Manuel lopes ecocrítica

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FLAGELADOS DO VENTO LESTE: O “PAISAGÍSTICO” TAMBÉM REVELA.

Fabiana Móes Miranda

Quando se acusou os romances cabo-verdianos, como o de Manuel Lopes, de

serem ―paisagísticos‖ não se podia ter idéia de que na atualidade a paisagem, que tem

mais haver com o ambiente que a romântica ―cor-local‖, poderia se tornar um objeto

propício para a crítica literária. A idéia negativa sobre a ―pintura de paisagens‖

encontra-se em Manuel Ferreira (1979, p.64), embora o autor questione esta afirmação

crítica: ―Pretendeu-se, infundadamente, acusar de ―paisagística‖ (e de muitas coisas

mais) a ficção cabo-verdiana subscrita pelos claridosos, não sabemos se, em grande

parte, com o pensamento em Manuel Lopes.‖

Esta paisagem que constitui a obra de Manuel Lopes não precisa ser entendida

apenas numa contextualização espacial, ou seja, o lugar onde o texto localiza sua

narrativa. A crítica ambiental – ou ecocrítica – poderia contribuir em vários aspectos

para uma atualização crítica do romance Flagelados do Vento Leste, uma vez que,

investiga como se inter-relacionam, de forma cultural, o mundo humano e o mundo

natural.

Embora não utilizarei os textos ligados ao ecocriticismo, tentarei partir de

algumas das principais questões que são oferecidas para uma articulação crítica entre

ambiente e literatura. Lembro, finalmente, que o recorte ambiental não estará em

desarmonia com a estética do autor, uma vez que em entrevista ao Semanário África

(1988, p.67), quando procura demonstrar que a situação do arquipélago e do homem

que o cultiva é uma questão tão geográfica quando histórica e política.

Com meu livro Os Flagelados... não pretendi denunciar por denunciar,

ou remexer feridas dolorosas, mas apenas lembrar que a espada de

Dâmocles está permanentemente suspensa sobre a cabeça de quem faz

agricultura em Cabo Verde, de quem vive dela. (LOPES apud

VENÂNCIO, 1992, p. 68).

Desta forma não podemos desarticular o romance com a representação do meio-

ambiente e os efeitos da natureza sobre as condições humanas, e, apesar das questões

sociais, que se conjugam a partir do clima adverso, não podemos ver esta união como

apenas simbólica ou romantizada entre homem e o espaço físico.

1. Espaço: Geografia e Linguagem

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As formas de articulação que mencionei, entre ecocrítica e o romance de Manuel

Lopes, se mostram coerentes como qualquer outra análise crítica que se proceda de

forma interdisciplinar. Uma análise assim permite, por exemplo, o que o próprio autor

colocou quando demonstra a problemática da densidade populacional de Cabo Verde e

o período de estiagem:

Não procurei assim denunciar casos episódicos, mas uma situação

histórica, generalizada, que se repete ciclicamente em todo o

arquipélago desde o seu achamento pelos cavaleiros henriquinos, em

1460, até aos nossos dias, 1959. Quero dizer que os «flagelados»

aconteceram desde que o nosso arquipélago começou a ser povoado; e

as estatísticas são impressionantes: em 1900 a população de Cabo

Verde pouco excedia os 150 000, para repetir, a papel químico, o

mesmo quantitativo em 1950! A partir das medidas tomadas em 1959,

outro drama se esboça: o aumento populacional processa-se de forma

explosiva, ultrapassando em flecha o limite da sustentação dos

modestos recursos alimentares. (LOPES apud VENÂNCIO, 1992,

p.68).

Certamente, existe mais de uma questão nesta observação do autor, que não

fundamentaria apenas o aspecto ambiental de sua obra, mas as preocupações sociais

correm paralelas aos ―recursos alimentares‖ e ao alto índice de desemprego (citado

pouco depois por Lopes). O autor não deixa de afirmar que as atitudes políticas, após a

separação com Portugal, foram positivas, pois permitiram ações contra as crises em

Cabo Verde. Também, não podemos esquecer que estamos relacionando o período em

que o romance foi escrito e os contingentes a ele relacionados.

Uma segunda afirmação sobre o romance e sua relação ao meio-ambiente (na

forma como se expressa através do texto, já que não podemos dizer que a idéia sobre

ambiente naquele período fosse idêntica a que fazemos na atualidade) é a observação de

José Carlos Venâncio (1992, p.15), ―Os Flagelados do Vento Leste tem como

personagens principais o vento que sopra do Sara, o Harmatão, do continente africano,

baptizado em Cabo Verde por ―Vento Leste‖, e os seus efeitos: a seca.‖

Concluir que o Vento Leste, e não os flagelados, é o protagonista não invalida os

personagens humanos que vão sendo destruídos como a plantação pelo vento, mas

permite que se sobressaia, como compreende Manuel Lopes, a relação – não de

casualidade, nem de ―uma fatalidade e por isso limitado na visão do autor-narrador‖

como afirma Manuel Ferreira (1977, p.64), entre a geografia humana e a geografia

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física. De certa forma, estas são condições primárias que diferenciaram Cabo Verde de

sua metrópole, Portugal.

Ainda segundo Manuel Lopes a escassez de recursos naturais fez com que

Portugal não se interessasse integralmente por Cabo Verde e isso, muitas vezes,

permitiu uma ―independência‖ maior, pois contribuiu para certa autonomia cultural

cabo-verdiana. Um exemplo, mencionado por Hamilton Russell (1991), é a própria

linguagem, em que o crioulo se manteve tão forte quanto o português: ―nas ilhas de

Cabo Verde, por exemplo, estimativas colocam o número de pessoas cuja materna e

única língua é o crioulo como 70% da população total.‖1 Como a linguagem é tomada

como um fator de domínio político do colonizador, a colocação de Manuel Lopes

poderia ser aceita como uma resistência na forma ―híbrida‖ do crioulo.

Entretanto, os próprios escritores cabo-verdianos, que também, valorizam esta

diglossia (aliás, são muitos os dialetos falados nas ilhas de Cabo Verde), como Manuel

Veiga, que embora desejassem oficializar o crioulo, consideram autores como Camões e

Fernando Pessoa patrimônios do povo africano de língua portuguesa. Essa relação com

os autores portugueses – valorizando tanto a língua quanto a literatura – vem em

contrapartida de uma criação literária que misture o crioulo com o português. Isto

oferece uma originalidade aos escritos cabo-verdianos, principalmente depois da

independência das colônias portuguesas na África.

Junto com estes fatores está a polêmica se o termo lusofonia é ou não pertinente,

uma vez que parece oferecer uma língua standard, que na realidade não existiria. Como

afirma Luadino Vieira, autor angolano, ―morreram angolanos na guerrilha por estarem a

ensinar a língua portuguesa. E, se calhar, ensinamos muitos mais angolanos a ler e

escrever a língua portuguesa do que o estado colonial durante os anos em que

infelizmente nos dominou.‖ É desta forma que o autor considera a língua portuguesa

―um troféu de guerra‖.

Em relação ainda a linguagem africana, existe o seu caráter de oralidade, que

problematiza uma outra forma de espacialidade, a da relação com o Outro. A relação

física e de conhecimento estabelecida na transmissão, através de ritos e narrativas, da

memória cultural do povo africano, é também uma questão biológica, segundo Alfredo

Margarido: ―Isso passa-se de maneira completamente diferente nas suas sociedades com

escrita, nas quais a memória já não é essencialmente biológica.‖(1980, p.107) E mais

1 ―In Cape Verde islands, for example, estimates put the number of people whose maternal and only

language is Creoule at about seventy percent of the total population.‖

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adiante, ressalta a ―presença da escrita, entendida como técnica de dominação, capaz de

modificar tanto as relações interculturais como interétnicas.‖(1980, p. 108). Para o

autor, a cultura da oralidade justificou o aparecimento tardio de uma literatura na África

Negra, embora, seria mais correto imaginar a narrativa oral como uma forma também

literária, embora não grafada.

Contudo, não podemos determinar tudo isso com a relação ―tal sociedade, tal

texto‖ como já justificada por certa crítica. O que se procura é saber como estes

elementos se encadeiam e se recriam textualmente.

2. Espaço: Nhô Isé e Lestada

No romance Flagelos do Vento Leste, Manuel Lopes representa um dos muitos

períodos de estiagem na ilha de Santo Antão,

para a região central dessa ilha, na zona de sequeiros onde fui

encontrar dos mais genuínos trabalhadores agrícolas de Cabo Verde,

vítimas privilegiadas das estiagens do arquipélago. Ali convivi com os

homens da terra, da enxada, do trabalho duro, com os seus dramas

reais; para melhor observação e convivência comprei uma pequena

propriedade e construí uma casinha. Cheguei a pegar na enxada para

lhes mostrar que também sabia cavar como eles. Criei amigos. Criei

amizades e confiança. O período de terrível estiagem que ali passei

(ano de 1942) inspirou-me mais tarde Os Flagelados do Vento Leste.

Talvez para fugir ao gesto de Pilatos. (LOPES, 1979, p.68)

Mas, se apesar do romance não ser uma simples transposição da realidade para o

texto, podemos verificar que a realidade está enquadrada sobre dois aspectos diferentes:

o do homem e o da natureza. Estes dois aspectos vão se unindo até formar um único

quadro, que é a migração de todo um povoado. O homem é mostrado na figura principal

de José da Cruz, o agricultor obstinado que não aceita a deixar seu espaço. A natureza é

mostrada nas constantes mudanças do Céu.

A primeira relação entre o Céu e nhô Isé ocorre num sonho, onde o agricultor vê

a figura de um anjo derramando um balde de água sobre a Terra. A partir deste sonho,

que é tomado como uma premonição, o protagonista começa a semear o milho em pó,

esperando a chuva.

Uma noite José da Cruz foi para cama animado. Cheirava-lhe que o

tempo ia mudar de um momento para outro. Dormiu profundamente.

De manhã cedo acordou agitado, sentou-se no esteirado. A transição

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do sono para a vigília foi tão brusca, que ele teve a impressão de que

escorria água. (LOPES, 1979, p. 16).

A chuva que José da Cruz chama de ―esmola de Deus‖ e ―esmola do Céu‖ não

parecia convencer os outros vizinhos a abrirem cova e colocarem o pouco milho que

ainda possuíam. Só Manuelinho e João Felícia o seguiram na plantação. Mas, o Céu

agia contrario ao trabalho dos homens, agitando os ventos, como o rei Eolos:

Frente a frente, como irmãos inimigos, a monção úmida cede terreno

ao alisado do Norte que a empurra para lá dos limites necessários. Só

quando este adormece, ou se esquece da sua missão de limpeza — e

isso é tão raro! - é que a umidade surge do Atlântico Sul, invade a

atmosfera com as cautelas de quem entra pela porta traseira, chegam

as nuvens, acastelam-se, pesam, encobrem o sol; nas camadas

superiores as gotículas gelam, os grãos de gelo engrossam,

desequilibram-se, são atraídos pela força da gravidade, tombam as

primeiras gotas de chuva por vezes em meio de uma sarabanda de

vento quase tempestuoso — é o começo das águas. (LOPES, 1979,

p.24).

Por sucessivas vezes, o Céu vai mudar, prometendo a chuva e depois afastando

as nuvens: ―Acontece que o Nordeste acorda a tempo de não permitir a formação de

todo este cerimonial.‖ (LOPES, 1979, p. 24) Nhô Isé acompanha cada alteração,

erguendo o seu canhoto para o alto. Pressagiando na umidade e nas mudanças naturais,

―aspirou o ar, impregnado de um cheiro gordo e bom a terra saturada. Sentiu-o penetrar-

lhe o sangue como uma comida substancial entrando num estômago faminto.‖(LOPES,

1979, p.31).

Após uma forte chuva, que serviu para fazer brotar o milho, as mudanças

recomeçam e é a viúva Aninhas que faz o primeiro augúrio, quando conta sobre um

vento que arrastou uma criança. Neste meio tempo, entre a luta de nhô Isé e o Céu,

aparece um forasteiro português, Miguel Alves, que viajou até as ilhas unicamente para

rever Maria Alice, a professora do povoado. Os dois tinham se conhecido num barco –

novamente Manuel Lopes traz para a narrativa um casal que se apaixona durante uma

curta viagem, como ocorre em Galo cantou na Baía.

O aparecimento de Miguel Alves, que se mostra interessado em comprar as

terras em que trabalha nhô Isé, se transforma, para o lavrador, numa nova esperança,

imaginando que o novo proprietário se interessaria em auxiliar até mesmo com um saco

de cimento, que era tudo o que José da Cruz queria para fazer uma covoada que serviria

para plantações de batata, mandioca e cana.

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―Todo mundo vivia contente porque o Céu era amigo da Terra.‖ (LOPES, 1979,

p. 66). Mas, o vento quente já estava soprando. E o narrador demonstra a luta da

natureza contra a natureza: a Terra e o Céu.

Outubro começou com vento rijo. Os milharais dobrados para o sul, as

canas, de folhas sacudidas, cavalgando umas sobre as outras. Só em

certas covoadas, em certas vertentes, as plantas tomavam direções

diversas devido aos desvios do vento; punham uma nota discordante

no mundo geral; havia recantos onde redemoinhos semeavam a mais

completa indisciplina. As raízes agarravam-se tenazes à terra, numa

vontade quase humana de sobrevivência — não cediam um palmo de

vida à fúria danada do nordeste. E a crosta verde dos campos ondulava

até o litoral, como um mar viscoso que transbordasse dos cumes da

serrania. (LOPES, 1979, p.62).

Então, começa a luta do homem: ―o homem tornava-se força contrária às forças

da Natureza.‖ (LOPES, 1979, p.95) Entretanto, não há um afastamento do homem com

o que ele semeou, pois existe a cumplicidade que faz com que ―os milharais agitavam-

se aflitamente, como pedindo socorro aos homens.‖ (LOPES, 1979, p.94) Para José da

Cruz tudo o que ocorria era um mandato de Deus e essa luta com o Céu era uma luta

com Deus. Uma luta impossível, que apenas se pode constatar pela Lestada.

José da Cruz assistia, impotente, à desintegração irremediável. Donde

estava, podia observar o vizinho Manuelinho, plantado, como

espantalho, no terreiro da sua casa onde, dois dias antes, à claridade da

lua, estivera tocando viola entre raparigas cantadeiras; e, mais abaixo,

o compadre João Felícia, encarapitado num lombo de terra perto da

sua casa. Entre as piteiras, na curva do caminho no alto da assomada,

a viúva Aninhas sacudiu os braços como os feijoeiros e as

aboboreiras. (LOPES, 1979, p. 94).

Todos estes acontecimentos levam para a parte central do romance de Manuel

Lopes, aos flagelados. Com a perda da colheita, o povo faminto começa a abandonar a

terra, partindo a procura de uma nova região em que possam se empregar – a idéia é

trabalhar nas Obras Públicas do Posto. Entretanto, precisam fazer uma longa caminhada

e muitos vão morrendo pelo caminho. José da Cruz resolve ficar, ainda imaginando uma

mudança favorável do Céu. Neste romance africano não é a guerra que dispersa os

homens e mulheres de seus lugares de origem, a fuga em massa ocorre pela ―luta

silenciosa, de vida ou de morte.‖ (LOPES, 1976, p. 95).

O homem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam fora dessa

medida, e o homem não se podia incriminar pelo que sucedia fora da

sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos

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homens, mas o dever do homem era lutar mesmo contra esses

desígnios. (LOPES, 1979, p. 95).

A obstinação de José da Cruz acarretará na sua ruína e na de sua família –

embora, os que tenham escapado das desgraças naturais não tenham tido melhor chance

na caminhada. Mais adiante, quando nhô Isé finalmente tenha deixado sua terra,

partindo a esmo, ele encontrará nhô Lourencinho, um proprietário de terras, que o

reconhecerá. Tanto como Miguel Alves - que só tinha sonhos, chegando a expulsar João

Felícia e sua filha de sua propriedade, pois, a visão de criaturas famintas se mostrava

como uma realidade que não lhe interesava - nhô Lourencinho também parece não

perceber a miséria de nhô Isé e nem de nenhum daqueles flagelados. Para ele José da

Cruz, havia caído por não trabalhar como um homem. ―Agora, ouve uma coisa, homem,

ouve o que vou dizer: o que te falta é endireiteza, ouviste? Dignidade. Eu não sabia que

te faltava dignidade. Isso é que eu não sabia. Caíste muito baixo.‖ (LOPES, 1979, p.

231).

As palavras de nhô Lourencinho colocam um fim a existência de José da Cruz,

todo o seu trabalho se mostrou, até mesmo, não reconhecido. E sua destruição ocorre

em comunhão com a natureza e com o Céu. ―Uma grande nuvem negra abafou o sol. As

montanhas, de repente, desabaram. Todas as luzes se apagaram e as trevas envolveram a

ilha. E quando a árvore tombou e o tronco se desfez na escuridão, José da Cruz caiu

desamparado.‖ (LOPES, 1979, p. 233).

3. Espaço: Leandro e os Pássaros.

Em Flagelados do Vento Leste encontramos um romance que se insere no romance.

O romance na montanha narra a vida do filho mais velho de nhô Isé: Leandro. Leandro

é pastor e vive isolado numa montanha, tanto por seu trabalho como por ser uma pessoa

solitária, ele poderia representar uma ―consciência selvagem‖. Sua própria aparência o

coloca fora do convívio normal com os outros homens, o rasgão em sua boca faz com

que as pessoas desconfiem dele. Durante a seca, Leandro pensando na própria

sobrevivência e na de sua família torna-se um salteador, roubando assim os que passam

pelas montanhas.

Mas, podemos imaginar a figura de José da Cruz como a árvore (lugar dos

antepassados), que tem raízes bem firmes ao solo, podemos ver em Leandro a

representação pelos pássaros, ou melhor, como o corvo.

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No começo do romance nos é apresentado dois corvos Becente e Becenta, que

tentam roubar os grãos de milho colocados nas covas. O trabalho de Mochinho e de

seus irmãos – todos meio-irmãos de Leandro – e também de todas as crianças do

povoado, é espantarem os corvos. ―Becente e Becenta observaram as manobras e

concluíram que as medidas tomadas eram semelhantes às práticas anteriores; os homens

não tinham inventado nada de novo que diferisse dos processos conhecidos.‖ (LOPES,

1979, p. 45).

As crianças passavam o dia espantando os corvos, lançando pedras e fazendo

barulho para afastá-los. Mochinho, que se achava ―homem‖ queria ajudar o pai em

outras tarefas. O rito de passagem era a utilização do ―carrapato‖, amarrado a cintura e

que lhe cobria a nudez total.

Aquela tira de carrapato era sinal de trabalho, símbolo de

emancipação, na idéia do rapaz. Significava que nele se estava

operando a passagem de menino para homem. Na verdade, era o

começo da escravização do menino pela terra, sob o disfarce tentador

da responsabilidade de homem. (LOPES, 1979, p.49).

O corvo não é apenas o astuto inimigo do homem, na história de Miguel Torga,

o corvo Vicente é aquele que se revolta contra os desígnios de Deus e foge da arca,

encontrando ainda no universo um lugar com terra. Mas, se Leandro se assemelha ao

Vicente que desafia os acontecimentos naturais, ele também é como o Becente que leva

do trabalho alheio. Sua vida de roubos envergonha nhô Isé, que não tem outra crença

senão o esforço próprio, e este orgulho de certa forma o perde, levando Zepa e suas

crianças para a morte. ―Este mundo não fora para quem se agarra demasiado aos hábitos

da vida, para quem criava amor às suas coisas.‖

Leandro, que vivia apenas com seu cachorro Picaroto, encontra Libânia – que

por ter roubado um pote de doce da casa de Maria Alice, leva uma surra da mãe e foge.

Libânia e Leandro passam a viver nas montanhas até que ele vai a cidade e lá é acusado

como assassino – Avis rara, como disse o chefe do posto. Ele é apedrejado pela

multidão e preso. Este crime que ele não cometeu compensa outro em que foi

responsável, a morte de Aninhas que todos consideravam uma feiticeira.

Ela resistia espantosamente, continuava a debater-se soltando

guinchos como um porco em agonia, coleando debaixo daqueles

punhos com a mesma agressividade duma gata assanhada. Então,

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tomado de pânico, lembrando-se de que ela era bruxa, Leandro saltou

sobre o seu peito com os joelhos fincados e, dobrando-se todo e

chamando a si toda a energia, apertou num derradeiro esforço até que,

exausto, tombou ao lado do cadáver da velha. (LOPES, 1979, p. 158).

Depois de deixar a cadeia, Leandro volta para as montanhas e não encontra

Libânia. Acaba morrendo ao lado de Picaroto.

Quando Libânia penetrou no interior da gruta sentiu as pernas

fraquejarem. Pairava ali dentro um leve cheiro de putrefação. Leandro

estava estendido sobre os sacos, de borco, a cara virada para o lado, os

carnudos lábios entreabertos como se ainda não tivesse proferido a

última palavra, os olhos parados, vítreos, pequeninos e oblíquos, e a

cicatriz medonha e ameaçadora. As peles tinham sido afastadas, de

modo que se via, ao seu lado, o inseparável Picaroto, que parecia

dormir, enrodilhado e hirsuto, o focinho apoiado à cauda. (LOPES,

1979, p. 266).

As canhotas que sobrevoavam as montanhas, sentido o cheiro da decomposição,

também fazem parte do Céu do romance.

As duas canhotas, que se tinham afastado com a presença do rapaz e

da rapariga, retomaram o seu vôo circular à roda do penhasco. Uma

delas aproximou-se tanto que a Libânia ouviu o ruído das asas

rasgando o vento no momento em que a sombra agoirenta lhe batia na

cara. (LOPES, 1979, p. 267).

4. Espaço: Desamparinho

O romance de Manuel Lopes, assim com Vidas Secas de Graciliano Ramos, trata

das conseqüências da seca na vida de quem dependo do solo para a subsistência. Os

animais das histórias – Becente, Becenta, Picaroto, Baleia e as anônimas canhotas –

compartilham com os mesmos instintos de sobrevivência dos homens.

De certa forma, se cabe ao realismo, ou neo-realismo, representar situações reais da

sociedade, e nisto demonstrar as relações entre o homem e o ambiente em que está

inserido, há também espaço para questionar o modo como culturalmente se representa a

natureza.

O Céu que tanto representa o caminho do mundo humano para Deus, - ―era o

mesmo que trepar para o Céu numa escada de corda! Meu Deus, como chegar lá? A

ferida na cabeça latejava como se estivesse sendo golpeada por invisível faca.‖(LOPES,

1979, p. 254) ou ainda, representa o castigo divino,

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O inferno abrira as suas portas e os anjos maus desceram para os

campos, semeando labaredas com o seu hálito de fogo. O ar que

circulava no interior da casa queimava os lábios, secava as narinas e a

garganta, doía nos cantos dos olhos. A própria mesa, os bancos, os pés

e o esteirado da cama gemiam sob o látego do suão. (LOPES, 1979,

p. 107).

- é também parte do mundo natural. Podendo se apresentar na indiferença de

Leandro pelos homens e seu amor pelas nuvens, estrelas, plantas silvestres e aves.

À noite, apagados os vestígios do desamparinho, as estrelas surgiam

uma a uma, até que, em certa altura, inesperadamente, enchiam todo o

céu. Estrelas sem fim, por toda a parte fervilhando, umas pálidas,

outras dum vivo azul irrequieto e frio, algumas coloridas, Verde-

rubras, rubro-verdes, explodindo na noite negra como fósforos de cor.

(LOPES, 1979, p.111).

Neste ―desamparinho‖ podemos ver ressurgir os flagelados de Lopes, criando e unindo

espaços de romance e natureza.

Referências bibliográficas

LOPES, Manuel. Os Flagelados do Vento Leste. São Paulo: Ática, 1979.

_____________. Galo cantou na Baía. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1998.

HAMILTON, Russell. África, and Matters of languages and Letters. Vanderbilt

University. v. 74, number 3, sep, 1991.

MARGARIDO, Alfredo. Estudo sobre literatura das nações africanas de língua

portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.

VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e Poder na África Lusófona. Lisboa: Ministério da

Educação. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.

FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – I. 1 ed.

Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

Site: http://www.asle.umn.edu/archive/intro/cohen.html

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