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Manual do Candidato

Poltica Internacional

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente

Thereza Maria Machado Quintella

CENTRO DE HISTRIA E DOCUMENTAO DIPLOMTICA

Diretor

lvaro da Costa Franco

INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAES INTERNACIONAIS

Diretor

Helosa Vilhena de Arajo

A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag), instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e aspectos da pauta diplomtica brasileira. Com a misso de promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira, a Funag promove atividades de natureza cultural e acadmica que visam a divulgao e a ampliao do debate acerca das relaes internacionais contemporneas e dos desafios da insero do Brasil no contexto mundial. Fomentando a realizao de estudos e pesquisas, organizando foros de discusso e reflexo, promovendo exposies, mantendo um programa editorial voltado para a divulgao dos problemas atinentes s relaes internacionais e poltica externa brasileira, estimulando a publicao de obras relevantes para o conhecimento da histrica diplomtica do Brasil, a Funag coloca-se em contato direto com os diferentes setores da sociedade, atendendo ao compromisso com a democracia e com a transparncia que orienta a ao do Itamaraty. Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 411 6033/6034/6847 Fax: (61) 322 2931, 322 2188 Palcio Itamaraty Avenida Marechal Floriano, 196 Centro 20080-002 Rio de Janeiro RJ Telefax: (21) 233 2318/2079 Informaes adicionais sobre a Funag e suas publicaes podem ser obtidas no stio eletrnico: www.funag.gov.br e-mail: [email protected]

IRBr Concurso de Admisso Carreira de Diplomata

Manual do Candidato

Poltica InternacionalDemtrio Magnoli

3 edio atualizada e revisada

M 198

Magnoli, Demtrio, 1958 Manual do Candidato: Poltica Internacional / Demtrio Magnoli. 3. ed. atual. e rev. Braslia : Funag, 2004. 380p. ; ISBN 85-87480-06-5 1. Instituto Rio Branco (IRBr) Concurso de Admisso Carreira Diplomtica 2. Servio Pblico Brasil Concursos. 3. Poltica Internacional. I. Fundao Alexandre de Gusmo. II. Ttulo. CDD-354.81003

Copyright () 2004 Demtrio Magnoli

Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 411 6033/6034/6847/6028 Fax: (61) 322 2931, 322 2188 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Palcio Itamaraty Avenida Marechal Floriano, 196 Centro 20080-002 Rio de Janeiro RJ Telefax: (21) 233 2318/2079 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

Impresso no Brasil 2004

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Decreto n 1.825 de 20.12.1907

Apresentao

A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) oferece aos candidatos ao Concurso de Admisso Carreira de Diplomata, do Instituto Rio Branco (IRBr), do Ministrio das Relaes Exteriores, a srie Manuais do Candidato, com nove volumes: Portugus, Poltica Internacional, Histria do Brasil, Histria Mundial, Geografia, Direito, Economia, Ingls e Francs1. Os Manuais do Candidato constituem marco de referncia conceitual, analtica e bibliogrfica das matrias indicadas. O Concurso de Admisso, por ser de mbito nacional, pode, em alguns centros de inscrio, encontrar candidatos com dificuldade de acesso a bibliografia credenciada ou a professores especializados. Dada a sua condio de guias, os manuais no devem ser encarados como apostilas que por si s habilitem o candidato aprovao. A Funag convidou representantes do meio acadmico com reconhecido saber para elaborarem os Manuais do Candidato. As opinies expressas nos textos so de responsabilidade exclusiva de seus autores.

SUMRIO

Unidade I O sistema internacional de Estados: histria e conceitos ............................................................. 9 1 Os diplomatas, o Estado e a sociedade .........................................11 2 O estudo de Relaes Internacionais ............................................17 3 O sistema multipolar europeu do sculo XIX ...............................29 4 As guerras do sculo XX e as origens da Guerra Fria ....................51 5 O sistema bipolar e universal da Guerra Fria ...............................67 6 Bibliografia recomendada .............................................................87 Unidade II A Ordem Internacional ps-Guerra Fria: tendncias ..........................................................................89 1 Globalizao e Estado-Nao .......................................................91 2 Pax americana? ........................................................................... 100 3 Europa e Sistema Internacional ..................................................110 4 Potncias emergentes: Japo e Alemanha ...................................129 5 Rssia na encruzilhada ...............................................................138 6 Evoluo poltica e econmica da China ....................................152 7 A ONU diante da nova Roma ..................................................163 8 Globalizao, regionalizao e multilateralismo ........................171 9 Isl e Ocidente .............................................................................181 10 Indosto nuclearizado ............................................................... 192 11 Bibliografia recomendada ......................................................... 196 Unidade III As amricas: poltica e economia .................. 201 1 Estados Unidos e Amrica Latina ............................................... 203 2 Democracia poltica e reformas econmicas ..............................220 3 Cone Sul e Mercosul ....................................................................244 4 Questo cubana........................................................................... 271 5 Narcotrfico e relaes internacionais ........................................278 6 Bibliografia recomendada ...........................................................284

Unidade IV poltica externa brasileira: condicionantes e delineamento ........................................ 286 1 Molduras histrica e econmica .................................................289 2 Brasil e ordem econmica mundial ............................................. 304 3 Reforma da ONU e questo norte-sul ........................................ 321 4 Cenrio americano, Mercosul e Alca ..........................................332 5 Soberania e diplomacia: a questo ambiental ............................ 343 6 Soberania e diplomacia: a questo nuclear ................................. 357 7 Bibliografia recomendada ...........................................................375 Siglas das Intituies e Organismos Internacionais .........................379

UNIDADE I O SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS:HISTRIA E CONCEITOS

POLTICA INTERNACIONAL

DEMTRIO MAGNOLI

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O SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS: HISTRIA E CONCEITOS

1 OS DIPLOMATAS, O ESTADO E A SOCIEDADE

Na Grcia Antiga, embaixadores eram enviados em misses especiais para as diferentes cidades-Estado, a fim de entregar mensagens, intercambiar oferendas e sustentar os pontos de vista de seu povo diante dos governantes. Nessas prticas espordicas se encontra a origem da diplomacia. J naquele tempo, o diplomata personificava a existncia de uma entidade poltica e, portanto, a distino entre o pblico e o privado. A diplomacia renascentista italiana lanou as bases da moderna atividade diplomtica. As condies de anarquia reinantes no sistema das cidades-Estado italianas e o agudo sentido de insegurana das unidades polticas formaram o terreno histrico tanto para as interminveis guerras de conquista quanto para a generalizao de cdigos e prticas diplomticas que ainda sobrevivem. Foi naquele perodo que se consolidou o uso de embaixadores permanentes, constituram-se as chancelarias estveis, formularam-se as garantias de imunidades diplomticas e os privilgios de trnsito e acesso a informaes, estabeleceu-se o conceito de extraterritorialidade das misses estrangeiras. O moderno sistema de Estados, que emergiu na Europa setecentista, foi o ambiente no qual se definiu a misso do diplomata a defesa do interesse nacional na arena internacional. Desde aquela poca, a presena de corpos diplomticos estrangeiros nas capitais polticas tornou-se sinal da existncia de uma sociedade de Estados, cujas caractersticas e regras constituem o cenrio no qual se formulam as estratgias nacionais. Assim, se o diplomata representa os interesses de um Estado particular, a diplomacia simboliza a conscincia geral de que h uma sociedade internacional.1 Hedley Bull identifica, alm dessa funo simblica, outras quatro funes da diplomacia no interior do sistema internacional:1

...in the global international system in which states are more numerous, more deeply divided and less unambiguously participants in a common culture, the symbolic role of the diplomatic mechanism may for this reason be more important. The remarkable willingness of states of all regions, cultures, persuasions and stages of development to embrace often strange and archaic diplomatic procedures that arose in Europe in another age is today one of the few visible indications of universal acceptance of the idea of international society. (Hedley Bull, The Anarchical Society: A Study of World Politics. London: The Macmillan Press, 1977, p. 183).

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1. Facilitar a comunicao entre os lderes polticos dos Estados. A esse papel de mensageiros, desempenhado pelos diplomatas, est associado o privilgio da imunidade e o direito de trnsito. 2. Negociar acordos entre os Estados. Esse papel de mediao e persuaso se baseia no interesse nacional mas exige a identificao dos interesses compartilhados pelas unidades polticas. Ele no pode se realizar sem o reconhecimento da legitimidade dos interesses das demais unidades polticas e, portanto, distingue a atividade diplomtica da busca, moral ou religiosa, da imposio de uma autoridade universal. 3. Reunir informaes relevantes sobre as demais unidades polticas. Essa atividade de inteligncia se realiza num duplo sentido: ao mesmo tempo que obtm acesso a informaes vitais sobre os Estados estrangeiros, o diplomata busca preservar na obscuridade as informaes percebidas como vitais por seu prprio Estado. A dimenso de inteligncia da diplomacia aceita e reconhecida como legtima no sistema internacional, ao menos enquanto as fronteiras que a separam da espionagem permanecem nitidamente discernveis. 4. Minimizar as frices no relacionamento entre Estados. A existncia de frices inerente ao sistema internacional e reflete no s a presena de interesses nacionais diferentes como tambm a diversidade de culturas, valores e atitudes. A funo de reduo das frices est associada utilizao das convenes diplomticas, que so instrumentos para o estabelecimento de uma linguagem comum que enfatiza regras, princpios e direitos, reduzindo os campos do exerccio do orgulho e da vaidade nacionais. A segunda das funes identificadas por Bull merece ateno especial, pois por ela emerge a distino entre a poltica externa em tempos normais e a poltica externa revolucionria. No moderno sistema internacional, esta ltima encarada como patologia, e os perodos nos quais prevalece, como transies turbulentas que provocam a suspenso, ou o congelamento, dos padres reconhecidos de relacionamento entre os Estados. Em tempos normais, a poltica externa baseia-se no reconhecimento da legitimidade dos interesses nacionais estrangeiros. Mas a poltica 12

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externa revolucionria nada reconhece a no ser o conjunto de princpios em torno dos quais o mundo deve ser transformado. Esse foi o caso da poltica de Napoleo, voltada para a transformao revolucionria da Europa, cuja meta no se restringia a derrotar os Estados inimigos mas ambicionava reinvent-los, suprimindo em todas as partes as dinastias e as instituies do Antigo Regime. 2 Em circunstncias diferentes, a Unio Sovitica de Lenin e Trotsky, entre 1918 e 1921, e a Alemanha de Hitler se engajaram na reinveno do mundo, rompendo as regras reconhecidas da poltica externa.

O interesse nacionalNa formulao clssica de Aron, em seu Paz e Guerra entre as Naes, os objetivos dos Estados definem-se por uma srie trplice de conceitos: a segurana, a potncia e a glria. O primeiro referencia-se na defesa e na expanso do territrio, o segundo na submisso dos homens, o terceiro no triunfo das idias ou das causas. Mas o valor relativo e o significado de cada um desses objetivos esto sujeitos s circunstncias histricas. Cada coletividade poltica, no seu tempo e em funo da sua cultura, confere concretude a tais conceitos, formulando a seu modo o interesse nacional. A poltica externa a arte da traduo do interesse nacional nas linguagens da estratgia e da ttica. A diplomacia um dos instrumentos da poltica externa; o outro, a guerra.3

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Henry Kissinger explica, no seu A World Restored: Castlereagh, Metternich and the Restoration of Peace, 1812-1822, o sentido profundo da noo de restaurao do Congresso de Viena. No se tratava unicamente de restaurar os regimes legtimos suprimidos por Napoleo mas, no curso dessa empresa, de restaurar a normalidade do sistema internacional como um todo, reinstalando o princpio da legitimidade dos interesses nacionais. A famosa frmula de Clausewitz, a guerra no apenas um ato poltico, mas um instrumento real da poltica, uma busca de relaes polticas, uma realizao de relacionamento poltico por outros meios, no absolutamente a manifestao de uma filosofia belicista, mas a simples constatao de uma evidncia: a guerra no um fim em si mesma, a vitria no por si um objetivo. O intercmbio entre as naes no cessa no momento em que as armas tomam a palavra: o perodo belicoso inscreve-se numa continuidade de relaes que sempre comandada pelas intenes mtuas das coletividades. (Raymond Aron, Paz e Guerra entre as Naes. Braslia: UnB, 1986, p. 71). Essa posio clssica est, contudo, sujeita crtica: Na verdade, Clausewitz parecia perceber a poltica como uma atividade autnoma, o local de encontro das formas racionais e foras emocionais, na qual razo e sentimento so determinantes, mas onde a cultura o grande carregamento de crenas, valores, associaes, mitos, tabus, imperativos, costumes, tradies, maneiras e modos de pensar, discurso e expresso artstica que lastreia toda sociedade no desempenha um papel determinante. (John Keegan, Uma Histria da Guerra. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 64).

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O modo como se formula o interesse nacional reflete o tipo de organizao das coletividades polticas. Os regimes autocrticos no podem formul-lo do mesmo modo que as oligarquias, as teocracias ou as democracias, para fazer referncia apenas aos tipos puros de regimes.4 Em conseqncia, suas polticas externas sero orientadas por metas, estratgias e tticas diferentes. , alis, esse o fundamento da tese, muito discutida, segundo a qual a guerra entre democracias um evento improvvel.5 Alm disso, o interesse nacional reflete a identidade nacional. A foma como as naes percebem o seu prprio passado e como o narram, a conscincia do seu lugar no mundo, os valores e as ambies que projetam no futuro em outros termos, a sua identidade so as fontes das quais deriva o interesse nacional. por essa razo que a poltica externa constitui dimenso profunda e bastante perene da vida nacional. As suas oscilaes peridicas, associadas mudana de governos, normalmente no chegam a afetar o rumo subjacente, que o diplomata deve ser capaz de discernir em meio s urgncias do momento. H apenas um sculo, a funo econmica do Estado praticamente se circunscrevia defesa da santidade da moeda. A projeo do interesse nacional aparecia como empresa separada do mundo dos negcios, ainda que, com certa freqncia, as potncias ocidentais mobilizassem esquadras para implementar, pela diplomacia das canhoneiras, as polticas de portos abertos que correspondiam aos interesses das corporaes industriais. Ao longo do sculo XX, e em particular no ps-guerra, esse panorama mudou radicalmente. A Grande Depresso e o keynesianismo

S. E. Finer. The History of Government (New York: Oxford University Press, 1997, vol. I, p. 34-58), apresenta uma tipologia de regimes e prope denominar esses tipos puros como Palcio, Nobiliarquia, Igreja e Frum.5 Para uma defesa dessa tese, veja-se o ensaio de Strobe Talbott, Democracy and the National Interest (Foreign Affairs, November/December, 1996) e, com nfase ainda maior, a obra de Spencer R. Weart, Never at War: why democracies will not fight one another. New Haven: Yale University Press, 1998. Para uma crtica de Talbott, a resenha de John L. Harper, The Dream of Democratic Peace (Foreign Affairs, May/June, 1997), e de Weart, a resenha de Stephen M. Walt, Never Say Never (Foreign Affairs, January/February, 1999).

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reorganizaram as agendas dos Estados, transformando- os, definitivamente, em indutores ou reguladores da economia. As instituies de Bretton Woods e as agncias da ONU ligadas ao desenvolvimento formaram a moldura para a negociao internacional de temas econmicos. A integrao crescente dos mercados, a acelerao dos fluxos de capitais e a criao de blocos econmicos regionais acentuou extraordinariamente a importncia do mundo dos negcios na formulao da poltica externa. Nos anos 60, o presidente francs Charles De Gaulle recusou-se a receber um primeiro-ministro japons cuja comitiva era integrada por industriais, sob o argumento de que o chefe de governo estrangeiro no passava de um vendedor de transistores. Esses tempos j vo longe: George Bush visitou o Japo acompanhado pelos altos executivos das Trs Grandes de Detroit, Bill Clinton atribuiu funes diplomticas destacadas aos representantes do Departamento de Comrcio dos Estados Unidos e Jacques Chirac, o herdeiro do general De Gaulle, aderiu ao hbito de incluir os lderes empresariais nas suas comitivas oficiais.

A chancelariaOs diplomatas renascentistas, avaliados segundo padres contemporneos, seriam considerados especialmente corruptos e imorais. As suas prticas, contudo, inscreviam-se numa poca anterior consolidao do Estado-nao e ntida separao entre as esferas pblica e privada. Esse ltimo processo correspondeu, no mbito da organizao das chancelarias, profissionalizao dos corpos diplomticos e, portanto, criao de mtodos de recrutamento e regras de carreira baseados no mrito. Historicamente, as polticas de profissionalizao dos corpos diplomticos s foram deflagradas, nos pases pioneiros, na segunda metade do sculo XIX. Antes disso, os diplomatas eram recrutados no crculo restrito das elites que gravitavam em torno das cortes e dos governos. Naquelas condies, a carreira desenvolvia-se de acordo com regras informais, dependentes muitas vezes de laos pessoais ou familiares. A herana dessa poca sobrevive em hbitos e atitudes de solidariedade entre diplomatas de diferentes pases e em certa 15

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cultura aristocrtica que se dissolve aos poucos, sob o impacto da profissionalizao.6 Nas Amricas, a organizao das chancelarias contemporneas tem razes nas reformas empreendidas no entreguerras. Nos Estados Unidos, o grande marco o Rogers Act, de 1924, que unificou os servios diplomtico e consular num nico corpo, cujas regras de recrutamento e carreira deveriam estar baseadas no mrito. A finalidade explcita da reforma consistia em assegurar a autonomia da chancelaria frente s disputas polticas e concorrncia partidria no Congresso. O diplomata tornava-se um profissional a servio do Estado nacional.7 No Brasil, a organizao racional e burocrtica da chancelaria acompanhou a modernizao do prprio Estado, na dcada de 1930. As reformas Mello Franco, de 1931, e Oswaldo Aranha, de 1938, unificaram o servio diplomtico e estabeleceram as regras de carreira baseadas no mrito. A criao, em 1945, do Instituto Rio Branco (IRBr), destinado seleo e formao de diplomatas, pode ser vista como a culminncia do perodo de reformas.8 Nas ltimas dcadas, no mundo inteiro, as chancelarias experimentaram as repercusses da crescente burocratizao institucional dos Estados. A competio entre os Poderes Executivo e Legislativo e a concorrncia entre rgos diversos da administrao tendem a minar a autonomia dos servios diplomticos e a dissolver o seu monoplio sobre a prpria conduo da diplomacia.

6 The solidarity of the diplomatic profession has declined since the mid-nineteenth century, when diplomatists of different countries were united by a common aristocratic culture, and often by ties of blood and marriage, when the number of states was fewer and all the significant ones European, and when diplomacy took place against the background of the international of monarchs and the intimate acquaintance of leading figures through the habit of congregating at spas. (Hedley Bull, op. cit. p. 182-183). 7 To this end, the service was to be largely self-administered. Those charged with running it would be senior career officials of the service itself or the State Department (...); ultimate authority was to rest with the secretary of state. The members of the new service, in other words, were to be held to many of the same standards of honor, discipline and dedication as commissioned officers of the armed forces, and their nonpolitical status, it was assumed, would be entitled to equal respect on the part of the government and public. (George F. Kennan, Diplomacy Without Diplomats, Foreign Affairs, September/October, 1997, p. 200). 8 Para breve anlise da histria institucional da chancelaria brasileira e da carreira diplomtica, veja A formao do diplomata e o processo de institucionalizao do Itamaraty: uma perspectiva histrica e organizacional (Zairo Borges Cheibub, Leituras Especiais, n 25, 1 semestre de 1994, IRBr).

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Esse processo acompanhado, em muitos casos, pela difuso da autoridade tpica das sociedades democrticas de massas. A extenso cada vez maior da opinio pblica e a sua estruturao institucional tendem a gerar mltiplos focos nacionais de poder e influncia. A formao de grupos de presso que atuam nos diferentes rgos da administrao e se articulam com as foras partidrias coloca em risco o princpio tradicional do primado da poltica externa, ameaando tornla refm das disputas domsticas. O resultado o aparecimento de uma diplomacia fragmentria, na expresso cunhada por George F. Kennan, no interior da qual a chancelaria concorre com outras agncias.9 Esse estado de coisas provoca interpretaes diferentes e, s vezes, divergentes do significado do interesse nacional e das polticas que, em cada caso concreto, representam a sua materializao.

2 O ESTUDO DE RELAES INTERNACIONAISO Estado uma criao recente da histria humana. Embora esse termo seja comumente usado para fazer referncia a inmeras formas de articulao do poder em sociedade antigas e medievais, ele s ganha sentido e contedo no Renascimento europeu. A Europa ps-medieval inventou o Estado, sob a forma das monarquias absolutas. Com o Estado, surgiram as teorias polticas sobre ele. Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de O Prncipe, funcionrio do governo dos Medici de Florena, postulou a separao entre a moral e a poltica como fundamento da razo de Estado. A poltica constitui uma esfera autnoma e uma arte, que condensa o interesse nacional. O Estado deve afirmar sua soberania contra os interesses particularistas. As idias de Maquiavel, profundamente influenciadas pela diviso da nao italiana, representaram um dos pilares do absolutismo. Thomas Hobbes (1588-1679), autor do Leviat, foi o principal terico do absolutismo. O Estado nasce do interior da sociedade mas se9

Uma evidncia disso aparece na composio do pessoal das misses diplomticas norte-americanas no exterior: apenas cerca de 30% so funcionrios regulares do Departamento de Estado; os demais 70% provm de outras agncias. George F. Kennan, op. cit., p. 206.

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eleva acima dela. Antes do seu advento, imperava o estado de natureza, a guerra de todos contra todos. Ele surge como manifestao da evoluo humana, cujo sinal a conscincia da necessidade de um poder superior, absoluto e desptico, voltado para a defesa da sociedade. Essa conscincia origina um contrato, pelo qual os homens abdicam da sua liberdade anrquica em favor do Estado, a fim de evitar o caos. A figura bblica do Leviat representa o Estado: um monstro cruel que, no entanto, impede que os peixes pequenos sejam devorados pelos maiores. A transio do absolutismo para o liberalismo processou-se por vias diferentes e contrastantes. Na Inglaterra, resultou da progressiva e gradual limitao do poder monrquico pela afirmao do Parlamento. Na Frana, da irrupo revolucionria de 1789, que destruiu os fundamentos do poder real e instaurou a soberania popular. As teorias sobre o Estado refrataram essa transio. John Locke (1632-1704), autor de Dois tratados sobre o governo civil, retomou as idias do estado de natureza e do contrato de Hobbes, revisando-as para defender a limitao do poder real. A liberdade original dos homens no se perde na instituio do Estado, mas subsiste como contraponto do poder do soberano. No limite, essa liberdade original que prevalece, por meio do direito insurreio. Em Locke, fica estabelecida a separao entre a sociedade civil e a poltica, ou seja, entre a esfera privada e a pblica. O poder, circunscrito esfera pblica, no pode ser transmitido por herana ou proceder da propriedade territorial s pode ser gerado por consentimento poltico. O Baro de Montesquieu (1689-1755), autor de O Esprito das Leis, desenvolveu a teoria da separao dos poderes, cujos fundamentos se encontram em Locke. O Estado liberal assenta-se sobre o equilbrio dos poderes de produo das leis (Legislativo), execuo das leis (Executivo) e controle da sua aplicao (Judicirio). Essa estrutura terrena do Estado deveria substituir o poder divino dos reis, a fim de defender os interesses e a liberdade dos homens. O contrato poltico ganhava assim seu detalhamento, sob a forma da democracia representativa. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filsofo do grupo enciclopedista e autor da obra Do contrato scial, inverteu a noo hobbesiana do estado de natureza. Onde Hobbes enxergou a guerra 18

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e a anarquia, Rousseau encontrou a felicidade e a harmonia da vida selvagem. O advento da propriedade privada rompe o equilbrio e introduz a violncia e a escravido. Superar essa situao superar o absolutismo, substituindo-o por um contrato legtimo fundado na soberania popular. A assemblia dos cidados, a democracia direta esse o nico Estado legtimo e um reflexo do carter superior e livre do ser humano. Nessa linha, Rousseau investia no apenas contra o absolutismo mas tambm contra a democracia representativa e a delegao de poderes, elevando-se condio de precursor das utopias comunistas. O Estado territorial nasceu com as monarquias absolutistas, que investiram contra os interesses particularistas e as prerrogativas aristocrticas do feudalismo. Essa primeira forma do Estado contemporneo gerou corpos estveis de funcionrios burocrticos e exrcitos regulares e centralizados, unificando o poder poltico. O poder poltico medieval, fragmentado em mosaicos de soberanias entrelaadas, era dissolvido sob os golpes centralistas da realeza. Novo poder poltico emergia, baseado em fronteiras geogrficas definidas e cobrana generalizada de impostos. Como conseqncia, apareciam capitais permanentes, materializadas em cidades que se tornavam sede dos rgos do Estado. O Estado-nao surgiu da decadncia do absolutismo e da sua substituio pelo liberalismo. Essa segunda forma do Estado contemporneo gerou a soberania nacional, expressa na eleio dos governantes e na limitao do Poder Executivo por representantes tambm eleitos. A soberania deslizou da figura do monarca para o conceito de nao. O poder despersonificou-se, identificando-se com o povo. O poder divino deu lugar ao consenso popular. A noo de consenso j aparecia em Maquiavel, que postulava a necessidade de o soberano conseguir o apoio popular. Contudo, o consenso maquiavlico dependia da virtude do prncipe e da orientao da sua ao poltica. Locke e Montesquieu fizeram do consenso a base do Estado e a razo de ser das suas engrenagens de poder. Rousseau levou a idia at seu limite, assentando o consenso na participao ativa e permanente dos cidados. A nao tornava-se a fonte do poder, e a esfera da poltica passava a refletir o consenso geral. 19

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As teorias polticas clssicas concentraram seu interesse sobre as relaes internas aos Estados, estabelecidas entre os governantes e a sociedade em geral. O estudo das relaes internacionais, ou seja, das relaes estabelecidas entre os Estados, muito mais recente e s ganhou o estatuto de disciplina acadmica no sculo XX. A preocupao com o sistema internacional de Estados foi estimulada pela constituio progressiva de uma economia integrada, de mbito mundial. As transformaes na produo e na circulao de mercadorias tpicas dos sculos XVIII e XIX a poca da Revoluo Industrial aumentaram a relevncia dos estudos de relaes internacionais. A prpria anlise do Estado foi cada vez mais influenciada pelas consideraes relacionais, ou seja, pela investigao da posio ocupada e do papel desempenhado pelo Estado no sistema geral e nos subsistemas particulares em que est inserido. O vasto campo de estudo das relaes internacionais no definido de forma consensual. Diferentes autores encaram de modo divergente e muitas vezes conflitante o objeto das relaes internacionais.A grosso modo, possvel identificar trs tradies divergentes que informam a produo acadmica de teorias sobre as relaes internacionais.

A escola idealistaA primeira, oriunda do pensamento iluminista, enfatiza a comunidade de normas, regras e idias que sustenta o sistema de Estados. A sua fonte a noo do direito natural que, aplicada ao sistema internacional, implica a definio da justia como arcabouo das relaes entre os Estados.10 De certa forma, os ecos da viso rousseauniana do contrato social ressurgem, aqui, em contexto

10 A tradio idealista tem suas razes no pensamento de Hugo Grotius (1583-1645), autor de The Rights of War and Peace Including the Law of Nature and of Nations, obra que forneceu as bases para a jurisprudncia internacional no sistema europeu de Estados. Na mesma linha de pensamento, o jurista suo Emmerich de Vattel (1714-1767), autor de The Law of Nations, condensa o conceito crucial dessa tradio: All nations are...under a strict obligation to cultivate justice towards each other, to observe it scrupulously, and carefully to abstain from every thing that may violate it. No pensamento idealista, o uso eventual da fora pelos Estados encontra justificativa apenas quando orientado pelo desgnio de eliminar a fora do interior do sistema, resguardando a justia internacional das agresses de atores que no compartilham as regras consensuais.

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especfico. Essa tradio, que se desenvolveu e reforou no mundo anglosaxo sob a forma de reao moral aos horrores da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), forneceu os parmetros para a escola idealista. Ainda hoje, a escola idealista assenta-se sobre a idia iluminista ancestral da possibilidade de uma sociedade perfeita. Essa meta moral condiciona o carter francamente reformista dos autores idealistas, que se preocupam em adaptar o sistema internacional s exigncias do direito e da justia. Os clebres Quatorze Pontos do presidente americano Woodrow Wilson, bem como os princpios fundadores da Liga das Naes, inscrevem-se como exemplos da influncia idealista na diplomacia do sculo XX. At certo ponto, a poltica do apaziguamento de Chamberlain e Daladier foi tributria dessa corrente de idias. A difuso desse estilo de pensamento nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha foi amplamente compreendida, sob uma perspectiva crtica tpica da escola realista, como reflexo da condio geopoltica insular de ambos.11

A escola realistaA segunda tradio, que informa a escola realista, enfatiza no a comunidade ideolgica do sistema internacional mas o seu potencial conflitivo. As razes desse estilo se encontram essencialmente em Maquiavel e Hobbes. Maquiavel sublinhou a importncia da fora na prtica poltica liberta dos constrangimentos morais e conferiu legitimidade aos interesses do soberano. No seu pensamento, os fins condicionam os meios. O ingls Hobbes, como o italiano Maquiavel, nutria profundo pessimismo em relao natureza humana. Seus comentrios sobre o sistema internacional traam um paralelo entre as relaes estabelecidas pelos Estados e as estabelecidas pelas pessoas na ausncia do Leviat. Por essa via, ele reala uma idia que se tornou a fonte da argumentao

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Enjoying the luxury of relative security provided by the English Channel in one case and the Atlantic Ocean in the other, British and American thinkers coulf offer prescriptions for reform of the international system that were perhaps less compelling for states surrounded by potential enemies (Phil Williams e outros, Classic Readings of International Relations. Belmont: Wadsworth, 1993, p. 7).

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bsica da escola realista: a ausncia de um poder soberano e imperativo nas relaes internacionais. No plano acadmico, a escola realista desenvolveu-se como reao aos melanclicos e trgicos fracassos da poltica do apaziguamento conduzida na Europa do entreguerras. Hans Morgenthau, autor de Politics Among Nations, considerado o fundador do pensamento realista contemporneo. Substituindo a meta moral da reforma do sistema internacional pela anlise das condies objetivas que determinam o comportamento dos Estados, os pensadores realistas ancoraram sua argumentao nas noes da anarquia inerente ao sistema e da tendncia ao equilbrio de poder como contraponto a essa anarquia. As divergncias entre os autores realistas a respeito dos condicionantes do comportamento dos Estados originaram a corrente neo-realista, tambm conhecida como realismo estrutural. Contrariamente a Morgenthau, que se contentou em definir o comportamento dos Estados pela nsia de poder, os neo-realistas preferiram identificar a busca da segurana como causa ltima da prtica poltica no sistema internacional. Esse enfoque realou a problemtica da estrutura do sistema, que define as formas e os graus da insegurana experimentados por um ator isoladamente. No ps-guerra, o desenvolvimento de uma densa rede de instituies internacionais como a Unio Europia, a OCSE, a Otan, o FMI, o Banco Mundial e a OMC conduziu uma corrente de autores a rever a noo de anarquia inerente ao sistema internacional. Esses autores, dentre os quais se destacam Robert Keohane, Joseph Nye e Stanley Hoffmann, estabeleceram, no interior do campo realista, uma corrente institucionalista. Os institucionalistas acentuaram a abrangncia crescente do direito internacional, corporificado em instituies que balizam a atuao dos Estados. O impacto da existncia da rede de instituies internacionais sobre a percepo de segurana e as estratgias estatais, principalmente no cenrio europeu, tem sido o tema de investigao dessa corrente. Seu argumento central consiste em destacar a limitao 22

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da soberania e a paralela reduo da insegurana decorrentes dos compromissos institucionais.12

A escola radicalA terceira tradio tem razes mais recentes, situadas no pensamento marxista. Karl Marx no produziu uma teoria do sistema internacional, mas da Histria e da revoluo social. Ao contrrio das tradies citadas, no a cooperao ou o conflito entre Estados o seu objeto, mas o conflito entre as classes sociais. O Estado um elemento marginal no pensamento marxista, e o comportamento dos Estados, quando enfocado, surge apenas como veculo para interesses econmicos, polticos ou ideolgicos de outros atores (classes socioeconmicas, corporaes industriais e financeiras etc.). Contudo, principalmente por intermdio de Lenin, a tradio marxista forjou um pensamento sobre as relaes internacionais, classificado como escola radical ou neo-marxista. O ambiente internacional das ltimas dcadas do sculo XIX e do incio do sculo XX, marcado pela expanso neocolonial das potncias europias na sia e na frica e pelas polticas semicoloniais dos Estados Unidos no Caribe e no Extremo Oriente e do Japo nas reas insulares e costeiras da sia oriental e do Sudeste, condicionou a teorizao leninista sobre o imperialismo. Apoiando-se na obra Imperialism: a Study, do britnico nomarxista John Hobson, Lenin adaptou o conceito de imperialismo teoria ou linguagem marxista.13 Em sua obra Imperialism: A Special

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Nessa linha, os institucionalistas sublinham uma importante mudana de atitude das potncias: Realist thinkers emphasize that states seek to attain purposes through the exercise of power. International organizations and regimes are potential sources of leverage for ambitious governments; thus we should expect, in a period of rapid change, to seem them used as arenas for the exercise of influence. (Robert Keohane, Joseph Nye e Stanley Hoffmann (Ed.), After the Cold War: international institutions and state strategies in Europe, 1989-1991, Harvard University Press, 1994, p. 395).13

Muitos crticos observaram que o enfoque de Lenin que transpe da esfera das classes para a dos Estados as noes de explorao e dominao representou uma derivao pouco consistente com a metodologia marxista. O gegrafo brasileiro Jos William Vesentini, em um ensaio sinttico, sublinha o sentido nacionalista da teoria de Lenin: No pode haver... dentro da lgica dos textos de Marx e Engels, uma explorao entre pases ou entre regies; o que h to-somente a explorao de classes...Nesses termos, libertao nacional ou luta por um princpio abstrato de autodeterminao das naes no algo necessariamente progressista ou sequer parte do iderio bsico do proletariado.

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Stage of Capitalism, o lder revolucionrio russo estabeleceu interessantes conexes entre a economia poltica do capitalismo, a luta pela diviso de mercados e o imperialismo neocolonial. O argumento original de Lenin, entretanto, consistiu na ligao entre a prtica imperialista e a guerra entre potncias. A noo de imperialismo jamais foi nitidamente definida entre os autores da escola radical.14 Contudo, a preocupao com as relaes de subordinao econmica entre pases em estgios desiguais de desenvolvimentos industrial e tecnolgico veio a formar o arcabouo das anlises radicais ou neomarxistas do sistema internacional. Estas abordagens, sob o ponto de vista metodolgico, contribuem para lanar luz sobre os atores do sistema internacional que no so Estados: grupos econmicos e corporaes transnacionais, igrejas, instituies privadas multilaterais, organizaes sindicais, ambientais e no-governamentais em geral. Immanuel Wallerstein, um dos mais importantes autores neomarxistas, forneceu as bases conceituais para uma teoria dos sistemas mundiais.15 O foco dessa teoria est nos padres de dominao e na rede de relaes econmicas entre as sociedades, no na estrutura do sistema internacional de Estados enfatizada pelos realistas. Ela traa aPor esse motivo, ao se inserir uma teoria do imperialismo no corpo terico do marxismo, dificilmente se consegue evitar a ambigidade, a coexistncia conflitante de premissas antitticas...E a resoluo disso, com o abandono definitivo da tica de classes em favor de uma certa ideologia nacionalista...encontra-se nas idias stalinistas sobre o socialismo num s pas e a Unio Sovitica como ptria do movimento socialista mundial e baluarte contra o imperialismo. (Imperialismo e Geopoltica Global, Campinas : Papirus, 1987, p. 27-28). O rtulo imperialismo utilizado em diferentes contextos, designando s vezes qualquer imprio, outras vezes apenas os imprios neocoloniais dos sculos XIX e XX. Entre os marxistas no fica claro se o termo designa a etapa superior do capitalismo a que se refere Lenin ou um sem-nmero de relaes econmicas entre pases desenvolvidos e subdesenvolvidos.15 14

The modern world-system originated in the sixteenth century (...). This was the period in wich was created a European world-economy whose structure was unlike any that the world had known before. The singular feature of this world-economy was the discontinuity between economic and political institutions. (...) World economies had existed before in history that is, vast arenas within wich a sophisticated divison of labor existed based on a network of trade (...). But wherever such a world-economy had evolved previously, sooner or later na imperium expanded to fill the geographical space of this economy (...). The imperial framework established political constraints which prevented the effective growth of capitalism, set limits on economic growth and sowed the seeds of stagnation and/or disintegration. By a series of historical accidents too complex to develop here, the nascent European world-economy of the sixteenth century knew no such imperium. The only serious attempt to create one that of Charles V and the Habsburgs was a failure. The failure of Charles V was the succes of Europe. (Immanuel Wallerstein, The Capitalist World Economy. New York: Cambridge University Press, 1979, p. 37-38).

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evoluo do sistema capitalista, distinguindo reas centrais e perifricas e procurando as razes do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. Esse tipo de enfoque, retomado por outros autores, adquire especial interesse na abordagem dos fenmenos contemporneos da globalizao: fluxos de capitais e mercadorias, mercados financeiros, mundializao das corporaes industriais, configurao de blocos econmicos macrorregionais.

Texto ComentadoA POLTICA DE EQUILBRIO, Raymond Aron (In: Paz e Guerra entre as Naes, Braslia: UnB, 1986, p.189-194) O texto selecionado inscreve-se na corrente realista e constitui uma formulao clssica da noo crucial de equilbrio de poder (balance of power). O autor introduz a problemtica destacando o alcance geral da noo: A poltica externa intrinsecamente power politics, uma poltica de poder. O conceito de equilbrio balance aplica-se, pois, a todos os sistemas internacionais, inclusive a nossa era atmica.16 Embora a formulao usual da noo de balance referencie-se no poder, Aron prefere a formulao de equilbrio de foras, porque as foras so mais mensurveis do que o poder ou a potncia.17 Na mesma linha, a expresso poltica de poder designa o ncleo essencial do comportamento dos Estados, que no esto sujeitos a qualquer lei ou tribunal superior e atuam em um sistema anrquico por meio da capacidade de exercer presso ou coao sobre os demais.

A poltica de equilbrioNo pequeno ensaio de David Hume intitulado On the Balance of Power, a teoria abstrata do equilbrio est exposta com simplicidade convincente.

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Op. cit. p.189. Idem, p.189.

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Hume toma como ponto de partida a questo: a idia de equilbrio moderna ou s moderna sua formulao, conforme a conhecemos (e a idia em si to antiga quanto o mundo)? O segundo termo da alternativa verdadeiro:In all the politics of Greece, the anxiety with regard to the balance of poqer is apparent, and is expressly pointed out to us, even by anciente historians. Thucydides represents the league which was formed agaisnt Athens, and which produced the Peloponesian war, as entirely owing to this principe. And after the decline of athens, when the Thebans and Lacedemonians disputed for sovereignty, we finde that the Athenians (as well as many other Republics) always threw themselves intro the lighter scale, and endeavoured to preserve the balance.

O Imprio Persa agia do mesmo modo: The Persian monarch was really, in his force, a petty prince, compared to the Graecian republics; and, therefore, it behoved him, from views of safety more than from emulations, to interest himself in their quarrels, and to support the weaker side in every contest. Os sucessores de Alexandre seguiram a mesma linha: They showed great jealousy of the balance of power; a jealousy founded on true politics and prudence, and which preserved distinct for several ages the partition made after the death of that famous conqueror. Pertencem ao sistema as populaes que podem intervir na guerra. As the Eastern princes considered the Greeks and Macedonians as the only real military force whith whom they had any intercourse, they kept always a watchful eye that part of the world. Se os antigos passaram por haver ignorado a poltica do equilbrio de foras, isso se deveu espantosa histria do Imprio Romano. De fato, Roma pde subjugar, um aps o outro, todos os seus adversrios, sem que estes tivessem sido capazes de concluir as alianas que os teriam preservado. Filipe da Macednia permaneceu na neutralidade at o momento das vitrias de Anbal, para ento concluir com o vencedor, imprudentemente, uma aliana cujas clusulas eram mais imprudentes ainda. As repblicas de Rodes e dos aqueus, cuja sabedoria foi celebrada pelos antigos historiadores, prestaram assistncia aos romanos nas suas guerras contra Filipe e Antoco. Massinissa, Attalus, Prusias, in gratifying the private passions, were all of them the instruments of the Roman greatness, and never seem to have suspected that they were forging their own chains, 26

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when they advanced the conquests of their ally. Hiero, rei de Siracusa, foi o nico prncipe que parece ter compreendido o princpio do equilbrio de foras, durante a histria romana: Nor ought such a force ever to be trown into one hand as to incapacitate the neighbouring states from defending their rights against it. Essa a frmula mais simples do equilbrio: nenhum Estado deve possuir uma fora tal que os Estados vizinhos sejam incapazes de defender, contra ele, seus direitos. Uma frmula fundada sobre o common sense and obvious reasoning, simples demais para haver escapado percepo dos antigos. Em funo do mesmo princpio, David Hume analisa em seguida o sistema europeu e a rivalidade entre a Frana e a Inglaterra.A new power succeded, more formidable to the liberties of Europe, possessing all the advantages of the former, and labouring under none of its defects, expect a share of that spirit of bigotry and persecution, with which the house of Austria was so long, and still is, so much infatuated.

Contra a monarquia francesa, vitoriosa em quatro guerras dentre cinco, que, contudo, no ampliou grandemente seu domnio nem adquiriu hegemonia total na Europa (total ascendant over Europe), a Inglaterra se manteve no primeiro lugar. Hoje, no se l sem divertimento a crtica feita por Hume poltica inglesa. Diz ele: we seem to have been more possessed with the ancient Greek spirit of jealous emulation than actuated by the prudent views of modern politics. A Inglaterra continuou, sem vantagem, guerras comeadas com justa razo (e talvez por necessidade), mas que teria podido concluir mais cedo nas mesmas condies. A hostilidade da Inglaterra contra a Frana passou por certa, em qualquer circunstncia, e os aliados contaram com as foras inglesas como com suas prprias foras, demonstrando intransigncia extrema: a Inglaterra devia sempre assumi o nus das hostilidades. Finalmente, we are such true combatants that, when once engaged, we lose all concern for ourselves and our posterity, and consider only how we may best annoy the enemy. Os excessos de ardor belicoso parecem a Hume inconvenientes, devido aos sacrifcios econmicos que comportam; parecem temveis sobretudo porque contm o risco de levar algum dia a Inglaterra ao extremo oposto, 27

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...rendering us totally carelles and supine with regard to the fate of Europe. The Athenians, from the most bustling, intriguing, warlike people of Greece, finding their error in thrusting themselves into every quarrel, abandoned all attention to foreign affairs; and in no contest ever took part, except by their flatteries and complaisance to the victor.

Hume favorvel poltica do equilbrio porque hostil aos imprios extensos: Enormous monarchies are probably destructive to human nature in their progress, in their continuance, and even in their downfall, which never can be very distant from their establishment. Levanta-se, como objeo, o Imprio Romano? Hume responde que, se os romanos tiveram algumas vantagens, isso se deveu ao fato de que ...mankind were generally in a very disorderly, uncivilized condition before its establishment. A expanso indefinida de uma monarquia (e Hume tem em mente a dos Bourbons) cria por si obstculos elevao da natureza humana (thus human nature checks itself in its airy elevation). No se deve simplificar o pensamento de Hume formulando uma anttese da poltica de equilbrio e da monarquia universal. Como esta ltima no parece menos funesta a Hume do que a de Montesquieu, j que o Estado perderia fatalmente suas qualidades com a expanso territorial, a poltica de equilbrio impe-se razoavelmente em funo da experincia histrica e dos valores morais. Montesquieu dizia que a decadncia de Roma havia comeado quando a imensidade do Imprio fez que se tornasse impossvel o funcionamento da Repblica. Se a monarquia dos Buorbons se estendesse exageradamente, os nobres mais distantes, na Hungria e na Litunia, se recusariam a prestar servios ao monarca, ...forgot at court and sacrificed to the intrigues of every minion or mistress who approaches teh prince. O rei precisaria, ento, de mercenrios and the melancholy fate of the Roman emperors, from the same cause, is renewed over and over again, till the final dissolution of the monarchy. A poltica de equilbrio obedece a uma regra de bom-senso e deriva da prudncia necessria aos Estados desejosos de preservar sua independncia, de no estar merc de outro Estado que disponha de meios incontrastveis. Parece condenvel aos olhos dos estadistas ou 28

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dos polticos doutrinrios que interpretam o uso da fora, aberto ou clandestino, como a marca e a expresso da maldade humana. Esses censores devem assim conceber um substituto, jurdico ou espiritual, para o equilbrio; ser considerada moral, ou ser pelo menos justificada historicamente, pelos que temem a monarquia universal e almejam a sobrevivncia dos Estados independentes; ser considerada seno imoral, pelo menos anrquica, pelos que, ao contrrio, num espao dado e num momento determinado, preferem a unidade de um imprio, pois no provvel que a dimenso tima do territrio dos Estados (tima para quem? para qu?) seja a mesma em todas as pocas. No nvel mais elevado de abstrao, a poltica de equilbrio se reduz manobra destinada a impedir que um Estado acumule foras superiores s de seus rivais coligados. Todo Estado, se quiser salvaguardar o equilbrio, tomar posio contra o Estado ou a coalizo que parea capaz de manter tal superioridade. Essa uma regra vlida para todos os sistemas internacionais. Contudo, se procurarmos elaborar as regras da poltica de equilbrio, ser preciso postular modelos de sistemas, segundo a configurao da relao de foras. Os dois modelos mais tpicos so o pluripolar e o bipolar. Ou os atores principais so relativamente numerosos ou, pelo contrrio, dois atores dominam seus rivais de tal modo que cada um deles se torna o centro de uma coalizo, constrangendo os atores secundrios a se situarem com relao aos dois blocos, aderindo a um deles a menos que tenham a possibilidade de abster-se. possvel a existncia de modelos intermedirios, de acordo com o nmero dos atores principais e o grau de igualdade ou desigualdade das foras dos atores principais.

3 O SISTEMA MULTIPOLAR EUROPEU DO SCULO XIXRoma dominou a Europa ocidental e o Mediterrneo por seis sculos, entre 146 a.C. (destruio de Cartago) e 476 d.C. (queda do Imprio do Ocidente). Depois disso, o mito de Roma perdurou para sempre, sob a forma do sonho do imprio universal.

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O projeto da monarquia universal catlica percorreu toda a Idade Mdia europia. A coroao de Carlos Magno pelo papa Leo III, no ano 800, e a coroao de Oto I no Sacro Imprio, em 962, tinham conservado acesa a chama simblica da restaurao de Roma. Na Idade Moderna, essa chama animou o empreendimento imperial da Casa de Habsburgo. No incio do sculo XVII, o anel de ferro dos Habsburgo fechavase em torno da Frana. Erguidos sobre uma teia de laos dinsticos, os domnios dos Habsburgo espanhis e austracos estendiam-se pelo interior do Sacro Imprio, na Hungria, na Bomia, na Silsia, na Baviera, em Flandres e em Milo. Fora do Sacro Imprio, abrangiam ainda os reinos de Npoles e da Siclia. A prata da Amrica, que jorrava abundante, servia para financiar as guerras contra a Holanda e a Inglaterra e, no Mediterrneo, assegurava a resistncia s ameaas do Imprio Otomano. Na Frana, a grande rival dos Habsburgo, a luta contra a hegemonia espanhola aparecia como uma batalha de vida ou morte. Essa batalha, que devia ser travada em nome da Igreja e de toda a cristandade, tinha por finalidade assegurar o equilbrio entre as potncias.18 A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi o longo ciclo de guerras entre os Habsburgo e as outras potncias europias que terminaram por exaurir a Espanha e destruram o sonho da monarquia universal catlica. No fim da Grande Guerra, configurou-se o sistema de Estados da Idade Moderna. Os Tratados da Westflia, em 1648, encerraram a Guerra dos Trinta Anos. A Paz de Munster encerrou as hostilidades entre a Espanha e a Holanda. O conflito entre a Frana e a Espanha prosseguiu at que a interveno inglesa provocasse a derrota espanhola. A Paz dos Pireneus, firmada em 1659, assinalou o incio da derrocada final dos Habsburgo espanhis.Como escreveu Richelieu, o chefe dos ministros de Lus XIII, nas suas Memrias: (...) porque a monarquia universal, qual aspira o rei da Espanha, muito prejudicial cristandade, Igreja e ao papa, a razo e a experincia nos mostram que, para o bem da Igreja, deve haver equilbrio entre os prncipes temporais, de forma que, sobre essa igualdade, a Igreja possa sobreviver e conservar as suas funes e o seu esplendor... (Apud Klaus Matettke em Le concept de scurit collective de Richelieu et les traits de paix de Westphalie, LEurope des traits de Westphalie. Paris: PUF, 2000, p. 56).18

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Na Westflia se encontra a origem do sistema de Estados da Idade Moderna. Dos Tratados, emergiu um sistema pluripolar de Estados europeus que referenciavam as suas polticas externas no interesse nacional, no em valores religiosos universalistas. Os Tratados representaram, antes de tudo, a confirmao da fragmentao alem. Na Westflia, proclamou-se a igualdade entre catlicos e protestantes e estendeu-se a liberdade de conscincia aos calvinistas. Aos prncipes foi concedida autoridade suprema em matria de religio. As liberdades germnicas destruram os ltimos vestgios de poder do imperador. A derrota dos Habsburgo de Viena repercutiu duradouramente na poltica alem. A ustria, que antes da guerra surgia como potncia dominante no Sacro Imprio, teve sua influncia limitada s reas catlicas do sul do Imprio. Enquanto isso, a dinastia de Hohenzollern, baseada na Prssia e em Brandenburgo, recebeu novos territrios no norte do Imprio, comeando a erguer-se como rival da ustria no espao fragmentado alemo. A Frana, mesmo esgotada pela guerra, emergiu como a principal potncia continental. Os Tratados asseguraram-lhe o controle sobre a Alscia e a posse dos territrios do alto Reno. Depois da Paz dos Pireneus, com Lus XIV, a monarquia absoluta francesa conheceria seu perodo ureo. Munster e Osnabruck, onde foram negociados durante cinco anos os Tratados da Westflia, receberam delegados de 16 Estados europeus, 140 Estados do Sacro Imprio e 38 principados e cidades observadores. Desse concerto de potncias grandes e pequenas, s no participaram representantes da Inglaterra, da Rssia e da Turquia. A Inglaterra, atormentada pela crise da realeza e, depois, pelas guerras civis, praticamente no teve participao na Guerra dos Trinta Anos. Contudo, o prolongado conflito europeu e os tratados de paz beneficiaram, diretamente, os ingleses. O estatuto de neutralidade desviou para a Inglaterra o comrcio europeu. A frota inglesa transportou a maior parte das mercadorias destinadas aos beligerantes. As condies da paz e, sobretudo, o prosseguimento da guerra franco-espanhola protegeram a ilha da ameaa de uma invaso catlica. 31

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Os Tratados da Westflia ocupam, por motivos distintos e contrastantes, um lugar fundador para as duas escolas tradicionais do pensamento em relaes internacionais. A escola idealista interpretouos sob o ponto de vista do nascimento da ordem jurdica internacional. A escola realista, como a origem do sistema de equilbrio europeu.

As guerras napolenicasA Frana napolenica foi o primeiro Estado-nao a empreender a tentativa de unificao europia. A coroao de Napoleo, em 1804, renovou o simbolismo do imprio universal e assinalou o surgimento de uma Nova Roma. O Imprio Carolngio medieval durou menos de um sculo, de 768 (coroao de Carlos Magno) a 843 (Tratado de Verdun), mas representou o estabelecimento do poder compartilhado da dinastia e do papado sobre as terras da Europa centro-ocidental. As conquistas napolenicas iriam recompor e ampliar o domnio territorial carolngio. O Imprio Napolenico durou menos de duas dcadas mas, no seu znite, colocou sob hegemonia francesa quase toda a Europa continental. Apenas cinco anos antes de Waterloo (1815), o poder de Paris estendiase pelas pennsulas Ibrica e Itlica e atravs da Europa Central. O expansionismo napolenico colocou em confronto o poderio continental francs e o martimo britnico.19 A Gr-Bretanha foi o centro organizador das seis coligaes de potncias que envolveram eventualmente a Prssia, a ustria e a Rssia formadas contra a Frana imperial. Por meio das coligaes, a potncia martima liderava monarquias continentais contra a maior potncia continental. Esse prolongado conflito uma tpica disputa entre o Urso e a Baleia, ou seja, entre poderes incontrastveis no seu prprio elemento desenrolou-se sobre a base do Sistema Continental de Napoleo e daEm termos geopolticos, uma interessante abordagem desse conflito a que recorre dicotomia entre o Poder Martimo e o Poder Continental, no sentido proposto pelo almirante americano Alfred Thayer Mahan. Essa forma de encarar o problema aplicvel, de resto, a uma srie de configuraes histricas diferentes do sistema internacional sujeita-se, naturalmente, crtica, em virtude do alto grau de abstrao do seu instrumental de anlise. Entretanto, pode ser til para caracterizar determinadas regularidades e permanncias que se renovam em pocas muito distintas.19

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reao britnica posta em prtica pelo bloqueio martimo. Por visar ao estrangulamento do comrcio britnico, Napoleo procurou fechar os portos europeus para os navios ingleses. A Gr-Bretanha, por sua vez, investiu contra os domnios franceses de alm-mar, cortando as rotas ocenicas e as bases coloniais do inimigo. A derrota definitiva das foras espanholas na Amrica Latina, a retirada da famlia real portuguesa para o Brasil e a penetrao britnica no Caribe foram conseqncias dessa disputa europia. O impasse permaneceu enquanto cada um dos contendores continuou absoluto no seu elemento. As tentativas francesas de criao de uma esquadra poderosa e de invaso das Ilhas Britnicas fracassaram. A derrota napolenica foi prefigurada na demorada e desgastante campanha contra a resistncia espanhola e na catastrfica retirada da Rssia. Um ano depois do fracasso na Rssia, a Sexta Coligao batia a Frana em Leipzig, na Batalha das Naes (1813). As guerras napolenicas iluminam o papel duradouro que a Gr-Bretanha viria a cumprir, de sentinela vigilante do equilbrio continental de poder. Rainha dos mares e sede de um imprio mundial, a Gr-Bretanha temia a emergncia de uma potncia capaz de ameaar seus interesses internacionais. Sua segurana repousava no equilbrio entre os Estados do continente: essa situao fazia que as vrias ameaas hipotticas se anulassem mutuamente. Napoleo representou um desafio para esse equilbrio que sustentava a liberdade de ao britnica nos oceanos e nas bases coloniais de alm-mar. A erradicao dessa ameaa abriu caminho para a afirmao das hegemonias poltica e econmica britnica, no sculo da Revoluo Industrial.

O Congresso de Viena e o Sistema de MetternichO sculo XIX assinalou a estabilizao do sistema europeu de Estados, sob o arcabouo de um equilbrio multipolar (ou pluripolar) dinmico. A derrota da Frana napolenica deu origem a uma geometria pentagonal, baseada no poderio da Gr-Bretanha, da Frana, da Prssia (depois da Alemanha), da ustria-Hungria e da Rssia.

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Essa estrutura multipolar forneceu as bases do funcionamento de um sistema basicamente circunscrito ao espao europeu. No final do sculo, a emergncia de novas potncias martimas no Ocidente (Estados Unidos) e no Extremo Oriente (Japo) gerou novos tipos de conflito e forte tendncia de globalizao do sistema internacional de Estados. O equilbrio geopoltico europeu do sculo XIX foi a moldura para a expanso e a consolidao da economia industrial e para o delineamento de um mercado mundial. No centro desse processo, encontrava-se a Gr-Bretanha, potncia econmica maior at a ltima dcada do sculo. A estabilidade dinmica da cena europia, perturbada por conflitos que no chegavam a ameaar o sistema no seu conjunto, garantiu ambiente favorvel para a constituio do Imprio britnico e a imposio da Pax Britnica nos territrios de alm-mar.20 O equilbrio pentagonal europeu sofreu flutuaes durante todo o sculo, mas apenas uma grande mudana a unificao alem de 1871. Esse evento crucial dividiu o sculo em dois perodos distintos: depois dele, o crescimento da influncia da Alemanha iria corroer lentamente a estabilidade europia, at precipitar o continente na Primeira Guerra Mundial.

20 possvel argumentar contra a natureza multipolar do sistema europeu dessa poca postulando a idia de uma hegemonia britnica. Entretanto, a supremacia flagrante da Gr-Bretanha nos domnios industrial, tecnolgico e comercial no chegou a ter correspondncia direta no plano estratgico: ... a crescente fora industrial da Gr-Bretanha no se organizou, nas dcadas posteriores a 1815, de modo a dar ao Estado um acesso rpido ao equipamento militar e aos contingentes humanos como, digamos, ocorria nos domnios de Wallenstein na dcada de 1630, ou como a economia nazista faria. Pelo contrrio, a ideologia da economia poltica do laissez-faire, que floresceu juntamente com esse comeo de industrializao, pregava as causas da paz eterna, dos reduzidos gastos governamentais (especialmente com a defesa) e da reduo dos controles estatais sobre a economia e o indivduo. Talvez fosse necessrio, como Adam Smith havia admitido em A riqueza das naes (1776), tolerar a manuteno de um exrcito e de uma marinha, a fim de proteger a sociedade britnica da violncia e da invaso de outras sociedades independentes; mas como as foras armadas per si eram improdutivas e no contribuam para a riqueza nacional da mesma maneira que ou uma fbrica uma fazenda, deveriam ser reduzidas ao menor nvel possvel, adequado segurana nacional. (Paul Kennedy, Asceno e queda das grandes potncias. Rio de Janeiro: Campus, p. 151-152). Do ponto de vista militar, o poderio britnico s no era nitidamente inferior aos das demais potncias europias em virtude dos recursos proporcionados pela Unio Indiana: The Empire also helped to maintain Britain as a military power on na equal footing with the great Continental powers of France, Germany and Russia. This was chiefly because the Indian Army could be shipped all over the world to fight wars on Britains behalf (...). This meant that for most of of the history of British involvement and rule in India, troops raised in the subcontinent and paid for largely by the people of the sub-continent maintained Britains global military status and at the same time enabled British politicians to steer clear of the potentially unpopular conscription of young British males. (Denis Judd, Empire: the British imperial experience from 1765 to the present, New York: HarperCollins, 1997, p. 4).

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O Congresso de Viena (1814-1815) redesenhou as fronteiras polticas da Europa e reorganizou os Estados, visando suprimir definitivamente o espectro de Napoleo. A velha Europa passava uma borracha no passado recente, procurando recriar o fio de continuidade que tinha sido violentamente rompido. O princpio da legitimidade foi uma das bases do projeto europeu articulado em Viena, gerando a poltica da restaurao. Os governos oriundos da hegemonia napolenica, alguns dos quais liderados por familiares do imperador francs, foram eliminados. Foram restauradas as antigas casas reais de Bourbon na Espanha e Bragana em Portugal. Na Frana, a restaurao conduziu Lus XVIII, irmo de Lus XVI, ao trono. O legitimismo seria defendido por uma articulao diplomtica europia, surgida por iniciativa do chanceler austraco, prncipe Metternich, e do czar Alexandre I, da Rssia. Essa articulao a Santa Aliana proclamou-se a guardi da Europa das dinastias. Contudo, essa tentativa de barrar o caminho s idias francesas de 1789 no duraria muito. Na dcada de 1820, eclodiram revoltas liberais na Espanha, em Portugal, em Npoles, em Piemonte e na Grcia. Os congressos de Troppau (1820) e Laibach (1821), promovidos no quadro da Santa Aliana, manifestaram o apoio das potncias represso austraca na Itlia. Contudo, em 1822, no Congresso de Verona, a Gr-Bretanha recusava-se a intervir na guerra espanhola entre liberais e realistas. A recusa britnica representou golpe mortal no sistema de congressos das potncias legitimistas. Em 1830 uma insurreio em Paris suprimiu o absolutismo, originando a monarquia constitucional de Lus Felipe. A Revoluo de 1830 repercutiu em toda a Europa, possibilitando a independncia da Blgica e disseminando as idias liberais nas regies italianas e alems e tambm na Polnia, que se encontrava sob domnio russo. O legitimismo de Viena fracassaria definitivamente em 1848 o ano da primavera dos povos quando as revolues liberais pipocaram por todo o continente, desde a Frana at a Alemanha e a ustria. Ao lado do legitimismo, o princpio do equilbrio europeu norteou as decises de Viena. Sob o pretexto da restaurao das 35

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fronteiras polticas anteriores a Napoleo, procedeu-se a uma partilha territorial destinada a favorecer as quatro potncias vitoriosas. A GrBretanha apossou-se de importantes territrios coloniais, ampliando seus domnios de alm-mar. A Rssia estabeleceu seu domnio sobre a maior parte da Polnia, cristalizando sua posio de potncia hegemnica no mundo eslavo. A ustria anexou os estados italianos do Norte, de maneira que o velho imprio decadente ganhou prolongada sobrevida. A Prssia incorporou a Rennia e parte da Polnia, emergindo como grande potncia europia. O sistema de equilbrio europeu conservou a fragmentao alem. Entretanto, no lugar do Sacro Imprio, destrudo por Napoleo, surgia a Confederao Germnica. O reino da Prssia controlava a maior parte dos territrios setentrionais da Confederao, ao passo que os territrios meridionais faziam parte do imprio da ustria. No centro e no norte, sob o princpio da restaurao, foram constitudos reinos, principados e ducados reminiscentes do feudalismo. Mas os cerca de trezentos Estados pr-napolenicos consolidaram-se em aproximadamente trinta unidades polticas. No centro da arquitetura do equilbrio europeu, estava a limitao do poderio francs. A Sua recobrava sua independncia e, por disposio do Congresso de Viena, tinha garantida sua neutralidade perptua. No flanco sudeste da Frana, constitua-se o Reino do Piemonte-Sardenha, que viria a ser o vrtice da unidade italiana. No flanco nordeste, constitua-se o Reino dos Pases Baixos, que mais tarde originaria a Holanda e a Blgica atuais. Do ponto de vista geopoltico, os acordos do Congresso de Viena resultaram, antes de tudo, das propostas britnicas que haviam sido organizadas no chamado Plano Pitt. Londres direcionou os estadistas de Viena para um acordo geral baseado no princpio do equilbrio de poder. Assim, aquilo que estava subjacente ao pensamento estratgico de Richelieu tornava-se, dois sculos mais tarde, um programa de poltica externa. A Gr-Bretanha desprezava o sentido mstico da Santa Aliana, a sua referncia a valores religiosos universalistas e o seu apego s velhas dinastias. O primeiro-ministro Castlereagh estava pragmaticamente 36

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interessado no princpio do equilbrio europeu e, para sustent-lo, articulou a Qudrupla Aliana, composta por Gr-Bretanha, ustria, Prssia e Rssia. A Frana, que foi representada em Viena por Talleyrand, acabou sendo reintegrada ao concerto de potncias europias em 1818, vindo a participar da Quntupla Aliana. Dessa forma, o equilbrio pentagonal do continente ganhava expresso diplomtica adequada. O austraco Metternich desempenhou o papel de elo entre a estratgia britnica e a cruzada legitimista russa. O prncipe sabia que a Santa Aliana lhe proporcionava a oportunidade de exercer influncia sobre a poltica do czar, moderando seus excessos e vinculando-a ao Concerto Europeu. Ao mesmo tempo, tinha plena conscincia do papel indispensvel da Gr-Bretanha na estabilizao da Europa de Viena. O Sistema de Metternich, como ficou conhecido o Concerto da Europa de Viena, cristalizava a estabilizao de um equilbrio de potncias soberanas que zelavam em conjunto pela manuteno da ordem continental. A ordem europia passava a se estruturar sobre um arcabouo de geometria irregular: uma potncia martima que sediava um imprio mundial (Gr-Bretanha), uma potncia do Ocidente Europeu restringida pela derrota militar (Frana), duas potncias centroeuropias rivais (Prssia e ustria), uma potncia conservadora do Oriente Europeu (Rssia). O Concerto de Viena representou a moldura para o mximo florescimento da realpolitik. O sentido e o contedo da poltica externa dessa poca se desvincularam notavelmente das referncias a valores morais ou princpios universais. O equilbrio de poder deixou de constituir, apenas, resultado eventual da correlao de foras entre os Estados para se tornar a meta explcita da diplomacia europia.

A unificao alem e a Ordem de BismarckO foco de instabilidade principal do sistema foi, desde o incio, a rivalidade entre a Prssia e a ustria. Ao distribuir regies da Confederao Germnica para os dois competidores, mantendo reinos neutros entre eles, o Congresso de Viena tinha acendido um pavio que continuaria a queimar atravs do sculo. A disputa pela hegemonia sobre a Alemanha desaguaria na guerra direta entre os contendores. A unidade 37

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da Alemanha, realizada sob liderana prussiana, modificaria profundamente o equilbrio de poder em todo o continente. A marcha para a unificao comeou em 1834, com a criao do Zollverein, a unio alfandegria dos Estados alemes, que tinha por eixo a Prssia e exclua a ustria. Em 1862, a nomeao de Otto von Bismarck para chanceler da Prssia inaugurou a fase militar da unificao. Em aliana com a ustria, a Prssia derrotou a Dinamarca na Guerra dos Ducados (1864). Em seguida, a Prssia empreendeu a guerra contra a ustria (Guerra Austro-Prussiana de 1866) e constituiu a Confederao Germnica do Norte. Em 1870, eclodia a Guerra Franco-Prussiana, pela qual Bismarck obrigou os Estados germnicos do sul a se colocarem sob sua proteo. A guerra franco-prussiana foi o coroamento da unidade alem. O novo Estado, organizado sob o poder da Prssia, nasceu sombra da derrota e da humilhao francesas. O coroamento do imperador Guilherme I e a proclamao do Segundo Reich alemo, em 1871, no Salo dos Espelhos do Palcio de Versalhes, dilacerou por muito tempo o orgulho nacional francs. As indenizaes e as reparaes de guerra e, principalmente, a anexao da Alscia e da Lorena fertilizaram o revanchismo e pavimentaram o terreno para as guerras futuras. A guerra franco-prussiana foi desejada e preparada pelos dois lados. A Prssia desenvolvia a escalada militar da unificao, que fertilizava o nacionalismo alemo. A Frana tentava evitar a unidade alem para conservar o equilbrio de poder que rua lentamente. O surgimento da Alemanha como potncia unificada representou a desestabilizao definitiva do velho Sistema de Metternich. A trajetria iniciada em 1871 desembocaria, dcadas depois, na Primeira Guerra Mundial e no colapso da convivncia multipolar europia. Essas dcadas de transio, tensas e decisivas, transcorreram sob o signo de outra organizao dos poderes no continente: a ordem europia de Bismarck. No centro da nova ordem se encontrava a Alemanha, que atravessava um surto industrial sem precedentes. Em poucas dcadas, ela sobrepujaria a Gr-Bretanha, tornando-se a maior economia europia. A potncia emergente, situada no corao da Europa, funcionava como elo entre o

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oeste e o leste do continente. Nos dois lados, seu poderio crescente gerava temor e insegurana. A ordem de Bismarck excluiu a ustria de qualquer participao na nao alem. O Imprio austro-hngaro, envenenado pelos nacionalismos internos, ingressava na sua crise terminal. A unificao italiana (1861-1871) o tinha privado dos estados do nordeste da Itlia e crescia a instabilidade no norte da Pennsula Balcnica. Por outro lado, essa ordem se assentava na humilhao da Frana, onde germinava o revanchismo escorado na idia de retomada da Alscia e da Lorena. A poltica externa de Bismarck estava consciente dos riscos embutidos na humilhao da Frana. Por isso, sua meta principal era o isolamento da Frana, evitando a constituio de alianas antigermnicas. Manobrando nessa direo, o chanceler prussiano costurou o Acordo dos Trs Imperadores, firmado em 1873, envolvendo a Alemanha, a ustria-Hungria e a Rssia. O Acordo dos Trs Imperadores no podia durar muito, j que se aprofundavam os atritos entre russos e austracos. Em 1879, foi firmada uma aliana secreta austro-alem, explicitamente orientada para a defesa comum contra eventuais ameaas militares russas. Quase ao mesmo tempo, Bismarck firmava o Pacto Russo-Alemo, que durou at 1890. Assim, a Alemanha realizava arriscado mas indispensvel jogo duplo, associando-se s duas potncias rivais do Leste Europeu. At 1870, a Frana tinha se aproveitado das diferenas entre os estados alemes para atuar contra a unidade da Alemanha. Feita a unidade, a Frana derrotada teria que buscar segurana fora da Alemanha e, obviamente, contra a Alemanha. Na ltima dcada do sculo, a Frana conseguiu romper o isolamento imposto por Bismarck e firmar a aliana com a Rssia. A aliana franco-russa de 1894 foi conseqncia lgica do temor, sentido nos dois lados do continente, do poderio alemo.21 A aliana21

O sentido lgico da aliana franco-russa no suprime a polmica sobre o carter necessrio, ou no, dessa evoluo. O clebre analista e diplomata americano George Frost Kennan em um cuidadoso estudo do entrechoque de perspectivas de poltica externa na Rssia do final do sculo XIX revela a importncia das opes subjetivas, do fortuito e do acaso na deciso finalmente adotada do alinhamento com a Frana. Ver George F. Kennan, O Declnio da Ordem Europia de Bismarck. Braslia: UnB, 1985.

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tinha base em ambies territoriais antigermnicas: a Frana visava recuperar a Alscia e a Lorena; a Rssia pretendia conservar a Polnia, que era alvo do interesse alemo. Entretanto, o pacto antigermnico foi retardado pela hbil diplomacia de Bismarck. Ele s se concretizou quando as disputas entre a Rssia e a ustria demoliram o jogo duplo dos alemes. A rivalidade entre russos e austracos foi ativada pela confusa situao dos Blcs. L, a Srvia recebia o apoio russo nas suas pretenses de unificao nacional dos eslavos do Sul. O projeto da Grande Srvia ameaava o flanco sul do Imprio Austro-Hngaro, onde se localizavam as provncias da Eslovnia e da Crocia e partes da Bsnia-Herzegovina. O apoio diplomtico da Rssia aos srvios era fruto no s da comunho cultural eslava e ortodoxa entre os dois povos como tambm do antigo interesse russo por uma ponte na direo do Mediterrneo. Os atritos peridicos com a Turquia que dominava as sadas do Mediterrneo oriental e os estreitos de Bsforo e Dardanelos aprofundavam o fosso que separava a Rssia da ustria e aproximavam ainda mais os russos dos srvios. Quando a aliana austro-alem se tornou pblica, em 1890, a Rssia afastou-se da Alemanha. Em 1894 foi concluda a aliana francorussa, que cercava de hostilidade os alemes e os seus aliados austracos. Delineava-se a geometria de alianas da Primeira Guerra Mundial.

Texto ComentadoA POLTICA DE EQUILBRIO PLURIPOLAR, Raymond Aron (In: Paz e guerra entre as naes, op.cit., p.194-203) A noo de equilbrio de poder no tem eficcia analtica por si mesma. Ela s ganha contedo concreto quando referenciada s caractersticas do sistema de Estados. A principal caracterstica de qualquer sistema internacional sua estrutura. Por estrutura entendemse tanto as dimenses do sistema quanto a sua configurao geopoltica. O sistema europeu do sculo XIX foi, essencialmente, limitado Europa, e isso no porque a sua dinmica fosse incapaz de repercutir 40

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sobre o mundo todo, mas pelo fato de que todos os atores nacionais principais eram Estados do Velho Mundo. Apenas na passagem para o sculo XX esses limites se tornaram questionveis, em funo do aumento das influncias norte-americana e japonesa na cena internacional. Mesmo assim, um verdadeiro sistema universal s se consolidou no segundo ps-guerra. Esse sistema europeu se configurou como um condomnio de cinco potncias dotadas de foras comparveis. No incio do sculo XX, a emergncia da Itlia como potncia de primeira linha tendeu a substituir a configurao pentagonal por uma outra, hexagonal. No texto selecionado, Aron reflete sobre o funcionamento terico de um sistema pluripolar, examinando as regras propostas por Kaplan.

A poltica de equilbrio pluripolarImaginemos um sistema internacional definido pela pluralidade de Estados rivais, cujos recursos, sem serem iguais, no chegam a uma disparidade fundamental. Por exemplo: Frana, Alemanha, Rssia, Inglaterra; ustria-Hungria e Itlia em 1910. Se esses Estados querem manter o equilbrio, devem aplicar certas regras que decorrem da rejeio da monarquia universal. Como o inimigo , por definio, o Estado que ameaa dominar os outros, o vencedor de uma guerra (quem ganhou mais com ele) tornase imediatamente suspeito aos olhos dos seus antigos aliados. Em outras palavras, alianas e inimizades so essencialmente temporrias e determinadas pela relao de foras. Em funo do mesmo raciocnio, o Estado que amplia suas foras deve esperar dissidncia de alguns aliados, que passaro para o campo contrrio a fim de manter o equilbrio de foras. Por serem previsveis tais reaes defensivas, o Estado de fora crescente dever prudentemente limitar suas ambies, a no ser que aspire hegemonia ou ao imprio. Nesse ltimo caso, dever esperar a hostilidade natural que sentem todos os Estados conservadores contra quem perturba o equilbrio do sistema. Convm refletir se possvel ultrapassar essas generalidades (que so tambm banalidades) e indicar as regras que se imporiam racionalmente aos atores de um sistema pluripolar (uma vez mais, 41

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trata-se de uma racionalidade hipottica, condicionada premissa de que os atores desejam a manuteno do sistema). Um autor norteamericano, Morton A. Kaplan, props seis regras necessrias e suficientes para o funcionamento de um sistema esquemtico, que ele denominou de balance of power (equilbrio de poder), o qual parece corresponder ao que estamos descrevendo aqui. Essas seis regras so as seguintes: (1) cada ator deve agir de modo a aumentar suas capacidades (capabilities), mas deve preferir a negociao luta; (2) deve lutar para no deixar de utilizar uma oportunidade de aumentar sua capacidade; (3) deve abandonar a luta para no eliminar um ator nacional principal; (4) deve agir de modo a se opor a qualquer coalizo ou ator individual que tenda a assumir posio de predominncia com relao ao resto do sistema; (5) deve agir de modo a obrigar (constrain) os atores que aceitem um princpio supranacional de organizao; (6) deve permitir aos atores nacionais, vencidos ou obrigados, que participem do sistema como scios aceitveis ou que um ator at ento no essencial ingresse na categoria de ator essencial. Todos os atores essenciais devem ser tratados como scios aceitveis. Dessas seis regras, uma deve ser abandonada imediatamente a quarta, que a simples expresso do princpio de equilbrio (que j encontramos no ensaio de David Hume), vlido para todos os sistemas internacionais. Interpretadas literalmente, as outras regras no se impem de forma evidente, de modo genrico. A primeira vale para todo sistema definido pela luta de todos contra todos. Como cada um dos membros de um sistema deste tipo s pode contar consigo, qualquer acrscimo de recursos , em si, bem-vindo, desde que tudo o mais permanea igual. Ora, raramente um Estado aumenta seus recursos sem que haja qualquer alterao nos recursos de seus aliados ou rivais, ou na atitude de uns e de outros. Que a negociao seja prefervel luta pode passar por um postulado de poltica razovel, comparvel ao que prope o menor esforo possvel para um rendimento econmico dado (em termos de produo ou de renda). Este postulado exige que se abstraia o amor-prprio ou o desejo de glria dos atores. 42

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J a regra de lutar para no perder oportunidade de acrescentar a capacidade no razovel ou mesmo racional. verdade que, de modo abstrato, se tudo o mais permanece igual, os atores que aparecem no cenrio internacional visam obter a capacidade mxima. Contudo, se quisermos determinar as circunstncias precisas em que racional que um Estado combata, ficaremos reduzidos a frmulas quase despidas de significao concreta, do tipo o Estado deve tomar a iniciativa da luta se as vantagens que conta obter com a vitria forem maiores do que o custo provvel do combate a diferena entre as vantagens e o custo deve ser to grande quanto o risco da no-vitria, ou da derrota. Qualquer que seja a frmula exata admitida, a possibilidade de aumentar a capacidade do Estado no justificar, por si, o recurso s armas. Os autores clssicos s admitiam como motivo razovel e legtimo para tomar a iniciativa das hostilidades a ameaa de hegemonia suscitada pelo crescimento de um rival. Se bem que no chegue a ser imoral, imprudente contemplar passivamente a ascenso de um Estado rumo a posio de tal superioridade que os vizinhos fiquem sua merc. A terceira e a sexta regras tendem a se contradizer ou, quando menos, ilustram diversas eventualidades possveis. Num sistema de equilbrio pluripolar, o estadista prudente hesita em eliminar um dos atores principais. Ele no ir at o fundo da sua vitria se, ao entrar em combate, temer a destruio de um inimigo temporrio, necessrio para o equilbrio do sistema. Mas, se a eliminao de um dos atores principais levar, direta ou indiretamente, entrada em cena de novo ator de fora equivalente, ele se perguntar qual dos atores se o antigo ou o novo mais favorvel a seus prprios interesses. A quinta regra corresponde ao princpio de que num tal sistema todo Estado que obedece a uma idelologia supranacional, ou age de acordo com uma concepo desse tipo, inimigo. Este princpio no est implcito rigorosamente no modelo ideal de equilbrio pluripolar. De fato, como este tipo de equilbrio se manifesta normalmente por rivalidade entre Estados, cada um dos quais se mantm em posio solitria, cuidando exclusivamente do seu interesse, o Estado que recruta seguidores alm das suas fronteiras (porque defende uma doutrina universal) constitui ameaa para os demais. Contudo, a inimizade 43

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inevitvel entre os Estados nacionais e o que defende idias transnacionais no significa que os primeiros devem fazer a guerra a este ltimo. Tudo vai depender da relao de foras e da probilidade de reduzir pelas armas o atrativo da idia transnacional. De modo mais geral, todas essas regras supem implicitamente que as salvaguardas do equilbrio e do sistema sejam o objetivo nico ou, pelo menos, a preocupao predominante dos Estados, o que no acontece. O nico Estado que j agiu de acordo com essa hiptese, mais ou menos conscientemente, foi a Inglaterra, que de fato no tinha outro interesse a no ser a defesa do prprio sistema e o enfraquecimento do Estado mais forte, que poderia aspirar hegemonia. Nenhum dos Estados europeus continentais poderia se desinteressar de tal modo pelas modalidades de equilbrio, ainda que no aspirasse ao domnio. A posse de praas fortes e de provncias, o traado das fronteiras, a distribuio dos recursos estes eram os objetivos dos conflitos que os Estados continentais queriam resolver em seu benefcio. No seria irracional que, para atingir tais objetivos, estivessem prontos a eliminar um ator principal, em caso de necessidade desde que restassem outros atores em nmero suficiente para reconstituir o sistema. A eliminao da Alemanha como ator principal, com a diviso daquele pas, no era um ato irracional do ponto de vista da poltica francesa, que via assim reforada sua posio, sem reduzir perigosamente o nmero dos atores principais do sistema. A poltica puramente nacional dos Estados europeus s cobriu um perodo curto, entre as guerras de Religio e as de Revoluo. O fim das guerras de Religio no se deveu sua ilegalizao, ou derrota irremedivel de Estados que sustentassem uma idia transnacional, mas proclamao do primado do Estado sobre o indivduo. O Estado passou a determinar a Igreja qual os cidados deveriam aderir, tolerando os dissidentes sob a condio de que sua escolha religiosa fosse assunto estritamente privado. A paz europia do sculo XVII foi alcanada por uma diplomacia complexa que restabeleceu o equilbrio dos Estados e impediu que as disputas das Igrejas e as crenas dos governantes, prejudicassem esse equilbrio. Os soberanos passaram da conjuntura da guerra ideolgica da Santa Aliana: qualquer rebelio contra os poderes estabelecidos era incmoda, sendo, portanto,condenada 44

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mesmo pelos Estados rivais. A estabilidade das grandes potncias era colocada acima do enfraquecimento de um Estado potencialmente inimigo por dissidncias internas ou rebelies. possvel que o autor cujas teses estamos discutindo aceitasse as observaes precedentes. Suas seis regras seriam seguidas por atores perfeitamente racionais, dentro de um sistema pluripolar (balance of power) ideal. Contudo, mesmo admitindo que essas regras s se aplicam a um tipo ideal, no estou pronto a subscrev-las. A conduta do diplomata puro no pode e no deve ser interpretada tendo por referncia apenas o equilbrio, definido pela rejeio da monarquia universal e pela pluralidade dos atores principais. O comportamento dos sujeitos econmicos, num mercado ideal tpico, determinado, porque todos buscam maximizar suas vantagens. Mas num sistema de equilbrio pluripolar, o comportamento dos atores diplomticos no tem um objetivo unvoco: em igualdade de condies, todos almejam o mximo de recursos, mas, se o incremento desses recursos passa a exigir a guerra, ou provoca a reverso de alianas, os Estados hesitaro em assumir os riscos correspondentes. A manuteno de um sistema dado est condicionada salvaguarda dos atores principais, mas nenhum destes est racionalmente obrigado a colocar a manuteno do sistema acima dos seus prprios objetivos nacionais. Admitir implicitamente que os Estados objetivem a salvaguarda ou o funcionamento do sistema voltar a cometer, de outro modo, o erro de alguns defensores da poltica de poder, confundindo o clculo dos meios ou o contexto da deciso com ela prpria. No possvel prever os acontecimentos diplomticos a partir da anlise de um sistema tpico como no possvel ditar aos prncipes uma conduta determinada em funo do tipo de sistema. O modelo de equilbrio pluripolar ajuda a compreender os sistemas histricos, reais, e as regras de Kaplan que examinamos indicam as circunstncias que so favorveis sobrevivncia de tal sistema. Os Estados estritamente nacionais no se consideram inimigos de morte, mas simplesmente rivais. Seus governantes no se consideram pessoalmente ameaados pel