queria ajudar o pai em
outras tarefas. O rito de passagem era a utilização do ―carrapato‖, amarrado a cintura e
que lhe cobria a nudez total.
Aquela tira de carrapato era sinal de trabalho, símbolo de
emancipação, na idéia do rapaz. Significava que nele se estava
operando a passagem de menino para homem. Na verdade, era o
começo da escravização do menino pela terra, sob o disfarce tentador
da responsabilidade de homem. (LOPES, 1979, p.49).
O corvo não é apenas o astuto inimigo do homem, na história de Miguel Torga,
o corvo Vicente é aquele que se revolta contra os desígnios de Deus e foge da arca,
encontrando ainda no universo um lugar com terra. Mas, se Leandro se assemelha ao
Vicente que desafia os acontecimentos naturais, ele também é como o Becente que leva
do trabalho alheio. Sua vida de roubos envergonha nhô Isé, que não tem outra crença
senão o esforço próprio, e este orgulho de certa forma o perde, levando Zepa e suas
crianças para a morte. ―Este mundo não fora para quem se agarra demasiado aos hábitos
da vida, para quem criava amor às suas coisas.‖
Leandro, que vivia apenas com seu cachorro Picaroto, encontra Libânia – que
por ter roubado um pote de doce da casa de Maria Alice, leva uma surra da mãe e foge.
Libânia e Leandro passam a viver nas montanhas até que ele vai a cidade e lá é acusado
como assassino – Avis rara, como disse o chefe do posto. Ele é apedrejado pela
multidão e preso. Este crime que ele não cometeu compensa outro em que foi
responsável, a morte de Aninhas que todos consideravam uma feiticeira.
Ela resistia espantosamente, continuava a debater-se soltando
guinchos como um porco em agonia, coleando debaixo daqueles
punhos com a mesma agressividade duma gata assanhada. Então,
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tomado de pânico, lembrando-se de que ela era bruxa, Leandro saltou
sobre o seu peito com os joelhos fincados e, dobrando-se todo e
chamando a si toda a energia, apertou num derradeiro esforço até que,
exausto, tombou ao lado do cadáver da velha. (LOPES, 1979, p. 158).
Depois de deixar a cadeia, Leandro volta para as montanhas e não encontra
Libânia. Acaba morrendo ao lado de Picaroto.
Quando Libânia penetrou no interior da gruta sentiu as pernas
fraquejarem. Pairava ali dentro um leve cheiro de putrefação. Leandro
estava estendido sobre os sacos, de borco, a cara virada para o lado, os
carnudos lábios entreabertos como se ainda não tivesse proferido a
última palavra, os olhos parados, vítreos, pequeninos e oblíquos, e a
cicatriz medonha e ameaçadora. As peles tinham sido afastadas, de
modo que se via, ao seu lado, o inseparável Picaroto, que parecia
dormir, enrodilhado e hirsuto, o focinho apoiado à cauda. (LOPES,
1979, p. 266).
As canhotas que sobrevoavam as montanhas, sentido o cheiro da decomposição,
também fazem parte do Céu do romance.
As duas canhotas, que se tinham afastado com a presença do rapaz e
da rapariga, retomaram o seu vôo circular à roda do penhasco. Uma
delas aproximou-se tanto que a Libânia ouviu o ruído das asas
rasgando o vento no momento em que a sombra agoirenta lhe batia na
cara. (LOPES, 1979, p. 267).
4. Espaço: Desamparinho
O romance de Manuel Lopes, assim com Vidas Secas de Graciliano Ramos, trata
das conseqüências da seca na vida de quem dependo do solo para a subsistência. Os
animais das histórias – Becente, Becenta, Picaroto, Baleia e as anônimas canhotas –
compartilham com os mesmos instintos de sobrevivência dos homens.
De certa forma, se cabe ao realismo, ou neo-realismo, representar situações reais da
sociedade, e nisto demonstrar as relações entre o homem e o ambiente em que está
inserido, há também espaço para questionar o modo como culturalmente se representa a
natureza.
O Céu que tanto representa o caminho do mundo humano para Deus, - ―era o
mesmo que trepar para o Céu numa escada de corda! Meu Deus, como chegar lá? A
ferida na cabeça latejava como se estivesse sendo golpeada por invisível faca.‖(LOPES,
1979, p. 254) ou ainda, representa o castigo divino,
![Page 10: Manuel lopes ecocrítica](https://reader038.fdocumentos.tips/reader038/viewer/2022100507/55995bf41a28abe60a8b4776/html5/thumbnails/10.jpg)
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O inferno abrira as suas portas e os anjos maus desceram para os
campos, semeando labaredas com o seu hálito de fogo. O ar que
circulava no interior da casa queimava os lábios, secava as narinas e a
garganta, doía nos cantos dos olhos. A própria mesa, os bancos, os pés
e o esteirado da cama gemiam sob o látego do suão. (LOPES, 1979,
p. 107).
- é também parte do mundo natural. Podendo se apresentar na indiferença de
Leandro pelos homens e seu amor pelas nuvens, estrelas, plantas silvestres e aves.
À noite, apagados os vestígios do desamparinho, as estrelas surgiam
uma a uma, até que, em certa altura, inesperadamente, enchiam todo o
céu. Estrelas sem fim, por toda a parte fervilhando, umas pálidas,
outras dum vivo azul irrequieto e frio, algumas coloridas, Verde-
rubras, rubro-verdes, explodindo na noite negra como fósforos de cor.
(LOPES, 1979, p.111).
Neste ―desamparinho‖ podemos ver ressurgir os flagelados de Lopes, criando e unindo
espaços de romance e natureza.
Referências bibliográficas
LOPES, Manuel. Os Flagelados do Vento Leste. São Paulo: Ática, 1979.
_____________. Galo cantou na Baía. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1998.
HAMILTON, Russell. África, and Matters of languages and Letters. Vanderbilt
University. v. 74, number 3, sep, 1991.
MARGARIDO, Alfredo. Estudo sobre literatura das nações africanas de língua
portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e Poder na África Lusófona. Lisboa: Ministério da
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FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – I. 1 ed.
Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.
Site: http://www.asle.umn.edu/archive/intro/cohen.html
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