Manual Da FUNAG de Geografia

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IRBr - Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata Manual do Candidato Geografia Regina Célia Araújo 2ª Edição atualizada e revisada Nova Tiragem Brasília 2007

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IRBr - Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata

Manual do Candidato

GeografiaRegina Célia Araújo

2ª Ediçãoatualizada e revisada

Nova TiragemBrasília2007

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A Fundação Alexandre Gusmão (Funag), instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério dasRelações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobreaspectos da pauta diplomática brasileira.

Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e paraa política externa brasileira.

A Funag tem dois órgãos específicos singulares:

Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI) – tem por objetivo desenvolver e divulgar estudos epesquisas sobre as relações internacionais. Com esse propósito:

- promove a coleta e a sistematização de documentos relativos ao seu campo de atuação;- fomenta o intercâmbio científico com instituições congêneres nacionais, estrangeiras e internacionais, e- realiza e promove conferências, seminários e congressos na área de relações internacionais.

Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – cabem-lhe estudos e pesquisas sobre a história dasrelações internacionais e diplomática do Brasil. Cumpre esse objetivo por meio de:

- criação, difusão de instrumentos de pesquisa;- edição de livros sobre história diplomática do Brasil;- pesquisas, exposições e seminários sobre o mesmo tema;- publicação do periódico Cadernos do CHDD.

Ministério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo, Sala 170170-900 - Brasília-DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI)Esplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo, Sala 2270170-900 - Brasília-DFTelefones: (61) 3411-6800/9115Fax: (61) 3411-9588E-mail: [email protected]

Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD)Palácio ItamaratyAvenida Marechal Floriano, 196Centro – 20080-002 Rio de Janeiro – RJTelefax: (21) 2233-2318/2079E-mail: [email protected]

Jeronimo MoscardoPresidente

Diretor Álvaro da Costa Franco

CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA

Diretor Carlos Henrique Cardim

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APRESENTAÇÃO

A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) oferece aos candidatos ao Concurso deAdmissão à Carreira de Diplomata, do Instituto Rio Branco (IRBr), do Ministério das RelaçõesExteriores, a série Manuais do Candidato, com nove volumes: Português, QuestõesInternacionais Contemporâneas, História do Brasil, História Geral Contemporânea, Geografia,Direito, Economia, Inglês e Francês1.

Os Manuais do Candidato constituem marco de referência conceitual, analítica ebibliográfica das matérias indicadas. O Concurso de Admissão, por ser de âmbito nacional,pode, em alguns centros de inscrição, encontrar candidatos com dificuldade de acesso àbibliografia credenciada ou a professores especializados. Dada a sua condição de guias, osmanuais não devem ser encarados como apostilas que por si só habilitem o candidato àaprovação.

A FUNAG convidou representantes do meio acadêmico com reconhecido saber paraelaborarem os Manuais do Candidato. As opiniões expressas nos textos são de responsabilidadeexclusiva de seus autores.

1 O IRBr considera importante ao Concurso de Admissão que os candidatos não descuidem do aperfeiçoamento noidioma francês, uma vez que (a) será exigida proficiência de alto nível em francês no processo de formação de diplomatase (b) parte da bibliografia do Programa de Formação e Aperfeiçoamento – Primeira Fase (PROFA I) é constituída detextos em francês.

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FUNAG

A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), instituída em 1971, é uma fundação públicavinculada ao Ministério das Relações Exteriores, cuja finalidade é levar à sociedade civilinformações sobre a realidade internacional e aspectos da pauta diplomática brasileira.

Com a missão de promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas derelações internacionais e para a política externa brasileira, a Fundação Alexandre de Gusmão(FUNAG) promove atividades de natureza cultural e acadêmica que visem à divulgação eampliação do debate acerca das relações internacionais contemporâneas e dos desafios dainserção do Brasil no contexto mundial.

Fomentando a realização de estudos e pesquisas, organizando foros de discussão e reflexão,promovendo exposições, mantendo um programa editorial voltado para a divulgação dosproblemas atinentes às relações internacionais e à política externa brasileira, velando pelaconservação e difusão do acervo histórico diplomático do Brasil, a Fundação Alexandre deGusmão (FUNAG) coloca-se em contato direto com os diferentes setores da sociedade,atendendo ao compromisso com a democracia e com a transparência que orienta a ação doItamaraty.

E-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

Unidade I - Sociedade e Espaço: o campo de reflexões da Geografia ....................... 07

1. O Espaço Geográfico .................................................................................................. 09

2. Teorias Geográficas da Relação Sociedade-Natureza ................................................... 11

3 Bibliografia .................................................................................................................. 15

Unidade II - A Formação Territorial do Brasil ............................................................. 17

1. A Definição dos Limites Territoriais e o Processo de Ocupação do

Território Brasileiro ...................................................................................................... 19

2. Regionalização e Divisão Regional do Trabalho no Brasil .............................................. 33

3. Os Processos Recentes de Urbanização e a Rede de Cidades no Brasil ........................ 54

4. O Processo de Industrialização e as Tendências Atuais da Localização da

Indústria no Brasil ........................................................................................................ 63

5. O Processo de Modernização da Agricultura no Brasil e as suas Tendências Atuais ....... 74

6. Exemplos de Questões ................................................................................................. 86

7. Bibliografia .................................................................................................................. 87

Unidade III - O Brasil no Contexto Geopolítico Mundial ........................................... 89

1. Transnacionalização da Economia e Globalização das Relações de Produção:

o Período Técnico-Científico e as Novas Tendências Políticas em

Escala Global ............................................................................................................... 92

2. Herança Colonial, Condição Periférica e Industrialização Tardia:

A América Latina ....................................................................................................... 107

3. O Processo de Estruturação e os Objetivos do Mercosul ........................................... 113

4. As Perspectivas de Integração da Bacia Amazônia ..................................................... 133

5. Exemplos de Questões ............................................................................................... 141

6. Bibliografia ................................................................................................................ 142

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Unidade IV - A Questão Ambiental no Brasil e os Desafios do

Desenvolvimento Sustentável ..................................................................................... 143

1. A Consciência Ambiental e o Planejamento de Usos Sustentáveis do Solo ................... 145

2. Os Ecossistemas Brasileiros e as Principais Causas de sua Degradação ...................... 154

3. As Demandas de Saneamento Básico e a Qualidade de Vida nas Cidades

Brasileiras .................................................................................................................. 170

4. Exemplos de Questões ............................................................................................... 182

5. Bibliografia ................................................................................................................ 183

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UNIDADE I

SOCIEDADE E ESPAÇO:O CAMPO DE REFLEXÕES

DA GEOGRAFIA

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SOCIEDADE E ESPAÇO: O CAMPO DE REFLEXÕES DA GEOGRAFIA

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I. SOCIEDADE E ESPAÇO: O CAMPO DEREFLEXÕES DA GEOGRAFIA

No vasto campo de reflexões da geografia, que abarca desde a lógica dadistribuição espacial das atividades humanas e suas transformações ao longo dahistória até a percepção subjetiva das realidades espaciais vivenciadas pelas diferentessociedades e pelos grupos que as compõem, o conceito de espaço ocupa lugar dedestaque.

Nessa primeira Unidade, pretende-se introduzir a discussão acerca desseconceito e apresentar alguns momentos cruciais da história do pensamento geográfico,de forma a orientar a leitura das Unidades subseqüentes, que tratam da formaçãodo território brasileiro, da inserção do país no contexto internacional e dos impactosdo uso predatório dos recursos naturais sobre o patrimônio ambiental do país. Essaintrodução conceitual, porém, está longe de ser conclusiva, e não dispensa umarevisão bibliográfica de maior fôlego acerca das grandes linhas teóricas e conceituaisque vertebram o campo de reflexões da geografia: trata-se apenas de um quadrode referências fundamentais.

1. O Espaço Geográfico

As sociedades humanas, ao produzirem sua vida material e sua história,modificam os ambientes naturais e produzem também espaço. O processo dehumanização da natureza e de transformação desta em recurso produtivo resulta naprodução social de formas espaciais diferenciadas, ou, mais simplesmente, naprodução do espaço geográfico. O geógrafo Milton Santos define espaço comoacumulação desigual de tempos. Nessa perspectiva, o espaço geográfico écoagulação do trabalho social, materialização de idéias e de ações das sociedadessobre a natureza.

O espaço geográfico materializa atributos das sociedades que os produziram.Sendo assim, ele está em permanente mutação. O surto industrialista vivenciadopela Europa no século XIX, por exemplo, transformou radicalmente a geografia docontinente: as precárias vias de circulação medievais e as modestas cidades - com

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ruelas estreitas que obedeciam a um plano radioconcêntrico - cederam lugar às ferroviase às grandes aglomerações urbanas. A abertura contemporânea da economia brasileirapara os fluxos globalizados de capitais e mercadorias está mudando a geografia dasatividades produtivas do país, na medida em que os novos investimentos estãopromovendo, ao mesmo tempo, uma desconcentração dos ramos industriaistradicionais pelo território e uma reconcentração das indústrias de base tecnológicaem alguns pólos do Centro-Sul. Do mesmo modo, a integração crescente da economiachinesa com o mercado mundial está mudando a paisagem urbana das cidadeslitorâneas, que adquirem as feições das modernas aglomerações urbanas ocidentais.A geografia estuda uma realidade em permanente mutação, e não um objeto fixo.Ainda de acordo com Milton Santos, a paisagem, assim como o espaço, cristaliza emsuas formas o passado e o presente das sociedades que a produziram:

Uma região produtora de algodão, de café ou trigo. Uma paisagemurbana ou uma cidade de tipo europeu ou de tipo americano. Um centrourbano de negócios e as diferentes periferias urbanas. Tudo isto sãopaisagens, formas mais ou menos duráveis. O seu traço comum é ser acombinação de objetos naturais e de objetos fabricados, isto é, objetossociais, e ser o resultado da acumulação da atividade de muitas gerações.

Em realidade, a paisagem compreende dois elementos:

Os objetos naturais, que não são obra do homem nem jamaisforam tocados por ele.

Os objetos sociais, testemunhas do trabalho humano, no passadocomo no presente.

A paisagem não tem nada de fixo, de imóvel. Cada vez que asociedade passa por um processo de mudança, as relações sociais epolíticas também mudam, em ritmos e intensidade variados. A mesmacoisa acontece em relação ao espaço e a paisagem que se transformapara se adaptar às novas necessidades da sociedade.

As alterações por que passa a paisagem são apenas parciais.De um lado alguns dos seus elementos não mudam - pelo menos emaparência – enquanto a sociedade evolui. São as testemunhas do

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passado. Por outro lado, muitas mudanças sociais não provocamnecessariamente ou automaticamente modificações na paisagem.

Considerada em um ponto determinado no tempo, uma paisagemrepresenta diferentes momentos do desenvolvimento de uma sociedade.A paisagem é resultado de uma acumulação de tempos. Para cadalugar, cada porção do espaço, essa acumulação é diferente: os objetosnão mudam no mesmo lapso de tempo, na mesma velocidade ou namesma direção.

A paisagem, assim como o espaço, altera-se continuamentepara poder acompanhar as transformações da sociedade. A forma éalterada, renovada, suprimida, para dar lugar a uma outra formaque atenda às necessidades novas da estrutura social. “A história éum processo sem fim, mas os objetos mudam e dão uma geografiadiferente a cada momento da história” dizia Kant, o filósofo egeógrafo. [SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo:Hucitec, 1986, p. 37-38.]

2. Teorias Geográficas da Relação Sociedade-Natureza

Os mais importantes pensadores da geografia criaram teorias diferentesacerca das relações entre a natureza, a história e o espaço geográfico. Como sempreacontece na história das ciências, essas teorias são também uma expressão docontexto histórico no qual surgiram.

Nas obras do geógrafo alemão Friedrich Ratzel, publicadas no último quarteldo século XIX, o estudo da influência do meio – ou das condições naturais – sobrea humanidade ocupa lugar de destaque. Ratzel distinguia os povos naturais, aquelesque vivem submetidos às leis da natureza, dos povos civilizados, mais independentescom relação ao meio. Assim, o progresso consistiria na emancipação progressivados homens das determinações naturais, alcançado na medida em que as sociedadesdominassem de maneira progressivamente mais plena os recursos naturais disponíveisem seu meio. O território dos povos civilizados seria a expressão de uma ligaçãocompleta e íntima entre sociedade e natureza:

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Chamamos naturais certos povos não porque eles vivem nasmais íntimas relações imagináveis com a natureza, mas porque vivemsob a constrição da natureza. A distinção entre povo natural e povocivilizado não deve ser buscada no grau, mas no seu modo dedependência com a natureza. A civilização não é propriamenteindependência da natureza no sentido de uma separação completa, masno sentido de uma união mais multíplice e mais ampla. O camponêsque acumula o trigo no seu celeiro é tão mais dependente do seu campoquanto o é o indiano que recolhe nos pântanos o seu arroz aquático,que não semeou; mas para o camponês esta dependência é menos grave,é para ele uma leve cadeia, que não o prende tão facilmente, porque elefoi bastante prudente para recolher provisões, enquanto qualquer ventoforte que lance à água as espigas de arroz atinge o indiano de modovital. Não nos tornamos completamente livres da natureza pelo fato dea explorarmos e estudarmos mais a fundo; tornamo-nos cada vez maisindependentes dos acidentes singulares do seu ser e agir na medida emque multiplicamos as ligações. Precisamente em razão da nossacivilização estamos unidos à natureza mais intimamente que todas asgerações que nos precederam. [RATZEL, Friedrich. Povos naturais e povoscivilizados. In: MORAES, Antônio Carlos Robert (Org.). Ratzel. São Paulo:Ática, 1990, p. 122.]

Para Ratzel, a decadência ou o progresso de uma sociedade estariam ligadosrespectivamente à perda e à conquista de territórios, e o tamanho de um Estado seriaindicador do grau de civilização de seu povo. Não por acaso, as suas teses foramassociadas ao expansionismo latente da Alemanha do século XIX. De acordo com ele:

Para a geografia política, cada povo, localizado na sua áreaessencialmente delimitada, representa um corpo vivo que se estendeusobre uma parte da Terra e se diferenciou de outros corpos, queigualmente se expandiram por fronteiras ou espaços vazios. Aspopulações estão em contínuo movimento interno. Ele se transformaem movimento externo, para diante ou para trás, quando se ocupa umnovo trecho de terra ou se abandona uma possessão anterior (...).

A expansão dos horizontes geográficos, produto dos esforçosfísicos e intelectuais de inúmeras gerações, apresenta continuamente

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novas áreas para a expansão espacial das populações. Dominarpoliticamente essas áreas, amalgamá-las e mantê-las unidas requerenergia ainda maior: Tal energia só pode se desenvolver lentamentepela e através da cultura (...).

Vemos, acima de tudo, uma íntima relação entre expansãopolítica e religiosa. Mas mesmo elas são ultrapassadas pela enormeinfluência do comércio, que ainda hoje atua como um impulso poderosoem todas as direções de expansão. Fornecendo apoio a todos essesimpulsos estão as pressões populacionais, que aumentam com a cultura,e que, tendo por sua vez promovido a cultura, levam à expansão devidoàs pressões espaciais (...).

Assim como a área do Estado cresce com sua cultura, vemostambém que, nos estágios inferiores de civilização, os povos estãoorganizados em Estados menores. De fato, quanto mais descemos nosníveis da civilização, menores se tornam os Estados. Logo, o tamanhode um Estado também se torna um dos parâmetros do seu nível cultural.[RATZEL, Friedrich. As leis do crescimento espacial dos Estados. In:MORAES, Antônio Carlos Robert (Org.), Ratzel. São Paulo: Ática, 1990,p. 176-178.]

O geógrafo francês Vidal de La Blache esteve na origem de uma outraimportante escola da geografia. Em suas obras, publicadas entre o final do séculoXIX e o início do século XX, La Blache propôs que, na relação histórica e cumulativacom a natureza – cujos recursos são desigualmente distribuídos –, os diferentesgrupos humanos criariam “gêneros de vida” particulares. O contato entre “gênerosde vida” diferentes explicaria o contínuo aumento das fronteiras ecúmenas da terra,pela difusão de técnicas e hábitos ou pela complementariedade dos recursos naturais,realizada pelo comércio.

O progresso residiria, então, na ampliação da capacidade produtiva e noprogressivo enfrentamento das limitações impostas pela natureza, resultante dessecontato:

Observe em um mostruário de museu o espólio de vestuários,armas e adereços do mundo melanésio: nas conchas, escamas de

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tartarugas, dentes, espinhas, madeira e fibras vegetais, podemosreconhecer as características do meio litoral e equatorial; nosornamentos dos índios brasileiros, encontramos as coloridas plumasdas aves da floresta, nos pastores das savanas africanas, as peles derinocerontes e as correias de couro de hipopótamo. Pode-se recorrer ainúmeros exemplos de modos de vida inspirados diretamente no meioambiente. Excluindo-se os incêndios e os desbravamentos temporários,esse meio foi pouco modificado, o mundo vegetal e animal permaneceno estado de natureza; quase nada se buscou no exterior: Por outrolado, quando olhamos a nossa volta, nas regiões de alta civilização,vemos que os nossos campos, os nossos prados e até mesmo a nossafloresta em parte são artificiais, que os nossos companheiros, vegetaise animais, são aqueles que escolhemos, e que os muitos instrumentos emateriais que usamos podem ser também utilizados em meios físicosdiferentes. De um lado, civilizações autônomas; de outro, civilizaçõesnas quais o meio natural não se distingue senão através dascomplicações de elementos heterogêneos. Parece que há um abismoentre esses rudimentos de cultura, expressão de meios locais, e essesresultados de progresso acumulados de que vivem as nossas civilizaçõessuperiores. Uns são tão exatamente decalcados dos lugares onde seencontram, que não podemos transportá-los nem imaginá-los em outraparte; os outros são dotados da faculdade de transmitir-se e de seespalhar: [LA BLACHE, Paul Vidal de. Principes de GéographieHumaine. Paris: Editions Utz, 1990, p. 209.]

As cidades, lugar de encontro por excelência, funcionariam como verdadeiras“oficinas de civilização”. Para muitos estudiosos, as teses de Vidal de La Blacheoperaram no sentido de apresentar uma justificativa ideológica para o colonialismofrancês na África e na Ásia, já que, a partir delas, foi possível argumentar que adifusão do “gênero de vida” europeu pavimentaria o caminho do progresso nessescontinentes.

O pensamento geográfico sofreu grandes alterações desde o século XIX.Os conceitos e as teorias fundamentais da disciplina foram problematizados e novase importantes correntes teóricas surgiram, muitas das quais fundadas na dimensãoespacial da dinâmica das contradições sociais. Do mesmo modo que as demaisciências humanas, a geografia viveu um processo de especialização acadêmica, e

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diferentes arcabouços conceituais sustentam cada uma das suas áreas. A GeografiaEconômica, por exemplo, dedica-se à análise da espacialidade dos processos eestruturas produtivas e à formulação das mais diversas teorias de localização. AGeografia Histórica preocupa-se com a formação dos territórios e com a históriados espaços e dos lugares, valendo-se de métodos investigativos caros aoshistoriadores. A Geografia Cultural abrange temas como a percepção do espaço navida cotidiana e no universo cultural, além de estudar a construção social deidentidades baseadas em lugares. A Geografia Política desvenda as complexasrelações entre os Estados e os territórios e as dimensões políticas dos fenômenosde configuração do espaço.

A bibliografia sugerida para essa Unidade oferece um panorama dos muitoscaminhos que vêm sendo percorridos pelos estudos geográficos, e forneceinstrumentais indispensáveis a compreensão das Unidades subseqüentes.

3. Bibliografia

Bibliografia Básica

CASTRO, Iná Elias et alli. Geografia, Conceitos e Temas. Rio de Janeiro:Bertrand, 1993.

GREGORY, Derek et alli. Geografia Humana. Sociedade, Espaço e CiênciaSocial. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec/Edusp,1992.

Bibliografia Complementar

COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Política e Geopolítica. São Paulo:Hucitec/Edusp, 1992.

MARTIM, André Roberto. Fronteiras e Nações. São Paulo: Contexto, 1992.MORAES, Antônio Carlos R. Ideologias Geográficas. São Paulo: Hucitec, 1988._________, A Gênese da Geografia Moderna. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1989.

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UNIDADE II

A FORMAÇÃOTERRITORIAL DO BRASIL

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A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL

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II. A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL

O espaço brasileiro é resultado de uma sucessão de tempos históricos. Ocaráter litorâneo do povoamento e a monopolização do acesso à terra remontamao passado colonial. A economia cafeeira, ainda nos tempos da República Velha,criou as condições necessárias à proliferação do fenômeno urbano e à industrialização.

O crescimento industrial registrado após a década de 1930, por sua vez,lançou as bases da integração econômica e geográfica do território e gerou os“desequilíbrios” regionais. A consolidação de um pólo industrial no Sudeste e deperiferias industriais nas demais regiões redesenharam a geografia do país.

Nas últimas décadas, a abertura econômica e o novo caráter de inserção doBrasil nos circuitos globais de produção e consumo vêm produzindo impactosprofundos na dinâmica territorial brasileira e alterando de forma substancial da divisãoregional do trabalho no país.

Os momentos cruciais de produção e valorização do território brasileiro,bem como os grandes eixos temáticos de análise do território brasileiro, sãoproblematizados nos textos que compõem essa Unidade.

1. A Definição dos Limites Territoriais e o Processo deOcupação do Território Brasileiro

Em sua gênese, o processo de formação territorial do Brasil está associadoà empresa colonizadora. As sucessivas ampliações da fronteira produtiva da AméricaPortuguesa, definindo focos de produção e consumo dispersos pelo território, assimcomo o esforço da Coroa Portuguesa (e, mais tarde, do Império Brasileiro) nosentido de assegurar a posse das bacias hidrográficas e das rotas e caminhosconsiderados estratégicos, alimentaram a conturbada história da ocupação doterritório e do traçado das atuais fronteiras brasileiras.

A implantação da empresa agrícola colonial na América Portuguesa foi umainiciativa inovadora e arrojada: no século XVI, nenhum produto agrícola era objetode comércio em grande escala na Europa. As transações comerciais a longa distância

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eram restritas às mercadorias cujo valor pudesse compensar os altos custos detransporte, tais como produtos manufaturados e especiarias vindas do Oriente.

As ilhas atlânticas de colonização portuguesa foram o laboratório da grandeempresa agrícola que iria ter lugar na América Portuguesa. Nessas ilhas – Madeira,São Tomé, Cabo Verde e Açores –, a monocultura canavieira era praticada desdeo século XV.

As primeiras mudas de cana foram trazidas ao Brasil por Martim Afonso deSousa, em 1531. Dois anos mais tarde, seria construído o primeiro engenho deaçúcar da colônia, na vila de São Vicente.

Em pouco tempo, a lavoura canavieira seria introduzida na Zona da Matanordestina. O clima quente e úmido da região bem como a topografia suave e apresença de solos extremamente férteis (conhecidos como solos de massapê)ofereciam condições ideais para o plantio da cana.

Na segunda metade do século XVI, a região nordeste da colônia – em especialas capitanias da Bahia e de Pernambuco – havia se firmado como o centro da empresaagrícola colonial. Vastos latifúndios canavieiros, cultivados por mão-de-obra escrava edotados de um engenho de produção de açúcar, eram a unidade básica dessa empresa.

O açúcar produzido nos engenhos era transportado pelos rios ou em carrosde boi até os grandes portos exportadores: Recife e Salvador. Esses centros urbanosfuncionavam como elos de ligação entre as regiões produtoras e os mercadosconsumidores de além-mar. Por isso, sediavam as principais instituiçõesadministrativas e comerciais da colônia.

A empresa açucareira implantada pelos colonizadores no século XVIocupava somente uma estreita faixa costeira do imenso território luso-americano.Porém, no século XVII, novas atividades econômicas foram implantadas, e a fronteiraprodutiva do território colonial conheceu sucessivos alargamentos.

O sucesso comercial do açúcar nos mercados europeus estimulou o aumentoda área canavieira da Zona da Mata nordestina: no século XVII, as terras de pastodos engenhos se transformaram em canaviais. O gado foi expulso das terras nobresda fachada litorânea e ganhou os sertões.

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Partindo da Bahia e de Pernambuco (os dois maiores núcleos da produçãocanavieira), a pecuária se expandiu na direção do Rio São Francisco, que passou aser conhecido como o “rio dos currais”, e do Rio Parnaíba. Os índios que se opuserama essa marcha colonizadora sobre o sertão sofreram uma verdadeira guerra deextermínio.

No fim do século XVII, grandes fazendas de pecuária extensivadominavam a paisagem do sertão nordestino. Nelas, poucos homens livres – negroslibertos, índios e brancos pobres – eram suficientes para cuidar do rebanho etransportá-lo para as feiras de gado da Zona da Mata. Nos entroncamentos doscaminhos do rebanho, pontos de contato entre o sertão pastoril e o litoral agrícola,surgiram inúmeros povoados, embriões das cidades sertanejas do nordestebrasileiro.

Na Capitania de São Vicente, a prosperidade da empresa açucareira vicentinadurou muito pouco: já na segunda metade do século XVI, os sinais de decadênciaeram evidentes. A estreiteza da fachada litorânea, comprimida pela proximidade daSerra do Mar, e a predominância de solos rasos e pantanosos desestimulavam aampliação da agricultura canavieira na região. As maiores distâncias em relação aosportos europeus encareciam os custos de frete. O açúcar vicentino sucumbiu àconcorrência do açúcar nordestino.

O fracasso da empresa agrícola exportadora produziu um verdadeirodespovoamento do litoral vicentino. Os colonos paulistas galgaram a Serra do Mare se estabeleceram nas vilas fundadas no planalto.

São Paulo de Piratininga, fundada pelos jesuítas em 1554 e elevada à categoriade vila seis anos depois, se tornou o maior núcleo de povoamento da capitaniaainda no século XVI. Um velho caminho indígena, o Caminho do Mar, era a principalvia de ligação entre o litoral e os campos de Piratininga, que abrigavam a vila deSão Paulo. Nos arredores da vila, os colonos praticavam a policultura de subsistência,utilizando a mão-de-obra dos índios escravizados.

O apresamento e escravização dos índios era o principal meio deenriquecimento para os colonos da capitania. Os índios, além de serem necessáriosna policultura de subsistência, eram uma mercadoria de fácil transporte: podiamatravessar andando os difíceis caminhos do sertão e da serra.

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No século XVI, o apresamento dos índios permaneceu restrito aos arredoresdos campos de Piratininga. No século XVII, a desorganização do tráfico negreiro,conseqüência das guerras holandesas, ampliou o mercado de índios escravizadosnas regiões produtoras de açúcar. As bandeiras de apresamento ganharam o interior,aproveitando os cursos fluviais e abrindo caminhos terrestres.

As reduções jesuíticas em território hispano-americano eram o principalalvo do bandeirantismo de apresamento: nelas, os índios estavam concentrados edomesticados. As freqüentes incursões às reduções localizadas às margens do RioParanapanema (atual Estado do Paraná) foram responsáveis pela transferência demuitos desses aldeamentos para a província argentina de Missões, entre o altocurso do Rio Paraná e o alto curso do Rio Uruguai.

Na segunda metade do século XVII, a principal finalidade das expediçõesbandeirantes era a localização de jazidas de prata, ouro e pedras preciosas. Oempreendimento contava com o apoio da Coroa lusitana, que contratou diversossertanistas para organizar e comandar as bandeiras de pesquisa.

A exportação de fumo assumiu importância nas receitas coloniais portuguesasna metade do século XVII. Produzido principalmente no Recôncavo Baiano e emAlagoas, o tabaco era exportado para mercados europeus, além de servir de moedade troca com os aparelhos negreiros da costa africana.

Também no século XVII, intensificaram-se as expedições oficiais pelovale amazônico. Elas tiveram um sentido predominantemente geopolítico: tratava-se de expulsar holandeses e ingleses, senhores de muitas feitorias ao longo docurso dos rios, e impedir o contrabando de produtos nativos tais como madeirae pescado.

O Forte do Presépio de Belém, fundado em 1616, foi a ponta de lança daestratégia colonizadora da Coroa Ibérica no grande norte. Situado na foz do RioAmazonas, esse núcleo de povoamento deveria centralizar a exportação dasmercadorias e sediar os órgãos do poder metropolitano sobre a região. Plantasnativas, tais como o urucu, o cacau selvagem, o guaraná, a castanha-do-pará, ogergelim, a salsaparrilha e o pau-cravo, eram as principais mercadorias deexportação. Os aldeamentos indígenas controlados pelas diversas ordens religiosasrepresentadas na região amazônica funcionavam como uma reserva de coletores

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dessas “drogas do sertão”. O excedente alimentar das missões contribuía para oabastecimento de Belém e das pequenas cidades que surgiam na região.

Após a Restauração, a Coroa lusitana intensificou a ocupação militarizadada região. Uma rede de fortificações portuguesas foi construída seguindo a calhacentral do Rio Amazonas.

Nas últimas décadas do século XVII, a confirmação da existência de metaispreciosos nas regiões planálticas de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás promoveuum afluxo populacional sem precedentes na história colonial, alargandosubstancialmente a faixa de ocupação do território luso-brasileiro.

Os principais afloramentos auríferos e diamantinos estendiam-se da Baciado Rio Grande até as nascentes do Rio Jequitinhonha. Os mais importantes núcleosurbanos das Minas Gerais floresceram nessa região: Vila Rica de Ouro Preto,Mariana, Caeté, Sabará, Vila do Príncipe, Arraial do Tijuco e outras. Em tornodesses núcleos, apareceram zonas de povoamento mais disperso, próximas às minasdo Rio Verde, Itajubá, Minas Novas e de Paracatu.

Todos os esforços produtivos da região mineradora estavam concentradosna extração de metais e pedras preciosas. Os caminhos abertos para a exportaçãodesses produtos e para o abastecimento das Minas Gerais transformaram a geografiado Centro-Sul colonial.

Desde o final do século XVII, as bandeiras paulistas rumo aos sertões doRio São Francisco seguiam dois caminhos principais, que ficaram conhecidosrespectivamente como Caminho Geral do Sertão e Caminho Velho. O primeiropartia de São Paulo, rumando para Jundiaí, e seguia na direção do Rio Grande.Transposto esse rio, buscava a Serra das Vertentes e daí ganhava o São Francisco.O segundo, mais utilizado, seguia o curso do Rio Paraíba do Sul, passando porMogi das Cruzes, Laranjeiras, Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá,atravessava a Serra da Mantiqueira na altura da passagem de Hepacaré (atualLorena) e buscava o sertão do Rio das Velhas. Em média, os caminhos paulistasdemandavam dois meses de viagem até a região mineira.

No início do século XVIII, tropas de mercadores ganharam os caminhosbandeirantes. Os gêneros alimentares produzidos nos arredores das vilas paulistas

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atingiam preços exorbitantes na região mineradora. Na retaguarda da economiamineira, a agricultura paulista se expandiu rapidamente. A criação de gado primeiroganhou os campos de Paranaguá e Curitiba, para logo depois atingir os distantescampos sulinos do Rio Grande do Sul e do Uruguai, transformados em centros decriação de muares. Centros urbanos importantes floresceram e prosperaram noscaminhos de gado: Sorocaba (onde se realizavam as grandes feiras), Itapetininga,Faxina, Pirapora, Cabreúva, Apiaí, Itararé, Avaré e outros.

A curva demográfica, alimentada pela constante imigração lusitana,acompanhou esse surto produtivo: no início do século XVIII, a capitania vicentinacontava com 15.000 homens livres. Em 1777, os documentos oficiais registramuma população livre de 116.975 habitantes.

Ainda na primeira década do século XVIII, a Coroa lusitana, preocupadacom o contrabando da produção aurífera, mandou construir um caminho que ligassea região mineradora e a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. O CaminhoNovo tinha duas variantes: uma seguia até o porto de Pilar e galgava a Serra doMar; a outra contornava a Baixada Fluminense e subia o Rio Santana. Ambas seencontravam perto da cidade de Paraíba do Sul e daí seguiam na direção de Correias,Juiz de Fora, Barbacena etc. Pelo Caminho Novo era possível atingir a região dasMinas Gerais em apenas dezessete dias.

A abertura do Caminho Novo canalizou para o Rio de Janeiro a maiorparte dos lucros do comércio com o hinterland mineiro. O porto do Rio deJaneiro – transformado em boca das minas – se tornou o mais importante portoda colônia em volume de comércio exterior, escoando a maior parte da produçãoaurífera e diamantina e centralizando as importações necessárias aofuncionamento da empresa mineira. Além disso, tornou-se ponto de passagemobrigatória das levas de imigrantes portugueses atraídos pelo ouro e dos lotesde mão-de-obra negra destinados ao trabalho nas minas. A prosperidadeeconômica, tributária dessa relação privilegiada com os mercados das MinasGerais, iria transformar o Rio de Janeiro em sede administrativa do Vice-Reinodo Brasil no ano de 1763.

A pecuária do sertão nordestino também conheceu um período deprosperidade no século XVIII: os currais do Rio São Francisco despejavam boiadasinteiras na região das Minas Gerais. A topografia da região favorecia a condução

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das boiadas até as zonas mineradoras. Além do gado, os Caminhos Baianos sediavamum intenso – apesar de rigorosamente proibido – comércio de negros, umamercadoria muito mais valiosa nas Minas Gerais do que nas tradicionais regiõesaçucareiras da Zona da Mata.

Na metade do século XVIII, os limites traçados no Tratado de Tordesilhasestavam definitivamente ultrapassados: a assinatura do Tratado de Madri, no anode 1750, oficializou a incorporação de vastas possessões espanholas ao territóriocolonial português.

Textos Complementares

Os textos selecionados abordam aspectos da formação territorial do Brasile da definição dos limites territoriais do país. No primeiro, os geógrafos BertaBecker e Cláudio Egler traçam em grandes linhas a ocupação colonial do território,destacando as diferentes estratégias geopolíticas lusas que asseguraram orompimento da linha de Tordesilhas e culminaram no Tratado de Madri. Nosegundo, o geógrafo Demétrio Magnoli, sustentando a tese de que a fronteiranasce em uma etapa intermediária entre as definições abstratas dos tratados e asua efetiva demarcação, ressalta a importância da geopolítica imperial nahorogênese das fronteiras brasileiras.

Texto 1 – O Período Colonial

A ocupação e o povoamento do território que constituiria o Brasil não ésenão um episódio do amplo processo de expansão marítima resultante dodesenvolvimento das empresas comerciais européias. Como decorrência da buscade novas rotas para o Oriente pelos países ibéricos – a Espanha através do Ocidentee Portugal contornando a África – o território que constitui hoje o Brasil precedeua criação da própria colônia. O Tratado de Tordesilhas, firmado entre os dois paísesem 1494, dividia todo o mundo a ser descoberto entre as coroas de Portugal eEspanha, e estabelecia que todas as terras a leste do Meridiano de 50 graus oestepertenceriam a Portugal.

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Definia-se, assim, a priori, a colônia por um território correspondente aapenas 40% da sua área atual e, ainda assim, imenso. A defesa do território e suaexpansão não decorreu de conquista militar. Foi um processo de posse lento ecomplexo em que pesou a estratégia portuguesa, favorecida pela luta pelo poderhegemônico entre holandeses, franceses e ingleses, e pela união com a Espanhaentre 1580 e 1640.

Empreendimento mercantil e defesa da costa atlântica

Inicialmente os portugueses comerciaram madeiras corantes – o pau-brasil,por exemplo, que posteriormente daria o nome à nova colônia – e peles com osíndios em modestas feitorias ao longo do litoral.

A colonização do Brasil se apresentou aos monarcas portugueses aposteriori, devido à pressão da Holanda, Grã-Bretanha e França sobre o território,logo depois da perda para os holandeses da maioria dos postos comerciais quePortugal tinha na Ásia e na África; ao contrário do que acontecia nos territóriosespanhóis, a população nativa era relativamente escassa. Os portugueses nãopodiam, portanto, se basear no trabalho nativo, e no início também não acharammetais. Foi então necessário organizar a produção, e as plantations de cana-de-açúcar tornaram-se a base da economia e defesa coloniais. Esse empreendimento,até então inédito, deveu-se à experiência prévia de Portugal nas ilhas de São Tomée Madeira, que fomentou uma indústria de equipamentos para engenhos açucareiros,bem como a organização comercial dos flamengos que controlavam um mercadoexpressivo na Europa Continental.

O Brasil colonial foi, assim, organizado como uma empresa comercialresultante da aliança entre a burguesia mercantil (inclusive holandesa) e a nobreza.No início da colonização a legislação relativa à propriedade da terra estava baseadana política rural de Portugal. A terra ela vista como parte do patrimônio pessoal dorei, como domínio da Coroa, e sua aquisição decorria de uma doação pessoal,segundo os méritos dos pretendentes e os serviços por eles prestados à Coroa.

Uma estratégia de distribuição controlada da terra envolveu empreendedoresprivados na colonização do território sem ônus para a Coroa, assegurando aocupação e o controle da fachada costeira oriental. Através da divisão geométricada costa atlântica em Capitanias Hereditárias (1530), a colonização foi iniciada

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simultaneamente em vários pontos do território. A terra foi doada a donatários como objetivo de promover a agricultura, sobretudo a da cana-de-açúcar. Eles tinhamdireitos soberanos e podiam repartir as terras a moradores capazes de explorá-las(sesmarias). A divisão respeitou a linha do Tratado de Tordesilhas, embora os limitesentre as capitanias fossem desconhecidos.

Colocou-se, então, o problema da mão-de-obra e do índio, foco de umapolítica ambígua face ao conflito entre a postura da Coroa, de cristianização dosíndios para integrá-los no povoamento, e os interesses dos colonos em escravizá-los. A Carta Régia de 1570 estabeleceu então que os índios só podiam seraprisionados por “guerra justa”, e face à dificuldade de mão-de-obra recorreu-seao tráfico de escravos africanos, financiado em grande parte pelos holandeses.

Pelo fato de a terra não ser toda utilizada para fins comerciais, os proprietáriospodiam manter um certo número de arrendatários e meeiros que moravam nasáreas menos férteis de suas propriedades dedicando-se à economia de subsistênciae eventualmente trabalhando na plantation. Assim, apesar de ser o lucro o motivoprincipal da economia, o controle sobre os escravos e homens livres e sobre a terraera mais importante para definir o status social do proletário do que a acumulaçãode riqueza1.

O desenvolvimento de outros setores da economia não implicou amodificação da política agrária e do trabalho, típica das áreas canavieiras. Ospressupostos que guiaram essa política no século XVI sobreviveram até o séculoXIX. Se essa estratégia não trouxe a prosperidade econômica almejada, emcontrapartida ela lançou as bases da estrutura econômica, social e política da colônia,da ocupação efetiva do território contra ameaças externas, e da interiorização dopovoamento.

As plantations litorâneas eram as células fundamentais da estruturaeconômica e social da colônia. Daí partiu a expansão gradativa das fazendas degado pelo sertão para abastecer em couro e animais de trabalho as zonas canavieiras.No litoral norte, o Rio Amazonas foi estratégico, por sua extensão e amplanavegabilidade, até 2.000 Km no interior em meio à floresta equatorial. Durante a

1 Ver VIOTTI DA COSTA, E. Da Monarquia a República: Momentos Decisivos. São Paulo: Grijaldo,1977.

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união das Coroas de Portugal e Espanha (1580-1640), holandeses, franceses eingleses trataram de ocupar militarmente esta área (1580-1640). Para defender aBacia Amazônica, as formas iniciais de ocupação foram pequenos fortes, sendo oprimeiro deles na foz do Amazonas, em Belém (1616).

Para assegurar a ocupação a longo prazo, bem como a pacificação e lealdadedas tribos aborígenes contra os holandeses, ingleses e franceses, os portuguesesresolveram dividir a bacia entre ordens religiosas católicas. Seguiram assim os jesuítasespanhóis, que já haviam estabelecido um verdadeiro cordão estratégico ininterruptode missões jesuíticas no coração do continente, do Prata ao Alto Amazonas, noséculo XVI e primeira metade do XVII2 (...).

Expansão territorial para além de Tordesilhas

Após a separação das duas Coroas (1640), a colonização portuguesa empouco mais de um século invadiu áreas que pertenciam à Espanha e ocupou oterritório que é hoje o Brasil. O rompimento da linha de Tordesilhas tornou-se, paraa metrópole, um objetivo, e não apenas uma conseqüência da defesa do território.

A expulsão dos holandeses do nordeste, onde permaneceram de 1630-1654, levou à quebra do monopólio português na produção de cana-de-açúcar, namedida em que os holandeses desenvolveram a lavoura nas Antilhas. Arruinado edesfalcado nas suas colônias no Oriente e de sua marinha, Portugal tornou-se potênciasecundária, largamente dependente da Inglaterra que se afirmava no contextointernacional. O Brasil passou a ser sua última possessão ultramarina valiosa, e aextensão e o controle territorial da colônia tornaram-se decisivos para a recuperaçãoeconômica e a afirmação do Estado português centralizado.

A ocupação da terra como base do direito sobre sua posse, isto é, o direitode facto, foi a estratégia básica na apropriação do território para além dos limitesjurídicos do Tratado de Tordesilhas, sendo posteriormente reconhecida como umprincípio legal. Essa prática se fez sob várias formas, sobretudo no interior e nasbacias do Amazonas e do Prata, estratégicas pela navegação e por sua posição nosextremos da colônia.

2 Ver PRADO JR. C. Formação do Brasil Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Brasiliense. 1945.

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O maior impulso para a expansão territorial decorreu sobretudo dadescoberta do ouro (1690) no planalto do Brasil Central. O ouro se tornou a baseeconômica da colônia até meados do século XVIII, à medida que a economiaaçucareira decaía face à concorrência das Antilhas. A descoberta do ouro provocouum afluxo de imigrantes da metrópole, grande mobilidade interna e um rush gigantescoem alguns decênios, cobrindo uma área imensa no centro e oeste do atual territóriobrasileiro (Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso). Caminhos de gado e tropas demulas estabeleceram-se para abastecer os primeiros centros mineradores,constituindo-se nos primeiros eixos da integração interna da colônia.

Em conseqüência da mineração, deslocou-se o eixo econômico para o centro-sul e com ele se transferiu a capital da Bahia para o Rio de Janeiro (1763). Entretanto,o ciclo do ouro e diamantes, embora intenso, foi breve. Esgotou-se no último quarteldo século XVIII, inclusive pela pressão dos impostos cobrados pela Coroa, queresultou no primeiro, mas fracassado, movimento pela independência: a Inconfidênciade Minas Gerais em 1792.

No vale do Amazonas, a Coroa estimulou a ação das missões que setornaram as maiores exportadoras das “drogas” (canela, cravo, salsaparrilha, cacaunativo), além de produzirem alimentos para a subsistência e deterem o monopóliosobre a mão-de-obra indígena. Fortes e missionários penetraram profundamenteno território amazônico assegurando a futura soberania de Portugal numa área imensa,ainda que com fraca base econômica e esparsamente povoada.

No extremo sul, em fins do século XVII, um grande vácuo de poder existiaentre os espanhóis sediados em Buenos Aires, na embocadura do Rio da Prata, e aocupação portuguesa que se estendia até o paralelo de 26°S. A estratégia lusa tevedupla face. A face agressiva, correspondente à implantação de uma guarnição militarna margem norte do Rio da Prata, bem defronte do porto de Buenos Aires, criandoa Colônia do Sacramento, em 1689, que foi causa de mais de um século de guerra.Tratava-se de interesses sobretudo ingleses com vistas ao controle do comércio deprata, couro e gado na Bacia do Prata. A face pacífica correspondeu à colonizaçãodirigida pela metrópole que transferiu excedentes populacionais pobres dos Açores,instalando cerca de 4.000 casais em torno de Porto Alegre e em Santa Catarina(1747). Após a paz (1777), a terra foi distribuída em larga escala a militares ecavaleiros no atual Rio Grande do Sul como forma de consolidar a posse portuguesadando origem a grandes latifúndios pastoris: as instâncias. Firmou-se, assim,

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simultaneamente, a soberania portuguesa e a base econômica da região que, já em1780, exportava charque para o Rio de Janeiro e para Havana.

O rápido movimento da mineração e a lenta expansão das fazendas e doscaminhos de gado, e a posse de facto ao longo das bacias consolidaram eexpandiram a ocupação do território muito além dos limites de jure fixados peloTratado de Tordesilhas. A geopolítica da metrópole mostrou-se, assim, acertada.Em 1750, o Tratado de Madri estabelecendo pela primeira vez as linhas divisóriasentre os domínios de Portugal e Espanha, adotando como critério o utis possidetis,isto é, o reconhecimento do direito de posse a partir do efetivo povoamento eexploração da terra. Legitimou-se, assim, a apropriação do território cujos limitespermanecem grosseiramente os mesmos de hoje.

[BECKER, Bertha K., EGLER, Claudio A. G. Brasil uma nova potência regionalna economia mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 40-46.]

Texto 2 – Horogênese e Origem das Fronteiras Nacionais

Qual é a origem das fronteiras brasileiras? (...) o discurso nacional virtualmenterejeita essa indagação, isentando o corpo da pátria de qualquer condicionamentohistórico e fazendo-o emanar da natureza. Esta noção, não importa o quão absurdapareça quando assim posta, encontra-se profundamente enraizada no imagináriogeográfico nacional. Ela se manifesta em obras acadêmicas, livros de divulgaçãohistórica e geográfica e nos atlas escolares. Recentemente – e este não é um casosingular, mas a expressão de uma prática – compareceu nos pressupostos implícitosde uma questão do prestigiado exame vestibular da Universidade de Campinas1.

Abordando as etapas teóricas de produção da fronteira, Raffestin assinala adistinção entre três momentos:

1 Trata-se da questão nº 2 da 1ª Fase da primeira prova de 1995-1996, que exibia dois mapas temáticosde ocupação do território do Brasil colonial, referentes aos séculos XVI e XVII. Esses mapasapresentavam, além da linha do Meridiano de Tordesilhas, a linha das fronteiras atuais do Brasil. Otraçado das fronteiras atuais não continha qualquer indício que pudesse distingui-lo daquele do Meridiano,produzindo a sensação da convivência de dois limites distintos no mesmo tempo histórico. O maisnotável é que a questão enfocava precisamente o processo de ocupação do espaço geográfico: a ideologiasubjacente faz crer que as manchas de povoamento a ocidente de Tordesilhas buscavam já, no séculoXVII, alcançar o perímetro da pátria preexistente.

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O mapa é o instrumento ideal para definir, delimitar e demarcara fronteira. A passagem de uma etapa à outra se traduz por umacréscimo de informação, mas também por um custo de energia. Nofundo, trata-se da passagem de uma representação “vaga” para umarepresentação “clara”, inscrita no território. A linha fronteiriça só é defato estabelecida quando a demarcação se processa. “De fatoestabelecida” significa não estar mais sujeita à contestação por partede um dos Estados que tivesse essa fronteira em comum. Pelademarcação, elimina-se não um conflito geral, mas um conflito do quala fronteira pudesse ser o pretexto. [RAFFESTIN, C. Por uma geografiado poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 167.]

A demarcação da fronteira sobre o terreno, etapa final do processo, confereuma materialidade sensível à linha divisória. Esta tarefa, que continuou a demandaro trabalho de comissões de demarcadores brasileiros por nove décadas depois doestabelecimento do último importante tratado de limites, já não concerne à origemdas fronteiras. No outro extremo, a mera definição abstrata de um traçado – como nocaso de Tordesilhas, ou em grande parte das decisões do Tratado de Madri de 1750– não gera uma fronteira, pois freqüentemente opera pela intuição, na ignorância dalocalização verdadeira dos acidentes geográficos mencionados2. A linha de fronteiranasce na etapa intermediária, a da delimitação, que consiste num ato de apreensãointelectual do espaço geográfico em questão, possibilitado pelo acúmulo de um vastoconjunto de informações e refletido nos documentos cartográficos sobre os quais étraçada a linha divisória. Se é verdade, como quer Raffestin, que apenas a colocaçãode marcos sobre o terreno suprime a possibilidade de conflitos que tomam o traçadodivisório como pretexto, o verdadeiro debate entre os Estados relativo às fronteirasse processa na etapa anterior, quando são elaborados os tratados de limites3.

2 o Meridiano de Tordesilhas não foi delimitado. e nem poderia ser, nos termos vagos do tratado e nabase dos conhecimentos da época. Tentativas de delimitação foram feitas pelos mapas do catalão JaimeFerrer (1495), de Cantino (1502), de Enciso (1518), dos peritos de Badajós (1524), de Diogo Ribeiro(1529) e de Oviedo (1545), com traçados bastante distantes entre si. Apenas muito mais tarde, noséculo XVIII, através dos padres Diogo Soares e Domingos Capassi, a arte cartográfica conseguiria fixarcom razoável precisão as longitudes e determinar o traçado aproximado da linha divisória.3 Há um problema suplementar na formulação de Raffestin. Ao insistir exclusivamente na temática daquantidade de informação presente em cada etapa. acaba sendo obscurecida a diferença de qualidadeentre elas (a menos que, num jogo de palavras pretensamente profundo, se invoque a transubstanciaçãoda quantidade em qualidade...). Historicamente, a demarcação de fronteiras pertence. como regra, aodomínio dos séculos XIX e XX, e reflete um grau de controle sobre o espaço de que só dispõem osEstados contemporâneos. A delimitação, como vimos, constitui processo característico de uma faseanterior, de transição, quando se forjam os Estados nacionais.

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O invólucro fronteiriço do Brasil estende-se por 23.086 km, que estãosubdivididos numa secção marítima de 7.367 km, e numa terrestre de 15.719 km.A secção marítima, definida em razão da fachada oceânica do Atlântico, ainda que,por razões óbvias, tenha constituído uma linha de fronteira dos territórios portuguesesna América, só foi plenamente incorporada como limite da projeção oriental brasileiraapós a extinção do tráfico negreiro e a conseqüente supressão dos múltiplos liamesentre o Império e a África ocidental. A secção terrestre se decompõe em dez díades– do termo dyade, cunhado por M. Foucher4 para designar “uma fronteira comuma dos estados contíguos” – de extensões muito diversas5.

Um exame da configuração histórica das díades fronteiriças brasileiras revela,quanto às condições de origem, o papel significativo, embora longe de predominante,desempenhado pelas guerras. Quanto ao momento da sua delimitação, o examederruba facilmente o mito da antigüidade das linhas limítrofes do país: o Império é ogrande período de horogênese – para empregar outro termo cunhado por Foucher6.Evidentemente, a classificação da horogênese implica uma dose razoável desubjetivismo, pois cada díade ou segmento condensa uma história complexa queenvolve, às vezes, sucessivos tratados contraditórios, novos litígios, episódios deconflito militar ou arbitragem. Tomou-se por base classificatória o momento dadelimitação estrutural de uma linha de fronteira, que pode ser eventualmente anteriorao tratado definitivo, mas que o condicionou decisivamente.

O Império delimitou 7.948 km de fronteiras, ou pouco mais que a metade dasecção terrestre do invólucro total. O período colonial, tido e havido como momentopor excelência da configuração dos limites, é responsável efetivamente por apenas2.709 km, ou cerca de 17% da secção terrestre. A “era de Rio Branco”, classificadaaqui como período nacional, respondeu por quase o dobro: 5.062 km, ou 32% (...).

Não deixa de ser interessante sublinhar um contraste: perto de 30% daextensão dos limites de horogênese imperial originaram-se de guerras, enquantomais de metade da extensão dos limites de horogênese nacional originaram-se de

4 FOUCHER, Michel. Fronts et Frontières. Paris: Fayard. 1991. p. 15.5 No seu sentido filosófico, em francês, dyade designa a reunião de dois princípios que se completam eantagonizam reciprocamente. Em Biologia, o termo se aplica a um par de cromossomos, um masculinoe outro feminino. Em português, díade remete também ao grupo de dois, caracterizado pelacomplementaridade e antagonismo.6 Op. Cit, pg. 49. O termo foi cunhado a partir da raiz grega horoi – da qual se originou “horizonte” emlínguas latinas – que servia para designar os limites políticos do território da cidade.

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arbitramento. Isso justifica, até certo ponto, as percepções hispano-americanasrelativas à agressividade expansionista imperial, ainda que a caracterização nãoseja historicamente apropriada. Ao mesmo tempo, fica evidenciada a “divisão dotrabalho” entre o Império, que traçou a maior parte da extensão de fronteiras platinas,e a “era de Rio Branco”, que concentrou a sua obra de limites predominantementena área amazônica.

[MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e políticaexterna no Brasil (1808-1912). São Paulo: Moderna/Edusp, 1997, p. 239-243.]

2. Regionalização e Divisão Regional do Trabalho no Brasil

Nas primeiras décadas do século XX, a economia brasileira encontrava-sefragmentada regionalmente. “Ilhas” econômicas voltadas para o mercado externodesenvolviam-se no Sudeste, no Nordeste e na Amazônia. As ligações internasdesse “arquipélago exportador” eram frágeis: os mercados regionais tinhamimportância muito maior que o embrionário mercado nacional. A territorialidadecolonial sobreviveu à independência1.

No Sudeste, o complexo cafeeiro exportador era o núcleo do principalmercado regional do país. Nas primeiras décadas do século XX, o café já tinhadeixado a fase escravista e ingressado na fase capitalista, promovendo umdesenvolvimento sem precedentes da infra-estrutura de transportes e urbanização2.

1 A expressão “arquipélago econômico” foi utilizada por Lea Goldestein e Manuel Seabra para caracterizaro período agrário-exportador da economia brasileira. Segundo eles, nesse período “não existia, de fato,uma divisão regional interna do trabalho em dimensão nacional. As diversas regiões se ligavam diretamentea centros do capitalismo mundial. Tinham em comum a valorização do setor externo, realizando um‘crescimento para fora’.” In: GOLDESNTEIN. Lea e SEABRA, Manuel. Divisão Territorial do Brasile Nova Regionalização. Revista do Departamento de Geografia (1), São Paulo, FFLCH-USP, 1982.2 O geógrafo Demétrio Magnoli atribui a dinâmica urbanizadora característica do complexo cafeeiropaulista à existência de um circuito local de reprodução do capital, que se desenvolveria à sombra docircuito internacionalizado: “O circuito cafeeiro local- a sua magnitude e o seu desenvolvimento -estáem função das características do mercado local gerado pela crescente diferenciação interna da sociedadecafeeira e pela monetização de parte dos rendimentos dos trabalhadores rurais. Contudo, a existênciadesse circuito local dinamiza novas relações sociais, originadas pelo efeito multiplicador da constituiçãode atividades urbanas comerciais, industriais e de serviços. Assim. a pequena cidade cafeeira não apenasresponde a necessidades objetivas do complexo capitalista (sendo, por isso, um elemento constitutivodesse complexo) como responde ainda às necessidades próprias da vida urbana”. 1n: MAGNOLI.Demétrio. Agroindústria e Urbanização: o Caso de Guariba, Dissertação de Mestrado. Departamentode Geografia da USP. 1990, p. 13-19.

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O complexo cafeeiro gerava economias complementares na sua periferia. As áreasnão-cafeeiras de Minas Gerais, as áreas coloniais do Sul e as áreas de pecuária doCentro-Oeste ligavam-se cada vez mais ao território cafeeiro paulista.

No Sul, a imigração alemã, italiana e eslava tinham promovido o aparecimentode importantes centros agrícolas no Vale do Itajaí, nos arredores de Curitiba e naregião serrana gaúcha. Essas áreas aumentavam as suas exportações agrícolas paraSão Paulo. Em Minas Gerais, as decadentes regiões mineradoras tinham regredidopara a pequena produção agrícola. Além de alimentos, essas áreas forneciam mão-de-obra para a economia paulista. Nos cerrados do Centro-Oeste, uma pecuáriaultra-extensiva sustentava o povoamento rarefeito e já fornecia carne bovina para opólo cafeeiro.

O Nordeste constituía outro pólo exportador, organizado em torno da canae do algodão. A produção canavieira, após uma prolongada decadência, vivia umsurto de prosperidade ligado às transformações tecnológicas que culminaram coma substituição do engenho pela usina. A produção algodoeira, ao contrário, tinhaconhecido sua época de ouro algumas décadas antes, em função da desorganizaçãodas exportações americanas provocadas pela Guerra de Secessão. A volta doalgodão americano aos mercados internacionais atingira a produção nordestina,ocasionando grande depressão.

A Amazônia sediava o pólo exportador de borracha, cuja importância serestringiu ao período 1870-1920. As grandes exportações de borracha natural paraa Europa e os Estados Unidos tinham atraído levas de migrantes nordestinos para aAmazônia Ocidental. O sistema de produção, baseado no controle das matas e dosseringais pelas companhias exportadoras, impediu qualquer acumulação interna dariqueza gerada pelas exportações. Ao contrário do ciclo cafeeiro, o surto da borrachanão criou as bases para o desenvolvimento regional e sequer dinamizou um importantemercado regional.

A industrialização acelerada dos anos 1930-1960 rompeu o isolamento dosmercados regionais, criando um mercado interno nacional. Os manufaturados doSudeste, produzidos com tecnologia superior e em escala industrial, invadiram todoo país. A competição desigual com as mercadorias fabricadas nas outras regiõesresultou na forte concentração de capitais e infra-estrutura no Sudeste. O processode unificação econômica do espaço brasileiro teve como contrapartida a emergência

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de uma divisão territorial do trabalho, que fundamentou a ótica dos “desequilíbriosregionais”. Este contexto ilumina a criação do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE), em 1934, e o forte impacto que a “questão regional” iria ter daíem diante na vida política e na geografia do país:

(...) Torna-se difícil desvincular a definição oficial das “grandesregiões” do Brasil de 1945, e de suas subdivisões, do novo papel que oEstado assumia na vida do país. Queremos com isso dizer que a origemdessa problemática regional, a de decompor o território nacional emblocos regionais oficiais, está vinculada às novas realidades nacionais,que se acentuaram com a década de 30, determinadas, em últimainstância, pela expansão do capitalismo industrial no Brasil. Por umlado, a expansão do capitalismo no Brasil implicou a crescenteintegração da economia e do território nacionais, e a conseqüentedissolução das “economias regionais”, ou seja, das “regiões econômico-sociais” vinculadas ao período primário exportador da economiabrasileira dominante até fins do século XIX. Essa integração se deu apartir do desenvolvimento de certas áreas industriais, cujo dinamismogerou uma redivisão territorial do trabalho, com base na internalizaçãode nossa economia e, consequentemente, na elaboração de um mercadointerno unificado. O “esfacelamento” da estrutura espacial em“arquipélago” significou, em outras palavras, não só o fim de uma faseem que a economia nacional era constituída por várias economiasregionais, mas também o “desaparecimento” das regiões enquantoregiões “econômico-sociais”.

Por outro lado, a expansão do capitalismo no Brasil implicou ocentralismo político-administrativo que se processou no nível dogoverno federal, no crescente papel do Estado na dinâmica da economianacional, e o conseqüente enfraquecimento dos poderes locais e/ouregionais representados, por exemplo, através da “política dosgovernadores” ou das oligarquias nacionais. (...) Foi através dessecrescente papel do Estado, cujos interesses se confundiam muitas vezescom os da burguesia industrial, que foram sendo criadas condiçõespara uma crescente integração econômica do espaço nacional. Foi ocaso da (...) remoção da barreira alfandegária que existia até entãoentre os estados que não mais poderiam cobrar impostos estaduais

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sobre mercadorias provenientes de outras unidades da federação, oque facilitou o incremento do comércio regional. Os poderes dos estadosforam ainda mais restringidos, em favor do poder central, com a perdados direitos que eles tinham de legislar sobre o comércio exterior. Outroexemplo do papel do Estado na integração econômica do espaçonacional: os grandes investimentos por ele feito em obras de infra-estrutura de alcance nacional, tais como nos transportes, facilitando epossibilitando a integração acima referida que se deu a partir da“região” hegemônica industrial do Sudeste. [PERIDES, Pedro Paulo. ADivisão Regional do Brasil de 1945 – Realidade e Método. In: RevistaOrientação, Departamento de Geografia – USP, n.9, 1992.]

O IBGE apresentou a primeira regionalização oficial do território brasileiroem 1946. A partir do conceito de região natural, emprestado da geografia regionalfrancesa, seis grandes macrorregiões foram identificadas através do estudo dasinfluências recíprocas entre os diferentes fatores naturais, principalmente clima,vegetação e relevo. As bases naturais do território, consideradas mais estáveis epermanentes, fundamentaram essa primeira regionalização3.

Em 1969, o governo brasileiro tornou pública uma outra proposta deregionalização, também saída dos quadros do IBGE. Desta vez, as regiões eramdefinidas segundo uma combinação de características físicas, demográficas eeconômicas. As regiões homogêneas foram delimitadas a partir de estudossetoriais envolvendo os domínios ecológicos, o comportamento demográfico, aestrutura industrial, a agricultura, a rede de transportes e de fluxos. O resultadodesses estudos foi a divisão do Brasil em 360 microrregiões homogêneas,agrupadas em cinco grandes unidades macrorregionais. Assim como na DivisãoRegional de 1946, os limites interestaduais foram considerados no traçado dasGrandes Regiões.

3 “As regiões naturais constituem a melhor base para uma divisão regional prática, sobretudo para finsestatísticos e especialmente para uma divisão permanente que permita a comparação de dados dediferentes épocas. As regiões humanas, particularmente as econômicas, pela sua instabilidade, nãofornecem base conveniente para tal comparação no tempo; constituem, porém, uma boa divisão paraestudo do país numa dada época, quando mais importar a comparação no espaço, de umas partes comas outras. No caso de uma divisão para fins didáticos deve ser sempre considerada como básica a divisãoem regiões naturais”. GUIMARÃES, Fábio M.S. Divisão Regional do Brasil. In: Revista Brasileira deGeografia – IBGE. Abril-Junho de 1941.

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Na Divisão Regional do Brasil de 1969, os estados da Bahia e de Sergipeforam incluídos na Região Nordeste. A Região Sudeste foi criada em substituição àantiga Região Leste; São Paulo, antes pertencente à Região Sul, passou a integrar aRegião Sudeste.

Essas modificações foram justificadas com base no processo deindustrialização e de crescimento econômico do país. A concentração da indústrianos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais serviu de base à delimitaçãode uma região “central” do ponto de vista da economia. O núcleo triangular SãoPaulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte surgia como ímã dessa região “central”. Juntos,os três estados detinham 80,3% do valor da transformação industrial do país e 70,1% dos empregos do setor. Por outro lado, a nova Região Nordeste despontavacomo região-problema, marcada pela pobreza e pela repulsão demográfica.

O critério de regionalização oficializado pelo governo militar em 1969considera as atividades econômicas como fundamentais na diferenciação dosespaços: são elas que vão determinar as políticas de investimentos públicos e devalorização de áreas consideradas “deprimidas”. Influenciada pela new geographynorte-americana, a tecnoburocracia ligada ao regime militar acreditava que o estudoestatístico integrado dos fenômenos naturais e sócioeconômicos forneceria subsídiosà ação planejadora do Estado.

A divisão regional proposta em 1969 ainda hoje é utilizada como baseestatística e para fins didáticos, com apenas uma modificação: o Estado do Tocantins,criado pela Constituição de 1988, passou a fazer parte da Região Norte.

Nas últimas décadas, uma outra proposta de regionalização, elaborada pelogeógrafo Pedro Pinchas Geiger em 1967, vem ganhando espaço nas publicaçõesgeográficas e na imprensa em geral. Trata-se da divisão do país em três grandes complexosregionais, individualizados segundo critérios geoeconômicos. Essa delimitação não levaem conta as fronteiras entre os estados: o norte semi-árido de Minas Gerais, por exemplo,integra o Complexo Regional Nordestino; metade do território do Maranhão integra oComplexo Amazônico, a outra metade pertence ao Complexo Nordestino.

O Centro-Sul se destaca como o centro econômico do Brasil, concentrando70% da população nacional e a maior parte da produção industrial e agropecuáriado país. O Nordeste se individualiza pela estagnação econômica, pela repulsão

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populacional e pela disseminação da pobreza, expressa nos altos índices de mortalidadeinfantil, subnutrição e analfabetismo. O Complexo Amazônico se caracteriza pelapresença da floresta equatorial, pelas baixas densidades populacionais e ainda peloaltamente predatório processo de ocupação recente, ligado aos grandes projetosagropecuários e minerais.

Região e Políticas Públicas

A Sudene, criada em 1959, foi o primeiro organismo permanente deplanejamento regional brasileiro. Sua área de atuação ultrapassa os limites da RegiãoNordeste, incluindo a região semi-árida do norte de Minas Gerais. O Nordeste daSudene, região de planejamento, é diferente do Nordeste do IBGE, base territorialpara levantamentos estatísticos.

A estratégia de planejamento regional se intensificou na segunda metade dadécada de 1960. Em 1966, foi a vez da Superintendência para o Desenvolvimentoda Amazônia (Sudam). A criação da Sudam definiu uma nova região de planejamento,a Amazônia Legal, que atualmente engloba os estados do Acre, Rondônia, Amazonas,Pará, Amapá, Mato Grosso, Tocantins e Roraima, além do oeste do Estado doMaranhão. O incentivo a grandes projetos agropecuários, principalmente no oestedo Mato Grosso e ao longo da calha do Rio Amazonas, integrou as estratégias daSudam para o desenvolvimento da região. No ano seguinte, foi a vez daSuperintendência para o Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) e daSuperintendência para o Desenvolvimento do Sul (Sudesul). Essa estratégia revelaa forte centralização do poder político característica desse período, já que todosesses órgãos de planejamento são subordinados ao governo federal.

Textos Complementares

Os textos selecionados foram extraídos dos ensaios que integram a obraDesigualdades regionais e desenvolvimento, originada das pesquisas desenvolvidasna Fundação de Desenvolvimento Administrativo (Fundap) sobre o Federalismono Brasil. Eles iluminam aspectos importantes da problemática das regiões e dadivisão regional do trabalho no Brasil contemporâneo. O primeiro deles, de autoriados pesquisadores Sergio C. Buarque, Antéro Duarte Lopes e Teresa Cativo Rosaapresenta uma caracterização da Região Norte, definida enquanto uma das últimasfronteiras de recursos do mundo. No segundo, Tânia Bacelar de Araújo assinala a

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complexidade e a heterogeneidade que caracterizam o nordeste brasileiro.Finalmente, Osmil Galindo e Valdeci Monteiro dos Santos investigam os diferentesaspectos da expansão da fronteira agrícola na Região Centro-Oeste.

Texto 1- Caracterização da Região Norte

A Região Norte caracteriza-se por um macroespaço de 3,9 milhões de Km2,predominantemente dominado pela floresta tropical úmida e pelo complexo hidrológicoda bacia do rio Solimões-Amazonas. Essa unidade socioeconômica e ambiental, deuma perspectiva agregada, esconde uma grande diversidade interna, formada porvários ecossistemas naturais com características distintas e condições específicas paraa presença humana e a atividade econômica. Na realidade, ao contrário dosestereótipos difundidos sobre a região, a diversidade – ambiental, socioeconômica,tecnológica e cultural – é a principal característica desse amplo espaço regional brasileiro.

Dominada em grande parte (84%) por floresta densa de mata alta, a regiãoregistra vastas extensões de mata de cipó, mata aberta de bambu, matas serranas emata seca, além de florestas de várzea, igapó e manguezais. Possui ainda áreas desavana, campinas e cerca de 700 mil Km2 de cerrado. No geral, esses ecossistemastêm em comum, além da diversidade e extensão territorial, a fragilidade e a delicadezade seu equilíbrio. “No ambiente terrestre – afirma a Sudam/PNUD1 – o ciclo denutrientes é essencialmente baseado na cadeia trófica com pequena participaçãodo substrato inorgânico, fazendo com que a modificação da cobertura vegetal possaser, portanto, desastrosa: e o ambiente aquático, essencialmente lótico, emboracom as águas correndo em baixas velocidades, se modificado pela implantação debarramentos artificiais, pode também sofrer irremediáveis degradações.”

Como espaço geográfico de caráter político-administrativo, a Região Norteengloba sete estados da Federação: Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Rondônia,Acre e Tocantins2. Constitui a região de maior extensão territorial do Brasil, equivalentea mais de 45% do total nacional.

1 Sudam/PNUD – Avaliação da política de investimentos do FINAM. Belém. 1990. (Mimeogr.).2 Essa delimitação espacial não corresponde à regionalização utilizada no processo de planejamento,que utiliza o conceito de Amazônia Legal, à qual correspondem as instituições de planejamento einstrumentos fiscais-financeiros regionais. A Amazônia Legal acrescenta, aos sete estados referidos,parte do Estado do Maranhão, correspondente à Pré-Amazônia maranhense, o Estado do Mato Grosso,em grande parte dominado pela Hiléia, e o recém-criado Estado do Tocantins (incluído, antes de 1988,como parte do Estado de Goiás).

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A Região Norte concentra uma das maiores reservas de recursos naturaisdo planeta, representada especialmente pela grande riqueza florestal, pela massade ecossistemas aquáticos e pela biodiversidade. Concentra cerca de um terço dasflorestas tropicais úmidas da Terra, calculado em mais de 300 milhões de hectaresde floresta densa e mais de 100 milhões de hectares de floresta aberta, o que abrigaum total de madeiras comercializáveis da ordem de 45 bilhões de m3 de madeira empé (Sudam/SDR3). Com uma bacia hidrográfica de quase seis milhões Km2, reúneum grande potencial hidrelétrico e de recursos pesqueiros, além de vastas áreas devárzea, com potencial agrícola ainda inexplorado. Além disso, tem grandes reservasde minérios tradicionais (ferro, bauxita, ouro e cassiterita) e de minérios com novasaplicações tecnológicas (nióbio, manganês, titânio) (Sudam/SDR).

Entretanto, a mais importante riqueza da Região Norte neste final de século,dominado pela revolução científica e tecnológica, reside na diversidade dos seusecossistemas, representada pelo material biológico de espécies vegetais, animais emicroorganismos (plantas medicinais, aromáticas, alimentícias, toxinas, tanantes,oleaginosas, fibrosas, fungos, bactérias etc.). Essas espécies tornam a região umagrande usina de vida: o maior banco genético do planeta, contendo provavelmentecerca de 30% do estoque genético mundial. É uma valiosa biblioteca viva parapesquisa no terreno da genética e microbiologia e para o desenvolvimento dabiotecnologia4.

A grande concentração de riquezas em recursos naturais torna a regiãoNorte uma das últimas fronteiras de recursos do mundo e, especialmente, do Brasil.Com o esgotamento de fontes internacionais e a implantação de vias de penetraçãoeconômica, a região Norte ganhou destaque nas últimas décadas e se transformounuma região de fronteira. Essa característica vai determinar e explicar as frentes deocupação e as diversas iniciativas políticas orientadas para a integração da regiãoNorte na expansão econômica e modernização brasileira.

Por outro lado, sua amplitude, localização e acumulação de biodiversidadetornam a região Norte uma base de interesses e disputas geopolíticas. Constituindoum complexo ecológico transnacional integral e articulado pela continuidade e

3 Sudam/SDR - Sustainable development of the Amazon - development strategy and investimentalternatives. Belém, 1992.4 Ver BECKER, Benha K. - Estudo geopolítico contemporâneo da Amazônia. Sudam/BASA/Suframa/PNUD -Macrocenários da Amazônia, 1989. (Mimeogr.).

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contigüidade da floresta, juntamente com seu amplo sistema fluvial, a região Norteune vários subsistemas ecológicos da América Latina. A dimensão territorial daAmazônia brasileira lhe confere um estatuto de quase-continente, com a florestaamazônica compondo um grande maciço natural concentrado no território brasileiro(Sudam/MIR)5.

A ampliação recente da consciência internacional dos problemas globais deconservação ambiental realimenta o debate e os interesses sobre as florestas tropicaisúmidas, de modo que a região Norte (Amazônia, num sentido mais amplo) volta aser objeto de pressões e disputas geopolíticas, que giram em tomo das formas deapropriação de sua riqueza – especialmente a biodiversidade – e da sua posição nocontrole das condições climáticas. Todos esses fatores devem ter importante pesona definição de políticas e iniciativas voltadas à região Norte, à sua ocupaçãoeconômica, à utilização de suas riquezas e ao controle político, econômico eestratégico da fronteira norte do Brasil.

[BUARQUE, Sergio C.; DUARTE, Antéro Lopes e ROSA, Teresa Cativo.Integração Fragmentada e Crescimento da Fronteira Norte. In: AFFONSO, Ruide Britto Álvares e SILVA, Pedro Luiz Barros (org.). Desigualdades regionais edesenvolvimento. São Paulo: Fundap/UNESP, 1995, p.94-96.]

Texto 2 – Heterogeneidade Econômica Intra-regional

Nas últimas décadas, mudanças importantes remodelaram a realidadeeconômica nordestina, questionando inclusive visões tradicionalmente consagradassobre a região. Nordeste região problema, Nordeste da seca e da miséria. Nordestesempre ávido por verbas públicas, verdadeiro “poço sem fundo” em que astradicionais políticas compensatórias, de caráter assistencialista, só contribuem paraconsolidar velhas estruturas socioeconômicas e políticas, perpetuadoras da miséria.Essas são apenas visões parciais sobre a região nos dias presentes. Revelam parteda verdade sobre a realidade econômica e social nordestina, mas não apreendemos fatos novos dos anos mais recentes. Não revelam a atual e crescentecomplexidade da realidade econômica regional e não permitem desvendar umadas mais marcantes características do Nordeste atual: a grande diversidade, acrescente heterogeneidade de suas estruturas econômicas.

5 Sudam/MIR -Plano de desenvolvimento da Amazônia: 1994/97. Belém, 1993. (Mimeogr.).

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Embora traços gerais possam ser identificados, a percepção da realidadeeconômica nordestina exige uma análise mais detalhada. Nesse sentido, é misterressaltar os novos focos de dinamismo da economia regional que convivematualmente com as tradicionais áreas agrícolas ou agropastoris da região: uma análiseque perceba as diferentes trajetórias econômicas dos diversos estados nordestinose, mesmo, seu diferenciado desenvolvimento urbano e até as especificidades desuas economias metropolitanas. É o que se tentará nesta parte do trabalho.

Áreas de modernização intensa

Nos anos recentes, movimentos importantes da economia brasileira tiveramrepercussões fortes na Região Nordeste. Tendências da acumulação privadareforçadas pela ação estatal, quando não comandadas pelo Estado brasileiro, fizeramsurgir e se desenvolver no Nordeste diversos subespaços dotados de estruturaseconômicas modernas e ativas, focos de dinamismo em grande parte responsáveispelo desempenho relativamente positivo apresentado pelas atividades econômicasna região. Tais estruturas são tratadas na literatura especializada ora como “frentes deexpansão”, ora como “pólos dinâmicos”, ora como “manchas ou focos” de dinamismoe até como “enclaves”. Dentre eles, cabe destaque para o complexo petroquímico deCamaçari, o pólo têxtil e de confecções de Fortaleza, o complexo minero-metalúrgicode Carajás, no que se refere a atividades industriais, além do pólo agroindustrial dePetrolina/Juazeiro (com base na agricultura irrigada do sub-médio São Francisco),das áreas de moderna agricultura de grãos (que se estendem dos cerrados baianos,mais recentemente, ao sul dos estados do Maranhão e Piauí), do moderno pólo defruticultura do Rio Grande do Norte (com base na agricultura irrigada do Vale doAçu), do pólo de pecuária intensiva do agreste de Pernambuco, e dos diversos pólosturísticos implantados nas principais cidades litorâneas do Nordeste.

Pesquisa recente dos professores Policarpo Lima e Fred Katz, daUniversidade Federal de Pernambuco – UFPE, tentou identificar melhor essas áreas,caracterizando-as e analisando seus novos impactos e suas perspectivas deexpansão1. Menos por seu dinamismo e mais pelo fato de desenvolverem modernasatividades de base tecnológica, merecem referência ainda os tecnopólos de CampinaGrande (PB) e Recife (PE).

1 LIMA, Policarpo. KATZ, Fred. Economia do Nordeste: tendências recentes das áreas dinâmicas.1993. (Mimeogr.).

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O pólo petroquímico de Camaçari, como mostram Lima e Katz constitui-se num dos principais pilares da crescente importância da produção de bensintermediários no Nordeste. Implementado ao longo dos anos 70, importou numinvestimento total de cerca de US$ 4,5 bilhões e com o programa de ampliaçãoprevisto chegará a US$ 6 bilhões. Esse complexo industrial foi viabilizado com aparticipação de capitais privados nacionais e multinacionais e com o suporte estatal(Petrobrás), contando com fontes de financiamento diversas.

Quanto aos seus impactos, vale registrar que, em 1990, o pólo petroquímicode Camaçari, sozinho, contribuiu com 13,6% da receita tributária do Estado daBahia, sendo de 32,8% o seu peso na receita do ICMS gerado pela indústria detransformação.

O pólo de Camaçari concorreu para alterar estruturalmente a economiabaiana, aumentando o peso do setor secundário de 12% em 1960 para quase 30%do PIB estadual em 1990.

Em 1989, os empregos diretos (25 mil), mais os ligados às prestadoras deserviços (31 mil), representavam 19,6% do emprego gerado na indústria detransformação do Estado.

O pólo de Camaçari contribuiu também para a elevação das exportaçõesbaianas. Embora as repercussões esperadas fossem maiores, o pólo de Camaçarirepresenta hoje uma possível base para a esperada verticalização da matriz industrialda petroquímica regional.

O pólo têxtil e de confecções de Fortaleza, por sua vez, desponta comoum dos importantes centros do setor, tanto em âmbito regional como nacional.Entre 1970 e 1985, o número de estabelecimentos têxteis do Ceará cresceu de155 para 358, enquanto os ligados ao vestuário passavam de 152 para 850. Em1991, segundo o Sindicato da Indústria de Confecções do Ceará, o pólo cearensereunia cerca de três mil empresas, gerava 60 mil empregos diretos e era responsávelpor 12% do ICMS do Ceará (Lima e Katz, 1993).

O parque têxtil e de confecções de Fortaleza é competitivo nacionalmentee, no caso da fiação, internacionalmente, em virtude de sua atualizaçãotecnológica.

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As perspectivas da expansão do setor evidentemente dependem da retomadado crescimento e da melhor distribuição de renda na economia brasileira. Por outrolado, a abertura comercial pode ter implicações negativas sobre a tecelagem e asconfecções, dado que nesses segmentos existe uma defasagem tecnológica a sersuperada.

O encadeamento do pólo cearense com a base agrícola da região éreduzido, devido à devastação promovida pelo bicudo na produção de algodãono Nordeste. Contudo, nos efeitos “para frente” conta-se com a perspectivada instalação de pequenas e médias malharias que se beneficiariam das fiaçõesjá existentes, o que já vem sendo estimulado por empresários ligados às fiações.

No que se refere ao segmento das confecções, há espaços para umreforço do setor de tecelagem (60% dos tecidos são adquiridos fora do Estado),bem como para o crescimento de unidades fornecedoras de aviamentos e linhas(cerca de 80% destes são comprados fora) (Lima e Katz, 1993).

O complexo minero-metalúrgico do Maranhão está associado aosdesdobramentos do Programa Grande Carajás (PGC) e ao interesse do capitalmultinacional em diversificar suas fontes de abastecimento de matérias- primas.Para a montagem desse pólo, a Companhia Vale do Rio Doce – CVRDdesempenhou um dos papéis principais, implantando a infra-estrutura paraexploração/exportação de minério de ferro.

Em função desses investimentos, impactos importantes já se notam nosanos 80: o PIB total do estado aumentou de US$ 2 bilhões em 1980 para US$3 bilhões em 1987, tendo o produto da indústria ampliado sua participação nototal estadual de 14,3% para 21,8%.

Cortando regiões anteriormente isoladas, a Estrada de Ferro Carajás(EFC) integrou-as ao circuito da produção mercantil e contribuiu para dinamizaro pólo agrícola do sul do Maranhão, onde a produção de soja se expande.

Outro projeto em implantação, o projeto CELMAR, que tem a CVRDcomo sócia, vai produzir celulose, em Imperatriz. Para esse projeto, estãoprevistos investimentos de US$ 1,2 bilhão, com produção estimada de 420 miltoneladas/ano, gerando diretamente 800 empregos, e mais três mil no

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reflorestamento, além de cerca de 3.200 empregos indiretos (Lima e Katz,1993).

Além disso, a Estrada de Ferro Carajás ajudou a dinamizar a instalação deusinas de ferro-gusa e de ferroliga ao longo de sua extensão.

O projeto da ALUMAR também tem grande peso, hoje, na indústriamaranhense. Trata-se de uma associação das empresas ALCOA, ALCAN eBILLINGTON, que resultou em projeto de investimento da ordem de US$ 2 bilhõespara a produção de três milhões de toneladas/ano de alumina e 500 mil de alumínio,estando atualmente sendo geradas um milhão de toneladas de alumina e 350 mil dealumínio. De forma semelhante ao caso da CVRD, a ALUMAR é responsável porum fluxo mensal de rendimentos significativo, pelo menos para os padrões locais,na economia de São Luiz. O projeto criou 4. 100 empregos diretos, estimando-seem 1.200 os empregos indiretos, tendo ainda articulações a montante via absorçãode bauxita do Rio Trombetas, de cal do Ceará, de soda cáustica de Alagoas, daenergia elétrica de Tucuruí, além dos serviços de manutenção refletidos nos empregosindiretos. As articulações pelo uso do alumínio são reduzidas, já que são exportados95% do produto (Lima e Katz, 1993).

O complexo agroindustrial de Petrolina/Juazeiro surgiu nos anos 70,com base na implantação de grandes projetos de irrigação. Também nesse caso, apresença do Estado foi fundamental, uma vez que montou a maior parte da infra-estrutura de captação e distribuição de água. Constatou- se o cultivo cada vezmaior de produtos de elevado valor comercial, destinados tanto à venda in naturapara os mercados de maior poder aquisitivo, externo inclusive, quanto aoprocessamento local em plantas industriais. Ao longo dos anos 80, os projetoselevaram a intensidade de uso de capital. Ao mesmo tempo se deu a implantaçãode grandes projetos de médias empresas nacionais e, mesmo, internacionais. Nessaépoca, instalaram-se na área diversas plantas industriais de ramos variados:processamento de alimentos, bens de capital, embalagens, equipamentos deirrigação, materiais de construção, fertilizantes e rações (Lima e Katz, 1993). Nesseperíodo, foram incorporados à agricultura cerca de 56 mil hectares, enquanto osetor industrial gerava cerca de 24 mil empregos2.

2 Ver GALVO, Olímpio. Impactos da irrigação sobre os setores urbanos nas regiões de Juazeiro ePetrolina. Texto para discussão n. 226. Recife. CME/PIMES/UFPE, 1990. (Mimeogr.).

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As áreas de moderna agricultura de grãos se estendem dos cerradosdo oeste baiano ao sul do Maranhão e Piauí.

A expansão da economia do oeste da Bahia está associada à introdução e àrápida expansão da soja, implantada na área por agricultores do sul do País, apósavanços tecnológicos que viabilizaram o cultivo do produto nos cerrados. Tiverampapel importante os subsídios governamentais3 e os investimentos públicos em infra-estrutura.

Com a soja, implanta-se na região todo um conjunto de atividades e práticasligadas à agricultura moderna. Entre 1980/81 e 1985/86, a área plantada com sojaexpandiu 143 vezes e a produção em 848 vezes, enquanto crescia também aprodução de arroz. Na safra de 1991/92, foram produzidas 800 mil toneladas degrãos no oeste da Bahia (soja, milho, arroz e feijão, sendo 460 mil toneladas desoja). Foram instaladas no Município de Barreiras duas plantas industriais deprocessamento de soja.

Estima-se que 230 mil toneladas de soja sejam absorvidas no próprioNordeste, na forma de óleo e de farelo, sendo exportadas cerca de 140 mil toneladasde farelo (Lima e Katz, 1993).

Nos anos mais recentes, no Estado do Piauí, a produção de grãos vemcrescendo bastante (em 1992, produziu-se no Piauí e Tocantins cerca de um milhãode toneladas). A produção também se estende para o sul do Maranhão.

Essas áreas não conhecem crise e recessão. Aí despontam atividades comoavicultura, suinocultura, frigorificação de carnes. Começam a desenvolver-se tambématividades de produção de insumos (fertilizantes, calcário) e de equipamentospróprios para a agricultura.

O pólo de fruticultura do Vale Açu cresce comandado por grandesempresas (com destaque para a Maísa), que se especializam na exportação.

Esses, como foi visto, são pontos de intenso dinamismo econômicoimplantados no território nordestino. As potencialidades agrícolas e minerais aí se

3 Ver SANTOS FILHO, Milton. O processo de urbanização do oeste baiano. Recife: Sudene, 1989.

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revelam com grande evidência, constituindo um Nordeste que não existia há poucasdécadas.

Permanência de velhas estruturas

Ao mesmo tempo em que diversos subespaços do Nordeste desenvolvematividades modernas, em outras áreas a resistência à mudança permanece sendo a marcaprincipal do ambiente socioeconômico: as zonas cacaueiras, canavieiras e o sertão semi-árido são as principais e históricas áreas desse tipo. Quando ocorre, a modernização érestrita, seletiva, o que ajuda a manter um padrão dominantemente tradicional. As zonascanavieiras expandiram-se muito, impulsionadas nos anos 70 pelo Proálcool, que trazconsigo a alternativa da produção de um energético para o mercado interno (o álcool).Mas o crescimento se faz com base na incorporação de terras (a área cultivadarapidamente duplica), mais do que na elevação dos padrões de produtividade.

No caso do semi-árido, a crise do algodão (com a presença do bicudo e asalterações na demanda, no padrão tecnológico e empresarial da indústria têxtilmodernizada na região) contribui para tomar ainda mais difícil e frágil a sobrevivênciado imenso contingente populacional que habita os espaços dominados pelo complexopecuária/agricultura de sequeiro. No “arranjo” organizacional local, o algodão era aprincipal (embora reduzida) fonte de renda monetária dos pequenos produtores etrabalhadores rurais desses espaços nordestinos. Na ausência do produto, essespequenos produtores são obrigados a levar ao mercado o pequeno excedente daagricultura alimentar tradicional de sequeiro (milho, feijão e mandioca), uma vezque a pecuária sempre foi atividade privativa dos grandes proprietários locais.

Não é sem razão que, nos momentos de irregularidade de chuvas, ocorridosnos anos recentes, as tradicionais “frentes de emergência” (como são chamados osprogramas assistenciais do Governo) alistam número enorme de agricultores (2,1milhões de pessoas em 1993). Nessas áreas, nos anos de chuva regular, os pequenosprodutores, rendeiros e parceiros produzem, mas não conseguem acumular:descapitalizados ao final de cada ciclo produtivo, são incapazes de dispor de meiospara enfrentar um ano seco. Nesse quadro, portanto, não houve mudançassignificativas, e as que aconteceram, em geral, tiveram impactos negativos, como odesaparecimento da cultura do algodão. De positivo, a extensão da açãoprevidenciária, cobrindo parte da população idosa e assegurando uma renda mínima,mas permanente, a muitas famílias sertanejas.

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Nas áreas cacaueiras, a resistência à mudança convive na fase mais recentecom importante queda nos preços internacionais do cacau, aprofundando a crisenessa sub-região.

Nas áreas em que predominam a rigidez das velhas estruturas econômico-sociais e o domínio político das oligarquias tradicionais da região, há traços comunsimportantes. Primeiro, cabe destacar que são áreas de ocupação antiga, nas quaisas velhas estruturas foram criando sucessivos mecanismos de preservação. Aquestão fundiária é mais dramática e vem se agravando. Na Zona da Mata, porexemplo, o processo de concentração fundiária tem aumentado nos anos recentes,e o monopólio da cana sobre as áreas cultiváveis se ampliou. No semi-árido, dassecas também resulta o agravamento da já elevada concentração das terras emmãos de pouquíssimos produtores: “na seca, pequenos produtores inviabilizadosvendem suas terras a baixos preços e os latifúndios crescem”, como bem explicaAndrade4. Simultaneamente, os incentivos à pecuária fortaleceram e modernizaramessa que sempre foi a atividade principal da unidade produtiva típica do sertão edo agreste nordestino. A hegemonia crescente da pecuária nos moldes em que foirealizada agravou a questão fundiária do Nordeste, além de provocar outros efeitosimportantes, como a redução da produção de alimentos e a intensificação daemigração rural. Na sábia afirmação do geógrafo Melo5, “o capim expulsa apolicultura alimentar e o gado tange o homem”. Mesmo onde a irrigação introduziuuma agricultura moderna no semi-árido, a “modernização” foi conservadora,inclusive na estrutura fundiária. A base técnica modernizou-se, a questão fundiáriaagravou-se6.

Como a estratégia brasileira das últimas décadas foi concentrar a expansãoda agropecuária em áreas novas (especialmente no Centro-Oeste), no Nordestetambém se assistiu a um grande dinamismo agropecuário e agroindustrial no oestebaiano e no sul do Maranhão e Piauí; portanto, em áreas da antiga “fronteira agrícola”da região. Nos anos 60 e seguintes, a proposta da reforma agrária foi abandonadana prática pelos sucessivos governos militares e civis, e apresentada ao País comodesnecessária em muitos fóruns (inclusive nos acadêmicos) com base no “sucesso”da ocupação de novas terras. As oligarquias nordestinas, proprietárias das áreas de

4 ANDRADE, Manuel Correia. A Terra e o homem no Nordeste, São Paulo: Atlas, 1986.5 MELO, Mário Lacerda de. Os Agrestes. In: Estudos Regionais. Recife: SUDENE, n° 3,1980.6 Ver GRAZIANO DA SILVA, José (coord.) A irrigação e a problemática fundiária do Nordeste.Campinas: Instituto de Economia, PRON1, 1989.

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antiga ocupação e sempre bem situadas nas estruturas de poder, continuavam abeneficiar-se dessa macroopção.

E, após tantos anos de dinamismo econômico, a questão fundiária permanecepraticamente intocada, apesar da miséria alarmante dominante nas áreas rurais doNordeste. Segundo o Mapa da Fome feito recentemente pelo IPEA, dois terçosdos indigentes rurais do País estão no Nordeste.

A concentração fundiária aumentou no Nordeste nas últimas décadas. Em1970, os estabelecimentos com menos de 100 hectares (94% do total) ocupavamquase 30% da área; em 1985, essa participação caiu para 28%. Ao mesmo tempo,os estabelecimentos de mais de mil hectares (0,4% do total) aumentaram suaparticipação na área total, passando de 27% em 1970 para 32% em 1985. Nesseperíodo, a área total ampliou-se de 74 milhões de hectares para 92 milhões dehectares, de acordo com os censos agropecuários realizados pela Fundação IBGE.

Estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) destaca ainda,para o mesmo período, que “a desigualdade da posse da terra é maior que a daprodutividade, tanto no Nordeste como no Brasil, sendo a diferença relativa maiorno Nordeste. Esse fato reforça a hipótese de que as formas peculiares de exploraçãoda terra no Nordeste conferem-lhe uma estrutura de posse da terra diferenciada daexistente na média do Brasil, no sentido de elevar a desigualdade da distribuição.Nesse contexto, um caso ilustrativo é o de grandes fazendas que reúnem áreas deposse e áreas de diferentes escrituras, muitas vezes registradas como imóveisdistintos, para evitar seu enquadramento como latifúndio por dimensão” (Grazianoda Silva, 1989).

Na zona semi-árida, onde se reproduz a estrutura desigual do resto doNordeste, a situação é agravada pela presença de “latifúndios maiores”: lá a áreamédia do 1 % dos maiores estabelecimentos (1.914 hectares, em 1985) é superiorao tamanho médio desses estabelecimentos no resto do Nordeste (1.002 hectares).No semi-árido, o acesso à terra é feito por formas precárias (parceria, por exemplo),caracterizando maior instabilidade, e se registra maior presença de grandes posseirosem comparação com o resto do Nordeste (Graziano da Silva, 1989).

Nesses espaços, como foi visto, as velhas estruturas socioeconômicas epolíticas têm na base fundiária um de seus principais pilares de sustentação.

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[ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Nordeste, Nordestes: Que Nordeste? In:AFFONSO, Rui de Britto Álvares e SILVA, Pedro Luiz Barros (org.).Desigualdades regionais e desenvolvimento. São Paulo: Fundap, Ed. UniversidadeEstadual Paulista, 1995. p. 132-138.]

Texto 3 – A Dinâmica Econômica

Desde o fim do século XVII até as primeiras décadas deste século, oprocesso de ocupação do Centro-Oeste foi descontínuo, “nucleado” e espacialmentedesarticulado. A região era considerada até recentemente, da mesma forma que oNorte, um dos grandes “vazios nacionais”.

As primeiras ocupações ocorreram por iniciativa privada e de formaespontânea. A mobilização populacional foi motivada basicamente pela apropriaçãode recursos naturais disponíveis e não pela ação governamental.

Foi a partir da década dos 40 que o Estado passou a intervir decisivamenteno processo de ocupação da região. Essa participação não ocorreu evidentementepor acaso. A industrialização por substituição de importações passou a requerer daagricultura dupla atribuição: “produzir excedentes de alimentos a custos razoáveis”e “fornecer recursos para financiar o desenvolvimento urbano-industrial do centrodinâmico da economia nacional”1. E, como sabemos, a agricultura brasileiraapresentou um desempenho aceitável, apoiado, essencialmente, na expansão dasfronteiras agrícolas2.

As conseqüências mais significativas deste novo enfoque de intervenção doEstado na região foram sentidas no sul do Mato Grosso do Sul e centro-sul de Goiás.

De fato, nos anos 50 e 60, estes dois subespaços regionais experimentaramum processo de elevado crescimento econômico e populacional, baseado em

1 MUELLER, Charles Curt. O Centro-Oeste: evolução, situação atual e perspectivas de desenvolvimentosustentável. In: VELLOSO, João Paulo dos (org.). A ecologia e o novo padrão de desenvolvimento noBrasil. São Paulo: Nobel, 1992.2 A idéia de fronteira é utilizada em sentido amplo, aproximando-se da definição estabelecida porSawyer, como sendo uma área potencial que oferece condições para a expansão da atividade agropecuária(funcionamento de mercados específicos, sistemas de transportes adequados e disponibilidade deterras a serem ocupadas). Ver: SAWYER. Donald. Ocupación y desocupación de la frontera agrícolaen el Brasil: un ensayo de interpretación estructural y espacial. Madrid: Naciones Unidas/CIFCA-CEPAL-PNUMA, 1983.

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decisivos estímulos governamentais. Verificou- se, de um lado, um acelerado processode colonização na área de influência das cidades de Dourados e Campo Grande,no Mato Grosso do Sul, com a presença de grandes propriedades agrícolas, e deoutro, a consolidação econômica do sul e centro de Goiás, tanto pelas possibilidadesabertas pela agropecuária e agroindústria, quanto pela consolidação das cidadesde Brasília (DF) e Goiânia (GO), como importantes núcleos urbanos, e de Anápolis(GO), como entreposto agrícola.

Em que pese já se encontrar em funcionamento uma estrutura comercial emplena atividade nas áreas mais acessíveis do sul de Goiás e de Mato Grosso do Sul,o avanço para os outros espaços regionais, como a sua parte central, com destaquepara a sub-região dos cerrados e do imenso norte do atual Estado do Mato Grosso,encontrava-se então limitado.

O impulso verificado na expansão e modernização agropecuária do Centro-Oeste, a partir da década de 1970 e nos anos 80 – inclusive com a viabilização doscerrados e da área norte da região –, se dá num novo contexto: a agricultura passaa adquirir importância central na expansão e diversificação das exportações, paragarantir uma oferta adequada de divisas, e a se inserir em um processo deverticalização, como fornecedora de matérias-primas para a indústria.

Kageyama3 (1986) caracteriza essa nova fase da ocupação do Centro-Oeste como: “presença maciça de grandes empreendimentos capitalistas, largamentesubsidiados pelo sistema de crédito e benefícios fiscais, voltados fundamentalmentepara a atividade de pecuária extensiva e de algumas culturas de exportação (soja,café, arroz, algodão e milho)”.

Durante os anos 70, a denominada modernização conservadora no campono sul do País, principalmente no Paraná, acabou expulsando um bom contingentede pequenos agricultores, provocando um inesperado fluxo migrante que se estendedo Mato Grosso do Sul à fronteira com Rondônia, provocando o surgimento devárias cidades, do dia para a noite, a exemplo de Jateí, Glória de Dourados, NovaAndradina e Angélica.

3 KAGEYAMA. Ângela. Modernização, produtividade e emprego na agricultura -uma análise regional.Campinas, 1986. (Mimeogr.).

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Com relação à área dos cerrados, a falta de major conhecimento técnicoque possibilitasse a sua viabilização comercial fez com que, num primeiro momento,se estimulasse o avanço da fronteira agrícola na Amazônia4. Mas no fim dos anos70, com certo arrefecimento da expansão amazônica e com a resolução dosproblemas de fertilidade dos solos (viabilizada pelos avanços tecnológicos daEmbrapa), as atenções voltaram-se para aquelas áreas que foram gradativamenteincorporadas e passaram a ter uma articulação mais estreita com os mercados doCentro-Sul.

Na viabilização econômica dos cerrados, foram decisivos os estímulos doPólocentro, com seu sistema de crédito, investimentos em infra-estrutura e apoiotécnico. Além do Pólocentro, também devem ser destacados outros programas,como o Prodecer, o Provárzea e o Profir.

No norte e noroeste de Mato Grosso deu-se forte expansão baseada emgrandes projetos de colonização pública e privada e numa política de expressivosestímulos governamentais, com destaque para os incentivos fiscais e financeiros daSudam e BASA. Partes das microregiões de Rondonópolis e Garças experimentaramum crescimento vigoroso da agricultura voltada para os grandes mercados nacionais(Aguiar, 1988).

No caso de Goiás, durante muito tempo inexplorado, passou a ocorrerpresença maciça de grandes fazendas, principalmente em torno da rodovia Belém-Brasília. Também nessa área, verifica-se uma importante participação de grandesprojetos incentivados pelo governo.

O fator fundamental para a acentuação do processo de ocupação fundiáriaverificada em algumas partes do Centro-Oeste, notadamente na área sob ainfluência da Amazônia Legal – que tem um fortíssimo componente especulativo –,foi o conjunto de estímulos fiscais e a política de crédito. Os instrumentos deincentivos fiscais, administrados pela Sudam, foram criados no fim da década de1960 com objetivos claros de favorecer a inserção de grandes investimentos, quedariam origem a fornecedores importantes de produtos agropecuários para omercado nacional.

4 Ver AGUIAR, Maria de Nazaré (arg.). A Questão da produção e-do abastecimento alimentar noBrasil: um diagnóstico macro com cortes regionais. Brasília: IPEA/IPLAN; PNUD, 1988.

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Na decisão de investimento dos projetos incentivados, pesava bastante afutura valorização das terras onde seria implantada a empresa. Para se ter uma idéiada magnitude do impacto das empresas incentivadas sobre a concentração fundiáriana região, basta dizer que, até 1985, foram aprovados 626 projetos, 215 no Estadodo Mato Grosso e 53 em Goiás, cujo tamanho médio das propriedades era decerca de 21 mil hectares, em alguns casos ultrapassando o exorbitante tamanho de100 mil hectares (Sudam/PNUD, 1989).

Tais projetos apresentaram grau muito reduzido de operacionalização. Dos626 aprovados, apenas 249 se encontravam em operação em 1985. Além disso,tiveram reduzido impacto no volume de produção e vendas, e na rentabilidade dosempreendimentos, assim como foram diminutos os benefícios via geração de ICMe de criação de empregos para a região. Pode-se afirmar que, de certa forma,foram mais eficientes em “gerar a concentração fundiária e de renda” (Aguiar, 1988).

A especulação com a terra e o financiamento estatal facilitado definiramestreita associação entre o capital fundiário e o financeiro, provocando o“fechamento” da fronteira e, ao mesmo tempo, o acirramento dos conflitos de terra.

Por outro lado, tais incentivos governamentais e o caráter especulativo daapropriação de terra nessas áreas refletiram-se indiretamente nas outras regiões.Estudo recente5 detectou que, nos últimos anos, ocorreu a instalação de importantesgrupos empresariais oriundos do Nordeste e do Sudeste no Mato Grosso e Goiás,notadamente em projetos de usinas de açúcar e de reflorestamento.

Em suma, pode-se caracterizar a expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste em sua parte mais ao sul – Mato Grosso do Sul e parte sul de Goiás – comovigorosas frentes de agricultura comercial, marcadamente capitalistas e tecnificadas;e na porção norte – que compreende o Mato Grosso e o norte de Goiás – comosendo um locus privilegiado das frentes especulativas, com suas grandes empresasagropecuárias.

[GALINDO, Osmil e MONTEIRO DOS SANTOS, Valdeci. Centro-Oeste: Evolução recente da economia regional. In: AFFONSO, Rui de Britto Álvares

5 ANDRADE, Manuel Correia de. Modernização e pobreza. Recife, no pretc. 1994.

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e SILVA, BARROS, Pedro Luiz (org.), Desigualdades regionais edesenvolvimento. São Paulo: Fundap/UNESP, 1995, p. 158-161.]

3. Os Processos Recentes de Urbanização e aRede de Cidades no Brasil

O processo de urbanização conheceu uma aceleração notável no país desdea década de 1950. A população urbana, que não chegava a 20 milhões em 1950,ultrapassou a marca dos 110 milhões em 1991. A população rural, por sua vez,registrou um crescimento extremamente fraco no período, passando de cerca de33 milhões em 1950 para pouco menos de 38 milhões em 1991.

A constituição de uma economia de mercado de âmbito nacional, polarizadapelas indústrias implantadas no Sudeste, foi o pano de fundo desse movimentourbanizador, que se manifesta em todo o país.

O processo de urbanização brasileiro apoiou-se essencialmente no êxodorural, incentivado pela modernização técnica do trabalho rural e pela concentraçãocrescente da propriedade fundiária.

A urbanização do Brasil, apesar de geral, não é uniforme. As diferentes regiõese estados do país apresentam uma urbanização desigual e contrastes marcantes nadistribuição da população entre o meio rural e o meio urbano. As desigualdades noritmo do processo de urbanização refletem as disparidades econômicas regionais e aprópria inserção diferenciada de cada região na economia nacional.

A elevada participação da população urbana no conjunto da população doSudeste expressa um estágio avançado de modernização econômica, com profundatransformação da economia rural e subordinação da agropecuária à indústria.Expressa também o peso decisivo da economia urbana na produção regional dariqueza. Todos os estados da região apresentam participação da população urbanasuperior à média nacional.

A urbanização do Centro-Oeste foi impulsionada pela fundação de Brasíliae pelas rodovias de integração nacional que interligaram a nova capital com o Sudeste,

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de um lado, e a Amazônia, de outro. A ocupação do espaço rural por grandespropriedades (fazendas de gado, de soja ou cereais) acentuou a tendênciaurbanizadora. O Estado do Mato Grosso do Sul apresenta um nível de urbanizaçãosimilar ao dos estados do Sudeste.

A Região Sul viveu um processo de urbanização lento e limitado até a décadade 1970: a estrutura agrária familiar e policultora, ancorada no parcelamento dapropriedade da terra nas áreas de planaltos, restringia o êxodo rural. Depois, amecanização acelerada da agricultura e a concentração da propriedade da terraimpulsionaram a transferência acelerada da população rural para o meio urbano.Simultaneamente, camponeses expulsos do meio rural formaram fluxos migratóriosque se dirigiram para as novas frentes pioneiras do Centro-Oeste e da Amazônia.

No Nordeste, o movimento urbanizador foi menos intenso, em função dasparticularidades do setor agrícola regional. A persistência de uma elevada participaçãoda população rural decorre da estrutura minifundiária e familiar tradicional da faixa doAgreste, que retém a força de trabalho no campo e controla o ritmo do êxodo rural.A baixa capitalização e produtividade do setor agrícola limita a repulsão da populaçãorural; o desenvolvimento insuficiente do mercado regional limita a atração exercidapelas cidades. Contudo, pelo menos até a década de 1980, houve um intenso êxodorural no Nordeste que não transparece nas estatísticas regionais: trata-se do movimentomigratório para o Sudeste, que transferia populações do campo nordestino para ascidades dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Na Região Norte, o crescimento relativo da população urbana tem sidomais lento, pois o afluxo de populações para a região nas últimas décadas, comoconseqüência da abertura de novas frentes pioneiras, orientou- se para áreas rurais.São esses fluxos que explicam a significativa parcela de população rural em estadoscomo Pará, Tocantins e Rondônia.

O processo de urbanização brasileira foi, essencialmente, concentrador:gerou cidades grandes e metrópoles. Em 1940, só existiam duas cidades com maisde 500 mil habitantes, em 1991, elas já eram 25. Atualmente, mais de 40 milhõesde pessoas vivem nas metrópoles do país.

A tendência à metropolização foi um reflexo das condições em que ocorreua modernização da economia do país. A industrialização do país percorreu caminhos

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muito diferentes daqueles da Revolução Industrial européia. Baseou-se eminvestimentos volumosos de capital, provenientes do Estado, de empresastransnacionais ou de grandes grupos privados nacionais.

A implantação de uma economia de tipo monopolista refletiu-se naconcentração da produção, da força de trabalho e do mercado em determinadospontos selecionados do território. Um número reduzido de cidades tornou-sepólos de atração populacional, crescendo e diversificando a sua economia. Aconcentração econômica determinou a aglomeração espacial, gerando ametropolização1.

A região metropolitana representa um produto característico desse tipode urbanização concentradora que o país experimentou. A Grande São Paulo e aGrande Rio de Janeiro constituem os exemplos mais importantes do processometropolizador brasileiro.

O processo de metropolização, que continua a se desenvolver, estáconduzindo ao aparecimento da primeira megalópole do país, no espaçogeográfico de expansão destas duas principais aglomerações urbanas brasileiras.Através do Vale do Paraíba, adensa-se o espaço urbanizado vinculadodiretamente às cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Importantes centrosindustriais como São José dos Campos, Taubaté, Guaratinguetá, Barra Mansae Volta Redonda configuram um espaço de fluxos cada vez mais intensos,estimulados pelos mercados consumidores materializados nas metrópoles. Apresença de barreiras físicas muito nítidas – a Serra do Mar, a leste, e a Serrada Mantiqueira, a oeste – aprofunda a tendência à formação de uma verdadeiramegalópole.

1 Lúcio Kowarick e Milton Campanário analisam o crescimento e a importância industrial da RegiãoMetropolitana de São Paulo a partir deste prisma: “Os investimentos diretos das empresasmultinacionais feitos, via de regra, com grande apoio no capital doméstico, particularmente de origemestatal, na forma de financiamento direto, provisão de infra-estrutura, incentivos fiscais, e outrasmedidas altamente atrativas. Essa associação provou ser bastante custosa em termos de gastospúblicos e pressão inflacionária. De fato, ao criar condições gerais e infra-estrutura necessárias parao pleno funcionamento do capital industrial no setor transnacionalizado de consumo durável, oEstado investiu pesado em energia, transportes e insumos básicos, concentrando estes recursos,especialmente, na região liderada pela cidade de São Paulo. Cresce, assim, o peso relativo destenúcleo urbano não só enquanto espaço receptor de investimentos diretos estrangeiros, mas tambémcomo espaço construído capaz de fazer circular o valor ali criado.” KOWARICK, Lúcio (org.) SãoPaulo, Metrópole do Subdesenvolvimento Industrializado. In: As Lutas Sociais e a Cidade. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1988.

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A rede de cidades no Brasil

A importância das cidades na organização do espaço deriva da suacapacidade de oferecer mercadorias e serviços para um mercado consumidor amplo,maior que o do próprio núcleo urbano. O grau de importância de cada cidadedepende da extensão do mercado atingido pelas mercadorias e serviços que eladistribui, de acordo com o geógrafo Roberto Lobato Corrêa:

O papel mais importante de uma cidade é o de distribuir produtosindustriais e serviços para as empresas agrárias, industriais e comerciais,e para a população de uma área externa à cidade – a sua região deinfluência. Assim, cada cidade tem, portanto, um mercado consumidorexterno a si mesmo, em função do qual vai adquirir um equipamentofuncional- estabelecimentos comerciais e industriais, bancos, hospitaise escolas – tornando-se assim o centro de atração para esse área externa.Os produtos industriais e os serviços, no entanto, apresentam entre sidiferenças, não só quanto à natureza, mas também à freqüência deconsumo. Assim, vai se recorrer mais freqüentemente à banca de jornaisdo que a uma livraria, do mesmo modo que se procura com maiorfreqüência um médico de clínica geral do que um especialista em doençasdo coração. Em função dessa diferença na freqüência de consumo dosdiversos produtos industriais e dos serviços, verifica- se uma diferençana respectiva localização: aqueles produtos industriais e serviços deconsumo muito freqüente são encontrados em pequenas cidades,enquanto aqueles outros de consumo menos freqüentes são encontradosem cidades médias, e os de consumo raro apenas nas grandes cidades,de fácil acesso a uma grande população pelas vias de circulação quepara lá convergem. Assim, passa-se a noção de hierarquia urbana,caracterizada pela dependência de cidades que distribuem produtosindustriais e serviços cada vez de menor freqüência de consumo. [In:CORRÊA, Roberto Lobato. Regiões de Influência Urbana. In: RevistaBrasileira de Geografia, Abril-Junho de 1941.]

O Brasil possui duas metrópoles nacionais, São Paulo e Rio de Janeiro,aglomerações cuja influência se manifesta em todo o território. Essas cidades estão notopo da hierarquia urbana, servindo a todo o mercado consumidor do país. Essaposição ajuda a compreender seu crescimento populacional, extremamente expressivo.

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As metrópoles regionais são aglomerações que exercem uma influênciavasta, mais ampla que o território dos seus estados, e estão subordinadaseconomicamente apenas às metrópoles nacionais. Belo Horizonte, Porto Alegre,Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza e Belém são as cidades que funcionam comometrópoles regionais. Juntamente com São Paulo e Rio de Janeiro, elas estruturamo espaço nacional, polarizando regiões de influência e redistribuindo bens e serviçospara um mercado imenso e diversificado.

A trajetória histórica da ocupação do território – marcada pela concentraçãopopulacional numa faixa próxima ao litoral – determinou a localização da maiorparte das metrópoles. No Nordeste, as metrópoles regionais (Salvador, Recife eFortaleza). No Norte, Belém – a metrópole que influencia quase todo o vasto espaçoamazônico – é um porto marítimo situado na foz do Rio Tocantins, enquanto Manausé um porto fluvial interligado ao oceano. No Sudeste e no Sul, apenas Belo Horizonteé, claramente, uma metrópole interior. No Centro-Oeste, só uma cidade, Goiânia,funciona como metrópole regional.

Brasília, a capital política e administrativa do país, não chegou a se tornarsequer uma metrópole regional completa. A cidade não desenvolveu um setor deserviços voltado para o mercado regional. Ao contrário, seu aparato de distribuiçãode bens e serviços conheceu um crescimento endógeno, direcionado basicamentepara o próprio mercado urbano. Em conseqüência, a capacidade de polarizaçãoexterna da cidade foi, desde o início, muito precária.

Texto Complementar

No texto abaixo, o geógrafo Milton Santos analisa os impactos da revoluçãotécnico-científica na problemática urbana e discute a transfiguração de São Paulode metrópole industrial em metrópole informacional, destacando as múltiplas relaçõesque ela estabelece com o território nacional.

Texto 1 – A “Dissolução” da Metrópole

Houve, ao longo da história brasileira, quatro momentos do ponto de vistado papel e da significação das metrópoles. Quando o Brasil urbano era umarquipélago, com ausência de comunicações fáceis entre as metrópoles, estas apenascomandavam uma fração do território, sua chamada zona de influência. Num segundo

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momento, há reforços pela formação de um mercado único, mas a integraçãoterritorial é, praticamente, limitada ao Sudeste e ao Sul. Um terceiro momento équando um mercado único nacional se constitui. E o quarto momento é quandoconhece um ajustamento: primeiro à expansão e, depois, à crise desse mercado,que é um mercado único, mas segmentado; único e diferenciado; um mercadohierarquizado e articulado pelas firmas hegemônicas, nacionais e estrangeiras, quecomandam o território com apoio do Estado. Não é demais lembrar que mercadoe espaço, ou ainda melhor, mercado e território, são sinônimos. Um não se entendesem o outro.

O movimento de concentração-dispersão, próprio da dinâmica territorialem todos os tempos, ganha, todavia, expressões particulares segundo os períodoshistóricos. Pode-se dizer, no caso do Brasil, que, ao longo de sua história territorial,as tendências concentradoras atingiam número maior de variáveis, presentes somenteem poucos pontos do espaço. Recentemente, as tendências à dispersão começama se impor e atingem parcela cada vez mais importante dos fatores, distribuídos emáreas mais vastas e lugares mais numerosos. Com o fim da segunda guerra mundial,a integração do espaço brasileiro e a modernização capitalista ensejam, em primeirolugar, uma difusão social e geográfica do consumo em suas diversas modalidades e,posteriormente, a desconcentração da produção moderna, tanto agrícola quantoindustrial.

Em outro sentido, todavia, há um movimento de concentração das formasde intercâmbio, no nível nacional e estadual ou regional, tanto no âmbito materialquanto no intelectual. A comercialização tende a se concentrar, economicamente egeograficamente, ainda que a pobreza persistente da população assegure apermanência de pequenos comércios e serviços, com estabelecimentos dispersos.As novas formas de um trabalho intelectual mais sofisticado, de que dependem aconcepção e o controle da produção, são, também, concentradas, ainda que outrasformas de trabalho intelectual, cada vez mais numerosas, ligadas ao processo diretoda produção, mas também à sua circulação, sejam objeto de dispersão geográfica,atribuindo novas funções às cidades de todos os tamanhos.

A nova divisão do trabalho territorial atinge, também, a própria regiãoconcentrada, privilegiando a cidade de São Paulo, a respectiva Região Metropolitanae seu entorno, onde a acumulação de atividades intelectuais ligadas à novamodernidade assegura a possibilidade de criação de numerosas atividades produtivas

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de ponta, ambos esses fatos garantindo-lhe preeminência em relação às demaisáreas e lhe atribuindo, por isso mesmo, novas condições de polarização. Atividadesmodernas presentes em diversos pontos do País necessitam de se apoiar em SãoPaulo para um número crescente de tarefas. São Paulo fica presente em todo oterritório brasileiro, graças a esses novos nexos, geradores de fluxos de informaçãoindispensáveis ao trabalho produtivo. Se muitas variáveis modernas se difundemamplamente sobre o território, parte considerável de sua operação depende deoutras variáveis geograficamente concentradas. Dispersão e concentração dão-se, uma vez mais, de modo dialético, de modo complementar e contraditório. Édesse modo que São Paulo se impõe como metrópole onipresente e, por issomesmo, e ao mesmo tempo, como metrópole irrecusável para todo o territóriobrasileiro.

Agora, a metrópole está presente em toda parte, e no mesmo momento. Adefinição do lugar é, cada vez mais no período atual, a de um lugar funcional àsociedade como um todo. E, paralelamente, através das metrópoles, todas aslocalizações tornam-se funcionalmente centrais. Os lugares seriam, mesmo, lugaresfuncionais da metrópole.

Antes, sem dúvida, a metrópole estava presente em diversas partes doPaís. Digamos que o núcleo migrava, para o campo e para a periferia, mas ofazia com defasagens e perdas, com dispersão das mensagens e ordens. Se, aolongo do tempo, o espaço se tornava mais e mais unificado e mais fluido, todaviafaltavam as condições de instantaneidade e de simultaneidade que somente hojese verificam.

Mas, ao contrário do que muitos foram levados a imaginar e a escrever, nasociedade informatizada atual nem o espaço se dissolve, abrindo lugar apenas parao tempo, nem este se apaga. O que há é uma verdadeira multiplicação do tempo,por causa de uma hierarquização do tempo social, graças a uma seletividade aindamaior no uso das novas condições de realização da vida social.

A simultaneidade entre os lugares não é mais apenas a do tempo físico,tempo do relógio, mas do tempo social, dos momentos da vida social. Mas o tempoque está em todos os lugares é o tempo do Estado e o tempo das multinacionais edas grandes empresas. Em cada outro ponto, nodal ou não, da rede urbana ou doespaço, temos tempos subalternos e diferenciados, marcados por dominâncias

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específicas. Com isso, nova hierarquia se impõe entre lugares, hierarquia com novaqualidade, com base em diferenciação muitas vezes maior do que ontem, entre osdiversos pontos do território.

Nenhuma cidade, além da metrópole, “chega” a outra cidade com a mesmaceleridade. Nenhuma dispõe da mesma quantidade e qualidade de informaçõesque a metrópole. Informações virtualmente de igual valor em toda a rede urbananão estão igualmente disponíveis em termos de tempo. Sua inserção no sistemamais global de informações de que depende seu próprio significado depende dametrópole, na maior parte das vezes. Está aí o novo princípio da hierarquia, pelahierarquia das informações... e um novo obstáculo a uma inter-relação mais frutuosaentre aglomerações do mesmo nível, e, pois, uma nova realidade do sistemaurbano.

Os momentos que, no mesmo tempo do relógio, são vividos por cadalugar, sofrem defasagens e se submetem a hierarquias (em relação ao emissor econtrolador dos fluxos diversos). Porque há defasagens, cada qual desses lugaresé hierarquicamente subordinado. Porque as defasagens são diferentes para asdiversas variáveis ou fatores é que os lugares são diversos.

As questões de centro-periferia, como precedentemente colocadas, e adas regiões polarizadas, ficam, assim, ultrapassadas. Hoje, a metrópole estápresente em toda parte, no mesmo momento, instantaneamente. Antes, a metrópolenão apenas não chegava ao mesmo tempo em todos os lugares, como adescentralização era diacrônica: hoje a instantaneidade é socialmente sincrônica.Trata-se, assim, de verdadeira “dissolução da metrópole”, condição, aliás, dofuncionamento da sociedade econômica e da sociedade política.

Temos, agora, diante de nós, o fenômeno da “metrópole transacional” deque fala Helena K. Cordeiro1. Esta é a grande cidade cuja força essencial derivado poder de controle, sobre a economia e o território, de atividades hegemônicas,nela sediadas, capazes de manipulação da informação, da qual necessitam para oexercício do processo produtivo, em suas diversas etapas. Trata-se de fato novo,completamente diferente da metrópole industrial.

1 CORDEIRO. Helena K. Os principais pontos de controle da economia transacional no espaço brasileiro,Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro, anos 16-17, n. 31-34,1987. p. 153-196.

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O dado organizacional é o espaço de fluxos estruturadores do território enão mais, como na fase anterior, espaço onde os fluxos de matéria desenhavam oesqueleto do sistema urbano2.

No caso brasileiro, vale a pena insistir sobre essa diferença pois em ambosos momentos a metrópole é a mesma: São Paulo. Nas condições de passagem deuma fase a outra, somente a metrópole industrial tem condições para instalar novascondições de comando, beneficiando-se dessas precondições para mudarqualitativamente. A metrópole informacional assenta sobre a metrópole industrial,mas já não é a mesma metrópole. Prova de que sua força não depende da indústriaé que aumenta seu poder organizador ao mesmo tempo em que se nota umadesconcentração da atividade fabril. O fato é que estamos diante do fenômeno deuma metrópole onipresente, capaz, ao mesmo tempo, pelos seus vetoreshegemônicos, de desorganizar e reorganizar, ao seu talento e em seu proveito, asatividades periféricas e impondo novas questões para o processo de desenvolvimentoregional.

Retomemos o exemplo, de modo figurativo. No passado, São Paulo sempreesteve presente no País todo: presente no Rio um dia depois, em Salvador três diasdepois, em Belém dez dias depois, em Manaus trinta dias depois... São Paulo hojeestá presente em todos os pontos do território informatizado brasileiro3, ao mesmotempo e imediatamente, o que traz como conseqüência, entre outras coisas, umaespécie de segmentação do mercado enquanto território e uma segmentação verticaldo território enquanto mercado, uma vez que os diversos agentes sociais eeconômicos não utilizam o território de forma igual. Isso representa um desafio àsplanificações regionais, uma vez que as grandes firmas que controlam a informação

2 Ainda que o peso da atividade industrial seja muito expressivo na aglomeração paulistana, se acompararmos com o resto do País, não é essa função metropolitana que atualmente assegura a São Paulopapel diretor na dinâmica espacial brasileira. Esse papel é, por causa de suas atividades quaternárias decriação e controle, praticamente sem competidor no País, pois agora são os fluxos de informação quehierarquizam o sistema urbano. O papel de comando é devido a essas forças superiores de produçãonão-material, elas próprias sendo conseqüência da integração crescente do País a novas condições davida internacional. O locus dessas atividades privilegiadas, tão diferentes da produção industrial, tem,todavia, muito que ver com o fato de que essa mesma aglomeração paulistana era e continua sendo umcentro importante de uma atividade fabril complexa. Foi a partir dessa base que a capital industrial setransformou em capital informacional acumulando em períodos consecutivos papel metropolitanocrescente.3 Ver GERTEL, Sérgio. A informatização e o processo urbano no Brasil. In: Relatório de pesquisa paraa Finep. 1986.GERTEL, Sérgio. O Computador no território brasileiro. In: COLÓQUIO DE GEOGRAFIA BRASIL-ARGENTINA-URUGUAI. Universidade de São Paulo. set. 1988. (Mimeogr.).

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e a redistribuem ao seu talante têm papel entrópico em relação às demais áreas, esomente elas podem realizar a negentropia. O espaço é assim desorganizado ereorganizado a partir dos mesmos pólos dinâmicos. O fato de que a força nova dasgrandes firmas, neste período científico-técnico, traga como conseqüência umasegmentação vertical do território supõe que se redescubram mecanismos capazesde levar a uma nova horizontalização das relações, que esteja não apenas a serviçodo econômico, mas também do social.

[SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994, p.89-93.]

4. O Processo de Industrialização e asTendências Atuais da Localização da Indústria no Brasil

O processo de industrialização brasileira gerou uma profunda concentraçãoespacial. A indústria da Região Sudeste é responsável por quase dois terços daforça de trabalho e mais de dois terços do valor da produção. As regiões Sul eNordeste aparecem muito atrás, enquanto as regiões Norte e Centro-Oesteapresentam uma participação apenas marginal no Setor Secundário do país.

Entretanto, nas últimas décadas, observa-se uma tendência incipiente dedesconcentração industrial, manifesta no intenso crescimento da produção emestados como Paraná, Santa Catarina, Bahia, Amazonas e Ceará. A isenção fiscaloferecida pelos governos estaduais assim como as diferenças regionais de custosda mão-de-obra – significativamente menores nos estados do Nordeste – ajudam aentender esta tendência recente.

Apesar dela, o predomínio paulista no Setor Secundário nacional – cujasraízes encontram-se na etapa inicial da industrialização, ocorrida no interior daeconomia cafeeira exportadora – ainda é marcante. O Estado de São Paulo concentrapouco menos que a metade do valor total da produção industrial do país.

A participação do Rio de Janeiro na indústria brasileira apresenta umaredução mais intensa e também mais antiga. Em 1920, a antiga Guanabara, somadaao Rio de Janeiro, tinha quase 30% do valor da produção. Em 1960, quando a

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capital foi transferida para Brasília, a participação fluminense já tinha caído para16%, e hoje ela não chega a 10%.

A redução da participação de São Paulo e do Rio de Janeiro explica adiminuição da participação geral do Sudeste. Mas, nessa região, ocorre significativocrescimento da participação de Minas Gerais no Setor Secundário nacional. Essecrescimento deve-se, em grande parte, à concentração de siderúrgicas de grandeporte no Vale do Aço e à formação de importantes distritos industriais nos arredoresde Belo Horizonte.

O espaço industrial da Região Sudeste

O triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte é o grande pólo industrial do país,abrangendo o leste do Estado de São Paulo, o sul de Minas Gerais, o Rio de Janeiroe avançando por todo o sul do Espírito Santo, até Vitória. No interior dessa área,encontra-se um complexo heterogêneo de atividades secundárias que envolve indústriasmodernas e tradicionais, fabricação de bens de consumo e de bens de produção.

A cidade de São Paulo transformou-se no principal pólo industrial do paísjá nas primeiras décadas do século. A economia cafeeira de exportação gerou ascondições para o arranque industrial da cidade.

São Paulo encontrava-se em situação geográfica estratégica, no nó de ligaçãoentre o leque de ferrovias que se abria para o oeste cafeeiro e o porto de Santos. Acapital tornou-se, desde logo, o centro dos negócios de exportação e importação edas atividades bancárias, atraindo capitais e empresários. O fluxo imigratório orientadoinicialmente para o café gerou uma classe operária numerosa, constituída portrabalhadores italianos e espanhóis. O crescimento econômico do interior abriavastos mercados consumidores para os manufaturados que começavam a serfabricados na capital.

Nesse primeiro surto industrialista, predominaram as fábricas de bens deconsumo não-duráveis (têxteis, vestuário, calçados, bebidas e alimentos), além daspequenas metalúrgicas e químicas.

As primeiras áreas industriais situaram-se junto aos eixos ferroviários queligavam a cidade ao Rio de Janeiro (E. F. Central do Brasil), ao longo dos bairros

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do Belenzinho, Brás e Moóca, e junto aos trilhos da Sorocabana, na Lapa. Nopós-guerra, a indústria transbordou os limites do município da capital e surgiramcentros industriais de grande porte nos municípios vizinhos. Os eixos rodoviáriossubstituíram as linhas de trem, atraindo as novas fábricas que se implantavam.

Ao longo do eixo da Via Anchieta, na direção da Baixada Santista, osmunicípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul eDiadema passaram a abrigar as grandes montadoras automobilísticas implantadasno governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Com elas, instalaram-se asfábricas de autopeças e as metalúrgicas e, mais tarde, as indústrias químicas. Ochamado ABCD transformou-se na maior aglomeração industrial da América Latinae no berço do principal pólo do movimento sindical brasileiro.

No eixo da Via Dutra, na direção do Rio de Janeiro, uma significativaaglomeração industrial foi criada no município de Guarulhos. Entre os eixos das viasRaposo Tavares e Castelo Branco, também surgiu uma região fabril, envolvendoparticularmente os municípios de Osasco e Carapicuíba.

Nas últimas décadas, o espaço paulista vem conhecendo um processo dedispersão industrial. O interior do estado apresenta um crescimento industrial muitomaior que a metrópole, tanto quanto à absorção da força de trabalho como quantoao valor da produção.

Esse processo é conseqüência da expansão econômica do interior paulista,que por muito tempo se fundamentou na agricultura e na agroindústria. O crescimentodos núcleos urbanos regionais – como Campinas, São José dos Campos, Sorocaba,Ribeirão Preto, Santos e Cubatão – gerou mercados consumidores e reuniu forçade trabalho para o deslanche da industrialização. A implantação de infra-estruturasenergéticas e vias de transporte modernas criou novas localizações favoráveis paraas indústrias.

A desconcentração industrial no Estado de São Paulo reflete também atendência ao deslocamento de novas empresas para fora das localizaçõesmetropolitanas. O caráter terciário da metrópole é cada vez mais evidente.

No Rio de Janeiro, o crescimento industrial foi impulsionado por fatoreshistóricos diferentes. No início do século, a cidade era a capital do país e abrigava

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o maior porto marítimo nacional. Contava com mais de 1 milhão de habitantes,enquanto São Paulo não ultrapassava os 100 mil. Mas não polarizava uma economiade exportação com o dinamismo das plantações cafeeiras paulistas, o que determinouum crescimento industrial muito menos vigoroso.

A industrialização do Rio de Janeiro apoiou-se na dimensão do mercadoconsumidor formado pela aglomeração urbana e nos atrativos oferecidos pelapresença dos órgãos de governo e empresas estatais.

O processo de expansão espacial da indústria seguiu uma trajetória similar àde São Paulo. As linhas férreas definiram regiões industriais na zona norte da cidade,enquanto a zona sul, na orla litorânea, abrigava os bairros residenciais de alta renda.

Mais tarde, os municípios da Baixada Fluminense, na Grande Rio – comoNova Iguaçu, Duque de Caxias, São João do Meriti e Nilópolis –, transformaram-se em importantes distritos industriais. Nova Iguaçu, com mais de 1 milhão dehabitantes, situada no eixo da Via Dutra e da E. F. Central do Brasil, é a maioraglomeração industrial da periferia do Rio. Duque de Caxias, com cerca de 700 milhabitantes, é um pólo químico organizado em torno da REDUC.

Outra destacada concentração industrial fluminense localiza-se na ZonaSerrana, em cidades como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Essa regiãodesenvolveu-se como um tradicional centro têxtil, que conquistou parcelasexpressivas do mercado nacional.

A formação das metrópoles de São Paulo e do Rio de Janeiro estimulou aexpansão industrial no Vale do Paraíba, que tinha sido em meados do século XIXo foco das plantações cafeeiras escravistas e vivera depois uma profunda decadência.

O sinal pioneiro da industrialização do Vale foi a implantação da primeirasiderúrgica estatal, a CSN, iniciada em 1941. Em Volta Redonda e Barra Mansa,na parte fluminense do Vale, a CSN impulsionou o aparecimento de estabelecimentosmetalúrgicos. No Vale do Paraíba paulista, durante as décadas de 1960 e 1970,inúmeras cidades polarizadas por São José dos Campos e Taubaté transformaram-se em núcleos industriais. Situados no caminho que liga os principais mercadosconsumidores do país, junto à rodovia e à ferrovia, e contando com fartoabastecimento de água, os municípios da região tornaram-se localizações privilegiadas

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para estabelecimentos ligados à produção de bens intermediários e bens de consumoduráveis.

Belo Horizonte nasceu em 1897, como cidade planejada. Sua origem estáligada a um projeto estratégico das elites mineiras, destinado a reverter o processode decadência econômica de Minas Gerais.

Após a Revolução de 1930, as elites mineiras direcionaram a sua atençãopara o desenvolvimento industrial do estado. Essa nova orientação materializou-se por meio da concessão de incentivos diversos para a atração de investimentosindustriais privados e também por uma pressão permanente sobre o governocentral, destinada a garantir a instalação de um vasto parque siderúrgico estatalno estado.

As políticas de concessão de incentivos para o capital privado resultaramna vigorosa industrialização dos arredores de Belo Horizonte, com a formação denúcleos fabris modernos e diversificados nos municípios da Região Metropolitana.Contagem, com cerca de 400 mil habitantes, é o principal desses núcleos, abrigandoum importante parque metalúrgico e químico. Em Betim, instalou-se no final dadécada de 1970 a Fiat Automóveis, primeira montadora transnacional situada forado Estado de São Paulo.

A luta pela implantação da siderurgia de grande porte envolveu a valorizaçãodas vastas reservas de minérios de ferro e manganês do chamado QuadriláteroCentral. Antes da Segunda Guerra, a implantação da Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira,transnacional, abriu a via de industrialização das cidades do Alto Vale do Rio Doce.Décadas depois, vultosos investimentos estatais resultaram na criação de outrasusinas gigantescas e na transformação do “Vale do Aço” na maior concentraçãosiderúrgica do país.

Outras concentrações industriais

Na Região Sul, de Porto Alegre a Curitiba, estende-se uma importante regiãoindustrial, marcada pela predominância de ramos tradicionais. A produção industrialdo Nordeste concentra-se em torno das metrópoles regionais (Salvador, Recife eFortaleza). No Norte, a mais expressiva concentração industrial corresponde àZona Franca de Manaus.

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A expansão industrial do Sul apoiou-se fortemente em fatores regionais. Ofluxo imigratório que formou zonas de colonização alemãs, italianas e eslavas trouxeartífices e elementos qualificados. Um empresariado regional apareceu nas áreascoloniais.

O Vale do Itajaí ilustra esse modelo de industrialização. Lá, em cidadescomo Joinville, Blumenau e Brusque, desenvolveram-se fábricas têxteis, de louçase brinquedos. O complexo têxtil dessa área, inicialmente rudimentar, cresceu econquistou o mercado nacional. Outro exemplo de expansão de uma indústria localé oferecido pelos estabelecimentos vinícolas da Serra Gaúcha, implantados nascidades de Caxias do Sul e Bento Gonçalves. Nas cidades gaúchas de colonizaçãoalemã próximas a Porto Alegre, como Novo Hamburgo e São Leopoldo,estabeleceram-se fabricantes de artigos de couro e calçados.

Uma característica do modelo industrial do Sul é o predomínio das indústriasdependentes de matérias-primas vegetais e agropecuárias. É o que ocorre não sócom a fabricação de vinhos, artigos de couro e calçados, como também com aagroindústria de óleos vegetais disseminada pelas principais cidades do interior daregião e, ainda, com os frigoríficos e indústrias de fumo do Rio Grande do Sul. Oimportante ramo de madeira e mobiliário do Paraná, estabelecido em Curitiba ePonta Grossa, é outra ilustração desse processo.

Entretanto, a principal concentração industrial complexa e diversificada doSul localiza-se na Grande Porto Alegre, onde o município de Canoas se destacacomo pólo metalúrgico, químico e de material elétrico.

Na Região Nordeste, a indústria moderna é produto do planejamentogovernamental, cujos alicerces repousam sobre os incentivos fiscais fornecidos pelaSudene e na implantação de um setor hidrelétrico de porte na Bacia do São Francisco.A presença de mão-de-obra abundante e barata representa incentivo suplementar.

Em Salvador, essa estratégia industrializante se manifestou com o surgimentodo pólo petroquímico de Camaçari e do distrito industrial de Aratu. O primeiro giraem torno da Refinaria Landulfo Alves que gera matérias-primas para empresaspetroquímicas e químicas estatais, privadas e transnacionais. O segundo caracteriza-se pelo predomínio de fábricas de bens de consumo duráveis atraídas pelos incentivosda Sudene.

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Na Grande Recife, os incentivos fiscais geraram os distritos de Jaboatão,Cabo e Paulista, também marcados pelo predomínio das indústrias de bens deconsumo duráveis e dos capitais oriundos do Centro-Sul.

A estratégia de modernização industrial do Nordeste apoiou-se na idéia detransferência de capitais externos à região. A ênfase nas indústrias de alta capitalização– de bens intermediários e de bens de consumo duráveis – resultou numa absorçãode mão-de-obra relativamente baixa, pouco contribuindo para elevar os níveis devida e emprego da população das metrópoles regionais.

Na última década, no contexto da abertura econômica, o processo deindustrialização vem ganhando novos contornos. A modernização da infra-estrutura regional e mecanismos de isenção fiscal estão na base do novo cicloindustrializante que caracteriza a região. O crescimento do setor têxtil no RioGrande do Norte e no Ceará, e, em menor escala, em Sergipe e Pernambuco,por exemplo, é tributário da conjunção dos mecanismos de incentivos fiscais edo custo da mão-de-obra, significativamente menor do que nas regiões industriaisdo Centro-Sul. Ao contrário do que ocorreu com grande parte das indústriasde tecelagem e confecção que operam no Centro-Sul, as filiais nordestinas deempresas tais como a Vicunha e a Alpargatas continuaram ampliando as suasvendas depois da abertura das importações. Verifica-se uma tendência similarno setor calçadista.

No Ceará, estado nordestino que experimentou os maiores índices decrescimento econômico na primeira metade da década de 1990, o apoio do governoestadual, através da isenção fiscal e dos mais diversos investimentos em infra-estruturade transportes tem sido decisivo. Nesse caso, as estratégias industriais não serestringem ao setor de bens de consumo, como indica a recente formação de umconsórcio entre a CVRD, a CSN e o Grupo Vicunha – já solidamente implantadono estado – para a implantação da Companhia Siderúrgica do Ceará, em Pecém, eos projetos de transformar a futura siderúrgica em fator de atração para montadorasde automóveis e indústrias de autopeças.

A Zona Franca de Manaus nasceu em 1967, sob a supervisão da Suframa(Superintendência da Zona Franca de Manaus), vinculada ao Ministério do Interior.A isenção total de impostos sobre importação de máquinas, matérias-primas ecomponentes e sobre exportação de mercadorias, aliada ao baixo custo da mão-

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de-obra local, deveria atrair grandes empresas transnacionais e nacionais para afabricação de bens de consumo duráveis na região.

Devido à Zona Franca, o Estado do Amazonas saltou de 145 indústrias em1967 para 800 em 1977, sendo 549 localizadas em Manaus. A participação doestado na produção industrial brasileira saltou de 0,3% em 1970 para 1,8% em1985. Em 1987, a Zona Franca representava 75% do PIB de todo o estado egerava mais de 120 mil empregos diretos e indiretos. Grande parte da produção deeletrodomésticos do país concentrava-se na capital do Amazonas.

As empresas eletroeletrônicas dominam o parque industrial da Zona Franca,vindo em seguida as mecânicas e as de material de transporte. Os mercadosconsumidores são extra-regionais: a produção destina-se ao consumo nacional einternacional. Os capitais dominantes são transnacionais; praticamente não se utilizamatérias-primas regionais.

Assim, o processo de industrialização da área é nitidamente artificial. A políticarecente de abertura da economia nacional e redução das tarifas de importaçãocoloca em risco a continuidade de seu desenvolvimento.

Texto Complementar

No texto abaixo, extraído dos ensaios que integram a obra Desigualdadesregionais e desenvolvimento, Clélio Campolina Diniz e Fabiana Borges Teixeira dosSantos analisam o impacto da emergência de novas tecnologias produtivas na geografiaindustrial da Região Sudeste no Brasil, destacando as estratégias locacionais das indústriasmodernas e apresentando os principais pólos tecnológicos do Estado de São Paulo.

Texto 1 – Reestruturação Produtiva e Mudanças Tecnológicas

O crescimento industrial ocorrido na fase conhecida como “milagre econômico”,a partir do final da década de 1960 e durante a de 1970, baseou- se fundamentalmenteno padrão industrial e tecnológico anterior, com grande ênfase em indústria de bensintermediários, altamente intensivas em recursos naturais, e de bens duráveis de consumo.

A existência de variados mecanismos de incentivos estaduais e regionais euma ampla fronteira de recursos naturais, apoiada no avanço da infra-estrutura,

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propiciaram um processo de desconcentração para várias regiões e estadosbrasileiros.

O crescimento agropecuário, ao contrário, se fez com grandes transformaçõesestruturais e tecnológicas, especialmente com a incorporação produtiva dos cerrados.Assim, ao lado do grande crescimento da produção de grãos nos estados do Sul doBrasil, ocorreu também o movimento da fronteira em sentido ao Centro-Oeste.

O movimento migratório e os serviços tenderam a acompanhar o crescimentoindustrial e agropecuário.

As transformações estruturais em curso alterarão, seguramente, o sentidoregional do desenvolvimento econômico brasileiro.

O processo de reestruturação industrial no contexto internacional e a aberturada economia pressionam a indústria brasileira a realizar mudanças tecnológicas eorganizacionais que permitam ganhos de produtividade capazes de prepará-las paraenfrentar a competição internacional. Nesse sentido, as mudanças tecnológicas emcurso induzem à expansão os setores que estão fortemente sustentados na ciência ena técnica, reduzindo a demanda por recursos naturais. A localização dessasatividades, como demonstra a experiência mundial, é fortemente influenciada pelaexistência de centros de pesquisa e ensino, mercado de trabalho profissional, relaçõesinterindustriais articuladas geograficamente e facilidade de acesso1. Por outro lado,essas atividades tendem a reforçar os processos aglomerativos, recriando os distritosindustriais, embora não necessariamente nas velhas e tradicionais áreas industriais2.

No caso do Brasil, acredita-se que a reestruturação produtiva teria um efeitoreconcentrador das atividades industriais, porque as novas indústrias tenderiam ase localizar na área mais desenvolvida do País, especialmente no grande eixo quevai da região central de Minas Gerais até o nordeste do Rio Grande do Sul, emboramantendo-se a desconcentração relativa da área metropolitana de São Paulo3.

1 Ver MARKUSEN, Ann et alli. High Tech America: the what, now, where and why of the sunrisesindustries. Boston: Allen & Unwin,1986.2 Ver SCOTT, Aj., STORPER, M. (ed.). Production, work, territory: the geographical anatomy ofindustrial capitalism. Boston: Allen & Unwin. 1986.3 Negri e Pacheco questionam esse argumento, alegando que o processo de desconcentração atinge amaioria das regiões brasileiras. Ver NEGRI, BARJAS e PACHECO, Carlos Américo. Mudança tecnológicae desenvolvimento regional nos anos 90. Campinas: Unicamp, 1993. (Mimeogr.).

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Assim, vem ganhando importância a experiência dos novos distritosindustriais, com ênfase em indústrias baseadas em modernas tecnologias.Levantamentos realizados por Medeiros et alii4 indicam a existência de 15 cidadescom alguma experiência em pólos tecnológicos, embora mais recentemente tenhamsido feitas avaliações pessimistas com relação a esses casos (Tapia, 19935; Negri ePacheco, 1993).

Dessas experiências, as mais bem-sucedidas são as localizadas no Estadode São Paulo, especialmente em Campinas, São Carlos e São José dos Campos,onde estariam sendo aglomeradas indústrias modernas.

O caso de Campinas é singular. Além da história de pesquisa na cidade –em virtude do Instituto Agronômico de Campinas, criado em 1887, do InstitutoBiológico de Defesa Agrícola e Animal, criado em 1927, do Instituto de Tecnologiade Alimentos, criado em 1969 – a criação da Universidade Estadual de Campinas(Unicamp) veio reforçar e redefinir a posição da cidade como centro de ensino epesquisa. O papel da Unicamp como uma universidade especializada em pós-graduação foi vital para que a Telebrás decidisse pela instalação do Centro dePesquisa e Desenvolvimento (CPqD) naquela cidade, em 1976. Posteriormente,foram criados o Centro Tecnológico para Informática (CTI), em 1984, a Companhiade Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), em 1976, o Laboratório Nacional deLuz Sincroton (LNLS), em 1987, transformando Campinas, talvez, no maisimportante centro de ensino e pesquisa do País.

Baseada nessas condições, e no parque industrial já existente, além daproximidade geográfica com a área metropolitana de São Paulo, a região de Campinasvem-se transformando na mais importante nova região industrial do País. Constituídapor uma rede de cidades de porte médio, estabeleceu-se um corredor industrial entreCampinas e Araraquara, incluindo as cidades de Campinas e seus satélites, Americana,Limeira, Piracicaba, Rio Claro, São Carlos e Araraquara, cujo conjunto já alcançava,em 1985, mais de 200 mil empregos industriais. Além de um parque industrialdiversificado e com a presença de um grande número de filiais de empresasmultinacionais, parte das novas indústrias, especialmente em Campinas e São Carlos,

4 MEDEIROS. José Avelino et alli. Pólos, parques e incubadoras: a busca da modernização e dacompetitivídade. Brasília: CNPq; IBICT. SENAI, 1992.5 TAPIA, Jorge Ruben Biton. Os pólos tecnológicos no Estado de São Paulo: uma avaliação crítica.Campinas, [s.n.], 1993.

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pode ser considerada de tecnologia moderna, articulada com as instituições de pesquisae ensino da região, algumas surgidas como spin-off daquelas instituições.

Apesar das críticas aos resultados dessas experiências, apontando o limitedo seu crescimento (Tapia, 1993; Negri e Pacheco, 1993), novas iniciativas deverãosurgir nessas cidades. Caso o Brasil consiga retomar o crescimento, aquela regiãocertamente se transformará na mais atraente alternativa locacional para váriossegmentos das indústrias de alta tecnologia, além da expansão de setores jáconsolidados, a exemplo da metalomecânica.

Outro caso que merece destaque é São José dos Campos, sede de váriasgrandes empresas multinacionais que ali encontraram uma alternativa locacional emrazão da sua localização no eixo Rio-São Paulo, das facilidades da região, da suaproximidade ao Porto de São Sebastião e do clima ameno das montanhas de Camposde Jordão. A cidade possui ainda a sede do Centro Técnico Aeroespacial (CTA),instalada na década dos 40, e a do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), quetransformou São José dos Campos em uma das cidades mais avançadas no ensino deengenharia do País. As pesquisas do CTA e de seus institutos coligados desembocaramna criação da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), em 1969. Além dasinstituições de pesquisa ligadas ao setor militar, no início da década de 1960 foi criadoo Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), ligado ao Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que, além das pesquisascorrespondentes, criou também os cursos de mestrado e doutorado em áreas afins.

Com base nas instituições de ensino e pesquisa locais, foi instalado na cidadeum conjunto de atividades industriais, especialmente na linha de armamentos. Essefato permitiu que o emprego industrial em São José dos Campos subisse de 17 milpara 48 mil entre 1970 e 1980, continuando a crescer até 1987.

No entanto, o fim da Guerra Fria, os efeitos do fim da Guerra Irã-Iraque eda Guerra do Golfo e as pressões políticas internacionais, especialmente dos EstadosUnidos, contra a exportação de armas pelo Brasil, aliado à queda da demanda deaeronaves, colocaram a nova indústria de São José dos Campos em profunda criseconjuntural e estrutural, como indica a maioria das análises sobre a região (Diniz eRazavi, 19936; Tapia, 1993) (...).

6 DINIZ, Clélio Campolina, RAZAVI, Mohamadi. Emergence of a new industrial districts in Brazil:São José dos Campos and Campinas Cases. [s.I.] 1993. (Mimeogr.).

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[DINIZ, Clélio Campolina e TEIXEIRA DOS SANTOS, Fabiana Borges. Sudeste:Heterogeneidade Estrutural e Perspectivas. In: AFFONSO, Rui de Britto Álvares eSILVA, Pedro Luiz Barros (org.). Desigualdades regionais e desenvolvimento.São Paulo: Fundap/UNESP, 1995, p. 212-215.]

5. O Processo de Modernização da Agricultura noBrasil e as suas Tendências Atuais

O processo de modernização e industrialização da economia brasileira,acelerado após o término da Segunda Guerra Mundial, subordinou a agropecuáriaàs necessidades do capital urbano-industrial, definindo novas funções para aeconomia rural. A agricultura passou a funcionar como retaguarda do crescimentodo setor industrial e financeiro. Nesse sentido, agricultura brasileira está orientadapelo binômio industrialização-exportação.

A economia rural transformou-se, antes de tudo, em fornecedora dematérias-primas para as indústrias. As culturas agrícolas que conheceram um maiordesenvolvimento foram aquelas voltadas para a produção de insumos industriais.A alta lucratividade da produção de insumos agroindustriais atraiu capitais einvestimentos para culturas como as da laranja (indústria de cítricos), soja (indústriade óleos vegetais) e cana (indústria de açúcar e álcool combustível). Além defornecedora de insumos industriais, a economia rural tornou-se consumidora demercadorias do setor industrial. À medida que se voltava para as necessidadesda economia urbana, a agricultura modernizava a sua base técnica, incorporandotratores, arados mecânicos, colhedeiras e semeadeiras, adubos, fertilizantes epesticidas.

A modernização da base técnica indica um processo de capitalização daagricultura que diferencia cada vez mais os produtores rurais empresariais dosprodutores rurais familiares, que não dispõem dos capitais necessários para oincremento da produtividade.

Esse mesmo processo de modernização implicou a crescente mecanizaçãodas atividades agrícolas, especialmente no Centro-Sul do país. Em conseqüência,ocorreu intensa liberação de trabalhadores, expelidos da agropecuária e forçados a

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procurar ocupação na indústria e nos serviços. Desse modo, a economia ruralcomportou-se como fonte de força de trabalho para a economia urbana.

O mercado externo absorveu uma parcela considerável do aumento daprodução agrícola de insumos industriais. Produtos como a soja, a laranja (vendidana forma de suco), o fumo e as carnes de aves juntaram-se ao café como itensexportados de grande peso.

No plano espacial, a ligação entre a modernização da economia e acapitalização da agricultura se exprime através do preço da terra.

Nas áreas mais urbanizadas e industrializadas, o preço da terra agrícola émais elevado, pois a proximidade dos mercados consumidores aumenta aconcorrência pelo uso da terra. O alto preço da terra, por sua vez, condiciona odesenvolvimento da produtividade das atividades agropecuárias: um pesadoinvestimento na aquisição de terras exige lucros elevados para ser compensador. Épor isso que a modernização agrícola se realiza, em primeiro lugar, no Centro-Suldo país.

Em São Paulo, sul de Minas Gerais e Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarinae Rio Grande do Sul, encontra-se um complexo econômico agropecuário moderno,vinculado às necessidades industriais e altamente dependente de fluxos financeiros.O Centro-Oeste e as franjas meridionais e orientais da Amazônia são espaços deexpansão da agropecuária moderna e cada vez mais integrados aos mercados doCentro-Sul. O desenvolvimento agrícola dessas áreas é reflexo do transbordamentoda economia rural dos estados do Sul e de São Paulo.

A faixa litorânea úmida do Nordeste constitui um espaço singular, marcadopelo predomínio da agricultura comercial tradicional, organizada em torno de grandespropriedades e culturas tropicais. Em Pernambuco e Alagoas, esse sistema deprodução está combinado com a agroindústria canavieira, voltada para a produçãode álcool e açúcar. Nas zonas semi-áridas do Agreste, predomina a pequenaprodução camponesa de tipo familiar.

As terras distantes dos centros urbanos e industriais e, portanto, dos mercadosconsumidores, apresentam preços muito menores. Esse é o domínio da pecuáriatradicional, extensiva, baseada no uso de pastagens naturais de campos, cerrados

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ou caatingas e numa baixa densidade de animais. Nos vales dos rios e junto àsestradas aparecem zonas de lavouras camponesas em pequenos estabelecimentos.

A luta pela terra

A terra é o meio de produção fundamental na economia rural. A concentraçãoda propriedade da terra é um dos traços marcantes da economia rural brasileira,cujas origens remontam ao modelo de colonização aplicado ao território lusitano naAmérica.

De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 1995, osestabelecimentos rurais com menos de 10 hectares somam mais de metade dototal, mas representam cerca de 2% área agrícola cadastrada no país. No outroextremo, os estabelecimentos rurais com 1.000 hectares ou mais representam poucomais de 1% do total, mas controlam cerca de 45% da área agrícola.

O sistema das sesmarias, do século XVI, gerou esse padrão concentradorque se reproduziria ao longo da história do país. Já naquela época, surgiam os doispersonagens básicos da economia rural do país: de um lado, o latifundiário (sesmeiro),que detinha vasta extensão de terras e geralmente empregava um contingentenumeroso de escravos para a produção de gêneros tropicais exportáveis; de outro,o posseiro, que ocupava as terras devolutas, mais afastadas do litoral, dedicando-se à produção de subsistência e também a culturas alimentares consumidas noslatifúndios.

No século XIX, a introdução do trabalho livre na economia cafeeira assinalouum momento decisivo na evolução da estrutura fundiária brasileira. A extinção dosistema de sesmarias, em 1822, originou uma expansão descontrolada doapossamento de terras. Em 1850, a Lei de Terras veio frear esse processo,determinando que a única via para o acesso à terra seria a compra.

A modernização da economia rural teve como conseqüência a valorizaçãomonetária da terra. A valorização da terra, por sua vez, implica o aprofundamentoda concentração da propriedade. A transformação da produção agrícola nas áreasmais prósperas do Centro-Sul, por exemplo, realizou-se paralelamente aoenglobamento dos sítios pelas fazendas, com a expulsão dos camponeses pobrespara as cidades ou para as fronteiras agrícolas.

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Os trabalhadores rurais expulsos das áreas agrícolas mais antigas funcionamcomo vanguarda de expansão das fronteiras da economia rural. Instalam-se, comoposseiros ou pequenos proprietários, em regiões distantes onde são abertas novasestradas e existem terras devolutas em abundância. Nessas áreas novas, a estruturafundiária costuma exibir intensa fragmentação e a paisagem predominante é a dossítios e roças familiares.

Depois da instalação dos camponeses pobres, as fronteiras agrícolas assistemà chegada dos grandes proprietários. Muitas vezes eles são precedidos pelos grileirosque, subornando funcionários governamentais e contratando jagunços e pistoleiros,forjam títulos de propriedade de terras e expulsam os ocupantes. Outras vezes,grileiros e fazendeiros são um único personagem. Os conflitos entre grileiros eposseiros são os principais personagens da violência das regiões de fronteira.

Assim, o crescimento contínuo da área agrícola total se realiza através deciclos de desconcentração e reconcentração da estrutura fundiária.

Na década de 1960, quando se intensificava a ocupação dos atuais estadosde Goiás e Mato Grosso do Sul, os pequenos estabelecimentos aumentavam a suaparticipação na área total enquanto regredia a participação dos estabelecimentosmaiores.

Durante toda a década de 1970, ocorria um movimento inverso, dereconcentração fundiária. Naquela fase, a modernização agrícola em São Paulo(principalmente com a expansão canavieira) e no Paraná (com a expansão da soja)eliminava os sítios e expulsava os camponeses pobres. Ao mesmo tempo, a ocupaçãodas franjas amazônicas (Maranhão, Pará e Tocantins) realizava-se através daexpropriação dos posseiros e implantação de grandes estabelecimentos pecuaristasou madeireiros.

Nas fronteiras agrícolas amazônicas, o predomínio do pequenoestabelecimento camponês ficou praticamente restrito a certas regiões de MatoGrosso, Rondônia e Acre, onde se estabeleceram migrantes provenientes daRegião Sul.

O processo cíclico de expansão das fronteiras agrícolas e concentração daestrutura fundiária gera conflitos permanentes e crescentes pela posse da terra. Tais

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conflitos vêm se avolumando nas últimas décadas, configurando um panorama deuma guerra aberta no campo brasileiro.

Texto Complementar

No texto reproduzido abaixo, publicado originalmente na revista CiênciaHoje, o professor José Eli da Veiga do Departamento de Economia da Universidadede São Paulo analisa as especificidades do setor agrícola nas economiascontemporâneas, destacando a importância da produção familiar, traça umdiagnóstico da agricultura brasileira e defende novos rumos para a política agrárianacional.

Texto 1 – Terra Dividida: Os Equívocos da Política Agrária

É muito comum encontrar na grande imprensa afirmações como esta: “Claroque a distribuição de terra tem um papel a cumprir, mas sabe-se que o caminho docampo é o da grande empresa e do trabalho assalariado.” Muita gente pensa assim.Talvez a maior parte da intelectualidade brasileira seja vítima desse engano. Noentanto, basta examinar os fatos para perceber que o caminho seguido pelas naçõesmais desenvolvidas foi exatamente o inverso.

Em todas as agriculturas do Primeiro Mundo, a grande empresa e o trabalhoassalariado tornaram-se apêndices de uma massa de estabelecimentos de médioporte tocados essencialmente pelo trabalho familiar. A tal ponto que grandes fazendase assalariados agrícolas são ótimos indicadores de subdesenvolvimento. Na Europa,é fácil encontrar ambos em Portugal, Espanha ou Grécia, mas é preciso paciênciapara achá-los na França, na Alemanha ou na Grã-Bretanha. Na América do Norte,ainda são numerosos nas áreas próximas ao México, mas tornam-se cada vez maisraros à medida que se sobe em direção ao Canadá. No Japão, e em suas ex-colônias, só com uma lupa é possível descobrir assalariados agrícolas. Assim, acrença de que “o caminho do campo é o da grande empresa e do trabalhoassalariado” só faz sentido se esse caminho for o do subdesenvolvimento.

Os que vêem a agricultura patronal como o principal agente dodesenvolvimento rural também costumam dizer que “a reforma agrária dos anos 90será necessariamente anacrônica, do ponto de vista econômico-desenvolvimentista,ainda que necessária por motivos éticos e democráticos”. É claro que o potencial

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impulsionador de uma reforma agrária no Brasil, neste final de milênio (se isso fossepossível), não seria igual ao que teria sido no fim dos anos 50 ou na primeira metadedos anos 60. Até porque grande parte do capital humano da agricultura foi dilapidadoou destruído nos últimos 30 ou 40 anos. Muitos dos melhores agricultores já deixaramo campo ou foram reduzidos a simples safristas. E aos que resistiram não é oferecidaformação profissional adequada aos desafios do século XXI.

Ainda assim, pensar que uma verdadeira reforma agrária já não teriaimportância econômica contraria a principal lição das reformas desse tipo bem-sucedidas: nenhuma outra política governamental é tão redistributiva. Até o BancoMundial reconhece hoje essa vantagem especial. Foi a reforma agrária que transferiuaos agricultores de Taiwan o equivalente a 13% do produto interno bruto de 1952 eaumentou em 33% a renda per capita dos agricultores da Coréia do Sul. Dizer que“a reforma agrária será anacrônica do ponto de vista econômico-desenvolvimentista”só faz sentido para quem supõe que o Brasil pode se desenvolver sem uma drásticadesconcentração da riqueza. O pior é que essa suposição é muito comum, inclusiveentre os que falam e escrevem a favor da redução das desigualdades.

Apesar da força do mito da superioridade da agricultura patronal, a sociedadebrasileira está aos poucos se dando conta de sua absurda ineficiência distributiva.Não por outra razão, a política agrária ganhou tanta importância desde 1985. Noentanto, o assentamento anual de algumas dezenas de milhares de ‘sem-terra’ valerápouco se nada for feito para liberar o potencial econômico de pelo menos 2 milhõesde agricultores familiares ‘com-terra’.

Ações pós-democratização

Com a redemocratização, aumentou bastante a possibilidade de umtrabalhador rural ter acesso a um lote de terra que lhe garanta a subsistência básica(casa e comida), e bem mais que isso se também tiver acesso a bens públicosessenciais (como educação e assistência técnica) e a linhas adequadas de crédito.Na época da ditadura, a saída encontrada pelos ‘excedentes populacionais” queteimavam em continuar no campo era migrar em direção à floresta amazônica paratentar formar uma posse. Quantos conseguiram ninguém sabe.

Só é possível dizer que os programas oficiais de ‘colonização’ atingiram,nos 20 anos de ditadura, apenas 115 mil famí1ias (média de 5,5 mil famílias por

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ano). Número equivalente de famí1ias foi assentado só por governos estaduais nosprimeiros 10 anos de redemocratização, enquanto o Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária (Incra) atendeu pouco mais. Ou seja, entre 1985 e1994 quadruplicou a possibilidade de uma família sem-terra ser assentada,desempenho que dará mais um grande salto se as metas do atual governo foremcumpridas (figura 1).

Figura 1. Agricultores sem-terra assentados pelo governo brasileiro

A combatividade do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e sobretudoa simpatia que conquistou nas camadas médias urbanas tornaram quase certo quenos anos 90 o assentamento de famílias rurais sem-terra será fortemente acelerado.Mas o verdadeiro impacto dessa aceleração só pode ser estimado pela comparaçãodos dados de assentamento com os dados disponíveis sobre a estrutura agrária. E,antes de tudo, pela comparação do número de famílias que está conseguindo terracom o número de famílias expulsas da atividade agrícola.

É crescente a população rural não-agrícola, pois enquanto diminui o êxodorural cresce a desocupação agrícola. A estimativa do demógrafo George Martine,de que cerca de 28,4 milhões de pessoas deixaram a área rural entre 1960 e 1980,sugere que o êxodo envolveu, nas três últimas décadas, algo próximo a 300 milfamílias por ano. Mas há fortes indicações de que o processo começa a se esgotarnos anos 90. O economista José Francisco Graziano da Silva destacou a mudançana taxa de redução da população rural, que diminuía 0,6% ao ano na década de1980 e passou a diminuir apenas 0,1% ao ano entre 1992 e 1995. A populaçãorural com 10 anos ou mais, que diminuía 0,1 % ao ano nos anos 80, aumentou0,4% ao ano entre 1992 e 1995. Ao mesmo tempo, os ocupados em atividades

Período N° de Famílias Média Anual

115.000

90.000

-

12.600

280.000

1964-1984

1985-1989

1990-1992

1993-1994

1995-1998

Ditadura

Governo Sarney

Governo Collor

Governo Itamar

Metas gov. atual

5.500

18.000

-

6.300

70.000

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agrícolas, que cresciam 1,1 % ao ano nos anos 80, passaram a diminuir 0,9% aoano entre 1992 e 1995.

Entre 1992 e 1995, ficaram sem ocupações agrícolas assalariadas ou porconta própria cerca de 120 mil a 150 mil famílias. Nesse período, as estatísticasindicam que deixaram essas atividades 280 mil empregados, 12 mil agricultores porconta própria e 24 mil não-remunerados, totalizando 316 mil ocupados – ou seja,entre 126 mil e 158 mil famílias (supondo, em estimativa otimista, 2 a 2,5 ocupadosem cada família). Esse número indica que estariam saindo da agricultura 40 a 50 milfamílias por ano.

Se o atual governo conseguir assentar 70 mil famílias por ano, estará maisque compensando a desocupação estimada. Mas o que significa esse saldo positivode 20 ou 30 mil famílias por ano em um universo de mais de 6 milhões de famílias?O que significa esse saldo positivo de 20 ou 30 mil lotes familiares de alguns poucoshectares (ha) em uma estrutura agrária na qual os 530 mil empregadores concentrammais de 75% das terras agrícolas? Apesar da pobreza das estatísticas disponíveis,pode-se montar, sem grande margem de erro, um perfil da estrutura agrária brasileira.O saldo positivo de 20 a 30 mil lotes, com área média em tomo de 7 ha, retiraria de150 mil a 200 mil ha por ano dos 300 milhões de ha detidos por 500 mil fazendeirose os acrescentaria aos 95 milhões de ha em posse das 3,5 milhões de famílias quetrabalham por conta própria. É uma gota no oceano.

A agricultura familiar

No século XXI, a agricultura familiar é predominante em todo o PrimeiroMundo. No Japão, essa situação só se consolidou com as radicais reformas agráriasdo pós-guerra. Mas nos demais países desenvolvidos as elites dirigentes nãodemoraram tanto para perceber as desvantagens econômicas e sociais da agriculturabaseada no trabalho assalariado. A ilusão, na segunda metade do século XIX, deque a agricultura adotaria o modelo ‘fabril’ de organização produtiva, como ocorreuna indústria britânica desde o final do século XVIII, foi passageira. Desde o iníciodo século XX as políticas adotadas em tais países favoreceram a progressivaafirmação da agricultura familiar.

Nos Estados Unidos, essa opção foi até anterior. Na primeira metade doséculo XIX prevaleceu a opinião conservadora: as terras públicas eram vendidas

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em grandes glebas, a preços altos e pagas à vista. Imensos domínios foram compradosem leilões por muitos especuladores. Mas aos poucos a atribuição de terras foiliberalizada, em processo doloroso e cheio de idas e vindas. Durante a Guerra Civil(1861-1865), quando a rebelião dos estados sulistas deu maioria parlamentar aojovem Partido Republicano, surgiu a famosa Homestead Law, que visava distribuirlotes de 160 acres a famílias de colonos.

De 1870 a 1880 houve verdadeiro boom colonizador na linha Minnesota-Dakota-Nebraska-Kansas. Na última década do século, os assentamentos pioneirosjá cobriam grande parte do oeste de Nebraska e do leste do Colorado, assimcomo o oeste do Kansas. Na luta contra a grilagem dos barões de gado, pipocaramconflitos entre cowboys e sodbusters, mundialmente popularizados pelos westerns.Mas nada seguraria a multidão de sem-terra europeus que cruzou o Atlântico. Elesfixaram-se no noroeste, em algumas áreas do oeste do Texas e até na Califórnia,onde ficaram com os piores solos, pois os melhores já haviam sido apropriados nosanos 1850.

O caráter essencialmente familiar da agricultura norte-americana não paroude se afirmar. Ao contrário do que muitos pensam, as ‘corporações’ são exceção.O último censo agropecuário, de 1992, revela que a participação destas nas vendasdo setor é declinante – apenas 6% (US$ 9,8 bilhões). As vendas das sociedades detipo familiar aumentaram, chegando a 21 % (US$ 34,4 bilhões). Já a tradicionalagricultura familiar foi responsável por 54% da produção comercializada (US$ 87,9bilhões). Os restantes 19% (US$ 30,5 bilhões) vieram de formas societárias nãoclassificadas como familiares ou patronais. Assim, mesmo a tremenda evoluçãoorganizacional da agricultura daquele país ocorrida neste século não alterou de modosignificativo seu caráter essencialmente familiar.

O Brasil é um dos exemplos mais chocantes da opção inversa: de desprezoe intolerância em relação à agricultura familiar. Com a exceção do fluxo colonizadorque ocupou o extremo sul até o sudoeste do Paraná, o padrão agrário adotado nopaís teve características semelhantes às do leste europeu. Ao contrário da aristocraciabritânica, que se livrou de seus domínios na Primeira Guerra, os senhores do lestepreferiram impedir o acesso de suas populações rurais à propriedade da terra.

A rigor, o sistema agrícola brasileiro começou com o complexo cafeeiro, nofinal do ciclo britânico (século XIX). Antes, as atividades do setor não formavam

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um sistema. O modo como as elites dirigentes aboliram a escravidão e importaramcolonos para as lavouras de café teve o mesmo sentido histórico da ‘segundaservidão’ do leste europeu. Houve amplo pacto para impedir o acesso à terra dosnegros e dos imigrantes europeus e japoneses. Só após a crise de 1929 e a longadepressão dela decorrente, uma parte dos colonos pôde comprar lotes, postos àvenda por fazendeiros falidos. Mas o imenso excedente populacional formado desdeentão passou a exercer forte pressão para ter acesso à terra. No início dos anos 60,as ligas camponesas nordestinas, junto com os movimentos de sem-terra sulistas,quase levaram o governo de João Goulart a optar pela agricultura familiar.

A migração como opção

Durante os 20 anos de ditadura militar, a opção da população rural excedentefoi a migração, principalmente para regiões de fronteira, onde tentavam se fixarcomo posseiros. No entanto, a política oficial de ocupação favoreceu o surgimentode grandes fazendas de gado, por meio de incentivos fiscais, reduzindo o alcancesocial da corrida ao Oeste. E a escolha da cana-de-açúcar como única cultura doProálcool também ajudou os grandes fazendeiros a avançarem sobre as terras dajovem agricultura familiar do Sudeste. Assim, em meados dos anos 80, no início daredemocratização, era flagrante o contraste entre a estrutura agropecuária brasileirae a experiência dos países que se desenvolveram durante o século XX.

Apesar de tudo, o último retrato da agricultura brasileira, tirado em 1985,revelou que a produção familiar resistiu à opção contrária das elites. Pode-se dizerque mais da metade dos estabelecimentos agrícolas do país, naquele ano, eramfamiliares.

É preciso enfatizar que esses quase 3 milhões de estabelecimentos familiaresnão tinham nada a ver com a idéia muito difundida de agricultura ‘de subsistência’.Isso fica bem claro quando se estima a renda monetária bruta dos estabelecimentosnão-patronais (através da simples diferença entre receitas e despesas agropecuárias).Os níveis médios de renda bruta das camadas mais representativas da agriculturafamiliar (em valores para todo o Brasil) estavam longe do que se poderia consideraruma agricultura ‘não-comercial’ .

É fundamental examinar também os enormes contrastes regionais. NoNordeste, apenas um quarto dos estabelecimentos não-patronais tinha níveis

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razoáveis de renda bruta e, mesmo assim, bem abaixo dos registrados nas outrasregiões. Já no Norte e no Centro-Oeste, apesar dos bons níveis de renda bruta, aagricultura familiar ainda revelava a incipiência natural da dinâmica da fronteira. Ouseja, o caráter ‘comercial’ da agricultura familiar era mais evidente nas regiões Sul eSudeste.

Para o Estado de São Paulo há dados bem mais recentes. O sociólogoRicardo Abramovay mostrou que, em 1991, foi bem alta a participação dos imóveisrurais ‘não-patronais’ no valor da produção de atividades sem dúvida comerciais.Mais da metade (52%) do algodão, quase metade (43%) da soja e 38% do caféforam produzidos por imóveis ‘não-patronais’, embora esse tipo de imóvel ocupasseapenas 34% da área agropecuária paulista e respondesse por apenas 33% do valortotal da produção estadual.

Por isso, a extinção do ICMS sobre exportações pode ter um impactoimediato e muito efetivo na agricultura familiar. O aumento das exportações ajudaráa manter postos de trabalho, em especial nos segmentos mais consolidados. NosEstados Unidos cada aumento de US$ 1 bilhão das exportações agrícolas geravauns 30 mil novos empregos – quase a metade no próprio setor agrícola (dados de1984). Pode-se supor que essa relação seja ainda mais favorável no Brasil de hoje.Além disso, o fim do imposto também elevou alguns preços pagos ao produtor, jáque as indústrias precisam evitar que suas matérias-primas sejam vendidas nomercado externo. Basta dizer que até exportações de milho passam a sercompetitivas, situação antes impensável. Segundo cálculos do economista FernandoHomem de Mello, publicados na revista Exame (11/9/96), a agricultura brasileiraverá sua renda aumentar em até R$ 2,5 bilhões ao ano até o final da década.

Sinais de uma nova agenda

Uma política agrícola específica para a agricultura familiar começou a emergircom o Decreto 1.946, de 28 de junho de 1996, que criou o Programa Nacional deFortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Não é mais uma simplesdiferenciação do crédito para ‘pequenos agricultores’. Além de nova concepçãopara o financiamento da produção de agricultores familiares e suas organizações,trata-se de uma estratégia de parceria entre eles, governos (municipais, estaduais efederal) e iniciativa privada na aplicação dos recursos, destinados também à melhoriada qualidade de vida, ao aprimoramento profissional, à adoção de tecnologia, à

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adequação e implantação de infra-estrutura e outros objetivos. Em 1996, o programarecebeu R$ 1 bilhão, dos quais R$ 200 milhões para custeio e R$ 800 milhões parainvestimentos.

É muito cedo para avaliar o Pronaf, que mal começou a ser implantado.Mas ele certamente pode abrir novas oportunidades de expansão e/ou reconversãoprodutiva para o maior número possível de imóveis familiares com chances deconsolidação. No entanto, no âmbito das políticas agrícolas e agrária, desenvolvera agricultura familiar exigirá que o Pronaf seja aprofundado e ampliado em trêsdomínios prioritários: educacional, fundiário e creditício.

No domínio educacional, é necessário mudar o padrão tecnológico. O padrãoda ‘revolução verde’, que orientou a chamada ‘modernização conservadora’, estásendo substituído por outro, como reação à forte pressão pela preservação ambiental.Mas o novo padrão não poderá, como o antigo, ser resumido a um mero ‘pacote’acompanhado de receitas simples sobre o uso de insumos básicos. É preciso reforçaro caráter ‘versátil’ da atividade agrícola, tendo como principal insumo o conhecimento,e o ambiente educacional hoje disponível para os agricultores não é capaz deacompanhar essa mudança. Tal ambiente inclui (a) o ensino regular básico oferecidoem escolas rurais, (b) a quase inexistente formação profissional e (c) as redes deextensão e/ou assistência técnica e suas relações com o sistema de pesquisaagropecuária.

No domínio fundiário, é importante favorecer a aquisição de terras por jovensagricultores familiares com boas perspectivas profissionais, e simultaneamentepermitir diversas formas de planejamento e gestão sócio-ambiental do espaço agrário.É muito comum que terras ofertadas por agricultores que mudam para outra regiãoou deixam a atividade (caso típico dos que se aposentam sem sucessores) sejamadquiridas por agentes não-agrícolas (comerciantes, imobiliárias, profissionais liberaise outros) ou grandes fazendeiros, sem qualquer oportunidade de compra pelos quemais precisam delas: os agricultores vizinhos. A sociedade ganharia mais se fosseaumentada a chance de transferir essas terras a agricultores familiares, principalmenteaos jovens.

Para que esse tipo de ordenamento agrário seja eficaz, os governos federale estaduais devem ter papel estritamente normativo. As decisões operacionais devemser tomadas em nível intermunicipal, com participação ativa das organizações civis

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locais. Ou seja, a evolução agrária de uma microrregião deve ser controlada pelasociedade, através de organizações locais (governamentais e não-governamentais).Mas para isso é imprescindível que tais iniciativas tenham legitimidade e sejamrealmente capazes de intervir no mercado de terras rurais.

No domínio creditício, uma forma decisiva de apoio seria a criação de umalinha especial de crédito de investimento dirigida ao jovem agricultor familiar. Issosignifica financiar de forma direta o ‘desenvolvimento global integrado’ – ou seja,expansão, reorientação ou reconversão do sistema de produção – deestabelecimentos familiares dirigidos por jovens agricultores de reconhecidacapacidade profissional.

[VEIGA, José Eli da. Terra dividida – os equívocos da política agrária. In: CiênciaHoje, SBPC, agosto de 1998, p. 26-31.]

6. Exemplos de Questões

Concurso de 1997

√ “Há décadas, o Estado de São Paulo responde por cerca de 45% do valor datransformação industrial gerado no Brasil, o que expressa o grande nível deconcentração da atividade no território nacional. Sabe- se, também, que aprodução de café foi a grande responsável pelo povoamento e estruturaçãoterritorial dessa unidade da Federação. Relacione os dois fatos.”

√ “O padrão contemporâneo de produção industrial é denominado por váriosautores de ‘pós-fordismo’. Explique o que caracteriza tal padrão, quais são assuas inovações em relação ao anteriormente vigente e quais suas repercussõessobre a localização das indústrias no Brasil.”

Concurso de 1998

√ “A soja aparece como um dos principais produtos agrícolas na pauta deexportações brasileiras nas últimas décadas. Analise a trajetória de difusão,pelo território brasileiro, das plantações desse produto e os sistemas de produção

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predominantes em cada área produtora, e indique seus portos de escoamentopara o exterior.”

√ “A existência de frentes pioneiras tem sido uma constante no decorrer da históriabrasileira. Os fundos territoriais sob soberania do país são, porém, finitos.Comente essa relação, tentando fornecer prognósticos e delinear cenários sobrea matéria nas próximas décadas.”

Concurso de 1999

√ “Diferencie ‘Amazônia’, ‘Região Norte’ e ‘Amazônia Legal’, e comente aprincipal característica observável no padrão de ocupação dessa região.”

7. Bibliografia

Bibliografia Básica

BECKER, Berta e EGLER, Cláudio. Brasil, Uma Nova Potência Regional naEconomia Mundo. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.

BECKER, Berta et alli. Geografia e Meio Ambiente no Brasil. São Paulo: Hucitec,1995.

CASTRO, lná E. de, GOMES COSTA, Paulo C. da e CORREA, Roberto L.(orgs.). Questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1996.

LAVINAS, Lena et alli. Reestruturação do Espaço Urbano e Regional no Brasil.São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1993.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1994.

Bibliografia Complementar

AFFONSO, Rui de Britto Álvares e SILVA, Pedro Luiz Barros (org.).Desigualdades regionais e desenvolvimento. São Paulo: Fundap/UNESP,1995.

ANDRADE, Manuel Correa de. A Questão do Território no Brasil. São Paulo:IPESP/Hucitec, 1995.

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CASTRO, Iná Elias de et alli (org). Redescobrindo o Brasil: 500 anos depois.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

CORREA, Roberto L. Região e Organização Espacial. São Paulo: Ática,1987.MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria. São Paulo: Moderna/Edusp,1997.OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. A Agricultura Camponesa no Brasil. São Paulo:

Contexto, 1992.

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UNIDADE III

O BRASIL NO CONTEXTOGEOPOLÍTICO MUNDIAL

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O BRASIL NO CONTEXTO GEOPOLÍTICO MUNDIAL

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III. O BRASIL NO CONTEXTO GEOPOLÍTICO MUNDIAL

A realidade mundial contemporânea é marcada por revolucionáriastransformações de ordem científica e tecnológica e pela crescente integração daseconomias nacionais. Segundo muitos autores, a transnacionalização da economiae a globalização das relações de produção figuram, ao mesmo tempo, como causae conseqüência desse conjunto de transformações.

No âmbito econômico, o processo de globalização é resultado daintensificação dos fluxos de mercadorias, capitais e informações entre os mercadosnacionais. O crescimento do comércio internacional de mercadorias e serviços,estimulado por políticas liberais de redução das barreiras alfandegárias, disseminapor todo o planeta as tecnologias e os produtos da nova revolução industrial. Osinvestimentos no exterior mundializam as cadeias produtivas sob o comando degrandes corporações transnacionais, enquanto um enorme volume de capitais circulaentre os principais mercados financeiros, conectados em escala global. A circulaçãode informações define padrões mundiais de consumo e difunde as marcas dasempresas globalizadas. A configuração de blocos econômicos transnacionais é umtambém um aspectos da globalização da economia mundial: a ampliação dosmercados consolidada por meio daqueles opera no sentido de ampliar acompetitividade das empresas que concorrem no mercado mundial.

No âmbito geopolítico, a globalização acelera-se desde meados da décadade 1980, com a implosão das economias planificadas da União Soviética e EuropaOriental e com a abertura da China Popular aos investimentos internacionais. Esseseventos possibilitaram a extensão da economia de mercado para novos espaçosgeográficos.

O processo de transnacionalização da economia alterou de formasubstancial a trajetória histórica da industrialização brasileira e as relações dopaís com a economia mundial. A consolidação do Mercosul, definido peloembaixador Celso Lafer como “uma plataforma de inserção competitiva numaeconomia que, simultaneamente, se globaliza e se regionaliza em blocos”, geranovas dinâmicas de comércio e investimento no Cone Sul, em um contexto marcadopelas políticas de cunho liberalizante e pela inserção do Brasil nas cadeiasprodutivas globalizadas.

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Para compor a presente Unidade, foram selecionados trabalhos queconceituam e problematizam os novos paradigmas de produção e consumo emescala mundial, e que abordam relações entre eles e a realidade brasileira.

1. Transnacionalização da Economia e Globalização dasRelações de Produção: o Período Técnico-Científico e asNovas Tendências Geopolíticas em Escala Global

A economia mundial de mercado conheceu um ciclo longo de fortecrescimento nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. As décadasde prosperidade se apoiaram na reconstrução e ampliação de estruturas produtivasbaseadas em tecnologias tradicionais, principalmente eletromecânicas. A utilizaçãointensiva de energia e matérias-primas assim como a absorção crescente de forçade trabalho semi-qualificada em linhas de produção sustentaram uma oferta ampliadade mercadorias destinadas a mercados consumidores em expansão. Em grandeparte, esse ciclo de crescimento pode ser tributado à reconstrução das estruturasprodutivas da Europa Ocidental e do Japão e à abertura de filiais de empresastransnacionais em países até então de baixa industrialização, tais como o Brasil, oMéxico e a Argentina.

Os Estados Unidos exerceram uma hegemonia econômica quaseabsoluta durante o ciclo longo de crescimento. Os empréstimos de capital norte-americanos, canalizados através do Plano Marshall (1948-52), desencadearama reconstrução européia. O mercado consumidor norte-americano absorveugrande parte das exportações que sustentaram o reerguimento japonês. Ascorporações transnacionais norte-americanas lideraram os investimentosindustriais no resto do mundo e impulsionaram a formação de grandes parquesindustriais na periferia capitalista, em especial na América Latina. O dólarfuncionava como moeda mundial e, até o início da década de 1970, mantinhaparidade fixa com o ouro.

Esse ciclo de prosperidade só seria interrompido na década de 1970. Aelevação brutal dos preços do barril de petróleo resultante dos dois “choques”protagonizados pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)gerou recessão e desemprego, mas sinalizou mudanças estruturais no paradigmatecnológico dos países desenvolvidos.

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Os fundamentos técnicos da era industrial emergente repousam sobre aautomatização e a robotização e sobre a utilização menos intensiva de matérias-primas e energia. A informática, as telecomunicações, a biotecnologia, a robóticae a química fina desenvolvem mercadorias revolucionárias, utilizando mão-de-obra altamente especializada, novas matérias-primas e novos materiaissintetizados em laboratórios. A contínua incorporação de tecnologias de pontano processo produtivo implica investimentos de alto custo em produtos querapidamente se tornam obsoletos, o que exige uma ampliação da escala dosmercados.

Nesse contexto, a integração do mercado mundial ameaça diluir os limitesrepresentados pelas barreiras nacionais, configurando, simultaneamente, um processode globalização e de regionalização. Após longos decênios de preparação, a UniãoEuropéia se transformou em uma união econômica e monetária, com a adoção deuma moeda única. Em junho de 1990, o presidente norte-americano George Bushlançou a Iniciativa para as Américas, uma proposta de unificação dos mercados docontinente. Em agosto de 1992, foi assinado o Acordo de Livre Comércio da Américado Norte (Nafta), unindo Canadá, México e Estados Unidos em um poderosomercado comum. Os investimentos industriais japoneses, que disseminam as cadeiasprodutivas pelas economias do Sudeste Asiático, a seu turno, ajudam a soldar aintegração econômica dessa região do mundo.

Ao mesmo tempo, as inovações tecnológicas se difundem com rapidezinusitada, através de computadores pessoais e redes de informação conectadaspor satélites e cabos de fibra óptica. O período técnico-científico é também a erada informação e da simultaneidade dos eventos. De acordo com o geógrafo MiltonSantos:

Durante milênios, a história do homem faz-se a partir demomentos divergentes, como uma soma de aconteceres dispersos,disparatados, desconexos. Já a história do homem de nossa geraçãoé aquela em que os momentos convergiram, o acontecer de cada lugarpodendo ser imediatamente comunicado a qualquer outro, graças aesse domínio do tempo e do espaço em escala planetária. Ainstantaneidade da informação globalizada aproxima os lugares, tornapossível uma tomada de conhecimento imediata de acontecimentossimultâneos e cria entre lugares e acontecimentos uma relação unitária

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à escala do mundo. Hoje, cada momento compreende, em todos oslugares, eventos que são independentes, incluídos em um mesmosistema global de relações. [In: SANTOS, Milton. A Natureza doEspaço. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 162.]

O espaço global da “era da informação” é polarizado pelas cidades onde seconcentram as sedes das instituições que controlam as redes mundiais: bolsas devalores, corporações bancárias e industriais, companhias de comércio exterior,empresas de serviços legais e financeiros, agências públicas internacionais. As“cidades globais”, tais como Nova Iorque, Londres ou Frankfurt, funcionam comocentros de tomada de decisões capazes de afetar a organização de territórios emescala continental ou mundial.

Revolução técnico-científica e mercado de trabalho

A revolução técnico-científica gerou impactos profundos na oferta deempregos nos países desenvolvidos. O quadro mais dramático é, sem dúvida, o daUnião Européia, onde as taxas de desemprego duplicaram entre 1976 e 1985,saltando de 5% para 10% da população ativa, e permanecem estagnadas nessepatamar. As elevadas taxas de desemprego entre os jovens (15 a 24 anos) – emtomo de 25 % na França, 30% na Itália e 40% na Espanha – revelam a existênciade um quadro estrutural de descompasso entre o crescimento das economias e ageração de novos postos de trabalho.

Para muitos analistas, a explosão do desemprego na Europa é, em parte,resultante da redução da oferta de empregos nos setores industriais tradicionais –tais como a construção naval, a siderurgia e o têxtil – e da rígida regulamentaçãodo mercado de trabalho que caracteriza a maior parte de suas economias. Ocaso do setor têxtil é bastante significativo. Trata-se de um setor industrial detrabalho intensivo, pois emprega grandes quantidades de mão-de-obra, e o pesodos salários no custo final das mercadorias é expressivo. Essa circunstância explicaa tendência mais ou menos recente de deslocamento das indústrias têxteis e deconfecções para locais onde os salários são mais baixos. Entre 1970 e 1990, porexemplo, enquanto na Alemanha o número de trabalhadores do setor caiu de 400mil para 150 mil, a China, a Índia, o Paquistão e Taiwan conheceram um grandeincremento no número de pessoas ocupadas, na produção e na capacidadeexportadora do setor.

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Nos Estados Unidos, onde o mercado de trabalho é muito mais flexível ecomporta diversas formas de trabalho temporário, as taxas de desemprego recuaramde 7,6% em 1976 para 4,7% em 1998, apesar da introdução de tecnologiaspoupadoras de mão-de-obra tanto no setor secundário quanto no setor terciário.No Japão, apesar da tradição de empregos vitalícios, as taxas de desempregoapresentaram tendência de crescimento durante toda a década de 1990, tendosaltado de 2,1 % para 3,6% da PEA entre 1990 e 1998.

Texto Complementar

No artigo reproduzido abaixo, o embaixador Rubens Ricúpero problematizao próprio conceito de globalização, analisando a inserção do Brasil na economiamundial em uma perspectiva histórica e apontando as alternativas do país frente àstransformações em curso na economia e na política mundial.

Texto 1 -As Sereias da Globalização

Ao se aproximar dos 500 anos, o Brasil vive crise inédita, que não só aumentapara seu povo a carga acumulada de sofrimentos herdada de episódios anteriores, maspela primeira vez é percebida de fora como ameaça à estabilidade da economia-mundo.

Nada ilustra melhor como o aumento da interdependência tornou tudo oque é nacional e local relevante para o mundo e, em grau muito maior, tudo o que églobal relevante para as comunidades nacionais e locais.

Aliás, a própria essência íntima desta crise consiste precisamente na inter-relação país-mundo. A fim de resolver problemas basicamente nacionais – a derivapara a hiperinflação – valorizou-se a moeda como instrumento para pôr a economiainternacional a serviço da conquista de objetivo doméstico. O barateamento dasimportações ajudou a segurar os preços internos, mas ao custo de crescentes déficitscomerciais e em contas correntes, cobertos por outra contribuição internacional, osinvestimentos e financiamentos estrangeiros.

No momento em que a crise iniciada na Ásia aumenta o temor do risco dosmercados emergentes e põe fim à conjuntura de liquidez abundante, o país é forçadoa uma contração violenta para se ajustar às novas condições mundiais. É como se,tendo tentado transferir a bomba-relógio dos nossos problemas para o mundo, este

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agora nô-la tivesse devolvido no instante em que a contagem se acerca do pontocrítico e a bomba ameaça explodir em nossas mãos.

Traduzida assim em seus elementos fundamentais, a situação atual não passade manifestação a mais do “estrangulamento do setor externo”, velho conhecido nossoque, sob formas diversas e a intervalos quase regulares, acompanha-nos desde aIndependência. Não deixa, nesse sentido, de ser curiosa e melancólica a coincidênciade que em 1898, 100 anos atrás, aquele fim-de-século terminava como este: aassinatura por Campos Sales do funding-loam, o acordo com os credores a fim deevitar a bancarrota, com condições e conseqüências parecidas de aumento de impostos,violenta deflação interna, falências em cadeia de empresas de todo o tipo. A diferençaé que então tudo se passava em Londres, com o Banco Rothschild à frente e oTesouro britânico discretamente atrás das cortinas, e hoje os negociadores brasileirospartem para Washington a fim de tratar com o FMI, tendo na retaguarda o Tesouronorte-americano em postura mais ostensiva e declarada (contrariando o provérbioinglês segundo o qual “se você trouxe o cachorro, não é preciso latir no lugar dele”).

Se não faltam, portanto, precedentes para o garrote que nos sufoca, o quehaveria de novo na sombra que se projeta sobre as comemorações do V Centenáriodo Descobrimento?

O que mudou foi, em primeiro lugar, o tamanho da economia brasileira e asimultaneidade de sua crise com a reação em cadeia que ameaça até os mercadosfinanceiros mais avançados. Muito mais do que por ocasião do problema da dívidaexterna latino-americana a partir de 1982, o naufrágio do Brasil pode agora afogarmuito passageiro de Primeira Classe. É o medo do contágio geral que explica asensibilidade maior revelada neste episódio pelo Fundo Monetário, o Tesouro dosEUA ou o G-7.

A outra diferença é que as condicionalidades a serem impostas no pacotede resgate irão certamente estreitar ainda mais a margem de manobra brasileira, járeduzida de modo substancial pelas limitações oriundas dos acordos da RodadaUruguai e outras iniciativas de igual inspiração a pretexto dos imperativos daglobalização, reais ou supostos.

É esse o aspecto que nos interessa explorar aqui: até que ponto a integraçãodo Brasil na economia globalizada condiciona, facilita ou dificulta a integração do

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próprio país? É ainda possível cogitar de projeto nacional em contexto de crescentee intrusiva interdependência? Existirá lugar hoje para afirmar a identidade nacionaldiante da tendência à uniformização de padrões?

Globalização e autonomia nacional

A questão se desdobra em dois problemas que, em termos algoesquemáticos, podem ser definidos da seguinte forma. O primeiro, de naturezamais econômica e social, é o da inserção ou marginalização em relação à economiaglobal. Há um caminho único para essa inserção, que obriga a abdicar de veleidadesde autonomia nacional em favor da aceitação de modelos e regras de validadeuniversal? Ou existirão caminhos e modalidades distintas de inserção que admitemlevar em conta valores e objetivos particulares sem comprometer basicamente ameta de alcançar os benefícios de escala da economia de dimensão planetária?

O segundo problema possui caráter sobretudo político e cultural e égeralmente descrito como o perigo da perda de identidade cultural diante daimposição maciça, por meio das telecomunicações e da indústria audiovisual, depadrões e mentalidades características da cultura hegemônica, a norte-americanae, por extensão, a ocidental. Estaremos condenados à uniformidade da culturapopular de massa, com gostos e preferências indiferenciados que se estenderão dofast food à música, dança e literatura? Ou podemos esperar que o aumento dacomunicação entre povos e culturas produza o enriquecimento da inter-fertilizaçãode estilos, a diversidade dentro de uma unidade alargada e fecundada por aportesdiferentes?

É impossível avançar muito nessa investigação se não se começar poresclarecer o que temos em mente quando falamos em globalização, expressão dasmais ambíguas e enganadoras, significando coisas diversas para interlocutoresdiferentes. Sem intenção de ser exaustivo ou particularmente rigoroso, pode-sedizer que existem duas maneiras básicas de encarar a globalização: como fenômenohistórico ou como ideologia. Na primeira acepção, tenta-se apreender e descreverde modo tão objetivo quanto possível, abstendo-se de juízos de valor, o que sepassa no domínio da realidade, dos fatos sob exame, avaliando, como em todofenômeno histórico, os elementos de continuidade e os de ruptura com o passado.A segunda abordagem pretende deduzir comportamentos e normas a partir do quejulga captar da realidade. É prescritiva, normativa, tombando com freqüência na

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doutrinação, na imposição de caminhos. Torna-se então prescrição ou conselhosobre a melhor ou a única política a seguir a fim de ter êxito, isto é, na práticaconcreta, a recomendação de que todos os países adotem políticas de liberalizaçãorápidas e radicais como meio mais seguro de integração à economia internacional.

Esse tipo de interpretação desfigura a globalização de quatro maneirasprincipais. Pelo reducionismo: reduzindo-a a um só ou a alguns poucos dos seusdiversos elementos constitutivos, quase sempre de natureza econômica, comercialou financeira, esquecendo ou minimizando componentes políticos, sociais, culturais.Pelo determinismo: considerando como mecânico, automático, irresistível, comoa “tirania dos fatos”, a imposição obrigatória de novas relações de produção geradaspela tecnologia, que decorre na verdade mais das escolhas dos homens ou dosinteresses dos poderosos. Pelo conformismo: pretendendo que a uniformidadecultural e a falta de alternativas nos forçam a aceitar, queiramos ou não, uma só einvariável solução, a recomendada pelo pensamento “único”. Pelo anti ou a-historicismo: afirmando que se trata de fenômeno inteiramente novo, semprecedentes históricos, essencialmente “outro”, diferente em relação ao passado.

Ao contrário dessas simplificações, a globalização é sobretudo processode natureza cultural e histórica, abarcando muito mais que os componenteseconômicos. Em todas as suas etapas, ela tem sido produto de revolução nodomínio cultural, que se exprime em geral pela superação de novas fronteirascientíficas e tecnológicas, tomando possíveis formas inéditas de dominação políticaou produção econômica (...).

Da perspectiva que nos interessa, a globalização se confunde em boa medidacom a expansão do Ocidente e tem seu ponto de partida nas grandes viagensmarítimas de descoberta dos séculos XV e XVI (...).

A afirmação e dominação ocidental, acompanhada de adicional salto deintensidade, vai conhecer segunda fase no século XVIII, de novo introduzida porrevolução cultural no campo da ciência e da tecnologia (...).

Vivemos hoje a terceira fase desse processo, como as demais impulsionadapor transformações culturais e científicas, particularmente as conquistas em matériade eletrônica, de computadores, de telecomunicações. Diversamente dasmodificações anteriores, limitadas à energia e à matéria, a atual é uma transformação

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do tempo e do espaço, a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço, duasmudanças que fazem os homens e as culturas mais próximos e conscientesreciprocamente.

Mas, se ainda uma vez a revolução científica e tecnológica está na raiz destanova etapa, seu efeito integrador foi acelerado por uma ruptura política decisiva. Aqueda do muro de Berlim, a desintegração da União Soviética, a liquidação dosregimes comunistas na Europa Central e Oriental, a unificação da Alemanha, sãoacontecimentos que põem fim à heterogeneidade ideológica introduzida pelaRevolução Bolchevista de 1917 e criam clima favorável à crescente convergênciaem termos de legitimidade política e de formas de organização social e econômica.

As inovações tecnológicas aceleram a velocidade e o barateamento dostransportes e das comunicações, lançando as bases para o aparecimento da economiaglobalizada. A concepção, o desenho e a fabricação dos produtos perdem o caráterintegrado dentro de uma economia puramente nacional para se tomarem atividadesque podem ser parceladas em segmentos a serem executados geograficamente empaíses diferentes e depois montados segundo a lógica dos custos. Os mercadoscomerciais se unificam com a queda das barreiras. No livro Being Digital, NicholasNegroponte usa a expressão II bits versus atoms” para explicar que as transaçõesinternacionais consistem cada vez menos em matérias (átomos) atravessando fronteirasnacionais e cada vez mais de bits (de informação) que fluem de um computador aoutro, de um a outro celular ou de um satélite a uma estação terrestre. Começa-se autilizar a Internet não só para concluir operações comerciais mas até para entregar umproduto quando seu caráter é não-material (programa de software, projeto dearquitetura, de cálculo, de engenharia, parecer jurídico ou de consultoria, auditoriacontábil, campanha de publicidade, textos literários, música, arte). Isso tudo possibilitouo aumento fantástico da circulação de recursos financeiros e a velocidade das operaçõescom moedas estrangeiras. É o predomínio do capitalismo financeiro e sua desvinculaçãoparcial do mundo real da indústria e do comércio, a exacerbação do espírito deespeculação, acarretando crises financeiras e monetárias cada vez mais freqüentes edestrutivas. Essa nova economia é: 1°) de alta velocidade; 2°) de alta intensidade emconhecimento e já não mais em capital, mão-de-obra e recursos naturais; 3°)predominantemente transnaciona1; 4°) extremamente competitiva.

Como resultado do impacto dessas transformações, os últimos bastiões doisolamento tombam um após o outro: Vietnã, Cambodja, Birmânia, Mongólia. O

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espaço econômico se unifica em escala planetária para o comércio, os investimentosdas empresas transnacionais, os fluxos de empréstimos, de operações monetárias.A Internet cria a possibilidade de organizar campanhas sobre direitos humanos,meio ambiente, questões trabalhistas de um canto ao outro da Terra. Parece quechegamos ao fim de “5.000 anos de solidão”.

Pode-se talvez objetar que esse conceito de globalização é abrangente demaise o dilui a ponto de confundi-lo com a evolução do capitalismo ou da expansão doOcidente. Penso, ao contrário, que somente essa visão braudeliana concilia e equilibraruptura e continuidade, o inédito de certos eventos contemporâneos (o impacto daeletrônica, das telecomunicações, a queda do muro de Berlim) e a continuidade dofluxo majestoso das correntes profundas que caracterizam os ciclos seculares, delonga duração, a história gêmea, de meio milênio, do capitalismo e do Ocidente.

A questão não é de interesse meramente acadêmico. A abordagem de largofôlego facilita desmascarar imposturas ideológicas que se valem do falso argumentoda absoluta excepcionalidade do momento atual. Exemplo claro é o da tentativainteresseira de fazer aceitar a idéia de que globalização e liberalização são termossinônimos e intercambiáveis, utilizando-se a equivalência para exigir aos países quese liberalizem sem condições sob pena de ficarem à margem da globalização. Oraciocínio cai rapidamente por terra quando se assinala que, em outras fases daglobalização, na era vitoriana, entre 1870 e 1914, não só o nível de liberalizaçãoigualava ou superava o atual em comércio e investimentos, como eraincomparavelmente mais acentuado em matéria de mobilidade de mão-de-obra ede tecnologia. Foi nessa época que 50 milhões de europeus imigraram para asAméricas e a Oceania, sem contar os milhões de coolies asiáticos. Esse era tambémo tempo em que se podia imitar ou copiar muito mais facilmente invenções, livros,músicas.

Hoje, no auge da neoglobalização, exacerbou-se a liberalização comercial,financeira, de investimentos, mas paradoxalmente registra-se retrocesso nítido empolítica de imigração e tendência cada vez mais restritiva ao reforço dos monopóliosde exploração de patentes e outras formas de restringir o acesso à propriedadeintelectual. Em relação a esses dois fatores de produção, o trabalho e a tecnologia,não existe nada que se assemelhe à liberalização a toque-de-caixa promovida notratamento do capital e do comércio. No caso da tecnologia, está se tomando difícile até impossível comprar certas tecnologias sensíveis consideradas essenciais para

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assegurar o domínio do mercado pelas empresas que as controlam. E isso ocorrejustamente quando o acesso ao conhecimento e à informação passou a ser o fatordecisivo do desenvolvimento.

O Brasil, produto da globalização

Devido à democracia semi-direta, como na Grécia antiga, e à milícia formadapor todos os cidadãos, diz-se que a Suíça não tem exército, a Suíça é um exército.Da mesma forma, pode-se afirmar que o problema do Brasil não é a falta deintegração à globalização, mas o caráter subalterno e dependente de uma integraçãoexistente de velha data. Isto é, o problema brasileiro não é pouca globalização, aquantidade, mas a qualidade do fenômeno, a velha questão de ser “Cavalcanti oucavalgado”.

De fato o que é o Brasil senão o fruto da expansão do capitalismo mercantildo Ocidente? Sua invenção ou achamento, como então se dizia, é episódio,intencional ou não, da segunda viagem da carreira das Índias e, por mais de 30 anosapós a descoberta, ele continuou como aguada e porto de abastecimento de frutose legumes frescos para os navios do Oriente. É mesmo dos raros países batizadoscom o nome de um dos produtos exóticos de que era guloso o mercantilismo, opau-brasil. Sua população, produto da mistura das “três raças tristes”, não teriaexistido sem as migrações européias e asiáticas bem como o tráfico de africanos,elementos integrantes da globalização. Todos os seus ciclos econômicos, do açúcarao café (e, pode-se acrescentar, à soja ou suco de laranja), nasceram, cresceram edefinharam à sombra do comércio global. A Independência é outro episódio domesmo movimento de longa duração, só que agora na fase do capitalismo daRevolução Industrial, com seu horror ao monopólio mercantil das metrópoles e aexigência de abertura dos portos. A guerra e o reconhecimento da Independênciaforam financiados por empréstimos globais da praça de Londres, semente da dívidaexterna que desde então não cessou de aumentar.

O Brasil partilha, é verdade, essa certidão de nascimento e de maturidadecom os demais “países novos” das Américas e alguns outros (Austrália, NovaZelândia). Ela não deixa, contudo, de ser característica singular como genealogia enão pode ser estendida aos velhos países do Ocidente ou do Oriente, próximo ouremoto, cuja identidade já se encontrava definida em suas linhas mestras antes quea primeira cara vela tocasse o mar com sua quilha. Nem a China, a Índia, o Japão,

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a Arábia, a Pérsia cabem nesse molde, e tampouco nele se enquadram a Rússia, aAlemanha, a Inglaterra, a França, a Itália, a Espanha ou Portugal.

Em nosso caso, como mostrou José Guilherme Merquior, a inserção naeconomia mundial foi a condição mesma que tornou possível a preservação, porperíodo quase secular, do tipo de organização econômica e social geradora dedesequilíbrios e desigualdades que, até hoje, constituem o obstáculo principal àrealização do país como unidade coesa e integrada. Em sua última conferência emParis, em fins de 1990, poucas semanas antes de morrer, José Guilherme descreviacomo o projeto de Brasil de José Bonifácio se vira suplantado pelo que chamavade modelo liberal- oligárquico, que iria se estender de 1850 a 1930. Prolongamentoda estrutura herdada da colônia e sustentado no latifúndio (o sistema de plantation)e na escravidão (mais tarde no assalariado rural miserável), esse modelo só podiasubsistir graças ao fornecimento de produtos tropicais de exportação (açúcar, café,cacau) para os mercados externos junto aos quais funcionava como apêndice ecomplemento perfeitamente integrado na divisão internacional de trabalho. Seu efeitoduplamente concentrador da riqueza e da renda, por meio de propriedade da terrae do trabalho não-remunerado, moldou perduravelmente a realidade do que JoaquimNabuco chamava de “país sem povo”, pois um povo verdadeiro deveria ser formadopor homens livres.

O exemplo revela claramente que não é qualquer tipo de inserção nocomércio e na economia globais que contribui para metas desejáveis de progressosocial e econômico. É até paradoxal observar como certos países latino-americanos, que estiveram um tanto à margem da economia mundial do séculoXIX, devido à sua pobreza de produtos cobiçados pelos mercados da época,emergiram dessa experiência com perfil de desenvolvimento modesto mas menosdistorcido pelas desigualdades monstruosas dos “sucessos” de então. Pense-se,por exemplo, na Costa Rica, nação de agricultores de classe média, comparadacom a opulenta Cuba do açúcar e do tabaco (e dos escravos). Ou o Chileremediado, confrontado ao Peru dos oligarcas. O panorama não é diferente entrenós. Basta lembrar da província fluminense dos barões de Vassouras, doComendador Breves, com seus milhares de escravos, de um lado, e de SantaCatarina das pequenas e médias propriedades, da colonização européia, por outro.Ou mesmo no Nordeste, Pernambuco e Alagoas do açúcar e dos senhores deengenho e das taras políticas e sociais produzidas pelo contraste de dominação esujeição; em cotejo com estados que nunca gozaram de grande prosperidade no

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passado, como Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, que hoje se mostram maisaptos a produzir setores empresariais modernos.

A verdade é que o tipo de inserção de que o Brasil longamente desfrutou,economia de exportação do setor primário, concentrou o avanço tecnológico e ariqueza apenas nesse segmento estreito da população, com muito poucotransbordamento e efeito multiplicador para o resto. As Províncias e regiões, doPará da borracha ao Rio do café, passando por Pernambuco do açúcar e pelaBahia do cacau, estavam vinculadas às praças estrangeiras de onde tudo importavam,mantendo entre si contatos econômicos de pouca densidade, dificultadosadicionalmente, na época da navegação à vela, pelo problema dos ventos da contra-costa do Nordeste. Se era raso o nível de interação econômica entre regiões, aindamenos positiva foi a influência desse modo de inserção na integração da população,já que a escravidão, o obstáculo mais formidável a qualquer esforço dehomogeneização, era justamente perpetuada (e justificada) pela necessidade demanter alimentada a lavoura de exportação.

Esse panorama só começa a mudar com a industrialização, protegida porbarreiras aduaneiras ou facilitada pela escassez de divisas e dificuldades deabastecimento devido a causas externas. É interessante notar que a industrializaçãovai receber forte impulso durante os dois conflitos mundiais e a Grande Depressão,períodos em que se teve de reduzir à força o tipo de inserção tradicional na economiaexterna. É só então que se esboça aos poucos a formação, pela primeira vez, de ummercado nacional, com a gradual ligação das regiões por vias de transportes outrasque a antiga navegação de cabotagem. Faz sua aparição o proletariado industrial, opeso da massa dos salários urbanos cria mercado de consumo para os produtos daindústria paulista e, como observa Celso Furtado, até os ricos oferecem seu quinhãode sacrifício, pois são obrigados a renunciar às importações de luxo e consumirmofinos produtos nacionais...

As provas de que o problema continua atual tampouco faltam. Na UniãoEuropéia, o separatismo da Lega Nord, na Itália, pouco mais de um século após aunificação do país, reflete como a segurança fornecida pelo mercado europeuampliado reduz a solidariedade com o empobrecido sul da península, sugerindoque um movimento destinado a promover a integração de um conjunto maior podeparadoxalmente pôr em risco a unidade nacional alcançada a duras penas. Outroexemplo é o dualismo ou “polarização geográfica” que caracteriza a integração do

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México com os EUA no âmbito do Nafta, favorecendo, até agora, muito mais osEstados da fronteira (a média de salários de Nuevo León é 3 vezes maior que a deChiapas, a expectativa de vida no norte é de 20 anos mais que no sul, o consumoper capita na Baja Califórnia é 5 vezes superior ao de Oaxaca) do que os do sul,em boa parte excluídos desses benefícios.

Eu mesmo ouvi muitas vezes em Manaus e Belém expressões de dúvidasobre as possíveis vantagens que a Amazônia poderia retirar do Mercosul, parameus interlocutores realidade remota, em comparação com os ganhos mais tangíveisque derivariam do intercâmbio com vizinhos próximos como a Venezuela, a Colômbia,as Guianas, os países caribenhos.

O que se pode reter desses exemplos é que variam muito, segundo os países,o grau de essencialidade e as implicações da inserção na economia global. Cidades-Estado como Hong Kong ou Cingapura, para as quais o comércio exterior representa150 por cento ou mais do PIB, pequenos países abertos e tradicionalmenteespecializados na intermediação comercial como a Holanda e a Bélgica, não têmoutra opção. Ninguém, contudo, pretenderia que idêntica prioridade fosse válida paraos “países-monstros” da classificação de George Kennan (ver Around the CraggedHill), isto é, os Estados que somam a um território continental uma população gigante.A rigor, são apenas cinco, EUA, China, Índia, Rússia, Brasil, aos quais tenciona juntar-se a União Européia à medida que estende sua unificação a domínios essenciais comoa política exterior e a de defesa. A característica comum de todas essas economias éque elas haurem sua força basicamente de poderoso mercado interno, as exportaçõespara terceiros raramente representando mais de 12 a 15 por cento do PIB (isso éválido até para União Européia se considerarmos o comércio intra-europeu comodoméstico, o que ele é, pois não mais enfrenta barreiras) (...).

Em texto incluído no livro sugestivamente intitulado A ConstruçãoInterrompida, Celso Furtado já indagava: “...como desconhecer que o esvaziamentodos sistemas decisórios nacionais será de conseqüências imprevisíveis para aordenação política de vastas áreas do mundo, em particular para os paísessubdesenvolvidos de grande área territorial e profundas disparidades regionais derenda, como o Brasil ?”

Observava em seguida: “...a partir do momento em que o motor docrescimento deixa de ser a formação do mercado interno para ser a integração com

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a economia internacional, os efeitos de sinergia gerados pela interdependência dasdistintas regiões do país desaparecem, enfraquecendo consideravelmente os vínculosde solidariedade entre elas”. E concluía: “Em um país ainda em formação, como é oBrasil, a predominância da lógica das empresas transnacionais na ordenação dasatividades econômicas conduzirá quase necessariamente a tensões inter-regionais,à exacerbação de rivalidades corporativas e à formação de bolsões de miséria,tudo apontando para a inviabilização do país como projeto nacional”. Quando selembra o que ocorre na guerra de subsídios aos investimentos entre estados daFederação e o verdadeiro leilão promovido pelas transnacionais para instigar aconcessão desses subsídios, vê-se que Celso Furtado não foi um mau profeta.

Mas, como ele mesmo admite: “Um sistema econômico nacional não é outracoisa senão a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez dalógica econômica na busca do bem-estar coletivo”. É aqui precisamente que residea vantagem comparativa dos estados gigantes, verdadeiros micro-universos, maiscapazes que outros países menores de fazer prevalecer sua vontade política sobrea lógica de custos das transnacionais, utilizando para isso o poder dos seus imensosmercados internos. Desde, é claro, que exista essa vontade política a serviço de umprojeto de nação.

É essa mesma vontade a serviço de um projeto nacional completo, inclusivecom autonomia de decisões em política exterior e de defesa, que distingue a Chinae a Índia. São exemplos que refutam convincentemente o mito da irresistibilidadeda globalização e comprovam, de lambugem, que a autonomia das decisões, aescolha de ritmo prudente, gradual, controlado, de liberalização, sobretudofinanceira, não só não prejudica como é o melhor meio de proteger-se do contágiode crises devastadoras como a que assola a Ásia e o mundo (...).

É certo que já não se dispõe hoje da amplíssima margem de escolha daépoca dos extremos ideológicos, quando se ia do totalitarismo estalinista ou maoísta,numa ponta do espectro, ao mais radical liberalismo do mercado, na outra. Emlugar de branco ou negro, só nos resta a escolha de variedade infinita de gradaçõesde cinzento, com mais Estado ou mais mercado, mais ou menos flexibilidade ousegurança de emprego, mais ênfase na estabilidade de preços ou na expansãoeconômica. Essa administração dos matizes, essa busca do difícil equilíbrio entre orealismo dos fatos e o idealismo dos valores e aspirações, deixa espaço mais doque suficiente para cada sociedade construir modelo harmonizador da eficácia

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decorrente dos requisitos de validade universal com as especificidades particularese as preferências próprias a povos de história e problemas diferentes (...).

Em conclusão, o Brasil pode e deve retomar a construção interrompida dacidadania e do mercado interno. Longe de se contradizerem, esses termos sãointerdependentes. A fim de ser cidadão, isto é, de participar plenamente da vida dacomunidade, não basta ter abolido a escravidão, ser livre e ter o direito de voto. Foiessa a ilusão do passado, quando se pensava que a reforma eleitoral, o voto livre,secreto, universal, removeria nossas mazelas. Hoje sabemos que uma democraciade massas pobres, sem educação e saúde, sem acesso à informação ou vítima dainformação controlada por impérios privados, pode ser melhor que o passado, masnão é satisfatória. A verdadeira cidadania só se alcança quando se resolvem osproblemas básicos do emprego, do salário digno, da possibilidade de se instruir ede se curar. Em outras palavras, quando as pessoas se inserem na sociedade comoprodutores, por meio do emprego, e como consumidores, graças à remuneraçãojusta, quando elas se transformam em agentes, atores do mercado. A integração aomercado de produção e consumo dos milhões de brasileiros que subsistemprecariamente à margem dele, sem emprego ou com trabalho de baixa produtividade,é processo capaz de liberar altíssima carga de energia e de fornecer o dinamismopara o crescimento da economia por muitas e muitas décadas, tal é o atraso arecuperar nos padrões de consumo. O país e a economia têm de crescer de dentropara fora e não de fora para dentro.

É claro que necessitamos, como a China, da contribuição da economiaglobal, do acesso de nossas exportações aos mercados externos a fim deaumentarmos a capacidade de importar, da competição que traz eficiência, deinvestimentos produtivos, de financiamento, de tecnologia. Mas esse deve ser aportecomplementar ao esforço próprio, não seu substituto. Daí o imperativo de elevar apoupança doméstica para não voltar a agravar a excessiva dependência em relaçãoa recursos estrangeiros. Para isso temos de completar reformas internas só possíveiscom um mínimo de consenso social e político. É o que dizia em 25 de Outubro de1963, San Tiago Dantas, ao receber poucos meses antes de sua morte o título de“homem de visão” daquele ano dramático: “Terá de ser uma reforma incorporadaàs aspirações do povo, que suba das próprias bases sociais, e não uma reformaoutorgada pela classe dominante, expressiva apenas de uma concessão semconciliação, que fira de frente o problema vital da segurança econômica do indivíduona sociedade; terá de produzir, a curto prazo e sem violência, com respeito dos

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direitos, uma redistribuição de renda social, de modo que atinja a sociedade no seutodo, eleve o padrão da vida e crie número crescente de ocupações e atividades...”

Esta é a única resposta aceitável humanamente à pergunta que abria meuartigo. Dela decorre também a chave de outro dilema, o da antinomia uniformizaçãoversus identidade cultural. Em Situação de Macunaíma, Alfredo Bosi ensina queuma das principais motivações da obra foi “o desejo (...) imperioso de pensar opovo brasileiro, nossa gente, percorrendo as trilhas cruzadas ou superpostas da suaexistência selvagem, colonial e moderna, à procura de uma identidade que, detão plural que é, beira a surpresa e a indeterminação: daí ser o herói semnenhum caráter” (grifado por mim).

Voltamos, com Macunaíma, ao ponto de partida desta nossa viagem de500 anos de crise e crescimento, do esforço de criar condições para que se afirmefinalmente a identidade brasileira, que só pode nascer da plena realização dopotencial de nossa gente. Não é casual que as raras áreas em que o Brasil seprojeta internacionalmente, o futebol e a música popular, sejam as únicas onde aspessoas não necessitam de acesso à educação formal para se distinguir. Por isso sóelas apresentam ao mundo o rosto mestiço, sofrido e criativo do nosso povo. Navéspera de completar meio milênio de vida, encerro este artigo com outra citaçãode San Tiago, retirada do artigo amarelecido de Visão, que se intitulavaprofeticamente “San Tiago Aponta Caminhos”: “...Nenhuma reforma poderá serimplantada hoje... se não conseguirmos, em primeiro lugar, obter de nós mesmos,da classe dirigente como das classes produtoras e trabalhadoras, um nível mínimode confiança na viabilidade de um projeto brasileiro”.

[RICÚPERO, Rubens. As sereias da globalização. In: Rumos, os caminhos doBrasil em debate, n° 2, mar/abr 99, p. 75-84.]

2. Herança Colonial, Condição Periférica e IndustrializaçãoTardia: A América Latina

As estruturas econômicas herdadas do período colonial e as modalidadesde integração ao mercado internacional produziram realidades econômicas bastantediversificadas nos países latino-americanos. Ao longo do século, um conjunto de

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países do subcontinente – a Argentina, o México, o Chile e o Brasil – viveu umacelerado processo de industrialização, enquanto os demais permaneciamdependentes de estruturas econômicas primárias.

Esse processo – ligado tanto a fluxos internacionais de investimento quantoa esforços industrializantes internos – remodelou as formas de integração dessespaíses à economia mundial e fez surgir estruturas econômicas complexas, apoiadasna cidade e na indústria.

Na Argentina, as condições iniciais para a industrialização foramestabelecidas pelo complexo rural exportador: os capitais britânicos, a força detrabalho imigrante, a malha ferroviária e o porto de Buenos Aires. Sobre essasbases, desenvolveu-se, desde o início do século XX, a indústria de processamentode alimentos (óleos vegetais, carne, couro), voltada desde o início para aexportação.

A Primeira Guerra Mundial e a depressão internacional da década de 1930provocaram o surto inicial de substituição de importações, com o desenvolvimentodas indústrias de bens de consumo não-alimentícios, voltadas para o mercado interno.Esse processo apoiou-se essencialmente nas pequenas e médias empresas de capitaisnacionais. O ingresso de capitais norte-americanos, que disputavam posições comos investimentos britânicos, também contribuiu para essa etapa de decolagemindustrial. Ainda na década de 1930, o Estado inaugurou a sua participação comoempreendedor industrial, através da criação da companhia de exploração do petróleoda região de Comodoro Rivadávia, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF).

A moderna Argentina industrial, porém, nasceu após a Segunda GuerraMundial. As eleições de 1946 conduziram Juan Domingos Perón à presidência,cargo que conservaria até o golpe militar de 1955. A “década de Perón” foi marcadapelo crescimento industrial do país. Os capitais nacionais inseriram-sepredominantemente no setor alimentício e exportador e no de bens de consumonão-duráveis. O Estado encampou os serviços públicos e ferroviários surgidos dosantigos investimentos britânicos e desenvolveu a indústria de base. Os capitaisinternacionais desenvolveram o setor de bens duráveis, com destaque para asindústrias mecânicas. O peso da influência européia no país reflete-se ainda hoje nadistribuição da produção automobilística: as fábricas italianas e francesas lideram oramo, com larga vantagem sobre as montadoras norte-americanas.

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A Argentina transformou-se em um país urbano e industrial, mas o lastroda sua economia continua a repousar, paradoxalmente, no complexo rural. Aestrutura industrial depende, em grande medida, do vasto e diferenciado ramo doprocessamento de alimentos. O comércio exterior do país, direcionadoprincipalmente para Europa Ocidental e América Latina, exibe forte predominânciados produtos de origem primária.

No México, a modernização industrial baseou-se em investimentos estataise transnacionais e em uma vasta oferta de recursos minerais. Na década de 1930,no governo Lazaro Cárdenas, foram criadas as duas grandes empresas estataisvoltadas para o projeto de industrialização: Petróleo de México (PEMEX) e aNacional Financiera. A PEMEX estabeleceu o monopólio estatal da exploraçãodas imensas reservas de petróleo da região do Golfo do México e criou as basespara o desenvolvimento da indústria petroquímica. A Nacional Financiera, um bancode investimentos, financiou o desenvolvimento da indústria privada nos mais diversossetores.

O subsolo mexicano é rico em recursos minerais. As áreas das sierras, naregião central do país, apresentam jazidas de prata, zinco, chumbo e cobre. Atéhoje, a mineração e a indústria de transformação mineral representam parcelasignificativa das exportações nacionais.

A exploração do petróleo ganhou impulso na década de 1970, quando oóleo se tornou o produto principal na exportação nacional. Dispondo do vastomercado consumidor norte-americano, o México optou por não ingressar na OPEP(Organização dos Países Exportadores de Petróleo), a fim de determinar livrementeos seus níveis de produção e não subordinar suas exportações ao sistema de cotasdo cartel petrolífero.

O modelo econômico protecionista adotado por sucessivos governosmexicanos – baseado na multiplicação das taxas alfandegárias no estímulo àprodução nacional – atraiu para dentro das fronteiras do país os investimentos deempresas transnacionais. O baixo custo da força de trabalho e a presença de umabase industrial erguida pelo Estado também contribuíram para o fluxo deinvestimentos externos. Desde a Segunda Guerra, a instalação de filiais deconglomerados estrangeiros – especialmente norte-americanos – renovou apaisagem industrial mexicana.

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No Chile, a economia mineradora, marginal durante a colonização, setransformou no centro da vida nacional após a independência. Em meados do séculoXIX, a implantação de poderosas companhias européias de extração de cobre esalitre criou vínculos estreitos entre o país e os mercados e capitais estrangeiros. Nasombra da economia exportadora, cresciam as atividades urbanas e ampliavam-seos investimentos estatais em infra-estrutura. Um incipiente surto de industrializaçãoteve lugar neste período. O Chile conheceu uma urbanização rápida e precoce,fortemente polarizada pela capital, Santiago.

A crise de 1929 incidiu devastadoramente sobre a economia chilena. Oestrangulamento dos mercados internacionais lançou o país ao caos econômico,traduzido por um período de desemprego em massa, fortes convulsões sociais einstabilidade política. Este quadro turbulento se arrastou até a Segunda GuerraMundial.

O cobre, essencial para a indústria bélica, conheceu então uma valorizaçãoacentuada, ao mesmo tempo que o conflito restringia as importações de manufaturas.Iniciava-se um segundo surto de industrialização, fortemente apoiado pelas políticaspúblicas. No pós-guerra, empresas transnacionais, principalmente norte-americanas,multiplicaram seus investimentos tanto na mineração como no parque industrial.Porém, a emergência de um importante setor urbano industrial não eliminou a elevadaconcentração fundiária e de renda, herdada dos períodos anteriores.

O governo democrata-cristão de Eduardo Frei, eleito em 1964, implementouum programa de reformas cujos principais alvos eram o combate à estrutura agráriafundada nos velhos latifúndios e o domínio exercido pelos capitais estrangeiros sobreo setor mineral. Assim, realizou uma reforma agrária e iniciou um programa denacionalização gradual das empresas mineradoras.

Seu sucessor, Salvador Allende, eleito em 1970 por uma coligação departidos de centro-esquerda, iria muito mais longe. Durante o governo da UnidadePopular, as minas norte-americanas de cobre, o sistema bancário e muitas dasgrandes empresas industriais privadas foram nacionalizados. O programa de reformaagrária foi acelerado e aprofundado.

Em de setembro de 1973, um golpe militar encabeçado pelo general AugustoPinochet encerrou o governo da Unidade Popular. O novo governo pôs em prática

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um amplo programa de privatizações e de abertura da economia para o capitalestrangeiro, que prosseguiria com a democratização, ocorrida em 1989. Acompetitividade externa passou a ser o fundamento da economia nacional.

Atualmente, a forte integração ao mercado mundial é a principal característicada economia chilena, e a distingue do conjunto dos países industrializados dosubcontinente. O cobre responde por cerca de 40% do total das vendas. O Chile éo maior exportador de cobre do mundo e a estatal Codelco, responsável por grandeparte das minas do país, é a maior empresa chilena em volume de comércio exterior.

Os países que ficaram alijados da decolagem industrial seguem dependendode exportações de produtos agrícolas e minerais. Em muitos casos, eles se tomarambases importantes das rotas internacionais de narcotráfico e de capitais clandestinos.A Venezuela representa um caso particular: sua industrialização, relativamentesignificativa, assenta-se na base econômica propiciada pela extração, comercializaçãoe exportação do petróleo.

Texto Complementar

No artigo parcialmente reproduzido abaixo, o geógrafo Armen Mamigonianapresenta as diferentes correntes interpretativas acerca da industrialização brasileirae latino-americana.

Texto 1 -Teorias Sobre a Industrialização Brasileira e Latino-Americana

A industrialização brasileira é tema de debate da nossa intelectualidade desdeas décadas de 1920 e 1930. O. Brandão publicou Agrarismo e Industrialismoem 19261 e R. Simonsen divulgou em 1939 a primeira história da industrializaçãobrasileira2. Nos dois casos trataram-se de intelectuais engajados, o primeiro, dirigentecomunista e o segundo, líder industrial, ambos defensores da industrialização, numaépoca em que se considerava o Brasil como “país essencialmente agrícola” e cuja

1 MAYER, F. Agrarismo e Industrialismo. Buenos Aires, 1926. Fritz Mayer foi o pseudônimo deOctávio Brandão, de tradição anarquista, que contribuiu desde 1922 para a implantação e crescimentodo PCB e apontava a presença esmagadora de latifundiários no aparelho de Estado brasileiro na décadade 1920 e a necessidade de reforma agrária para a industrialização.2 SIMONSEN, R. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Cia Ed. Nacional, Edusp,1973. Edição organizada por E. Carone. Simonsen foi fundador da CIESP (1928) e da FIESP e o líderindustrial de maior prestígio no Brasil nas décadas de 30 e 40.

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industrialização sofria grandes resistências dos setores ligados à divisão internacionaldo trabalho, interna e externamente. Assim, precocemente as esquerdas brasileirastomaram-se, junto com a burguesia industrial, defensoras do processo deindustrialização.

A industrialização brasileira recebeu um capítulo na História Econômica doBrasil, de C. Prado Ir., publicado em 19453 e mais tarde mereceu interpretaçõesmais aprofundadas nos escritos de dois economistas ligados aos órgãos deplanejamento governamentais, I. Rangel e C. Furtado4 , publicados na década de 50.Paradoxalmente, o tema da industrialização só despertou o interesse dos professoresuniversitários após a publicação de Formação Econômica do Brasil, de C. Furtado,quando o Departamento de Sociologia da USP entrou no debate, sobretudo F. H.Cardoso e O. Ianni5. No fundo, até então, a universidade não julgava a temáticarelevante, pois não percebia as dimensões econômico-sociais e políticas que o processode industrialização já alcançava. O debate que se seguiu, com a participação denumerosos pesquisadores universitários brasileiros e estrangeiros, iria demonstrar ocaráter controvertido das interpretações, tais corno: 1) as conjunturas de crise dasexportações (guerras mundiais, crise de 1929 etc.) tinham sido favoráveis oudesfavoráveis ao avanço industrial?; 2) a condição de periferia do sistema mundialcapitalista bloqueava ou não a industrialização?; 3) a que classes sociais couberam asprimeiras iniciativas industriais: aos fazendeiros, aos comerciantes de export-import,à pequena burguesia e outros setores populares? etc. Paralelamente, a questão daindustrialização havia chegado na época ao próprio âmbito popular, onde também seveiculavam opiniões divergentes: a industrialização havia começado com Volta Redondaou com a implantação das usinas hidrelétricas da Light? A indústria brasileira eramultinacional? etc. Desde então o avanço industrial brasileiro foi considerável, assimcorno se fez um longo percurso intelectual, que provocou alguns esclarecimentos,mas ainda hoje as interpretações continuam contrastantes, pois refletem as vinculaçõesentre elas e as classes sociais interessadas no processo.

3 PRADO JR., C. História do Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1945. Escrita originalmente para o Fondode Cultura Económíca (México).4 RANGEL, I. Dualidade Básica da Economia Brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1957 cujas idéias foramaplicadas no PAIM, G. Industrialização e Economia Natural. Rio de Janeiro: ISEB, 1957. FURTADO,C. 1959. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fundo Cultura. Rangel e Furtadopublicaram vários outros textos.5 CARDOSO, F. H. “Condições sociais da industrialização em São Paulo” (Ver Brasiliense n. 38. 1960.)e IANNI, O. “Fatores humanos da industrialização no Brasil: Ver Brasiliense n° 30. 1960, procuraramapontar os fatores sociais da emersão do mercado interno e dos capitais para a industrialização, poucoabordados por C. Furtado.

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Nas esquerdas brasileiras três teorias referentes à economia brasileira emgeral e à industrialização em particular, tiveram papel hegemônico na luta intelectual,sucessivamente: 1) a teoria da CEPAL, que popularizou a expressão “industrializaçãopor substituição de importação”, dominou o ambiente cultural de 1955 a 1964; 2) ateoria da dependência, que teve grande aceitação no período seguinte ao golpe militar,enfatizou a subordinação da industrialização aos interesses do centro do sistemacapitalista; 3) a teoria dos ciclos econômicos, com grande aceitação recente, reconheceo enorme dinamismo do processo de acumulação capitalista brasileiro (...).

[MARMIGONIAN, Armen. Teorias sobre a industrialização Brasileira e LatinoAmericana. In: BECKER, Berta K. et alli (org.). Geografia e meio ambiente noBrasil. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 65-66.]

3. O Processo de Estruturação e os Objetivos do Mercosul

O conceito de integração econômica latino-americana surgiu no ambienteda Guerra Fria, refletindo uma reação à hegemonia geopolítica dos Estados Unidos.O processo da descolonização afro-asiática, que se desenrolou entre o final dosanos 40 e o início dos anos 60, influenciou na emergência desse novo conceito.Outra fonte de influência foi o movimento de integração européia, expresso pelafundação da CEE, em 1957.

A ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) foi criadapelo Tratado de Montevidéu de 1960. O Tratado previa o estabelecimento gradualde um mercado comum, preparado pela constituição de uma zona de livre comércio.Inicialmente, contou com sete integrantes: Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai,México e Uruguai. Mais tarde, recebeu a adesão de Colômbia, Equador, Venezuelae Bolívia, envolvendo quase toda a América do Sul, além do México.

Os ambiciosos objetivos da Associação, realçados pela vastidão dos espaçosgeográficos que recobria, chocaram-se desde o início com as desigualdadeseconômicas internas. As divergências entre o Brasil, o México e a Argentina e osdemais integrantes sabotaram as metas de integração. Ao mesmo tempo, a ênfasegeneralizada dos países latino-americanos nos mercados internos limitou o potencialde crescimento do comércio na área da ALALC.

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O fracasso da ALALC foi reconhecido tacitamente pelo Tratado deMontevidéu de 1980, que a substituiu pela ALADI (Associação Latino-Americanade Integração). A nova organização recebeu a adesão de todos os integrantes desua predecessora. O novo Tratado tem metas menos pretensiosas e mais flexíveis.Mesmo conservando como objetivo de largo prazo a criação de um mercadocomum, estimula a realização de acordos comerciais limitados e uniões aduaneirasentre países-membros.

O Mercosul nasceu da aproximação brasileiro-argentina e dos acordosprévios de integração bilateral firmados entre os dois países. A condição préviapara essa aproximação foi a redemocratização política, ocorrida em meados dadécada de 1980 nos dois países.

O passo inicial da aproximação foi a assinatura do Programa de Integraçãoe Cooperação Econômica Brasil-Argentina, em julho de 1986. Em novembro de1988, desenhou-se a meta de um mercado comum, no prazo de dez anos, fixadapelo Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento. Em julho de 1990,os governos dos dois países decidiram acelerar o processo de integração,antecipando para 31 de dezembro de 1994 o estabelecimento do mercado comumbilateral. Em seguida, entrou em vigor o Acordo de Complementação Econômica(ACE-14), prevendo a redução gradual das tarifas alfandegárias, até a sua completaeliminação.

A adesão do Uruguai e do Paraguai ao projeto comunitário ocorreu emmarço de 1991, quando o Tratado de Assunção definiu os contornos do Mercosul.

O Mercosul estende-se por um vasto espaço geográfico, que vai das áreasfrias e secas das altas latitudes patagônicas ao domínio equatorial amazônico. Agrupaquatro parceiros extremamente díspares, sob os pontos de vista demográfico eeconômico: o Brasil e a Argentina são potências latino-americanas, enquanto oUruguai e o Paraguai são economias fortemente dependentes dos seus vizinhos.

O núcleo geoeconômico do Mercosul é a região platina. A Bacia do Prata –vertebrada pelos rios Paraná, Paraguai e Uruguai – abrange o Centro-Sul do Brasil,o Pampa argentino, o Uruguai e a porção oriental do Paraguai. Nessa área,encontram-se as principais metrópoles e zonas industriais dos países-membros,além das grandes concentrações demográficas. Aí estão as duas metrópoles nacionais

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brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro), a grande metrópole argentina (BuenosAires) e importantes cidades que organizam o espaço regional: Belo Horizonte,Curitiba e Porto Alegre, no Brasil, Rosário e Córdoba, na Argentina, Montevidéu,no Uruguai, Assunção, no Paraguai.

A industrialização do Brasil, desde as primeiras décadas do século, valorizoua Região Sudeste e, em especial, o Estado de São Paulo. No final do governo deJuscelino Kubitschek (1956-61), .quando a indústria já se havia tornado o núcleodinâmico da economia nacional, o Sudeste industrial estava firmemente soldado àsáreas complementares de agricultura e pecuária no Sul e nas regiões meridionais doCentro-Oeste. A inauguração de Brasília, em 1960, seguida da abertura de rodoviasde integração, refletia a transformação de Goiás e do atual Mato Grosso do Sul emespaços de expansão da economia do Sudeste. O Centro-Sul surgia como expressãoda integração econômica dessa parte do território nacional.

A estruturação do território da Argentina realizou-se, desde o início, sob ahegemonia do porto de Buenos Aires. Ao redor da área portenha, desenvolveu-sea valorização do Pampa agrícola e pecuarista. A soldagem do Pampa à Europa, nasegunda metade do século XIX, realizou-se através do livre-cambismo e sob ainfluência dominante da Inglaterra. A troca entre os produtos agropecuários dointerior estancieiro (o trigo, a carne e a lã) e os manufaturados europeus beneficiavaessencialmente a elite portenha e os grandes estancieiros exportadores.

A organização do espaço regional argentino segue um nítido esquema detipo centro-periferia. O Pampa concentra a maior parte da riqueza e da populaçãodo país. Ao seu redor, estendem-se as periferias regionais: a Patagônia, ao sul, osAndes, a oeste, o Chaco e a Mesopotâmia, ao norte. No Pampa, encontra-se ocinturão industrial do país, que se estende em arco aberto de Buenos Aires a Córdoba,passando por Rosário. A aglomeração metropolitana de Buenos Aires, com maisde 10 milhões de habitantes (cerca de um terço da população do país) concentra osserviços financeiros, as sedes das corporações e a maior parte da produção industrial.Córdoba destaca-se como pólo de indústrias dinâmicas: lá se encontram as principaismontadoras automobilísticas de capital europeu. Rosário é um importante centrosiderúrgico.

O Uruguai forma uma faixa de transição entre o Centro-Sul brasileiro e oPampa argentino. Apesar da sua economia estar fundamentada nas atividades

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primárias, a taxa de urbanização é bastante elevada, atingindo cerca de 85%.Esta concentração urbana da população é conseqüência da estrutura fundiáriabaseada no domínio da grande propriedade e das modalidades predominantesde uso do solo – a pecuária extensiva e as culturas mecanizadas – poupadoras demão-de-obra.

O padrão agroexportador da economia do país condicionou a hegemoniada capital portuária sobre o interior pampeano. A aglomeração metropolitana deMontevidéu agrupa cerca de 1,6 milhão de habitantes, o que representa a metadeda população nacional. A função portuária continua a representar a principal atividadeda capital. As companhias de navegação, de exportação e importação, os armazéns,as empresas de transportes dinamizam a vida econômica da capital. Ao lado dasfunções administrativas e comerciais, a cidade desenvolveu um forte centro financeiro,que logo alcançou dimensões internacionais, passando a receber investimentosespeculativos provenientes da Argentina e do Brasil.

O Paraguai é atravessado, de norte a sul, pelo rio de mesmo nome. O rio,que corta Assunção, define duas áreas distintas: o oeste, que corresponde aodespovoado Chaco; no leste, onde, sob forte influência brasileira, encontram-se aszonas dinâmicas e a usina de Itaipu.

Entre o Rio Paraguai e a fronteira oriental, estendem-se as grandesregiões agropecuárias. Nas áreas menos férteis, a paisagem monótona dasgrandes propriedades de pecuária ultra-extensiva – onde escasseiam homens eanimais – é pontuada por regiões minifundistas, onde se pratica uma agriculturade subsistência de baixa produtividade. Próximo à fronteira nordeste, junto aoBrasil, aparecem áreas de agricultura comercial, em especial soja e café. Emgrande parte, a agricultura da fronteira é controlada por empresários ruraisbrasileiros.

O processo de integração deflagrado pelos acordos entre o Brasil e aArgentina e aprofundado pelo Tratado de Assunção tende a interferir nasdinâmicas territoriais dos países-membros. A configuração de uma zona de livrecomércio, primeiro passo do Tratado, amplia a escala dos mercados para asempresas envolvidas e reorganiza a divisão regional do trabalho. Essas mudançasseriam aprofundadas com a evolução rumo ao mercado comum, no qual todosos fatores de produção passariam a dispor de liberdade de alocação.

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No caso do Brasil, o Mercosul tende a reforçar as modalidades históricasde regionalização. A soldagem entre o Sudeste, o Sul e a parte meridional do Centro-Oeste – sob o comando dos capitais industriais e financeiros baseados em SãoPaulo – ganha novo impulso com a abertura do mercado argentino.

No caso da Argentina, o Mercosul acentua a urgência de integração dasregiões setentrionais – a Mesopotâmia e o Chaco – ao núcleo portenho-pampeano.Situadas nas faixas de fronteira, essas regiões se ressentem de fraco dinamismoeconômico e, principalmente no caso do Chaco, da carência de investimentos einfra-estruturas.

Muito além do núcleo geográfico platino, encontram-se as duas frentes deexpansão do povoamento da área do Mercosul: a Amazônia brasileira e a Patagôniaargentina. Esses dois ecossistemas inteiramente diferentes exibem uma semelhançasocioeconômica e territorial – tanto a Amazônia equatorial como a Patagônia fria eseca são vastos espaços de baixas densidades demo gráficas e elevada potencialidadeeconômica.

O advento do Mercosul e das novas estratégias comerciais e empresariaisabre amplas perspectivas de integração territorial na sub-região. A infra-estruturadisponível às empresas do Mercosul aparece como um dos elementos fundamentaisna definição de sua competitividade e eficiência. Nesse contexto, as iniciativas nocampo dos transportes ganham uma especial relevância.

No plano do transporte fluvial, a hidrovia do Mercosul é o projeto de maiorenvergadura. A entrada em operação da hidrovia Tietê-Paraná, viabilizada pelaseclusas de Jupiá e Três Irmãos, no trecho brasileiro do Alto Paraná, interligou oCentro-Sul do Brasil aos mercados de Argentina, Paraguai e Uruguai. Essa hidroviatem como único obstáculo de porte o desnível de Itaipu, que não é servido poreclusas e exige o transbordo rodoviário de cargas.

No campo dos transportes terrestres, um projeto de forte impacto é o daauto-estrada São Paulo-Buenos Aires. O traçado desta estrada, já conhecida comRodovia Sul-Americana, é objeto de intensos debates envolvendo liderançasindustriais e rurais dos três estados da região Sul do Brasil. O traçado litorâneo,proposto pelas lideranças industriais, integraria o leste dos territórios argentino,uruguaio e brasileiro. Assim, favoreceria o complexo industrial instalado nas capitais

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dos estados da região Sul do Brasil. O projeto seria complementado com aconstrução de uma ponte de 50 Km sobre o Rio da Prata, unindo Buenos Aires aColônia. Os empresários e políticos do interior do Rio Grande do Sul, do Paraná ede Santa Catarina propõem a interiorização da estrada, de forma a beneficiar osprodutores rurais dos três estados, diminuir o êxodo rural e ampliar a oferta deempregos na região. Segundo estudos realizados na Universidade de Passo Fundo,a rodovia interior poderia servir de “corredor” para 26% da economia gaúcha,48% da catarinense e 53% da paranaense.

Além da auto-estrada, planeja-se uma ligação rodoviária entre o porto deRio Grande e o porto de Antofagasta, no norte do Chile. Uma ligação ferroviáriaentre o porto de Santos e esse mesmo porto chileno também está em projeto. Estasligações uniriam, pela primeira vez, o Atlântico ao Pacífico na América do Sul eabririam novas perspectivas de integração do Cone Sul com a Bacia do Pacífico.

Textos Complementares

Os textos selecionados para introduzir a discussão sobre a origem e osignificado do Mercosul abordam dois aspectos cruciais no processo de integração.O primeiro deles, de autoria dos embaixadores Sérgio Abreu e Lima Florêncio eErnesto Henrique Fraga Araújo, destaca os objetivos e as características básicasdo Mercosul. O segundo, escrito pela geógrafa Mônica Arroyo, situa o bloco sub-regional no contexto das tendências simultâneas de globalização e regionalizaçãoque presidem a economia mundial contemporânea.

Texto 1 -Os Objetivos do Mercosul

O Mercosul é um processo de integração que tem como meta a construção deum Mercado Comum. Essa meta pode ser decomposta nos seguintes elementos básicos:

a) eliminação das barreiras tarifárias e não-tarifárias no comércio entre ospaíses-membros;

b) adoção de uma Tarifa Externa Comum (TEC);c) coordenação de políticas macroeconômicas;d) livre comércio de serviços;e) livre circulação de mão-de-obra;f) livre circulação de capitais.

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Examinemos um a um esses objetivos.

a) Eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias

O primeiro objetivo do Mercosul, a eliminação das tarifas e das restriçõesnão-tarifárias entre os seus parceiros, foi atingido em 31 de dezembro de 1994,com algumas exceções, que serão gradativamente eliminadas, e das quais falaremosmais adiante. Ou seja, desde aquela data, um país pode importar produtos deoutro integrante da Zona sem pagar tarifas. Ora, como continua a haver tarifaspara os países fora do grupo, conclui-se que os integrantes do grupo têm umavantagem. A esta vantagem chamamos Preferência Tarifária ou Margem emPreferência.

A desgravação tarifária maior para o comércio intrazonal (i.e., entreos países envolvidos no Mercosul) é uma característica essencial dosprocessos de integração: as alíquotas aplicadas ao comércio dentro da zonasão sempre diferentes (e menores) do que aquelas praticadas com paísesfora da zona.

Esta diferença, chamada de Margem de Preferência, é um dos grandesestímulos que os países têm para integrarem-se.

b) Tarifa Externa Comum

O segundo objetivo do Mercosul, o estabelecimento de uma Tarifa ExternaComum, foi concretizado também em 31 de dezembro de 1994 – igualmenteprevendo-se algumas exceções, que desaparecerão com o tempo. Hoje, aimportação de um produto proveniente de um mercado fora do Mercosul estásujeita à mesma alíquota tarifária nos quatro países.

Cumpridos esses dois objetivos básicos, o Mercosul já preenche osrequisitos para ser considerado uma União Aduaneira. Entretanto, o Tratadode Assunção estabelece ainda outros objetivos, que deverão ser trabalhadosao longo dos próximos anos para que o Mercosul se torne um Mercado Comum.Trata-se da coordenação de políticas macroeconômicas, a liberalização docomércio de serviços, a livre circulação de trabalhadores e a livre circulação decapitais.

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c) Coordenação de políticas macroeconômicas

O objetivo seguinte é a coordenação de políticas macroeconômicas. A políticamacroeconômica de um país se divide em três esferas principais: política cambial(taxa de câmbio da moeda nacional em relação ao dólar ou a um padrão de referênciaexterno), política monetária (taxa de juros e quantidade de moeda a ser emitida) epolítica fiscal (controle dos recursos a serem arrecadados e gastos pelo Estado).

A importância de coordenação macroeconômica entre países em processode integração fica bastante clara quando se considera a questão do câmbio. Numambiente onde não exista coordenação, um país pode, a qualquer momento, decretaruma maxidesvalorização de sua moeda, o que estimulará intensamente suasexportações e reduzirá suas importações, causando desequilíbrio na balançacomercial em desfavor dos parceiros. Estes últimos terão duas opções: ouabsorverão as conseqüências da medida e as distorções decorrentes da diferençacambial, ou promoverão eles também desvalorizações de suas moedas. Criar-se-ia, neste caso, um circuito de “desvalorizações competitivas”, que poderia prejudicara todos. A coordenação de políticas cambiais implica que cada país aceita limitesnas modificações que pode introduzir em sua taxa de câmbio, de modo a evitardesequilíbrios comerciais.

Quanto mais avance o processo de integração no Mercosul, e quanto maisse desenvolva a interdependência entre as economias dos países-membros, maisnecessária se fará a coordenação de políticas macroeconômicas – tanto por seusefeitos comerciais já apontados acima, como por seu impacto nos fluxos deinvestimento (um país com juros mais elevados pode atrair mais capitais externos) enas condições de concorrência (um país que cobra menos impostos incentiva osseus produtores locais, em detrimento dos concorrentes do outros países-membros).

Apesar de necessária, a coordenação de políticas macroeconômicas serácertamente um processo lento, já que implicará uma limitação na autonomia decada país para conduzir sua política econômica, mudança de grande envergadura,que não se pode pretender implementar em um período muito curto. É precisocompreender, no entanto, que a autolimitação decorrente do processo decoordenação macroeconômica será benéfica para cada país. Benéfica porqueconstituirá um fator de disciplina na condução das políticas econômicas, e porquecontribuirá para um ambiente de previsibilidade e de regras do jogo estáveis. É

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bom para qualquer país, por exemplo, ter uma política cambial estável, nãoimportando que isso seja uma decisão absolutamente individual ou a decorrênciade compromissos assumidos num processo de integração.

d) Liberalização do comércio de serviços

Os negociadores do Mercosul terão que enfrentar, ainda, a questão dacirculação de trabalhadores. A crescente interpenetração das economias resultará,como já está ocorrendo, no interesse dos trabalhadores de cada país pelo mercadode trabalho dos vizinhos. Somente o acesso desimpedido a esses mercados permitiráque o trabalhador aproveite os frutos da integração na sua totalidade. Até aqui,com efeito, o trabalhador pode beneficiar-se apenas – embora já seja muito – dosempregos que o Mercosul cria em seu próprio país de cidadania. Mas, no futuro, otrabalhador deverá ter acesso também aos empregos que o Mercosul cria no paísvizinho. Para que isso seja possível, no entanto, é necessário um enorme esforço deharmonização das legislações trabalhistas e previdenciária, que já está sendodesenvolvido.

A participação direta de representantes dos trabalhadores no processo dediscussão desses temas, que já ocorre e que provavelmente será reforçada no quadrodo Foro Consultivo Econômico e Social – do qual falaremos – , tende a criar umapressão crescente pelo desenvolvimento de ações facilitadoras da circulação demão-de-obra. Por outra parte, quando se considera também a situação dosprofissionais de nível superior – igualmente interessados no mercado dos outrospaíses do Mercosul – , é necessária, além da harmonização de legislações, afacilitação do reconhecimento mútuo de títulos e diplomas. Atividades nesse sentidojá estão em andamento, e a crescente demanda da sociedade civil provavelmenteforçará sua aceleração no curto e médio prazo.

e) Livre circulação de capitais

Por fim, temos o objetivo da livre circulação de capitais. Os investidoresdos países do Mercosul já contam com certas facilidades e garantias para suasaplicações no mercado dos parceiros, mas ainda há boa distância a percorrer até alivre circulação de capitais. Além disso, a crise financeira mundial no início de 1995,com seu impacto traumático, parece contribuir antes para critérios de maior controlesobre os fluxos de capital do que para uma facilitação desses movimentos. A

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liberalização dos fluxos de capital no Mercosul será, provavelmente, uma liberalizaçãobastante qualificada: a tendência aponta para um maior controle dos movimentosde capitais especulativos, ao lado de uma facilitação dos fluxos de capitais produtivos.

Percebe-se, assim, que para alcançar o estágio de Mercado Comum oMercosul ainda terá de concretizar objetivos de grande envergadura: a coordenaçãode políticas macroeconômicas, a liberalização do comércio de serviços e a livrecirculação de mão-de-obra e capitais. Essa perspectiva não deve, contudo,apequenar o que já foi conseguido. Na verdade, a União Aduaneira vigente desde10 de janeiro representa urna massa crítica de tal ordem que por si só, pelo própriodesdobramento de sua lógica interna, exigirá, mais cedo ou mais tarde, a consecuçãodesses outros objetivos, por mais complexos que sejam. Não podemos nos esquecerde todas as implicações da palavra “processo” quando descrevemos o Mercosulcomo um processo de integração. Sendo um processo, o Mercosul está sempreacontecendo. Sempre uma nova idéia, um novo tema, um novo projeto de acordoestá fermentando em alguma parte. E as idéias geram idéias, os avanços geramnovos avanços, num sistema dotado de organicidade e dinamismo.

Examinando os diversos modelos de processos de integração e a situaçãoque o Mercosul ocupa nesse quadro, é lícito concluir que o Mercosul já alcançoupatamares bem avançados de integração, só atingidos, até agora, pela União Européia.

A União Européia surge, naturalmente, como um paradigma, sempre quese fala de processos de integração. Trata-se do sistema de integração maisprofundo, mais complexo, mais ambicioso e economicamente mais pujante jáimplementado, e seu sucesso é absolutamente inegável, apesar das dúvidas dos“euro-céticos”. Entretanto, a União Européia não é uma matriz a ser fotocopiada.Não é o modelo arquetípico com o qual os demais processos de integração têmque se parecer ao máximo.

O equívoco dessa visão de uma União Européia arquetípica fica muitoevidente quando se vêem certos comentários sobre os prazos para a construção doMercosul: “os prazos são irrealistas”, dizem. “Não podemos querer atingir em poucosanos o que a Europa levou quatro décadas para alcançar”.

A comparação dos tempos da União Européia e do Mercosul, muitas vezesse faz de forma superficial. O estágio que o Mercosul alcançou em 10 de janeiro de

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1995, após três anos e meio de negociações – o de União Aduaneira – , foi atingidopelos membros originários da União Européia, não em quarenta, mas em cerca deonze anos a partir da assinatura do Tratado de Roma. Com efeito, os seis paísessignatários do Tratado de Roma, de 1957, já haviam, em 1968, eliminado as barreirasao seu comércio recíproco e adotado uma Tarifa Externa Comum – em ambos oscasos com algumas exceções, como também ocorre no Mercosul.

Por outra parte, não se pode pensar que o Mercosul surgiu do nada. Naverdade, como veremos, o Mercosul está alicerçado sobre um longo processo deintegração latino-americana, iniciado em 1960, e sobre as iniciativas de integraçãobilateral Brasil-Argentina, inauguradas nos anos 80.

[FLORÊNCIO, Sérgio Abreu e Lima e ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga.Mercosul hoje. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1996, p. 28-33.]

Texto 2 – Mercosul: Novo Território ou Ampliação de Velhas Tendências?

O contexto internacional

Duas tendências concomitantes no sistema internacional contemporâneo têmse acentuado na última década: a globalização e a regionalização da economia. Elasse opõem quanto à direção do movimento que em cada uma está implícita. Aglobalização remete à idéia de um movimento que tem como “campo de ação” todoo planeta, um movimento que opera na escala mundial. A regionalização, por outrolado, mostra uma tendência a atuar em uma área limitada do planeta, em uma escalamais reduzida. Porém, na realidade, essa oposição é só aparente já que essastendências complementam-se para dar respostas às mudanças estruturais que estãotransformando paulatinamente o cenário mundial.

A complexidade crescente no processo produtivo é um dos eixos dessasmudanças. A incorporação do conhecimento tecnológico aparece como a condiçãonecessária para o aumento da produtividade e do crescimento econômico. Aconcorrência mediante preços já não é tão decisiva quanto a que se traduz naqualidade e na diferenciação dos produtos. Isso é possível pela conformação deum novo padrão industrial, que baseando-se inicialmente no complexo metal-mecânico passou também – e fundamentalmente – a fazê-lo no complexoeletroeletrônico. As novas tecnologias, sobretudo no campo da microeletrônica,

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imprimem um salto qualitativo no processo de produção, de gestão e de organizaçãodo trabalho1. É assim que, neste processo, a qualidade da infom1ação tem seconvertido em fator estratégico para a competitividade das empresas, das regiões edos países2.

Esse salto, por implicar, de um lado, investimentos de alto custo e, de outro,uma rápida obsolescência dos produtos e processos, cria a necessidade de ampliara dimensão dos mercados. Dessa maneira, as novas tecnologias exigem escalaplanetária, acentuando a tendência à globalização da economia. Produtos maiscomplexos, mais intensivos em tecnologia, exigem mercados mais sofisticados esegmentados na economia mundial.

Outra mudança estrutural a considerar nesta análise é a crescentetransnacionalização da economia, a qual, embora não seja novidade, assentou-senas últimas décadas3. O avanço nas tecnologias de informação facilitasignificativamente essa tendência ao permitir que as etapas de produção se localizemem países diferentes mantendo o monitoramento centralizado sobre elas. Assim, aexpansão das grandes firmas oligopólicas nos setores produtivo e financeiro modificasubstantivamente a geografia mundial, cuja manifestação cada vez mais acentuada éa consolidação de um espaço integrado da empresa, além das fronteiras nacionais.Esse aprofundamento do processo de concentração e centralização do capital tempermitido aumentar o controle dos conglomerados sobre as relações econômicasinternacionais.

Dessa forma, os espaços nacionais deixam de ser o locus privilegiado parao processo de acumulação, tanto para as grandes empresas quanto para os própriospaíses. Os governos nacionais buscam ampliar o espaço de realização das

1 Na produção, com inovações aplicadas na concepção, projeção e desenhos de novos produtos; emequipamentos e sistemas flexíveis de produção de manufaturados; na utilização de robôs e em formas deenergia. Na gestão, com métodos administrativos mais eficientes, como a aplicação do princípio just intime (gestão por fluxos). E na organização do trabalho, com novas técnicas gerenciais e de alocação etreinamento dos recursos humanos, em que a ênfase é dada à qualificação da mão-de-obra e à maiorintegração entre a administração e a produção, com a diminuição relativa na estrutura ocupacional dosoperários (Cacciamali, 1991).2 Ver CASTELLS, Manuel. La economia informacional,la nueva división internacional del trabajo y elprojeto socialista. EI socialismo futuro, 4, Madri, 1991.3 Neste sentido, Ominami (1986) destaca o rápido aumento do número de países em desenvolvimentoque dispõem de empresas com investimentos diretos no estrangeiro. Embora seu tamanho sejaconsideravelmente mais reduzido que o das empresas dos países industrializados, esta tendênciaincrementou-se desde os anos 70.

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mercadorias com maior abertura da economia. A ampliação dos mercados, através dacriação de zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns, se transformaassim em uma saída para enfrentar as novas condições da competitividade internacional4.

O interesse associativo destas iniciativas visando o fortalecimento da baseregional não é contraditório ou excludente, com a tendência à globalização, já queambas decorrem da necessidade cada vez mais presente da criação de mercadosampliados. Pelo contrário, são complementares ao coincidir na busca de uma inserçãoem um contexto mais amplo, tanto regional quanto mundial.

Nessa reordenação, observa-se uma simultaneidade de movimentosdiferentes que influem um no outro: o das empresas transnacionais, os dos Estados-nação e os dos novos conjuntos ou agrupamentos de Estados. Essa superposição émuitas vezes conflitiva pela tensão existente entre esses agentes, conforme tentamacomodar seus interesses específicos. É bom ressaltar, no entanto, que osagrupamentos entre países têm preferentemente caráter intergovernamental, compeso ainda significativo das políticas conduzidas pelos Estados5.

Algumas particularidades latino-americanas

A formação de um mercado comum no Cone Sul (Mercosul) é uma dasiniciativas intra-regionais de caráter minilateral que se tem registrado na AméricaLatina no início da década de 1990. Podem-se mencionar também o Pacto Andinoe o Mercado Comum Centro-Americano, acordos preexistentes que receberamnovo impulso a partir de renovados programas de negociações regionais6.

Esses acordos sub-regionais de comércio reativados nos anos 90 sãoprecedidos pela adoção de políticas unilaterais de liberalização em um contexto de

4 Os projetos mais avançados neste sentido são o Mercado Único Europeu e a Área de Livre Comércioentre Estados Unidos, Canadá e México (NAFTA – North American Free Trade Agreement).5 Mesmo na Comunidade Européia, processo de integração que tem alcançado o maior grau deaprofundamento, existem permanentes divergências para decidir se prioriza a solução dos problemas“domésticos” ou os relativos à Comunidade.6 Em novembro de 1990, com a assinatura da Ata de La Paz, o Pacto Andino anunciou que o prazo paraa formação de uma Zona de Livre Comércio seria o dia 31 de dezembro de 1991 e antecipou para 1995a adoção de uma tarifa externa comum. Por seu lado, em julho de 1991 os governos dos países daAmérica Central comprometeram-se a: reduzir até 31 de dezembro de 1992 a tarifa externa; liberalizarcompletamente o comércio intrazonal de produtos agropecuários a partir de 30 de junho de 1992; esuprimir os obstáculos ao comércio intra-regional de manufaturas (Hirst, 1991).

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políticas de abertura das economias nacionais. O modelo substitutivo deimportações, que facilitou o desenvolvimento industrial a partir da presençatutelar do Estado e com diferentes mecanismos de proteção econômica, começaa dar sinais de esgotamento nos anos 80.

Efetivamente, a crise estrutural que tem afetado secularmente o continentese aprofunda com uma gravidade sem precedentes na década passada. É noâmbito financeiro que se percebe, com maior profundidade, seudesenvolvimento. Isso se expressa claramente a partir de 1982, quandosucessivamente diferentes países latino-americanos declaram a moratória. Aposterior aplicação de políticas de ajuste permite explicar o predomínio daestagnação, recessão e descapitalização que caracteriza a chamada “décadaperdida”.

Esta denominação refere-se basicamente ao fato de que a América Latinaestá em um período de retardamento de seu processo de industrialização. “Omodelo de crescimento com endividamento, após o choque dos juros,implicou, no início da década de 1980, programas de estabilização que foramadministrados por meio de contenção de demanda interna sem uma definiçãoprévia de política industrial e sem priorizar setores, ou mesmo as áreas sociais,o que acabou por provocar uma desorganização econômica”7. É convenientelembrar que tais receitas recessivas são tuteladas ou controladas pelo FundoMonetário Internacional, que desde 1982 monitoriza o pagamento da dívidaexterna.

Diante desse contexto particular para o continente latino-americano edas mudanças estruturais do sistema econômico internacional, procuram- seconformar, como uma das formas de reativação econômica, associaçõesminilaterais que dinamizem o comércio intrazonal8.

7 CACCIAMALI, Maria Cristina. Mudanças recentes no produto e no emprego: uma comparaçãoentre os países industrializados e aqueles em desenvolvimento, Revista Brasileira de Economia.Rio de Janeiro, 45(2), abr-jun. 1991, p. 226.8 De acordo com Quijano (1991), este tipo de acordo mais restringido parece “reconhecer ainviabilidade dos acordos múltiplos, como o Tratado de Montevidéu, que reúne na ALADI os 11países da região. Acordar entre onze, quando se trata de países heterogêneos, com diversos grausde desenvolvimento, com políticas econômicas nem sempre compatíveis e governos instáveis,que a cada renovação mudam a ponderação ao projeto regional, parece uma tarefa inviável” (p.50).

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Salienta-se que esses fatos têm seu correlato no plano político, pois a renovaçãodos numerosos governos no começo da década9, indício da consolidação nosprocessos de transição democrática que vivem vários países da região, vemacompanhada por um desenho mais pragmático da política externa. Tentam-setransformar os processos de integração já em curso em um instrumento para dinamizaras relações econômicas exteriores.

Neste contexto situa-se o Mercosul, proposta de integração entre Argentina,Brasil, Paraguai e Uruguai, que surge com a assinatura do Tratado de Assunção emmarço de 1991. De acordo com o Artigo nº 1 desse Tratado, os Estados-Partedecidem constituir um mercado comum, que deverá estar estabelecido a 31 dedezembro de 1994 e que implica as seguintes metas: (a) livre circulação de bens,serviços e fatores produtivos entre os países, (b) o estabelecimento de uma políticacomercial comum em relação a terceiros países, (c) a coordenação das políticasmacroeconômicas e setoriais entre os Estados-membros, e (d) o compromisso deharmonizar as legislações nacionais nas áreas pertinentes.

Optou-se por uma proposta que implica um importante aprofundamento noprocesso de integração econômica. Outras modalidades, como uma área de livre comércioe uma união aduaneira, exigem um grau menos avançado de integração. Limitam-se aotratamento da questão das barreiras ao comércio (dos membros da comunidade entre sie no seu relacionamento com o resto do mundo). O mercado comum, por sua parte,inclui a livre mobilidade da mão-de-obra e de capital, o qual exige um importante esforçona coordenação das políticas internas dos países envolvidos. Sem dúvida, trata-se deproposta ambiciosa para cumprir em quatro anos.

Agora, para entender o Mercosul, a análise deve remontar a seu antecedentemais recente, o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE) entreArgentina e Brasil, que foi assinado em 1986.

Os momentos da integração econômica no Cone Sul

O processo de integração no Cone Sul começa em 1985 com um encontroentre os presidentes Raúl Alfonsin (Argentina) e José Sarney (Brasil) em Foz do

9 Em 1989, aconteceram processos eleitorais na Argentina, na Bolívia, no Chile, em El Salvador,Honduras, no Paraguai e na Venezuela. Em 1990, no Brasil, na Colômbia, Costa Rica, Nicarágua, noPanamá, Peru e Uruguai.

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Iguaçu. Este fato é significativo já que se situa no processo de reabertura democráticainiciado nos dois países depois de traumáticos regimes militares, nos quaispredominava uma relação de mútua desconfiança.

Como afirma Almeida Mello “com o fim do autoritarismo e do Estado deSegurança Nacional nos dois países platinos, o retorno à democracia e ao “estadode direito” contribuiu para que a dinâmica da cooperação-integração subordinassea lógica da rivalidade-competição, que havia predominado nas relações brasileiro-argentinas até o fim da década de 1970”10.

Assim sendo, começa-se a assinar uma série de acordos e protocolos bilateraisvisando aprofundar um programa de negociações. Um dos objetivos mais significativosdo PICE é promover uma especialização intrasetorial, na qual se prioriza o intercâmbiode bens análogos com certo grau de diferenciação. Isto implica uma divisão do trabalhopor produtos mais que por ramos de produção, estimulando uma diversificação dasestruturas produtivas e o aproveitamento das economias de escala.

Esta opção é uma tentativa de reverter o esquema predominante no comérciobilateral, que se baseia fundamentalmente na exportação, de produtos primárioscom pouco grau de processamento por parte da Argentina diante das exportaçõesbrasileiras de manufaturas. Esquema clássico de especialização intersetorial, que,em uma situação de mercado ampliado, pode até provocar a desaparição de algumsetor em um dos parceiros comerciais. Pelo contrário, o comércio intra-ramospromovido pelo PICE busca a criação de vantagens comparativas dinâmicas queincrementem a competitividade de alguns setores. Daí a preferência que se outorgaas indústrias de bens de capital, alimentar e automobilística.

Os protocolos setoriais são os instrumentos básicos deste Programa. Facilitamuma abertura negociada por setor e por produto, procurando atingir dois objetivos: acurto prazo, recuperar o nível de transações e corrigir desequilíbrios sistemáticos nosfluxos de comércio e, a longo prazo, criar um novo padrão de relacionamento entre asduas economias, que consolide seu papel de indutores do crescimento regional11.

10 MELLO, Leonel Itassu Alemeida. Brasil, Argentina e a balança de poder regional: equilíbrio,preponderância ou hegemonia? (1969-1986). São Paulo, 1991, p. 271. Tese de doutoramento,Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo.11 ARAÚJO JR, José Tavares de. A opção por soberanias compartidas na América Latina: o papel daeconomia brasileira. Texto para discussão, 256, Rio de Janeiro: Instituto de Economia Industrial,Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991.

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Além de estabelecer mecanismos progressivos de eliminação tarifária e deremoção de barreiras não-tarifárias, propõem-se medidas como a formação deempresas binacionais e a criação de um fundo de investimentos, visando estimular acomplementaridade produtiva.

Cabe destacar o caráter gradual que se pretende impor ao processo com afinalidade de, conforme o PICE, “dar tempo para que os setores produtivos nosdois países se ajustem às contingências criadas pela abertura parcial e seletiva dosmercados”. Isso é importante na medida em que existem fortes disparidades entrevários segmentos dos setores envolvidos e, portanto, precisam-se desenhar linhasde reconversão industrial para acompanhar o processo. Ao mesmo tempo, deve-seressaltar a preocupação por uma abertura seletiva que implica não incluir, no início,os bens dos setores mais sensíveis, como certas produções agrícolas.

A renovação dos governos democráticos na Argentina e Brasil nos anos 90promove uma reformulação ampla do PICE, a qual ocorre nem tanto por umaavaliação estrita de seus resultados, mas como uma das respostas ao quadro deasfixia econômica e financeira em que se encontravam ambos os países12.Efetivamente, com os governos dos presidentes Menem e Collor, que produzemuma modificação radical nas políticas econômicas sustentadas basicamente em umconjunto de princípios neoliberais, o processo de integração, embora se reafirme,deixa de corresponder com uma política de abertura gradual e seletiva dos mercadospara adquirir um sentido funcional em um contexto generalizado de exposiçãocompetitiva à economia mundial13.

Como foi indicado no item precedente, o processo de integração aprofunda-se no sentido de aspirar à constituição de um mercado comum e também alcançauma nova dinâmica14. Estabelece uma redução tarifária generalizada, linear e

12 Ver HALPERÍN, Marcelo. La cuestión nacional y los dilemas jurídicos e institucionales en el processode integración entre Argentina y Brasil. Documento, Buenos Aires, Universidad de Belgrano, julio,1991.13 Ver HIRST, Mônica. Avances y desafíos en la formación del Mercosur. Documentos e informes deinvestigación. Faculdad Latino Americana de Ciencias Sociales, 130, Buenos Aires, 1992.14 O marco formal desta nova proposta instala-se com a Ata de Buenos Aires assinada em julho de 1990entre Argentina e Brasil, e mais tarde se atualiza com o Tratado de Assunção e a incorporação doUruguai e do Paraguai ao processo. Para estes dois países o Tratado estende o prazo do programa deliberalização até 31 de dezembro de 1995.ARAÚJO JR. José Tavares de. A Ata de Buenos Aires e as perspectivas de integrarão do Cone Sul.Texto para discussão interna, 33, Rio de Janeiro: Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior,set. 1990.

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automática, a partir de 20% de redução tarifária anual, junto a uma eliminação debarreiras não-tarifárias, que significa uma liberalização comercial de caráter universal(todos os produtos são submetidos automaticamente à redução tarifária), regidapor prazos de cumprimento estrito. Define-se assim uma mudança radical nascondições de concorrência já que se suprime a possibilidade de uma adaptaçãogradual de cada item ou matéria negociada a suas particularidades.

Esta decisão de acelerar o processo de formação de um mercado comumcom o estabelecimento de calendários extremamente apertados é também uma formade desconhecer as assimetrias entre os países envolvidos e, em conseqüência, dasrelações econômicas preexistentes. Dificilmente podem-se atender a essasdificuldades em um ritmo tão peremptório. A propósito, é bom lembrar que naEuropa, sem crise de inflação e dívida externa, esse processo levou mais de quatrodécadas.

No entender de Araújo (1990), “a decisão de encurtar os prazos doprograma foi uma temeridade, posto que nenhum dos dois governos está preparadopara enfrentar, nos próximos dois ou três anos, as dificuldades inerentes aocomplicado exercício de harmonizar políticas. Essa atitude representa um esforçoinútil de criar fatos novos com o objetivo de manter a credibilidade do programa, eé idêntica a inúmeras outras que, no passado, ajudaram a desgastar a idéia deintegração latino-americana, há décadas submetida a retóricas governamentaisinconseqüentes” (p. 10). Em outro de seus trabalhos acrescenta que “a fim de evitarque o Mercosul se torne mais um exemplo da longa lista de fracassos latino-americanos, seria conveniente, enquanto há tempo, reduzir transitoriamente seuescopo para um Tratado de Livre Comércio, e estabelecer prazos mais sensatospara a formação do mercado comum”15.

Um dilema ainda não resolvido

Um processo de integração econômica entre vários países responde, semdúvida, a uma decisão de tipo político que imprime determinado conteúdo ao projeto.Este último depende principalmente dos processos políticos internos de cada país,

15 ARAÚJO JR, José Tavares de. A Ata de Buenos Aires e as perspectivas de integração do Cone Sul.Texto para discussão interna, 33. Rio de Janeiro: Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior,set. 1990. p. 18.

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da condução de seus governos e da participação dos diferentes segmentos dasociedade civil. Daí que vários autores falam dos possíveis cenários ou opções queo processo de integração pode enfrentar.

Ao respeito, Halperín (1991) aponta duas opções para os governos doCone Sul: uma negociação de abertura maciça para o aproveitamento planificadodos mercados; ou uma abertura irrestrita com condições impostas pelas “forças domercado”.

A primeira opção exige uma regulação estatal mediante unificação eharmonização das políticas econômicas, incluindo previsões para os diferentes setorese ramos de produção e uma política externa comum. Pode- se assimilar este caminhoao cenário “industrialista” definido por Chudnosky e Porta16 os quais supõem umaliberalização comercial dentro de um projeto global de reestruturação industrial.Para isso, precisa-se de políticas industriais e tecnológicas ativas em cada país, eum esforço deliberado de harmonização das políticas econômicas além do planocambial.

A segunda opção, ao contrário, implica uma elevada desregulação dasatividades econômicas. Seria suficiente, neste caso, compatibilizar os regimes depromoção setorial e fixar algum mecanismo de paridade ou equivalência cambial decaráter permanente. Esta concepção assemelha-se à “comercialista” que apontamChudnosky e Porta, na qual a coordenação das políticas econômicas centra-sebasicamente no tipo de câmbio. A partir daí a reestruturação passa a ser orientadaestritamente pelos mecanismos do mercado.

A diferença no grau de intervenção estatal que subjaz a cada uma das opçõesimplica, também, resultados diferenciados. Uma implementação de políticas industriaise tecnológicas ativas, associada a uma liberalização comercial progressiva, permitiriaorientar o processo de industrialização em face de um aumento de sua competitividadea partir de economia de escala e especialização. Ao contrário, uma abertura rápidae uma desregulação da economia podem conduzir a uma reconversão com um altocusto social e a um aprofundamento do esquema de especialização intersetorial.

16 CHUDNOVSK, Daniel y PORTA, Fernando. La trayectoria del proceso de integración argentino-brasileño. Tendencias e incertidumbres. Documento de Trabajo, Uruguay: Centro de Estudios eInvestigación de Posgrado (CEIPOS). Universidad de la República, 1990.

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Neste sentido, deseja-se destacar que a possibilidade de atingir níveiscrescentes de competitividade não depende exclusivamente dos esforços individuaisdos agentes econômicos. Cada vez mais na experiência internacional torna-se centrala idéia de “competitividade sistêmica” como base sólida para o desenvolvimentoeconômico. Segundo Kosakoff, esta noção “substitui e, por sua vez, se superpõeaos esforços individuais, que, embora sejam condição necessária para atingir esseobjetivo, devem estar acompanhados, necessariamente, por inumeráveis aspectosque conformam o entorno das firmas (desde a infra-estrutura física, o aparatocientífico-tecnológico, a rede de provedores e subcontratistas, o sistema dedistribuição e comercialização até os valores culturais, as instituições, o marco jurídicoetc.)”17.

Sem dúvida, as condições que conformam tal entorno dependem em grandemedida da presença ativa do Estado, o único que pode facilitar a participação detodos os agentes econômicos no processo, fundamentalmente das pequenas e médiasempresas.

Conforme observado, pode-se concluir que o enfoque do avanço gradualpor setores, que predominou no primeiro momento do processo de integração entreArgentina e Brasil, corresponderia basicamente à via de tipo “industrialista”. Pelocontrário, a inflexão produzida a partir de 1990 mostra que o novo esquema pareceestar mais próximo da opção “comercialista”, na qual o Estado aparece subordinadoà lógica do mercado.

A partir desse suposto, pode-se inferir que em um cenário “comercialista”predominam as velhas tendências, isto é, um esquema de intercâmbio no qual só sebeneficiam os setores mais concentrados, os que já detêm um importante grau decontrole da economia.

[ARROYO, Monica. Mercosul: Novas territorialidades ou ampliação de velhastendências. In: SCARLATO, Francisco Capuano e outros (org.). Globalização eespaço latino-americano. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 122-130.]

17 KOSACOFF, Bernardo. Industrialización, competitividad e inserción externa. Documento de trabajo.In: SEMINÁRIO LAS VENTAJAS COMPETITIVAS DE LA NACIÓN, Buenos Aires: Presidenciade la Nación, setembro, 1991.

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4. As Perspectivas de Integração da Bacia Amazônica

A Amazônia Internacional, constituída em sua maior parte por terras baixasflorestadas equatoriais drenadas pelo sistema fluvial comandado pelo Rio Amazonas,ocupa cerca de 35% da superfície da América do Sul, estendendo-se pelos territóriosdo Brasil (cerca de 69% da área total), da Bolívia, do Peru, do Equador, da Venezuelae das Guianas. Trata-se, provavelmente, da maior “fronteira de recursos” do planeta,devido ao seu imenso potencial energético e mineral e à sua incalculável riquezabiológica. Além disso, é uma área tornada estratégica pela sua importância crescentena rota de produção e distribuição mundial de narcóticos.

Submetida a diferentes soberanias, a Amazônia Internacional vem sendoobjeto de diferentes estratégias nacionais de desenvolvimento e integração, emespecial a partir da década de 1960. No caso brasileiro, por exemplo, essasestratégias envolveram a criação de órgãos de planejamento, tais como aSuperintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), criada em 1966 paracoordenar e supervisionar programas e planos destinados a dinamizar a economiada região e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), nascida noano seguinte com o objetivo de estimular o processo de industrialização da cidadede Manaus. Envolveram também a construção de grandes eixos viários de integração,tais como as rodovias Belém-Brasília, a Cuiabá-Porto Velho, a Cuiabá-Santarém ea Transamazônica. A abertura de uma rota viária amazônica para o Pacífico atravésda complementação da BR-364, de forma a ligar Rio Branco (no Acre) até Pucallpa(Peru), é um projeto tão antigo quanto polêmico, que não chegou a se concretizar.

Mais recentemente, as estratégias nacionais parecem apontar no sentido degarantir o controle sobre as permeáveis fronteiras da região. O Projeto Calha Norte,por exemplo, criado em 1985, prevê a instalação de uma rede integrada de basesmilitares do Exército e da Marinha acompanhando as fronteiras setentrionais doBrasil com a Colômbia, a Venezuela, a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa. Jáo Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), concebido no início da década de1990, consiste em uma rede integrada de telecomunicações baseadas nosensoriamento remoto, que processará imagens obtidas por satélites, por sensoresinstalados em aviões e por radares fixos. Através dele, o governo pretende controlaro tráfego aéreo e as atividades ilegais – tais como contrabando de minérios enarcotráfico – na região.

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Ao mesmo tempo, a Amazônia brasileira é alvo de uma imensa pressãoecológica internacional devido ao valor de seu patrimônio genético. A aprovaçãode um projeto de macrozoneamento econômico e ecológico para a Amazônia Legal,ocorrida no início da década de 1990, é em parte resultado dessa pressão.

Entretanto, ao lado das estratégias nacionais, emergem esforços no sentidode viabilizar o estabelecimento de políticas de desenvolvimento e de sustentabilidadeambiental para o conjunto da Amazônia Internacional. Entre esses esforços, destaca-se o Tratado de Cooperação Amazônico (TCA), assinado por todos os países daregião em 1978. A substância e a viabilidade de um pacto Pan-Amazônico sãodiscutidos pela geógrafa Berta Becker, no texto complementar que encerra essaUnidade.

Texto Complementar

No fragmento de texto abaixo, a geógrafa Berta Becker problematiza aorganização territorial da Amazônia, apresenta as problemáticas comuns àslocalidades fronteiriças e analisa as perspectivas de cooperação entre os países daregião.

Texto 1- Em Busca de um Projeto Pan-Amazônico

O equacionamento da problemática amazônica nacional requer igualmente acompreensão e a compatibilização de interesses atuantes no conjunto dos paísesamazônicos. A formação de um pacto amazônico seria vantajosa econômica epoliticamente, mormente quando a nova ordem mundial se reorganiza em grandesmercados supranacionais. Em face da crise das economias e dos Estados nacionais, acooperação entre países com herança histórica e condições naturais similares econtigüidade física significa, por um lado, minimizar investimentos para odesenvolvimento regional e para assegurar as fronteiras, e, por outro, criar importanteinstrumento de barganha para negociar com os credores, enfrentar as pressõesinternacionais e definir a forma de inserção dos países sul-americanos na ordem mundial.

A maior dificuldade para soldar um pacto supranacional reside na ausênciade projetos nacionais para a Amazônia capazes de compatibilizar os projetosinternacional e regional. E a integração continental pode se constituir como projetonacional para os países amazônicos.

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Há, sem dúvida, problemas comuns a esses países e que exigem tratamentoconjunto. Mas há também problemáticas específicas e conflitos a neutralizar: comoabrir a economia e, simultaneamente, manter os privilégios regionais consolidados?Como participar de um pacto supranacional sem a consolidação plena da nação,essencial para a formulação do projeto nacional democrático?

Uma estratégia para a Amazônia sul-americana há que considerarproblemáticas comuns e diversas desses países e as possibilidades que oferecem àcooperação.

Elementos comuns e diferenciados na problemática amazônica continental

Todos os países amazônicos convergem para uma problemática básica: avirtualidade e a vulnerabilidade históricas da Amazônia sul-americana. Seu valoreconômico e estratégico é patente na tese de sua internacionalização, que surgeciclicamente com diferentes projetos, mas condições históricas e naturais garantirama sua permanência como patrimônio das sociedades sul-americanas. Por esse valoreconômico e estratégico tornou-se central sob a óptica mundial e nacional, mas égeograficamente periférica do ponto de vista nacional.

À semelhança do Brasil, só recentemente se desencadeou a rápida ocupaçãodas amazônias sul-americanas. Entre 1930 e 1960, a industrialização por substituiçãodas importações e o forte crescimento demográfico valorizaram as amazônias comofronteiras agrícolas nacionais e os Estados cooptaram o movimento relativamenteespontâneo da população em nome da unidade nacional. Datam da década de1940 as primeiras práticas estatais para a ocupação das respectivas amazônias,bem como para a cooperação fronteiriça, que permaneceram, contudo, muito aquémdo discurso. Dentre essas práticas destaca-se o Estatuto Fronteiriço de 1942,estabelecido entre Venezuela e Colômbia (intensificado com os estudos elaboradospela Missão do BID em 1964).

A partir da década de 1960, e principalmente de 1970, as amazônias passama se valorizar como fronteira de recursos mundial e nacional e fronteira geopolíticanacional. Empresas estrangeiras mineradoras e governos autoritários, que passam adirigir a ocupação segundo a filosofia do desenvolvimento e segurança, estimulam amigração, os conflitos e o tráfico fronteiriço, intensificando-se as práticas bilaterais.Alguns elementos comuns dessa problemática e das políticas podem ser identificados:

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1. Uma lógica comum acompanhada de estratégias semelhantes notocante ao chamado processo de desenvolvimento regional. Essa lógica comumencontra sua raiz mais profunda na visão latino-americana que aliadesenvolvimento à segurança nacional – isto é, na geopolítica de caráter militar.Em todos os discursos oficiais, a Amazônia foi vista como “espaço vazio”,território a ser conquistado. E os programas para seu desenvolvimento, tantonacionais como de cooperação intergovernamental, patrocinados diretamentepelos Estados, se legitimaram através de ações que privilegiaram o capitalexterno à região com apoio militar.

2. Práticas governamentais inadequadas, que se resumem a projetos decolonização e redes viárias precárias, instaladas com desconhecimento das condiçõeslocais, e que têm como efeito perverso provocar conflitos ambientais, de terra esociais. Os projetos foram parte de uma estratégia para desviar o fluxo demográficodas áreas densamente povoadas para as respectivas amazônias; no entanto, o afluxomigratório foi muito superior ao esperado e não consegue ser absorvido pelosescassos e precários projetos estabelecidos, criando tensões com as populaçõesindígenas e escapando ao controle governamental.

3. O fortalecimento das elites regionais.

4. Um problema de soberania decorrente de conflitos externos e internos,inerente ao modelo de ocupação adotado e que acentua a sua posição dicotômicacentral/periférica. No plano interno, a soberania é contestada pela ocupaçãoconflitiva e descontrolada numa área de difícil acesso. No plano externo, é contestadanão tanto pela imbricação crescente de empresas e organismos internacionais noprocesso de ocupação – fenômeno hoje de âmbito universal – nem apenas pelapressão ecológica e financeira internacional, mas também pelo narcotráfico. Omercado norte-americano de drogas consome por ano cerca de 150 bilhões dedólares (mais que a dívida externa brasileira), e tal poder de compra vem arrastandotodos os países amazônicos para a economia de um produto cujo preço rivalizacom o do ouro.

Se tal comunalidade aponta para a necessidade e a possibilidade decooperação, problemáticas específicas tornam essa cooperação difícil. Os paísesda Amazônia sul-americana são bem mais heterogêneos do que aparentam, devido,pelo menos, aos seguintes fatores:

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1. O nível de desenvolvimento econômico e social, referente ao dinamismoe à diversificação das economias nacionais, à distribuição da renda e à pobreza.Neste contexto, cumpre assinalar a dificuldade vinculada ao desnível entre o Brasile os demais países em termos de maior dinamismo econômico e extensão territorial,que é concebido como ameaçador pelos demais países. Essa concepção foijustificada com a política externa agressiva do regime militar brasileiro entre 1964 e1974.

2. O nível cultural e organizacional das populações indígenas, que é variado,mas superior ao brasileiro.

3. A diversidade de condições geológicas, de revestimento florestal e deextensão das diversas amazônias, extensão que repercute no seu maior ou menordistanciamento em relação aos centros vitais dos respectivos países.

4. O grau de ingovernabilidade, decorrente da ineficácia da açãogovernamental, da magnitude dos conflitos e do megapoder dos traficantes de drogas,que, em alguns países, constituem um Estado paralelo.

Tais diferenças parecem explicar a prática de acordos bilaterais, adotada nacooperação entre países. Indicam também que, na perspectiva de uma estratégiacomum, é útil identificar os espaços onde se devem concentrar esforços decooperação.

Possibilidades de cooperação no contexto local: a questão fronteiriça

Nas fronteiras políticas dos países amazônicos se materializa parcelaimportante da teia de relações que se pretende cada vez mais densa na região. Apartir da década de 1970, as fronteiras vêm experimentando um processo devivificação desordenada, como decorrência da ação governamental perversa, desua crise e de movimentos espontâneos. Aí se torna mais transparente o papel dasatividades ilegais, sobretudo ouro e droga, como novos fatores da organizaçãoterritorial na Amazônia. Movimentos migratórios tendem a se aproximar e mesmoultrapassar os limites políticos de cada país, fluindo para um ou outro segundo asoportunidades econômicas que apresentem. Em outras palavras, nas fronteiraspolíticas, vários processos conflitivos se superpõem: a ingerência externa e asoberania nacional; a marginalidade e a vida econômica e política oficial; a ocupação

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desordenada e a emergência de economias transfronteiriças, fruto do desnívelsocioeconômico entre países vizinhos e do ritmo de sua recuperação.

Algumas dessas situações podem ser exemplificadas em localidadesfronteiriças, constituindo embriões de novas territorialidades (...).

Fluxo de mão-de-obra brasileira para a Guiana Francesa

É o que ocorre entre Oiapoque (AP) e Saint Georges. A Guiana Francesa étida como terra prometida para muitos brasileiros que lá vivem, a maioria naclandestinidade, devido a um imenso desnível entre as duas cidades em termos dehabitação, infra-estrutura e serviço médico e oferta de trabalho, que tende a crescerdevido aos investimentos franceses em infra-estrutura e hidreletricidade.

Comércio legal e ilegal em torno de Boa Vista (RR)

Três situações se identificam:

a) Bonfim (RR)/Lethem (Guiana). O movimento nessa fronteira secaracteriza como uma trilha de comerciantes, principalmente guianeses, quecompram mercadorias em Boa Vista e revendem em Lethem, mais bem aparelhadado que Bonfim.

b) BV-8 (RR)/Santa Elena do Uiaren (Venezuela). A localidade de BV-8, marco fronteiriço, é hoje a pequena Vila Pacaraima, que contrasta fortementecom a mais bem desenvolvida cidade venezuelana de Santa Elena (ligada porasfalto até Caracas). A maior parte dos brasileiros da região vive do ladovenezuelano, revendendo dólares e combustível adquiridos na Venezuela, emBoa Vista.

c) Rio Catrimani – divisa entre Roraima (Brasil) e Estado Bolívar (Venezuela).O movimento aqui é oposto. Essa área Yanomami é a porta de entrada clandestinados garimpeiros brasileiros em território venezuelano, e os garimpeiros exercempoder na região, uns organizados em tomo da União dos Sindicatos e Associaçõesde Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal). Embora pouco permaneça no Brasil,ou permaneça de forma ilegal, o ouro responde em grande parte pelo crescimentode Boa Vista.

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Narcotráfico na fronteira ocidental

a) Tabatinga (AM)/Letícia (Colômbia). Esse ponto de fronteira se tornou apreocupação mais urgente do comando militar da Amazônia devido à guerra donarcotráfico na Colômbia e a conseqüente fuga de colombianos e de peruanos paraTabatinga e Vila Bittencourt, que carecem de infra-estrutura e vivem em função deLetícia, muito maior e mais desenvolvida. A repressão ao tráfico, principalmente noBrasil, gerou ainda uma queda substancial no comércio local, agravada pelasrestrições que Peru e Colômbia fazem à entrada de produtos brasileiros.

b) Brasiléia-Guajará-Mirim-Costa Marques (RO)/Peru e Bolívia, tríade queconstitui a grande porta de entrada do narcotráfico no Brasil, redistribuindo o produtopara o exterior através das rotas norte, via Manaus, e sudeste, via São Paulo e Riode Janeiro, passando por vários núcleos intermediários.

c) Palmarito (MT)/Bolívia, pequena vila próxima a Cáceres, que participada rota sudeste, onde os traficantes operam livremente, sendo muito mais bemequipados em termos de veículos motorizados e armas do que o exército.

Extravasamento da exploração da borracha brasileira

É o que caracteriza a área de Plácido de Castro (AC) Vila Montevideo(Bolívia). A situação neste caso é oposta. O lado brasileiro apresenta condições devida bem superiores em relação ao lado boliviano, mas o grande problema da áreaé o fluxo de seringueiros brasileiros para as matas bolivianas, onde vivem isoladosnum regime semi-escravagista nas colônias bolivianas ou em seringais de própriosbrasileiros.

Tal permeabilidade das fronteiras amazônicas, que no Brasil se estendempor 11 mil quilômetros, aponta para a necessidade não só de vigilância das atividadesilegais e de suporte ao povoamento, como também para uma nova política dedesenvolvimento integrado que reconheça as economias transfronteiriças.

Fronteiras não devem ser confundidas com limites, que são as linhas divisóriasentre soberanias. Fronteiras são áreas, faixas, com uma realidade socioeconômicae psicológica diferente da do restante de cada território nacional, que lhes imprimeuma identidade própria, comum aos dois lados da linha divisória.

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Em termos de estratégia para a região, cumpre reconhecer uma duplarealidade amazônica que tem sido negligenciada: a) a Amazônia é uma selvaurbanizada1, na medida em que a maior parte da população e suas atividades regionaisse concentram nos núcleos urbanos, que são o lugar dos problemas, mas também olugar da sua solução; b) as novas territorialidades fronteiriças, centradas em núcleosurbanos, configuram-se como os espaços privilegiados para uma ação conjunta.Para tanto, é necessário ultrapassar as experiências e iniciativas internas de cadagoverno, que não contemplam o outro lado da fronteira nem a dinâmica fronteiriça,fortalecendo a nova tendência, a chamada “fronteira institucional de integração”,onde os limites jurisdicionais dos Estados se interpenetram através de pólos dedesenvolvimento fronteiriço2.

Os Planos de Desenvolvimento Integrado de Comunidades Vizinhas naFronteira, praticados assistematicamente pela Colômbia, Peru e Equador, foraminiciados pelo Brasil em 1987 com a Colômbia, através do Plano-Modelo deDesenvolvimento Integrado de Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga-Apaporis(PAT), envolvendo a fronteira Tabatinga-Letícia, ao sul, e Vila Bittencourt-LaPedrea, ao norte. A partir dessa iniciativa, criou-se o Grupo Técnico Interministerialde Alto Nível para, sob a responsabilidade do Ministério do Interior, coordenartecnicamente a execução dos planos-modelo a serem constituídos justamente nasáreas de economia transfronteiriça assinadas (decreto publicado no D.O. de 14de dezembro de 1987).

O reconhecimento e a admissão pelas políticas nacionais desse espaçocomum não é uma tarefa fácil. Requer mudança de doutrina geopolítica queprivilegie não apenas o fortalecimento dos centros de poder dominantes do país,através de grandes projetos, mas também o desenvolvimento da própria fronteira,entendida não mais como linha divisória, mas como área composta por subáreasde cada país, através de programas mútuos de cunho social e de escala limitada,localizados em pontos nodais. Caso contrário, corre-se o risco de que osprogramas sejam meras tentativas frustradas de afirmação numa conjuntura decrise das economias e dos Estados nacionais.

1 Cf. BECKER, Bertha K. – Desfazendo mitos: Amazônia uma selva urbanizada. Projeto Pró-Amazônia,Unesco, 1992. (Mimeogr.).2 Cf. COELHO, P.P. A cooperação fronteiriça na Amazônia. Planos-modelos de desenvolvimentointegrado de comunidades vizinhas na fronteira: uma proposta. Brasília: Ministério das RelaçõesExteriores, 1990. (Mimeogr.).

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Em que pesem as críticas à estrutura institucional do TCA, ele constitui ummarco genérico de princípios norteadores da cooperação. Justamente porque seuarcabouço jurídico-institucional flexível permite construções dinâmicas e inovadorasque podem ser nesse momento ativadas.

[BECKER, Berta K. Significado geopolítico da Amazônia: elementos para umaestratégia. In: PAVAN, Crodowaldo (coord.). Uma estratégia latino- americanapara a Amazônia. São Paulo: Memorial/Editora Unesp, 1996, p. 195-201.]

5. Exemplos de Questões

Concurso de 1997

√ “A circulação financeira é marcada por acentuada extraterritorialidade. Talcondição propicia que, atualmente, uma mercadoria circule pelo mundo sem sairdo lugar. Comente essa afirmação.”

Concurso de 1998

√ “Analise os mecanismos dos processos de circulação que explicam por quea crise na economia dos chamados ‘Tigres Asiáticos’ tem repercussõesinternacionais, apontando seus possíveis desdobramentos na economiabrasileira.”

Concurso de 1999

√ “Existem duas propostas de traçado potencial para o eixo básico queestruturará o sistema de transportes do Mercosul, ligando São Paulo a BuenosAires. Identifique as duas possibilidades e discorra sobre os previsíveis efeitosde cada alternativa na organização do espaço meridional-oriental sul-americano.”

√ “A questão do desemprego aparece, na atualidade, como um problemainternacional. Comente as causas estruturais de tal situação e compare suamanifestação nas três maiores economias do mundo na última década.”

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√ “A articulação da malha viária brasileira com algum ponto no oceano Pacífico éum projeto antigo que ainda não se pode concretizar. Comente os argumentosfavoráveis a esse projeto, apontando os interesses subjacentes a cadaargumentação.”

6. Bibliografia

Bibliografia Básica

BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização. São Paulo: Hucitec, 1996.SANTOS, Milton et alli. Fim de século e Globalização. São Paulo: Hucitec/

ANPUR, 1994.SCARLATO, Francisco C. et alli. Globalização e Espaço Latino-Americano.

São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1994.SOUZA, Maria Adélia A. et alli. Território: Globalização e Fragmentação.

São Paulo: Hucitec/ANPUR,1995.

Bibliografia Complementar

FLORÊNCIO, Sérgio Abreu e Lima e ARAÚJO, Emesto Henrique Fraga. Mercosulhoje. São Paulo: Alfa Omega, 1996.

PAVAN, Crodowaldo (coord.). Uma estratégia latino-americana para aAmazônia. São Paulo: Memorial/Editora Unesp, 1996, p. 195-201.

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UNIDADE IV

A QUESTÃO AMBIENTALNO BRASIL E OS DESAFIOS

DO DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL

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A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL E OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

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IV. A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL E OS DESAFIOS DODESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Nas últimas décadas, o debate ambiental tornou-se tema político prioritário,envolvendo tanto os Estados quanto parcelas expressivas da sociedade, no mundointeiro. Ainda que coexistam as mais diferentes opiniões sobre as causas e os modosde enfrentamento do problema, já é corrente a noção de que o uso intensivo epredatório dos recursos naturais pode trazer conseqüências dramáticas para aqualidade de vida das populações, tanto no presente quanto no futuro.

Os textos desta Unidade discutem alguns dos conceitos norteadores do debateambiental, com destaque para a idéia de desenvolvimento sustentável. Para situara problemática ambiental no Brasil, traçamos um síntese do quadro físico do país edas principais causas de degradação de seus grandes domínios paisagísticos.

Nas cidades, os problemas ambientais freqüentemente se transformam emquestões de saúde pública. Além da poluição atmosférica, questões ligadas aosaneamento básico e à destinação do lixo interferem no cotidiano de um númerocrescente de brasileiros. A relação entre qualidade de vida e ambiente urbano étematizada nos textos que finalizam a Unidade.

1. A Consciência Ambiental e o Planejamento de UsosSustentáveis do Solo

O conceito de desenvolvimento econômico da civilização industrial valorizouacima de tudo a multiplicação quantitativa da produção e do consumo. Naseconomias capitalistas, o progresso foi identificado com o lucro empresarial. Naseconomias estatizadas, ele era sinônimo de rápida industrialização, com ênfase nossetores de base. O lucro capitalista e o produtivismo socialista excluíram o meioambiente das preocupações econômicas e políticas.

Pelo menos em parte, a crescente preocupação com o meio ambiente éuma manifestação da crise da idéia de progresso que fundou a civilização industrial.A pressão sobre os ecos sistemas frágeis do planeta assim como o grau e a

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irreversibilidade das alterações antrópicas no ambiente global ganharam um estatutoinédito nas últimas décadas e freqüentam um número cada vez maior de fórunsinternacionais de discussão. O avanço dos desertos, o desmatamento e o conseqüenteempobrecimento do patrimônio genético do planeta, assim como os resultados daemissão dos gases de estufa na atmosfera, figuram entre os principais temas dedebate.

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizadaem Estocolmo (Suécia) em 1972, a crise ambiental do planeta foi associada,fundamentalmente, à explosão demográfica dos países pobres. Nela, prevaleceua idéia de que o planeta é um sistema finito de recursos, submetido às pressõesdo crescimento exponencial da população e da produção econômica. As suasconclusões apontavam o horizonte do colapso do sistema, caso não se tomassemseveras medidas restritivas ao crescimento demográfico e da produção nos paísespobres.

Entretanto, grande parte da crise ambiental contemporânea é resultante depadrões de produção e consumo adotados por parcela relativamente pequena dapopulação mundial. A ONU estima que 90% do consumo individual do mundo sejarealizado por apenas 20% da população do planeta. O caso do consumo energéticoé particularmente ilustrativo a esse respeito.

A Revolução Industrial, que inaugurou a era dos grandes impactos ambientais,foi, em muitos sentidos, uma revolução energética. Nas sociedades urbano-industriaisque então despontavam, a habilidade manual e a força muscular foramprogressivamente substituídas pelos processos mecânicos. O ferro das máquinas eferrovias era obtido nos altos-fornos da siderurgia, que consumiam grandesquantidades de carvão. O vapor obtido pela queima do carvão movia navios,ferrovias e indústrias.

Em meados do século XIX, a invenção do dínamo e a do alternador abriramo caminho para a produção de eletricidade. A primeira usina de eletricidade domundo surgiu em Londres, em 1881, e a segunda em Nova Iorque, no mesmo ano.Ambas forneciam energia para a iluminação. Mais tarde, a eletricidade iria operarprofundas transformações nos processos produtivos, com a introdução dos motoreselétricos, e na vida cotidiana das sociedades industrializadas, na qual foramincorporados dezenas de eletrodomésticos.

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A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL E OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

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A difusão dos motores a combustão interna explica a importância crescentedo petróleo na estrutura energética dos países industrializados. Além de servir decombustível para automóveis, aviões e tratores, ele também é utilizado como fontede energia nas usinas termelétricas e, ainda, é matéria-prima para muitas indústriasquímicas. Desde a década de 1970, registra-se também um aumento significativona produção e consumo de energia nuclear nos países desenvolvidos.

Nas sociedades pré-industriais, entretanto, os níveis de consumo energéticopouco se alteraram nos últimos séculos, e as fontes energéticas tradicionais, comdestaque para a lenha, ainda são predominantes. Estima-se que o consumo de energiacomercial per capita no mundo seja de aproximadamente 1,7 tonelada equivalentede petróleo (TEP) por ano, mas esse número significa muito pouco: um norte-americanoconsome anualmente, em média, 8 TEPs, contra apenas 0,197 consumi das porhabitante em Banglagesh e 0,268 no Haiti. Apenas quatro países -Estados Unidos,Rússia, Japão e Alemanha -são responsáveis por aproximadamente 40% do consumoenergético mundial, apesar de abrigarem pouco mais de 10% da população do planeta.

Esse contraste, além de revelar o verdadeiro fosso que separa os padrõesde consumo vigentes entre os países do mundo, está no centro das discussõesacerca dos problemas ambientais do planeta.

Atualmente, os recursos energéticos mais utilizados no mundo são o carvão,o petróleo e o gás natural, a água e os minerais radioativos: juntos, eles correspondema perto de 90% da oferta mundial de energia. A utilização de qualquer um delesacarreta impactos ambientais. As fontes de energias limpas e renováveis, tais comoa energia solar, a eólica e a geotérmica, ainda constituem parcelas desprezíveis nobalanço energético mundial, em que pese os grandes investimentos em pesquisarealizados para torná-las mais eficientes e menos caras.

De acordo com as recomendações da Conferência de Estocolmo, enfrentara crise ambiental implica diminuir a utilização dos principais recursos energéticos,ou, pelo menos, mantê-la em níveis próximos aos atuais. Entretanto, os níveis atuaisexcluem grande parte da humanidade do consumo de bens e serviços consideradosessenciais, que precisam de energia para serem produzidos e distribuídos.

O conceito de desenvolvimento sustentável, amplamente divulgado pelodocumento “Nosso Futuro Comum”, produzido pela Comissão Mundial de Meio

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Ambiente e Desenvolvimento, se contrapõe em muitos sentidos às concepçõespredominantes na reunião de Estocolmo. Essa comissão, presidida pela líder dopartido trabalhista norueguês Gro Harlem Brundtland, foi criada pela ONU em1983 com a missão de elaborar um ,amplo diagnóstico acerca da problemáticaambiental em âmbito planetário e de propor estratégicas de desenvolvimentoecologicamente sustentáveis.

Publicado em 1987, o Relatório Brundtland (como ficaria conhecido)aborda de maneira integrada as questões ambientais, demográficas e sociais. Deacordo com ele, o uso intensivo de recursos naturais e a manutenção de padrões deconsumo acima das possibilidades ecológicas em certas regiões do planeta, assimcomo a disseminação da pobreza em outras, são fatores de risco para o ambienteglobal, e precisam ser combatidos em nome de um futuro mais justo e ambientalmentemais saudável. Nessa perspectiva, o desenvolvimento sustentável só existe quandose cumprem os requisitos ambientais para a continuidade histórica dos padrões deprodução e consumo desejados, e quando estes são passíveis de se estender aoconjunto da humanidade. Portanto, o relatório preconiza a adoção de agendasambientais que, ao mesmo tempo, possam elevar os padrões de vida dos paísespobres e garantir as condições ambientais futuras do planeta:

O desenvolvimento sustentável é aquele que atende àsnecessidades do presente sem comprometer a possibilidade de asgerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contémdois conceitos-chave:

– o conceito de “necessidades”, sobretudo as necessidadesessenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máximaprioridade;

– a noção das limitações que o estágio da tecnologia e daorganização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atenderàs necessidades presentes e futuras (...).

Satisfazer as necessidades e as aspirações humanas é o principalobjetivo do desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, asnecessidades básicas de grande número de pessoas – alimento, roupas,habitação, emprego – não estão sendo atendidas. Além dessas

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necessidades básicas, as pessoas também aspiram legitimamente a umamelhor qualidade de vida. Num mundo onde a pobreza e a injustiçasão endêmicas, sempre poderão ocorrer crises ecológicas e de outrostipos. Para que haja um desenvolvimento sustentável é preciso quetodos tenham atendidas as suas necessidades básicas e lhes sejamproporcionadas oportunidades de concretizar suas aspirações e umavida melhor.

Padrões de vida que estejam além do mínimo básico só sãosustentáveis se os padrões gerais de consumo tiverem por objetivoalcançar o desenvolvimento sustentável a longo prazo. Mesmo assim,muitos de nós vivemos acima dos meios ecológicos do mundo, comodemonstra, por exemplo, o uso da energia. As necessidades sãodeterminadas social e culturalmente, e o desenvolvimento sustentávelrequer a promoção de valores que mantenham os padrões de consumodentro do limite das possibilidades ecológicas a que todos podem, deum modo razoável, aspirar.

As satisfações das necessidades essenciais depende em parte deque se consiga o crescimento potencial pleno, e o desenvolvimentosustentável exige claramente que haja crescimento econômico emregiões onde tais necessidades não estão sendo atendidas. Onde já sãoatendidas, ele é compatível com o crescimento econômico, desde queesse crescimento reflita os princípios amplos da sustentabilidade e danão-exploração dos outros. Mas o simples crescimento não basta. Umagrande atividade produtiva pode coexistir com a pobreza disseminada,e isto constitui um risco para o meio ambiente. Por isso odesenvolvimento sustentável exige que as sociedades atendam àsnecessidades humanas, tanto aumentando o potencial de produçãoquanto assegurando a todos as mesmas oportunidades (...).

Obviamente, o crescimento e o desenvolvimento econômicosproduzem mudanças no ecossistema físico. Nenhum ecossistema, sejaonde for; pode ficar intacto. Uma floresta pode ser desmatada em umaparte de uma bacia fluvial e ampliada em outro lugar – e isso pode nãoser mau, se a exploração tiver sido planejada e se se levarem em contaos níveis de erosão do solo, os regimes hídricos e as perdas genéticas.

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Em geral, não é preciso esgotar os recursos renováveis, como florestase peixes, desde que sejam usados dentro dos limites de regeneração ecrescimento natural. Mas a maioria dos recursos renováveis é parte deum ecossistema complexo e interligado, e, uma vez levados em contaos efeitos da exploração sobre todo o sistema, é preciso definir aprodutividade máxima sustentável.

No tocante a recursos não-renováveis, como minerais ecombustíveis fósseis, o uso reduz a quantidade de que disporão as futurasgerações. Isso não quer dizer que esses recursos não devam ser usados.Mas os níveis de uso devem levar em conta a disponibilidade do recurso,de tecnologias que minimizem seu esgotamento, e a probabilidade de seobterem substitutos para ele. Portanto a Terra não deve ser deterioradaalém de um limite razoável de recuperação. No caso dos minerais e doscombustíveis fósseis, é preciso dosar o índice de esgotamento e a ênfasena reciclagem e no uso econômico, para garantir que o recurso não seesgote antes de haver bons substitutos para ele. O desenvolvimentosustentável exige que o índice de destruição dos recursos não- renováveismantenha o máximo de opções futuras possíveis.

O desenvolvimento tende a simplificar os ecossistemas e a reduzira diversidade das espécies que neles vivem. E as espécies, uma vez extintas,não se renovam. A extinção de espécies vegetais e animais pode limitarmuito as opções das gerações futuras; por isso o desenvolvimentosustentável requer a conservação das espécies vegetais e animais.

Os chamados bens livres, como o ar e a água, são tambémrecursos. As matérias-primas e a energia usadas nos processos deprodução só em parte se convertem em produtos úteis. O resto setransforma em rejeitos. Para haver um desenvolvimento sustentável épreciso minimizar os impactos adversos sobre a qualidade do ar; daágua e de outros elementos naturais, a fim de manter a integridadeglobal do ecossistema.

Em essência, o desenvolvimento sustentável, é um processo detransformação no qual a exploração de recursos, a direção dosinvestimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a

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mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presentee futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas.[Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento. NossoFuturo Comum. Rio de Janeiro: FGV, 1991, p. 46-49.]

O conceito de desenvolvimento sustentável foi um dos fios condutores dosdebates da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e oDesenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, e é um dos pilares daAgenda 21, um vasto programa de ações de curto, médio e longo prazos aprovadopela Conferência no sentido de garantir a sustentabilidade ambiental dos novosinvestimentos produtivos e recuperar áreas já degradadas pelo uso predatório dosrecursos naturais.

Texto Complementar

No ensaio parcialmente reproduzido abaixo, o geógrafo francês Paul Clavalapresenta e problematiza o conceito de desenvolvimento sustentável, enfatizandosuas repercussões no contexto brasileiro.

Texto 1 - A Geopolítica do Desenvolvimento Sustentável

A geopolítica do desenvolvimento sustentável envolve ampla gama de tópicos,que no caso brasileiro são fascinantes e provocantes. Neste texto, discutem-sequestões referentes a alguns destes tópicos.

A experiência brasileira e o desenvolvimento sustentável

A experiência brasileira é particularmente interessante, já que mostroucomo a concepção de desenvolvimento sustentável foi forjada na Conferência doRio de Janeiro em 1992, e como foi interpretada no Brasil e nos demais países daAmérica Latina. A Conferência de Estocolmo, em 1972, havia privilegiado osaspectos biológicos e ecológicos; já no Rio de Janeiro, ainda que o interesse naecologia tenha sido grande, para os participantes sul-americanos foi igualmenteimportante a necessidade de pensar o desenvolvimento. Ao falar emdesenvolvimento sustentável, os participantes da América do Sul deram um pesoigual aos imperativos ecológicos (“sustentabilidade”) e aos econômicos e humanos(“desenvolvimento”).

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No Brasil, o desenvolvimento sustentável geralmente vem sendo abordadocom ênfase em pequenas comunidades. Uma geração atrás, tais grupos aindapossuíam todas as características das sociedades tradicionais. Com um melhorsistema de comunicações, porém, descobriram as possibilidades de uma vida melhor,e o desenvolvimento se tornou uma aspiração fundamental; tais comunidadespassaram a considerar-se com direito à educação, serviços de saúde etc. Amodernização da sociedade, numa era da comunicação de massa, é consideradauma necessidade e um direito, mesmo pelos mais baixos e remotos componentesda sociedade global. Até os grupos indígenas aspiram ao desenvolvimento. Apopulação local deseja ser reconhecida como agente responsável e dinâmico dasociedade global, sem mudar suas identidades.

Nesse contexto, o problema do desenvolvimento é ao mesmo temposociocultural e ecológico. É importante impedir que ambientes frágeis sejamexplorados brutalmente, como geralmente o fazem grandes empresas, e permitir àspequenas comunidades a elevação de seus padrões de vida sem romper o equilíbriolocal. Ressalta a diversidade dos grupos, associações e organizações governamentaise não-governamentais envolvidas no processo de desenvolvimento sustentávelbrasileiro.

O sistema de propriedade da terra no Brasil faz com que o desenvolvimentoseja visto como uma questão de acesso das pequenas comunidades à terra. Mesmose as condições econômicas que justificam essas atitudes pertencem ao passado, aterra aparece como uma variável estratégica. Atualmente esta é, simultaneamente,um elemento de status social, um bem de consumo e um fator de produção.Semelhante evolução certamente facilitará, numa perspectiva de longo prazo, ocumprimento dos objetivos conservacionistas encapsulados no desenvolvimentosustentável, mas, hoje em dia, explica a intensa luta pela terra na fronteira e aatmosfera ardente na qual ocorre o desenvolvimento.

A Amazônia é uma espécie de laboratório para as pessoas que desejamentender as possibilidades de desenvolvimento sustentável no futuro. A política deabertura da floresta tropical aplicada durante os anos 60 e 70 teve conseqüênciascatastróficas sob os aspectos social e ecológico. Já nos anos 90 verificou-se umarápida mudança de enfoque. A sociedade civil se organizou e a política de brutalexploração dos recursos naturais, dominante até quinze anos atrás, foi substituídapor ações que restringiram o desgaste do solo e favoreceram as pequenas

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comunidades de índios e seringueiros. Essa mudança foi possível, em parte graçasao conflito/cooperação de instituições internacionais, do Estado brasileiro e dasorganizações não-governamentais (ONGs). Uma nova logística do desenvolvimentoestá sendo experimentada. Seu propósito é respeitar a biodiversidade e aproveitaras novas tecnologias, sempre que estas permitam o acesso a padrões mais eficazespara o crescimento e o reforço das comunidades locais.

A nova política para a Amazônia conta com um instrumento privilegiado, adefinição de zonas de proteção. Os riscos inerentes ao desenvolvimento são avaliadospara cada área homogênea, permitindo a proteção das áreas mais frágeis em termosde desenvolvimento e/ou vida social. Alguns consideraram essa iniciativa muitopositiva. Outros permaneceram céticos a respeito, considerando que a eficiênciadas zonas de proteção será duvidosa caso seu papel continue sendo somenteindicativo.

A formulação geral do problema do desenvolvimento sustentável

A idéia do crescimento sustentável resultou do desenvolvimento de umanova consciência ecológica, expressa ao nível da política internacional, pela primeiravez, na Conferência de Estocolmo, em 1972. Esteve também ligada à compreensãodo fato de que os países do Sul desejavam desenvolver-se, mas não a qualquerpreço. Com o fim da Guerra Fria, as relações Norte-Sul ganharam mais importância,o que explica a realização da Conferência em 1992 no Rio de Janeiro.

O papel do Brasil no desenvolvimento da idéia do crescimento sustentávelfoi, conseqüentemente, da maior importância, sendo difícil entender o que os paísesdo Sul esperam do crescimento sustentável sem referência a este país.

O desenvolvimento sustentável recebeu o apoio da opinião pública no bojoda crise das filosofias da história ocidentais, e ao conseqüente declínio das instituiçõesprovedoras de serviços de bem-estar social ligadas a tais ideologias. Daí anecessidade de descobrir novos instrumentos capazes de promover essa nova formade crescimento.

A definição de Roberto Guimarães sobre desenvolvimento sustentável, nestelivro, é simples: o desenvolvimento é sustentável enquanto a produção não excedeas taxas normais de produção dos recursos renováveis e de substituição dos recursos

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não-renováveis. O problema da sustentabilidade é tão velho quanto a humanidade,mas tomou novas formas com o advento de tecnologias modernas, baseadas nouso generalizado de formas concentradas de energia. Essa característica gerou adiminuição dos custos de transporte e o aumento da urbanização. Como resultado,o problema do desenvolvimento sustentável deixou de ser somente um problemade oferta de recursos, estando cada vez mais “ligado à capacidade de reciclagemdos ambientes onde a população e as atividades se concentram. O problema dareciclagem, portanto, transformou-se na questão prioritária, nos níveis global elocal.

A solução do problema do desenvolvimento sustentável ficou mais difícildo que no passado por causa do aumento do consumo de energia, mas, paraalguns, também se tornou mais fácil graças às novas tecnologias de informação ecomunicação. Assim, é possível ante ver novas formas de retroalimentação,capazes de impulsionar processos auto-reguladores e de desenvolver sistemasde produção que usem menos matérias-primas e energia. As telecomunicaçõespermitem a difusão maior e mais rápida de informações a respeito das áreasproblemáticas, especialmente no Sul, favorecendo uma consciência mais clara dasustentabilidade.

[CLAVAL, Paul. A Geopolítica e o Desenvolvimento Sustentável. In: BECKER,Bertha K. e MIRANDA, Mariana. A geografia política do desenvolvimentosustentável. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997, p. 457-461.]

2. Os Ecossistemas Brasileiros e as Principais Causas de suaDegradação

Ecossistema é um termo originário da ecologia, que se refere à idéia de queos sistemas naturais são comandados por fluxos de matéria e energia, que atuamtanto entre o meio físico e os organismos vivos como no interior da comunidadebiótica. Os ecossistemas são sistemas abertos, pois estão conectados a ambientesde entrada -fonte de energia, materiais e organismos – e de saída – para onde fluemmateriais processados, e também organismos e energia. A abrangência de umecossistema é definida pelas necessidades do observador. Uma lagoa pode sertratada como ecossistema, assim como uma vasta floresta.

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No caso brasileiro, costuma-se denominar ecossistemas grandesdomínios paisagísticos, para a definição dos quais considera-se aspectos dorelevo e dos climas. As formações vegetais são o elemento-síntese dos domínios,pois alterações pequenas nos outros elementos provocam mudanças bruscasna cobertura vegetal.

O relevo brasileiro

O relevo brasileiro é resultado da ação da erosão e do intemperismo, quedesgasta e aplaina os escudos cristalinos, sobre uma base geológica muito antiga,e da lenta configuração das bacias sedimentares, através dos processos deacumulação. Isso explica a baixa altimetria que o caracteriza e o predomínio deum modelado de formas suaves e arredondadas. Os principais agentes damorfologia do relevo, também chamados de agentes do modelado, são os rios,as chuvas e as temperaturas.

No Brasil, a presença de uma rede hidrográfica muito rica, na qual predominao regime tropical (chuvas abundantes no verão), alia-se às temperaturas médiaselevadas características da maior parte do território na formação de três unidadesde relevo: os planaltos, as depressões e as planícies.

Os planaltos resultam da ação destrutiva dos agentes do modelado: sãoáreas onde o processo de erosão predomina sobre o processo de deposição desedimentos. Ao contrário do que sugere o nome, os planaltos apresentam superfíciesirregulares, formadas por serras, chapadas e morros. Por definição, os planaltossituam-se em cotas altimétricas superiores a 300 metros.

Os planaltos brasileiros situam-se tanto em áreas cristalinas do EscudoBrasileiro (por exemplo: os Planaltos e Serras do Atlântico Leste-Sudeste) ou doEscudo das Guianas (os Planaltos Residuais Norte-Amazônicos) como em áreassedimentares das bacias do Paraná e do Meio-Norte.

Ao norte das depressões amazônicas, junto às fronteiras com as Guianas ea Venezuela, encontram-se alguns dos pontos mais elevados do Brasil, como oPico da Neblina, com 3.014 metros e o Pico 31 de Março, com 2.992 metros.Trata-se da linha de serras dos Planaltos Residuais Norte-Amazônicos, constituídapor cadeias de morros pontiagudos (cristas). Essas áreas abrigam as nascentes de

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inúmeros afluentes e subafluentes da margem esquerda do Rio Amazonas, como osrios Negro e Branco, Trombetas e Jari, cujos cursos seguem a declividade naturaldo relevo, dirigindo-se para o sul.

O Brasil do Sudeste também exibe cadeias de morros como as serras doEspinhaço (que abriga as grandes jazidas minerais do Quadrilátero Ferrífero) e daMantiqueira. Nos vales encaixados entre as linhas de serras, abrigam-se importantesrios, como o Jequitinhonha, o Doce e o Paraíba do Sul.

A elevada umidade do ar, acentuando o intemperismo, e o trabalho de erosãodas chuvas modelaram paisagens características. Os mares de morros, típicos daSerra da Mantiqueira, são formados por elevações suavemente arredondadas quese sucedem ininterruptamente até o horizonte.

Nessa área, aparecem os morros em meia laranja, que atestam o longoprocesso de desgaste próprio dos climas tropicais úmidos. As escarpas aparecemna transição entre áreas rebaixadas e planaltos, funcionando como imensos “degraus”que demarcam altimetrias muito diferentes. Freqüentemente, as escarpas têmdenominações tecnicamente inadequadas, como é o caso da Serra do Mar, quesepara a baixada litorânea dos planaltos no Sudeste e Sul do país.

Os Planaltos e Chapadas da Bacia do Paraná exibem terrenos sedimentaresareníticos, onde ocorreram derrames vulcânicos datados da Era Mesozóica. Adecomposição do basalto deu origem à famosa terra roxa, o solo de maiorfertilidade natural do país.

Nesses planaltos, como também no dos Parecis, no Centro-Oeste, aspaisagens apresentam-se completamente diferentes. As altitudes médias situam-seentre 200 e 500 metros, configurando uma paisagem extensivamente aplainada,apenas interrompida pelas chapadas e chapadões. Tais formações, elevadas eaplainadas, são delimitadas por taludes abruptos e funcionam como divisores deáguas. Brasília foi erguida sobre uma dessas elevações, a quase 1200 metros dealtitude.

No Centro-Oeste, tais planaltos comportam-se como divisores entre baciashidrográficas. Rios como o Tapajós e o Guaporé têm as suas nascentes na Chapadados Parecis e dirigem-se para o norte, rumo à calha amazônica. O Rio Paraguai tem

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suas nascentes na Chapada dos Parecis, antes de rumar para o sul e receber aságuas de dezenas de afluentes, formando o eixo fluvial do Pantanal Mato-grossense.A chapada funciona como divisor entre as águas da Bacia do Paraguai e as daBacia do Amazonas.

No Nordeste ocidental, os planaltos e chapadas da Bacia do Parnaíbaexibem terrenos sedimentares e altitudes geralmente modestas. As chapadas separamvales de rios perenes – como o próprio Parnaíba, o Mearim e o Pindaré – ou riostemporários, típicos do sertão do Piauí.

A elevação mais importante é a do Espigão Mestre, entre a Bahia e osestados de Tocantins e Goiás, que separa os afluentes do Rio São Francisco dosafluentes do Rio Tocantins.

As depressões também exibem predomínio de processos erosivos. A longaduração desses processos gerou superfícies suavemente inclinadas e bastanteaplainadas. As depressões brasileiras situam-se em cotas altimétricas entre os 100e os 500 metros.

São depressões tipicamente caracterizadas os altos e médios vales dos riosTocantins e Araguaia, cujas nascentes situam-se no Centro-Oeste. O Tocantins e oAraguaia se dirigem para o norte, acompanhando os degraus do relevo e originandoquedas d’água. Nesse trajeto, o Araguaia forma a Ilha do Bananal, a maior ilhafluvial do país.

A Depressão Sertaneja e do São Francisco configura, na sua porçãomeridional, um longo corredor encaixado entre áreas planálticas, acompanhando ocurso do Rio São Francisco através de Minas Gerais e da Bahia. No passado, essefoi um importante caminho de interiorização seguido pelos vaqueiros e criadoresnordestinos.

Na sua porção setentrional, dominada pelo clima semi-árido, a depressãoabriga inúmeros rios temporários que, na curta estação chuvosa, percorrem o sertãode Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Nessa área, o grandePlanalto da Borborema interrompe a depressão, assinalando a transição para olitoral úmido. A face oeste da Borborema, voltada para o interior, está sujeita alongas secas. A face leste recebe os ventos úmidos do litoral que, em contato com

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o ar mais frio da escarpa, provocam chuvas freqüentes e propiciam condições ideaispara o cultivo de frutas tropicais.

No Sul e Sudeste, as depressões desenham um imenso S que se prolongade São Paulo ao Rio Grande do Sul, separando os terrenos cristalinos do orientedos derrames vulcânicos da Bacia do Paraná. Na zona de contato entre os terrenosvulcânicos da Bacia do Paraná e os terrenos sedimentares (menos resistentes) dasdepressões, a erosão diferencial originou uma linha de cuestas. As cuestas,conhecidas localmente como serras, apresentam uma vertente de declínio suave,em direção à calha do Rio Paraná, e outra de inclinação abrupta, no contato com osterrenos sedimentares. No Estado de São Paulo, as cuestas formam paisagenscaracterísticas.

As planícies, ao contrário dos planaltos e depressões, são áreas onde oprocesso de sedimentação se sobrepõe ao processo de erosão. A acumulação desedimentos realiza-se pela ação das águas dos rios, do mar ou de lagos. As planíciessituam-se em cotas altimétricas inferiores a 100 metros.

Há algumas décadas, vastas áreas da Amazônia eram consideradas umaimensa planície. Essa crença, fundada na ignorância das altimetrias escondidassob a floresta equatorial e dos processos geomorfológicos atuantes na área, foidesfeita pelo levantamento aerofotogramétrico da região. Atualmente, sabe-seque a verdadeira planície restringe-se a uma estreita faixa que acompanha o valedo Rio Amazonas e o baixo curso de alguns dos seus afluentes. Essa planície érodeada por depressões e planaltos sedimentares, que estão, por sua vez,encaixados entre os planaltos residuais norte e sul-amazônicos, cristalinos e maiselevados.

Na planície verdadeira – o vale inundável dos grandes rios – onde ocorreintenso trabalho de sedimentação quaternária, predominam os processos dedeposição. Nas depressões e planaltos sedimentares circundantes (chamados, nadenominação regional, terra firme), a sedimentação é terciária e predominam osprocessos erosivos.

A Planície e Pantanal Mato-grossense, por outro lado, é a mais típica planíciebrasileira. Assentada sobre terrenos sedimentares da Era Quaternária, constitui partede uma vasta depressão relativa encaixada entre a Cordilheira dos Andes e os

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planaltos do Escudo Brasileiro, denominada Chaco. O Chaco abrange terrasbrasileiras, paraguaias, argentinas e bolivianas, funcionando como bacia de captaçãode cursos fluviais provenientes das áreas circundantes.

O eixo dessa bacia de captação é formado pelo Rio Paraguai. Durante aépoca das chuvas, no verão, o Rio Paraguai e os seus afluentes – como, em terrasbrasileiras, o Cuiabá, o Taquari, o Negro e o Miranda – inundam grande parte dasterras deprimidas e as transformam em uma enorme área de deposição desedimentos.

As Planícies e Tabuleiros Litorâneos estendem-se do Maranhão ao RioGrande do Sul. De norte para sul, as planícies litorâneas tornam-se mais estreitas,chegando quase a desaparecer em trechos da costa Sul e Sudeste.

Tanto no Nordeste como no Sul, as planícies são interrompidas portabuleiros: superfícies de baixa altitude, com topo bastante aplainado e acentuadosdeclives na face voltada para o mar. Tais declives são chamados falésias, quandoconstituídos por rochas cristalinas, ou barreiras, quando constituídos por rochassedimentares.

No trecho nordestino, onde se alargam, as planícies litorâneas exibem umagrande variedade de paisagens, como os cordões arenosos e dunas do Ceará e aslagoas e brejos de Alagoas. No Sudeste, as planícies, freqüentemente interrompidaspelas majestosas escarras da Serra do Mar, descortinam as restingas e lagunas doRio de Janeiro e as praias e baixadas de São Paulo.

O relevo brasileiro é constituído, predominantemente, por planaltos edepressões. Isto significa que os processos erosivos predominam sobre os processosde sedimentação na maior parte do território. As planícies ocupam uma porçãorelativamente pequena do território, correspondendo aos vales de importantes riose à maior parte da extensa faixa costeira.

Os grandes tipos climáticos

A dinâmica das massas de ar é responsável pela sucessão habitual dos tiposde tempo que caracterizam o clima; é, portanto, responsável pela maior parte dosfenômenos climáticos.

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Na América do Sul, apenas duas regiões funcionam como fontes demassa de ar: a Amazônia ocidental, sobre a qual se forma a massa Equatorialcontinental (mEc), quente e úmida, e a Planície do Chaco, centro de origem damassa Tropical continental (mTc), quente e seca.

As outras massas de ar que atuam no continente são marítimas. Trêsdelas são importantes para os climas brasileiros: a massa Equatorial atlântica(rnEa), quente e úmida, que atua principalmente no Meio-Norte e no litoralamazônico; a massa Tropical atlântica (mTa), também quente e úmida, queinfluencia diretamente o clima da costa oriental brasileira e a massa Polar atlântica(mPa), fria e úmida, que atua principalmente no Brasil meridional, mas penetraaté a Amazônia no inverno, ocasionando o fenômeno conhecido localmentecomo “friagem”.

Com base na dinâmica das massas de ar, pode-se individualizar cincotipos climáticos no Brasil.

O Clima Equatorial Úmido, quente e chuvoso, domina a Região Nortedo país e é resultado da atuação da massa Equatorial continental durante todoo ano. As chuvas são resultado da convecção (ascensão vertical e conseqüentecondensação) da umidade, e as médias anuais de precipitação giram em tornode 2.000 milímetros.

O Clima Litorâneo Úmido, que caracteriza o litoral das regiões Sudestee Nordeste do país, dominado principalmente pela atuação da massa Tropicalatlântica, também apresenta elevadas médias térmicas e pluviométricas. Apluviosidade média anual varia entre 1.500 milímetros e 2.000 milímetros.

O Clima Tropical, que domina boa parte do Centro-Oeste e do Meio-Norte brasileiros, caracteriza-se por apresentar invernos secos e verõeschuvosos. A pluviosidade média anual situa-se em torno dos 1.500 milímetros.

O Clima Tropical Semi-Árido abrange a área do Sertão nordestino.Essa área funciona como um centro dispersor de massas de ar, apresentandomenores médias pluviométricas que as vigentes no resto do país. As chuvas nãoultrapassam a barreira dos 750 milímetros ao ano e apresentam-se irregularmentedistribuídas. De acordo com o geógrafo Aziz Ab’Saber, o semi-árido brasileiro,

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onde se localiza o famoso Polígono das Secas1, se caracteriza por “Invernossecos e quase sem chuvas, com duração de cinco a oito meses, e verão chuvoso,com quatro a sete meses de precipitações pluviais, irregulares no tempo e no espaço,de forma que os índices que buscam medir médias de precipitações guardam umaalta dose de irrealidade, servindo como mera referência genérica para efeito decomparação com as regiões úmidas e subúmidas do país”2.

O Clima Subtropical Úmido é dominado pela massa Tropical atlântica,mas está sujeito à penetração da massa Polar atlântica, principalmente no inverno.Apresenta as maiores amplitudes térmicas entre os climas brasileiros: os verões sãoquentes e os invernos são frios. A média pluviométrica anual é elevada (cerca de1.500 milímetros), não existindo uma estação seca.

Os domínios paisagísticos

Seis grandes domínios macroecológicos foram identificados no Brasil: trêsdeles (o Domínio Amazônico, o Domínio dos Mares de Morros Florestados e oDomínio das Araucárias) abrangem áreas originariamente florestadas e os restantes(Domínios dos Cerrados, da Caatinga e das Pradarias) correspondem a áreas compredomínio de espécies vegetais herbáceas e arbustivas. Entretanto, existem vastasextensões territoriais não incluídas em nenhum dos domínios. São as faixas detransição, que constituem unidades paisagísticas nas quais se mesclam característicasdos domínios vizinhos, ou, ainda, áreas onde a instabilidade das condições ecológicasdeu origem a uma interação entre os elementos naturais que nada têm a ver com ascaracterísticas dos domínios circundantes.

No Meio-Norte do território brasileiro, por exemplo, uma grande faixa detransição conhecida como Mata dos Cocais separa o Domínio Amazônico doDomínio da Caatinga.

O Pantanal Mato-grossense é um outro bom exemplo de região de transição.Ele funciona como enorme delta interno: devido à pouca declividade do terreno, os

1 Essa expressão, criada no início do século XX pelos técnicos da antiga Inspetoria Nacional de Obrascontra as Secas, designa uma ampla área na qual o balanço da evapotranspiração é negativo durante amaior parte do ano, e que se estende pelo norte de Minas Gerais, por parte dos territórios da Bahia, deSergipe, de Alagoas, de Pernambuco, e pela totalidade dos estados do Rio Grande do Norte, Ceará ePiauí.2 Ver Os Sertões: a originalidade da terra, Revista Ciência Hoje, especial ECO-Brasil, maio de 1992, p. 6.

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rios que drenam a região demoram a vazar, inundando grande parte da planície etrazendo um grande fluxo de nutrientes, responsável pela grande densidade ediversidade da fauna da região.

Os solos, alagadiços, são de baixa fertilidade natural. A vegetação pantaneiraé extremamente heterogênea, mesclando características de todos os domíniosmacroecológicos brasileiros.

Grandes propriedades de pecuária extensiva ocupam as terras baixasalagadiças do Pantanal, adaptando-se às condições ambientais da região. A caçapredatória e ilegal, porém, representa uma grande ameaça à fauna pantaneira.

Além da caça, o desmatamento das margens dos principais rios queatravessam o Pantanal e o extrativismo mineral figuram como grandes geradores deimpactos ambientais na região. No Rio Taquari, por exemplo, a retirada da coberturavegetal se associa a um processo crescente de assoreamento do leito fluvial,ampliando a área de inundação do rio e ameaçando a fauna silvestre.

- O Domínio Amazônico

A floresta amazônica, que prevalece na paisagem desse domínio, é uma florestalatifoliada marcadamente heterogênea. A vegetação de terrenos inundáveis (matas devárzea e igapós) ocupa aproximadamente 10% do ecossistema florestal; a vegetaçãode terra firme (a chamada hiléia) se espalha em cerca de 80% da área. Além disso, oDomínio Amazônico apresenta múltiplos enclaves de campos e cerrados.

Estima-se que o ecossistema florestal abrigue aproximadamente 80 milespécies vegetais e 30 milhões de animais, compondo uma das maiores reservasbiológicas do planeta. A riqueza e a exuberância do ecossistema florestal, porém,contrastam com a pobreza de grande parte dos solos da região. Mais de 70% doDomínio Amazônico são constituídos por solos ácidos e intemperizados, de baixafertilidade. Apenas algumas planícies aluviais, inundadas pelo Rio Amazonas,apresentam solos ricos em nutrientes.

Esse contraste revela a fragilidade do ecossistema amazônico. A reciclagemdos nutrientes orgânicos e minerais necessários à manutenção dos ecossistemasregionais não é feita pelos solos, mas pela própria floresta.

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As toneladas de folhas, frutos e flores que caem anualmente sobre o solo setransformam em material orgânico e mineral consumido pela vegetação. Isto é: avegetação nutre-se dela mesma. Além disso, a floresta protege os solos, impedindoque os poucos nutrientes sejam carreados pelas águas da chuva.

A agricultura tradicional dos povos da floresta – índios, caboclos, seringueiros-representava uma adaptação especial a esse ecossistema frágil. A baixa densidadedemográfica possibilitou o desenvolvimento de cultivos de subsistência – como amandioca, o milho, a batata-doce e o inhame – em sistema de roça itinerante, queutiliza a coivara. Depois de abandonadas, as clareiras conhecem uma recolonizaçãobiológica pela mata. Mas a ocupação empresarial da Amazônia provocainterferências profundas e permanentes no meio natural. As madeireiras abrem brechasenormes na vegetação, espaços de pastagens homogêneas substituem a mata,culturas agrícolas de mercado se espalham extensivamente sobre as velhas áreasflorestadas. A vegetação original não se regenera e a erosão pluvial agedestruidoramente, empobrecendo ainda mais os solos descobertos. O desmatamentoestá trazendo danos irreparáveis ao ecossistema florestal.

Não existem dados precisos sobre o tamanho e a velocidade dodesmatamento na Amazônia. Segundo cálculos aproximados, o desmatamento atingealgo entre 8% e 20% da Amazônia. Os estados mais afetados foram os do Pará(34%), Mato Grosso (23%) e Maranhão (19%).

- O Domínio dos “Mares de Morros” Florestados

Este domínio macroecológico caracteriza-se pela morfologia e pela coberturavegetal. A ação dos agentes do modelado sobre a estrutura geológica,predominantemente cristalina, produziu um relevo típico de morros arredondados,em forma de “meias-laranjas”. Além dos “Mares de Morros”, compõem a morfologiada região as escarpas planálticas que separam o planalto cristalino da planície costeira.

Originalmente, a floresta tropical úmida conhecida como Mata Atlânticarecobria cerca de 95% do Domínio dos “Mares de Morros”. Trata- se de umaformação florestal densa e heterogênea.

A introdução do cultivo da cana-de-açúcar no Nordeste e, mais tarde, docafé nas serras do Sudeste foram os grandes responsáveis pelo início da devastação

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da mata original. Hoje, restam menos de 4% da cobertura vegetal primária,verdadeiras ilhas florestais em alguns trechos montanhosos das escarpas planálticas.

A devastação da Mata Atlântica tem agravado os processos erosivos queatingem a região. Sujeita a chuvas intensas, concentradas nos meses do verão, aárea encontra-se exposta a desmoronamentos e transporte de material, especialmentenas escarpas mais íngremes.

- O Domínio dos Planaltos de Araucárias

O Domínio das Araucárias ocupa os planaltos sedimentares- basálticos da porçãooriental da Bacia do Rio Paraná, nos quais a altitude média varia entre 850 metros e1.300 metros. Originalmente, esse domínio era revestido por uma floresta subtropicalconhecida como Mata das Araucárias e por manchas de vegetação herbácea e arbustiva.

A devastação da Mata das Araucárias se iniciou com a colonização alemã eitaliana. Nas primeiras décadas do século, os colonos utilizavam a madeira para aconstrução de casas, móveis e artefatos domésticos. Também desmatavam pequenostrechos para a prática da poli cultura de alimentos. No início do século XX, mais de80% do território dos estados de Santa Catarina e Paraná ainda estavam recobertospela vegetação nativa.

Mais tarde, com a expansão da agricultura, extensas áreas florestais foramqueimadas e se transformaram em áreas de cultivo de milho, trigo, videiras e árvoresfrutíferas. Em 1950, mais de metade da vegetação original já estava devastada.Atualmente, restam apenas algumas manchas dos bosques de araucária originais.

- O Domínio dos Cerrados

O Domínio dos Cerrados abrange as chapadas e chapadões do BrasilCentral. Trata-se de uma região tropical, de verões chuvosos e invernos secos.

As características climáticas são, em parte, responsáveis pela baixa fertilidadedos solos desse domínio. No verão, as chuvas abundantes “lavam” o solo, retirandoseus nutrientes; no inverno, a seca prolongada tem como conseqüência altas taxasde evaporação, o que provoca acúmulo do ferro e do alumínio responsáveis pelatoxidez e acidez dos solos.

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O Cerrado, vegetação dominante, é composto principalmente por doisestratos, o arbóreo-arbustivo, de caráter lenhoso, e o herbáceo- subarbustivo,formado pelas gramíneas e outras ervas. A combinação desses estratos produz umacobertura vegetal em forma de um grande mosaico, constituído por trechos decampos limpos (predominância de gramíneas), de campos sujos (gramíneas earbustos), de campos cerrados (predominância de arbustos, com espécies de 3 a 5metros) e cerradões (florestas cujas copas se tocam e criam sombra, nas quais oestrato herbáceo-arbustivo é muito pobre e rarefeito).

O Cerrado compõe um ecossistema bastante peculiar, radicalmente distintodas florestas tropicais úmidas. O ecossistema florestal, quando desmatado atravésde queimadas, não se regenera. O Cerrado, ao contrário, abriga espécies quesobrevivem após as queimadas. Durante o incêndio, a camada superficial dos solosdo Cerrado funciona como um isolante térmico, protegendo o sistema subterrâneodas plantas. Assim, muitas espécies conseguem rebrotar poucos dias após a passagemdo fogo.

As cinzas resultantes, cerca de 400 quilos por hectare em um campo cerrado,funcionam como uma preciosa fonte de nutrientes minerais, absorvidos principalmentepelas plantas do estrato herbáceo-subarbustivo. Nas áreas recobertas por camposlimpos, campos sujos e campos cerrados, o fogo ajuda na reciclagem de nutrientes.Já os cerradões são menos adaptados às queimadas, e, quando essas sãoreincidentes, podem se transformar em campos limpos.

Entretanto, o impacto positivo das queimadas sobre o ecossistema doscerrados parece depender da freqüência com que são realizadas. As pesquisasindicam que incêndios anuais podem tomar os solos ainda mais pobres.

- O Domínio da Caatinga

O Domínio da Caatinga apresenta relevo em forma de colinas com vertentessuaves, as colinas sertanejas. A semi-aridez é responsável pela poucadecomposição química das rochas, o que resulta em solos pouco profundosintercalados por terrenos pedregosos e afloramentos rochosos.

A Caatinga, vegetação dominante, é uma formação vegetal adaptada aocalor e à aridez. Suas principais espécies possuem folhas pequenas e hastes

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espinhentas. Nas áreas de maior altitude, que recebem chuvas de relevo, encontram-se alguns trechos de matas úmidas, conhecidas regionalmente como brejos.

O excesso de calor e a predominância de solos pouco profundos, incapazesde reter a água, tomam o balanço da evapotranspiração negativo durante a maiorparte do ano, quando a perda de umidade é maior do que a precipitação.

A rede hidrográfica da Caatinga caracteriza-se pela predominância de riosintermitentes e sazonais: os rios autóctones permanecem secos por cinco a setemeses durante o ano.

A irregularidade das precipitações e a natureza dos solos e da coberturavegetal fazem do domínio macroecológico da Caatinga uma área naturalmentesusceptível aos processos de desertificação e, portanto, bastante vulnerável aocupação humana. A irrigação, o sobrepastoreio, o cultivo excessivo e amineração figuram entre as principais causas dos processos de desertificaçãojá iniciados.

-O Domínio das Pradarias

Esse domínio paisagístico abrange a região conhecida como CampanhaGaúcha. Nele, destaca-se a presença de um relevo suavemente ondulado, na formade colinas conhecidas como “coxilhas”. As colinas são recobertas por vegetaçãocampestre. Nos topos mais planos, forma-se um tapete herbáceo ralo e pobre emespécies; nas encostas, a vegetação se toma mais densa e diversificada.

A pecuária extensiva é a principal atividade econômica da região. Devidoao pisoteio excessivo do gado, registra-se uma sensível diminuição das espéciesforrageiras nativas dos campos gaúchos. O uso recorrente da queimada como técnicade limpeza das pastagens contribui para o empobrecimento dos solos.

A pecuária e a monocultura de trigo e soja, em expansão nas áreasoriginalmente recobertas pelos campos, têm provocado a diminuição dafertilidade dos solos, o aumento dos processos erosivos e até, em algumasáreas, o início de um processo de desertificação. Há cinqüenta anos, o “desertode São João”, no município de Alegrete (RS), atingia 12 hectares; hoje ultrapassaos 185 hectares.

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Texto Complementar

No fragmento de texto reproduzido abaixo, os geógrafos José Bueno Contie Sueli Angelo Furlan apresentam e comentam os esforços realizados pelo governobrasileiro no sentido de preservar o patrimônio ambiental do país.

Texto 1 -Tentativas de Conservação e Preservação Ambiental à Brasileira

Influenciado pela crítica à sua controvertida participação na Conferência deEstocolmo em 1972 e pela polêmica gerada em torno da proposta brasileira dedesenvolvimento a qualquer custo, o governo brasileiro, em 1973, criou a SecretariaEspecial do Meio Ambiente (SEMA), cuja função era a de atuar nos campos dapesquisa, do planejamento, da coordenação e do assessoramento no combate àpoluição e na preservação da qualidade dos recursos hídricos.

Vinculada ao Ministério do Interior, essas funções foram desdobradas e, com adevida autonomia e poder jurídico outorgado pelo Estado, à SEMA coube, posteriormente:

acompanhar as transformações do ambiente por meio de técnicas deaferição direta e sensoriamento remoto, identificando as ocorrênciasadversas e atuando no sentido de sua correção;

assessorar órgãos e entidades incumbidos da conservação do meioambiente, tendo em vista o uso racional dos recursos naturais;

promover a elaboração e o estabelecimento de normas e padrões relativosà preservação do meio ambiente, principalmente os recursos hídricos;

realizar diretamente ou colaborar com órgãos especializados no controlee na fiscalização das normas e padrões estabelecidos;

promover, em todos os níveis, a formação e o treinamento de técnicos eespecialistas em assuntos relativos à preservação do meio ambiente;

atuar junto aos agentes financeiros para a concessão de financiamentos aentidades públicas e privadas com vistas à recuperação dos recursosnaturais afetados por processos predatórios ou poluidores;

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cooperar com os órgãos especializados na preservação de espéciesanimais e vegetais ameaçadas de extinção e na manutenção de estoquesde material genético;

manter atualizada a relação dos agentes poluidores e substâncias nocivasno que se refere ao interesse do país;

educar o povo a respeito do uso adequado dos recursos naturais.

Esses itens sofreram pequenas modificações em 1981, quando o governofederal decidiu descentralizar a atuação da SEMA, criando órgãos e entidades daUnião, dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios. Novas modificaçõesocorreram com a fusão do antigo IBDF e Sudepe com a SEMA, quando foi criadoo IBAMA. Abordar item por item dessa política hoje seria escrever um tratado.Para os objetivos deste livro, bastam os resultados da política criada por essasinstituições governamentais. O IBAMA é responsável, entre outras funções, pelapolítica nacional de unidades de conservação. Uma unidade de conservação é umaamostra representativa de ecossistemas brasileiros que deverá ser regida por regrasespeciais de uso do solo. Foram criadas diversas modalidades de unidades deconservação, cada uma com seu estatuto próprio. Umas são bastante restritivasquanto à exploração, outras se assemelham a unidades de planejamento nas quaisas atividades têm de obedecer a regras estabelecidas pelo poder público.

Como são os critérios para a seleção de áreas a serem preservadas? O quesão parques, reservas biológicas, estações ecológicas e áreas de proteção ambiental?

Vários são os fatores a serem considerados quando se decide sobre a localizaçãodas áreas protegidas. A primeira prioridade é dada a áreas onde estudos independentesde duas ou mais autoridades indicam a existência de “refúgios do Pleistoceno”,podendo ou não representar as áreas atuais de maior diversidade de plantas e animais.Essas áreas são consideradas como sendo de dispersão evolutiva. A segunda prioridadeé para áreas que representam tanto formações vegetais típicas como também refúgiosdo Pleistoceno. A terceira prioridade é para áreas protegidas recomendadas peloRADAMBRASIL, pela antiga SEMA, pelo IBGE e outras agências.

O tamanho mínimo efetivo para as unidades de conservação não está aindabem definido. Sob as leis brasileiras, além das unidades de conservação, metade da

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terra incluída em qualquer projeto econômico deve ser mantida como floresta (ondehouver essa formação, é claro). O Fundo Mundial para a Vida Silvestre (WWF) e oInstituto Brasileiro de Pesquisa da Amazônia (INPA) estão se baseando nessa leipara a execução de um projeto que visa determinar se “ilhas” ou “manchas” isoladasde floresta podem suportar tantas espécies quanto uma mesma área incluída numafloresta contínua e maior. As espécies de plantas e animais da área a ser estudada sãoregistradas antes que a “ilha” de floresta seja isolada (como parte do processo dedesenvolvimento) e estudos posteriores são programados para determinar as mudançasno período de alguns anos. O projeto deve também mostrar modos de induzir “manchas”de floresta a suportar mais espécies do que elas naturalmente suportariam.

Na Amazônia, foi decidido basear o tamanho de áreas protegidas nasespécies de aves neotropicais de florestas úmidas de planície; essas aves necessitamde uma área mínima de aproximadamente 250 mil ha para manter as taxas de extinçãoabaixo de 1 % da totalidade inicial de espécies por século. Mas esses dados nãopodem ser generalizados para outros grupos de animais.

Outros fatores foram também considerados, entretanto os critérios paraselecioná-los têm variado ao longo do tempo.

Parques nacionais e reservas biológicas

O sistema de parques nacionais brasileiros começou em 1937, quando foiestabelecido o Parque Nacional de Itatiaia, no Sudeste do Brasil. Desde entãonovos parques nacionais e reservas biológicas têm sido criados. Em 1972 haviadezesseis parques nacionais e quatro reservas biológicas no país, ocupando 1,4milhão de ha. Não havia nenhuma unidade de conservação na região amazônica,embora houvesse oito reservas florestais e uma categoria transitória que conferepouca ou nenhuma proteção, além de algumas reservas indígenas.

Atualmente o Brasil tem 53 parques e 18 reservas, totalizandoaproximadamente 12 milhões de ha.

Estações ecológicas e áreas de proteção ambiental

A política de preservação de recursos ambientais no Brasil consiste,basicamente, na proteção de amostras representativas dos principais ecossistemas

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brasileiros. Uma estação ecológica é uma extensão de área natural, de valor ecológico,destinada à pesquisa e experimentação científica. A maior parte da área de cada estação– cerca de 90% – é considerada área de reserva integral. Nela somente podem serrealizadas pesquisas que não impliquem alteração do ecossistema natural. Os 10%restantes podem ser utilizados para experimentações, como queimadas, por exemplo,que tenham como finalidade o estudo dos efeitos de certas atividades sobre o ecossistema.

Com o advento da Lei n° 6.902 (27/04/81), foi estabelecida uma nova modalidadede preservação ambiental, denominada área de proteção ambiental. As áreas de proteçãoambiental compreendem determinadas porções do território nacional de relevante interessepara a proteção ambiental, com vistas a assegurar as condições ecológicas locais.

Parques urbanos

Em nível municipal foram estabelecidos parques cujo objetivo principal é preservaráreas verdes, que diminuem cada vez mais nos grandes centros, proporcionando assimlocais de lazer à população. Alguns dos parques estabelecidos pelas prefeituras municipaiscontam com uma reserva de vegetação bastante densa que também é aberta ao público.Os parques urbanos cumprem um importante papel no lazer da população urbana erepresentam em muitos casos as manchas mais significativas de áreas verdes das cidades.

Do ponto de vista do planejamento, pode-se dizer que são poucos os trabalhosque visam ao conhecimento e monitoramento das áreas citadas. De forma geral a pesquisaainda é incipiente quando comparada à velocidade com que se dá a degradação ambientalneste país.

[CONTI, José Bueno e FURLAN, Sueli Angelo. Geocologia: o clima, os solos e abiota. In: ROSS, Jurandyr I. Sanches (org.). Geografia do Brasil. São Paulo: EDUSP,1995, p. 202-207.]

3. As Demandas de Saneamento Básico e a Qualidade de Vidanas Cidades Brasileiras

Atualmente, quase 3 bilhões de pessoas, o que equivale à cerca de metadeda população mundial, vivem em cidades. Entretanto, a urbanização acelerada dapopulação mundial é um fenômeno recente. Em 1800, só 3% da humanidade habitava

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no meio urbano e, ainda em 1850, a própria Europa era um continentepredominantemente rural, no qual apenas duas cidades ultrapassavam a marca deum milhão de habitantes: Londres e Paris.

A Revolução Industrial mudou esse quadro. Na Europa e nos Estados Unidos,a segunda metade do século XIX foi um período de rápida urbanização. Umaquantidade crescente de energia e alimentos passou a ser importada de lugarescada vez mais distantes para suprir as demandas urbanas. Foi o início do processode metropolização que deu origem a imensas aglomerações urbanas como Londres,Paris, Nova Iorque, Chicago. No início do século XX, 14% da população mundialjá viviam nas cidades.

Na maior parte dos casos, as metrópoles dos países industriais centraisviveram o apogeu de seu crescimento populacional entre 1850 e 1950. A partir dadécada de 1970, elas apresentaram crescimento fraco ou até mesmo estagnação eregressão populacional. Londres, por exemplo, perdeu 2% de sua população entre1980 e 1990. A população de Nova Iorque continua a crescer, mas muito lentamente:a cidade, que em 1950 era a maior do mundo, atualmente figura na quarta posiçãoe, de acordo com os cálculos da ONU, deverá ocupar um modesto nono lugar em2015.

Tóquio figura como a principal exceção: em 1942, a metrópole contavacom 7,4 milhões de habitantes, mas os bombardeios da Segunda Guerra Mundialforam responsáveis por uma significativa retração populacional. Mesmo assim, aregião metropolitana de Tóquio já possuía mais de 15 milhões de habitantes em1970 e ultrapassou a marca dos 26 milhões em 1996. A explosão populacional queacompanhou estrondoso crescimento econômico vivenciado pelo Japão nas décadasdo pós-guerra transformou a região metropolitana de Tóquio no centro da maispopulosa área urbanizada do mundo.

Também algumas metrópoles da costa oeste e do sul dos Estados Unidosfugiram ao padrão do mundo desenvolvido e conheceram uma verdadeira explosãodemográfica entre 1950 e 1990: nesse período, São Francisco passou de 2,2 milhõespara 6,2 milhões de habitantes; Houston, de 1 milhão para 3,7 milhões, Dallas de 1para 5 milhões. Los Angeles foi o caso mais espetacular: no início do século XX,contava com apenas 100 mil habitantes, atingiu 6 milhões em 1940 e, em 1996,figurava como a sétima metrópole do mundo, com mais de 13 milhões de pessoas.

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Entretanto, e apesar dessas exceções, nas últimas décadas o ritmo frenéticoda urbanização e o aparecimento de novas megacidades, isto é, grandesaglomerações urbanas com mais de 10 milhões de habitantes, têm sido um fenômenocaracterístico do mundo subdesenvolvido. No conjunto do mundo desenvolvido, ocrescimento anual da população urbana gira em tomo de 0,7%; nos paísessubdesenvolvidos, a taxa de urbanização anual gira em tomo de 5%. Das 21megacidades que existem hoje no mundo, 17 estão localizadas em paísessubdesenvolvidos. Entre elas, figuram duas cidades brasileiras: São Paulo e Rio deJaneiro.

Como vimos na Unidade II, no Brasil o processo de urbanização foinotadamente acelerado a partir da década de 1950. Atualmente, pouco mais detrês quartos da população brasileira vivem nas cidades. Assim, os graves problemasambientais urbanos afetam a qualidade de vida de parcelas crescentes na população.

O êxodo rural acelerado e o processo de metropolização do pós-guerrageraram a expansão da “cidade clandestina”, principalmente sob a forma deloteamentos na periferia da mancha urbana. A expansão das grandes cidades serealizou de forma predominantemente horizontal, através da ocupação de áreassuburbanas carentes de serviços públicos. As terras agregadas à cidade, glebas deespeculadores imobiliários arruadas irregularmente e subdivididas em lotes diminutos,desafiavam a legislação municipal. Esses loteamentos clandestinos, vendidos emprestações à população de baixa renda, constituíram bairros imensos que seencontram atualmente consolidados e legalizados. A produção da moradia, nessasáreas periféricas, realizou-se basicamente pela autoconstrução. Sucessivas anistiasdo poder público regularizaram as vias e loteamentos, de forma que a cidade real,atualmente legalizada, formou-se, em grande parte, de modo clandestino e ilegal.

O predomínio do crescimento horizontal que marcou, pelo menos até adécada de 1970, a expansão da mancha urbana das metrópoles brasileiras nãoimpediu o aparecimento de “ilhas de verticalização”. Os principais centros comerciaise de escritórios, como o “centro velho” e a região da Avenida Paulista, em SãoPaulo, são exemplos de espaços intensamente verticalizados.

Nas metrópoles e grandes cidades litorâneas, como Rio de Janeiro ouSantos, a transferência de parcelas expressivas da classe média para a orlaoceânica deflagrou o erguimento de torres residenciais, formando muralhas de

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prédios em frente ao mar. Entretanto, as “ilhas de verticalização” conviveram,por várias décadas, com um modelo predominantemente horizontal de expansãoda área edificada.

Essa tendência à horizontalização foi determinada pelo atraso naimplantação de um esqueleto de vias férreas e de metrô para o transporte urbanode massa. Ainda hoje, os trens suburbanos e as linhas de metrô nas metrópolesbrasileiras cobrem uma parcela relativamente pequena dos fluxos de passageiros.A ausência dessa “armadura ferroviária” condicionou uma expansão da áreaurbanizada ao longo do eixo das avenidas radiais. O transporte automotivocomandou a ampliação territorial das cidades.

Os custos mais baixos de abertura de ruas e avenidas estimularam oprolongamento dos eixos de transporte ao longo de traçados lineares, devorandoterras cada vez mais distantes do centro. Ao mesmo tempo, espaços com baixadensidade de ocupação surgiam no intervalo entre as grandes vias radiais. Asmetrópoles brasileiras assumiram uma feição espalhada e disforme, alongando-se sobre alguns eixos principais de tráfego, geralmente direcionados para osvetores com menores obstáculos naturais.

A expansão desordenada, horizontalizada e espalhada da metrópole gerauma pressão crescente de demanda por serviços públicos de água, esgotos,iluminação e transportes, bem como por infra-estruturas viárias, escolas e postosde saúde. O alastramento espacial das periferias – mais rápido que o crescimentoda população e muito superior ao incremento da arrecadação de impostos –acarreta carência crônica dos serviços públicos e de infra-estruturas urbanas,além de intensificar o estrangulamento financeiro das administrações municipais.

As conseqüências ambientais da ocupação desordenada dos espaçosperiféricos são de gravidade semelhante. Na Grande São Paulo, o desmatamentodas várzeas e cabeceiras dos córregos e rios para expansão dos loteamentos agravouo problema das enchentes. As águas pluviais correm diretamente para os cursosd’água, em vez de serem barradas por áreas verdes e superfícies permeáveis. Poroutro lado, o alastramento da mancha urbana na direção sul do município e sudesteda Região Metropolitana provocou a invasão das áreas de proteção de mananciais.As áreas das bacias hidrográficas tributárias das represas Billings e Guarapiranga,protegidas legalmente de ocupação desde 1975, conheceram desvalorização

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imobiliária. Em conseqüência, proliferaram os loteamentos clandestinos nasproximidades dos córregos e das represas, ameaçando poluir as águas einviabilizar a utilização dessas fontes de abastecimento da cidade.

Nas metrópoles litorâneas, como o Rio de Janeiro, os morros próximosà orla oceânica são de propriedade pública ou da Marinha. Localizadas juntoaos bairros residenciais de classe média da Zona Sul, que constituem importantefonte de empregos no comércio e nos serviços, as encostas desses morrosabrigam algumas das principais favelas da cidade.

O modelo de expansão periférica e horizontalizada das metrópolesbrasileiras entrou em crise na última década, em função da incapacidadecrescente das camadas populares de adquirirem terrenos e materiais deconstrução. A redução do movimento migratório em direção às cidades maiorese a desaceleração do crescimento vegetativo contribuem também para oencerramento dessa etapa de descontrolada expansão horizontal dasmetrópoles.

Como conseqüência do esgotamento desse modelo, aumenta a favelizaçãoe o encortiçamento nas áreas mais antigas e estabilizadas das cidades. Do pontode vista espacial, ocorre uma aproximação entre as localizações residenciaispopulares e as localizações residenciais das classes médias. De acordo com umestudo realizado pela Prefeitura de São Paulo no início dos anos 90, “sem dúvida,essa é uma dinâmica nova na ocupação do espaço de São Paulo, caracterizadapor visível empobrecimento das áreas centrais, sem que com isso se diga que asperiferias deixaram de abrigar predominantemente os contingentes de baixo poderaquisitivo. Contudo, o importante reside no surgimento de relativa dispersão dessascamadas por outros espaços da cidade: maior parcela de pobres tomou o rumodas zonas centrais. Esse processo de deslocamento dos grupos pauperizadosaponta – senão para o esgotamento – para a rápida queda do padrão periféricodo crescimento urbano de São Paulo, baseado na autoconstrução em terrenosdesprovidos de benfeitorias públicas. (...) Diante desses fenômenos, que seacentuaram durante os anos 80, a alternativa para muitas famílias é a moradia emfavelas ou cortiços”1.

1 Prefeitura de São Paulo: São Paulo Crise e Mudança; Prefeitura de São Paulo/Brasiliense, s/d. p. 53.

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Texto Complementar

No fragmento de texto reproduzido abaixo, o arquiteto Nabil Bondukidiscorre sobre os principais problemas ambientais que afetam as cidades brasileiras,e apresenta indicadores importantes acerca da qualidade de vida de suas populações.

Texto 1 - Meio Ambiente, Saneamento e Transporte

A intensidade e as características da urbanização em todo o mundo geraramdois grandes problemas nesse final de século: a questão urbana e a questão ambiental.A deterioração ambiental, seja da cidade ou do campo, é problema antigo e sempreexistiu na história da humanidade. O que é novo, neste final de século, é a intensidadedos processos de degradação ambiental que acompanham a urbanização, resultandoem crescente vulnerabilidade das cidades, problema agravado pela intensidade daconcentração urbana. A partir da Conferência das Nações Unidas sobre o MeioAmbiente e o Desenvolvimento (Rio, 1992), reforçaram-se as iniciativas visandoassociar as duas questões. A Conferência Habitat II dá ênfase à questão urbanaambiental ao definir a sustentabilidade como princípio e assentamentos humanossustentáveis como objetivo a ser perseguido.

Os mais graves problemas ambientais são principalmente um efeito daurbanização sobre os ecossistemas, provocando uma crescente contaminação dosrecursos naturais, principalmente o ar e a água.

No Brasil urbano a realidade socioambiental de uma grande parcela dapopulação está marcada pelas dimensões da exclusão, do agravo, do risco, da faltade informação e de educação sanitária e ambiental. Esse quadro é ainda agravadopelos sérios danos à qualidade de vida decorrentes de verdadeiras cirurgias urbanasrealizadas a título de resolver problemas de circulação que resultam na perda deidentidade, legibilidade e rigidez dos espaços urbanos.

As causas dessa carência de serviços públicos, essenciais à manutenção dasaúde e à proteção do meio ambiente, podem ser assim resumidas:

A crise institucional e financeira que afetou a capacidade de investimentodo setor público, em geral, e particularmente a dos setores de saneamentoe transportes públicos;

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O envelhecimento das redes e dos sistemas de infra-estrutura quedemandam substituição, ampliação e modernização;

A diversificação e o aumento quantitativo das necessidades de saneamentoda população urbana e da demanda por serviços;

O aumento da demanda por transportes públicos derivados da retomadado crescimento econômico;

As necessidades de ajustamento político-institucionais dos modos deregulação das relações sociais entre os produtores de serviços e usuários.

Embora a ação governamental de proteção ao meio ambiente e àconservação dos recursos naturais tenha se intensificado no campo da gestãoambiental na última década, a preocupação com os problemas ambientais urbanos(brown agenda) ainda não recebeu a mesma atenção da agenda verde. É muitorecente a explicitação do componente ambiental nas políticas urbanas e desaneamento.

Assim, a crise ambiental urbana brasileira representa um tema muito propíciopara colocar em debate a necessidade de novos compromissos com odesenvolvimento de assentamentos humanos – urbanos ou rurais – sustentáveis.

Situação ambiental urbana

Nas últimas décadas, a urbanização acelerada e desordenada, a concentraçãoda população e das atividades econômicas no espaço e os padrões tecnológicos daprodução industrial têm reforçado um quadro ambiental altamente degradado emconseqüência de um estilo de desenvolvimento que leva ao uso predatório dosrecursos naturais. As cidades estão no cerne dessa questão: enquanto centros deprodução e consumo são grande exploradores de recursos naturais como água,combustíveis fósseis e terra agriculturável, concentrando os problemas mais sériosde degradação ambiental.

O quadro urbano brasileiro está marcado pela existência de assentamentoshumanos precários, onde vivem os pobres, e um comprometimento ambiental queprovocam graus crescentes de deterioração da qualidade de vida. Enchentes, erosões,

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deslizamentos, poluição das águas e do ar, bem como a diminuição da coberturavegetal, atingem o cotidiano da população, afetando diferencialmente os setoresmais pobres. A falta de alternativas de moradia popular e de lotes urbanos a preçosacessíveis, particularmente nas grandes cidades, forçou os grupos mais pobres dapopulação a ocupar ilegalmente espaços impróprios para assentamentos comoencostas íngremes, várzeas inundáveis, beiras de rio e cursos d’ água, áreas deproteção de mananciais, áreas de risco para o tipo de moradia precária dessapopulação, risco agravado pela ausência de infra-estrutura.

O atendimento na área do saneamento

O acesso aos serviços de água teve uma considerável expansão nas duasúltimas décadas, em conseqüência da prioridade concedida ao serviço pelo PlanoNacional de Saneamento – Planasa executado sob comando do BNH. Em 1991,de acordo com o Censo Demográfico, 65% do total de domicílios permanentestinham canalização interna abasteci da por rede geral de água, sendo que este índiceatinge 85,87% nas áreas urbanas e 6,8% nas rurais. As diferenças de atendimentoentre população urbana e rural igualmente refletem a estratégia da política desaneamento do BNH, uma vez que os dados mostram que se considerarmos osdomicílios que não possuem canalização interna, mas são servidos por rede geral, oíndice de domicílios servidos era de 70,71 %, sendo 87,81 % nas áreas urbanas e9,84% nas áreas rurais.

Com relação à cobertura de rede de esgotos, tem-se um quadro extremamenteprecário, uma vez que apenas 35,29% do total da população são servidos. Asvariações entre regiões dão uma dimensão das desigualdades existentes, conformeos dados a seguir. Enquanto na Região Norte apenas 1,33% dos domicílios estáligado à rede geral, no Nordeste esse número representa 8,88%, na Região Sudeste,que é melhor servida, o total de domicílios servidos representa 63,46%, na RegiãoSul, apenas 13,65%, e na Centro-Oeste 27,24%. Estes indicadores mostram onível de precariedade existente, onde 17,11 % dos domicílios brasileiros têm fossaséptica, 32% possuem fossas rudimentares e 14,68% não possuem qualquer tipode escoadouro.

Em 1989, 47,25% dos municípios possuíam alguma forma de serviço públicode esgotamento sanitário, sendo que apenas 12,2% utilizavam emissário paralançamento do esgoto coletado em corpos d’água e 7,79% realizavam algum tipo

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de tratamento, na maioria dos casos, lagoa de estabilização. Assim, constata-seque, além dos 52,75% dos municípios que não dispõem de serviço de coleta, amaior parte dos que dispõem realiza a coleta, mas não trata do esgoto coletado. Asdisparidades regionais são flagrantes: na Região Sudeste apenas 15% dos municípiostratam o esgoto coletado, na região Sul 7%, na Centro-Oeste 3,69%, no Nordeste3,63% e na região Norte 7,7% (IBGE, Pesquisa Nacional de Saneamento Básico,1989).

Ainda utilizando dados do Censo Demográfico de 1991, constata-se que80% dos domicílios urbanos brasileiros têm coleta de lixo, representando cerca de22 milhões de domicílios com cobertura desses serviços. Verifica-se portanto queuma parte considerável dos domicílios urbanos dá destinação inadequada para olixo produzido. Do total dos domicílios urbanos 8,51 % queimam ou enterram olixo, 11,55% jogam em terrenos baldios e outros locais e 0,72% dá outra destinaçãopara o lixo. Esses dados indicam que ainda perdura uma quantidade significativa dolixo produzido que não recebe tratamento adequado.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do IBGE, em1989, em todas as regiões do país o problema que se coloca é muito sério, uma vezque a maior parte é despejada em vazadouros a céu aberto (lixões). A maioria dosmunicípios brasileiros joga o lixo em vazadouros a céu aberto, totalizando 72% dolixo coletado e somente 47,14% do lixo coletado recebe tratamento adequado:24,66% em aterro controlado, 16,72% em aterro sanitário e 5,73% em usinas decompostagem, incineração e reciclagem. Somente 52,55% dos municípios brasileirosdeclararam ter recolhimento de lixo hospitalar, sendo que, entre esses, 74,63%despejam o lixo hospitalar em vazadouros a céu aberto e nos demais municípios olixo hospitalar é incinerado ou disposto em aterros especiais.

A adoção de vazadouro a céu aberto como solução para disposição finaldos resíduos representa um sério risco que não se circunscreve apenas à área ondese localiza. Pelo fato de não receberem qualquer tipo de tratamento e controle, oslixões liberam gases e substâncias líquidas de elevadas toxicidades que poluem o ar,o solo, os rios e aqüíferos subterrâneos e superficiais. Além de provocaremproblemas ambientais, contribuem para a degradação da paisagem urbana, afetandodireta e indiretamente a população que mora em suas vizinhanças. Esses problemasconcentram-se nos bairros periféricos, onde vivem as camadas mais pobres dapopulação.

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O atendimento às necessidades de transporte urbano

A situação precária dos transportes públicos urbanos, particularmente nasgrandes cidades brasileiras, decorre da prevalência dos deslocamentos por transporteparticular individual em detrimento da priorização do transporte coletivo. O custoda implantação e manutenção da infra-estrutura viária, da sinalização e da operaçãodo tráfego próprias para o automóvel, em face do atual quadro de incapacidade deinvestimento do Estado, tem impedido o atendimento adequado das necessidadesde transporte para a maioria da população.

A produção da indústria automobilística saltou de 914 mil automóveis/anoem 1990 para quase 1,8 milhões em 1995. O enorme contingente de veículosparticulares resultante dessa expansão circula hoje nas cidades sem que tenha havido,por um lado, preparo, aparelhamento e incremento nas atividades de gerenciamentodos transportes nem, por outro lado, incremento nos investimentos públicosnecessários.

Os sistemas metroviários, de responsabilidade dos estados, e os trensmetropolitanos, operados pelos estados e pela União, responsáveis por 8% dototal das viagens metropolitanas, não têm conseguido ampliar o atendimento dademanda devido à descontinuidade dos investimentos necessários e aos cortessubstanciais nos seus orçamentos. À exceção do Metrô de São Paulo, que tem sebeneficiado por fluxos regulares de recursos, os demais sistemas de alta capacidade,implantados no Brasil na década de 1970, não puderam ser expandidos ouconcluídos, deixando de cumprir seu papel de principal meio de transporte dasáreas onde foram implantados.

A poluição do ar e da água

Dentre as questões ambientais urbanas mais importantes no caso brasileiroalinha-se a poluição atmosférica. Os problemas ambientais gerados pela poluiçãodo ar nas grandes cidades brasileiras têm duas fontes: as fontes industriais e asfontes veiculares. Mas a principal fonte de poluição atmosférica ainda é o monóxidode carbono produzido pela frota de veículos, cujo crescimento resultou dodesenvolvimento da indústria automobilística, do baixo preço do petróleo e daexpansão das malhas rodoviária e urbana. Tais fatores levaram a opções equivocadasque priorizaram o transporte individual em detrimento do transporte coletivo e os

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sistemas rodoviários em detrimento dos transportes ferroviários e hidroviários nasgrandes cidades.

A inexistência de sistemas adequados de tratamento de resíduos líquidose sólidos, resultantes tanto das atividades econômicas (agrícola, industrial emineradora) quanto das atividades domésticas, tem provocado também altosíndices de poluição hídrica. Em relação ao setor industrial, destaca-se que amaior parte dos estabelecimentos com alto potencial poluidor da água localiza-se na região Sudeste, representando 52% do total, sendo que 21 % estão noNordeste e 19% no Sul. A concentração de estabelecimentos se dá nos estadosde São Paulo e Minas Gerais, representando respectivamente 31 % e 12% dopaís. Tal como no caso da poluição do ar, a grande concentração industrial eurbana apresenta elevadas cargas orgânicas e inorgânicas em relação àcapacidade assimilativa dos corpos receptores e torna suas águas imprópriaspara a maioria dos usos.

Estratégias de intervenção do Estado e da Sociedade

Persiste a desvinculação entre as políticas públicas de saneamento emeio ambiente, questão amplamente tratada na Consulta Nacional sobre a Gestãodo Saneamento e do Meio Ambiente Urbano, realizada em 1994 pelo InstitutoBrasileiro de Administração Municipal com o apoio do Programa de GestãoUrbana (PNUD/Habitat/Banco Mundial), envolvendo representantes do governoe da sociedade, em todas as regiões do país. As conclusões dessa ConsultaNacional apontam, entre outras, para uma tendência de criação de novosformatos institucionais capazes de propiciar uma gestão ambiental urbanaintegrada, mais eficiente, efetiva e democrática.

Não obstante, cabe lembrar uma ação governamental, em nível federal,que vem progressivamente agindo para a superação da mencionadadesvinculação das políticas ambientais e urbanas. Trata-se do Programa deZoneamento Ecológico Econômico do Território Nacional -ZEE, coordenadopela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República eexecutado pelos estados, de acordo com as diretrizes de descentralização.

Quanto às ações de saneamento, reiniciam-se as operações definanciamento à expansão e à melhoria dos serviços, com recursos do FGTS,

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através do Programa Pró-Saneamento, cujas prioridades são o atendimento àpopulação mais carente e a conclusão das obras já contratadas em todo o país.Coerente com as propostas de descentralização da execução das políticaspúblicas, o Programa transfere a colegiados estaduais, formados porrepresentantes de governo (estado e municípios) e da sociedade, o poderdecisório sobre as prioridades na alocação de recursos. Os empréstimos poderãoser concedidos, através da Caixa Econômica Federal, a órgãos e entidadesestaduais ou municipais.

A reformulação da política de saneamento e a modernização do setorsão objeto do Projeto de Modernização do Setor de Saneamento - PMSS,conduzido pela Secretaria de Política Urbana do Ministério de Planejamento eOrçamento e financiado com recursos do Banco Mundial. O PMSS é o trabalhomais abrangente, completo e ambicioso sobre saneamento já enfrentado pelopaís, o qual procura explorar novo ordenamento institucional, novos mecanismosde regulação e financiamento, inclusive o princípio poluidor-pagador, e novasalternativas de prestação de serviços.

Algumas alternativas de mobilização de capitais privados para o setortêm sido ensaiadas, mas não são passíveis de generalização uma vez que não sepode pretender substituir por completo o investimento público pela privatização.

A preocupação com os problemas ambientais gerados pelos transporteslevou ao desenvolvimento de tecnologias que utilizam fontes de energiarenováveis e aquelas de menor impacto no meio ambiente. Experiências deresultados animadores com a utilização de gás natural automotivo em frotas deônibus urbanos, frotas de táxis e veículos do serviço público têm sido realizadasem vários municípios.

O uso de tecnologias adequadas

A escassez de recursos para investimentos em face dos déficits de infra-estrutura levou a se prestar maior atenção às tecnologias de baixo custo,chamadas de “alternativas” ou “adequadas”. Isso porque a tecnologia“tradicionalmente usada para a execução desse tipo de obra tem altos custosde implantação dos serviços, custos que a grande maioria da população nãopode pagar.

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A dimensão dos problemas de esgotamento sanitário, onde se concentramos maiores déficits de cobertura em todo o país e cuja resolução por tecnologiaconvencional é extremamente onerosa, tem sido um campo fértil para aexperimentação com tecnologias de baixo custo. Exemplo mais conhecido eestudado é o saneamento condominal. A tendência observada é de extensão deseu uso, onde as condições técnicas o permitam, para todas as áreas urbanasdo país.

[BONDUKI, Nabil. Habitat e Qualidade de Vida: as práticas bem sucedidasem cidades brasileiras. In: BONDUKI, Nabil (org.). Habitat. As práticas bem-sucedidas em habitação, meio ambiente e gestão urbana nas cidadesbrasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 1997, 2a ed., p. 28-32.]

4. Exemplos de Questões

Concurso de 1997

√ “Segundo vários autores, a globalização e a questão ambiental seriam projetosassociados. Quanto ao primeiro, comenta o Professor Milton Santos, ‘háque se tomar cada lugar na Terra como uma fração do espaço mundial’. Poroutro lado, é uma máxima do movimento ambientalista internacional aafirmação ‘pensar globalmente, agir localmente’. Faça uma reflexão sobre arelação entre essas escalas no mundo contemporâneo, levando em contaseus possíveis reflexos sobre as soberanias nacionais.”

Concurso de 1998

√ “A percepção internacional acerca da questão ambiental foi se fortalecendoao longo das últimas décadas, num percurso que vem registrando significativasmudanças de concepção quanto ao equacionamento do tema. Tais mudançasficam bem mais evidentes nos documentos gerados por comissões econferências internacionais. Aponte os principais documentos elaboradossobre a matéria a partir da década de 1970 e comente as modificaçõesobservadas nos seus enfoques sobre a ‘questão ambiental’.”

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Concurso de 1999

√ “ A expressão ‘polígono das secas’ é de uso corrente na geografia regionalbrasileira. Localize com precisão tal área no território nacional e descreva osmecanismos atmosféricos que determinam, estrutural e sazonalmente, sua situaçãoclimática.”

5. Bibliografia

Bibliografia Básica

BECKER, Bertha K. e MIRANDA, Mariana (orgs.). A Geografia Política doDesenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

CAV ALCANTI, Clóvis et alli. Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentávele Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1997.

DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo:Hucitec, 1996.

Bibliografia Complementar

MORAES, Antônio Carlos R. Meio Ambiente e Ciências Humanas. São Paulo:Hucitec, 1993.

__________.Contribuições para a Gestão da Zona Costeira do Brasil:elementos para uma geografia do litoral brasileiro. São Paulo: EDUSP/Hucitec, 1999.

SOUZA, Maria Adélia A. et alli. Natureza e Sociedade de Hoje: uma LeituraGeográfica. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1994.

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Título

Autora

Editoração Eletrônica

Revisão de Texto

Formato

Mancha Gráfica

Tipologia

Papel

Número de páginas

Tiragem

Impressão e acabamento

Manual do Candidato - Geografia

Regina Célia Araújo

Paulo Pedersolli e Cláudia Capella

José Romero Pereira Júnior

21 x 29,7 cm

13 x 25,9

Times New Roman 12/17,8

Cartão Supremo 240g2 (capa)

AP 75g2

184

1.500 exemplares

Gráfica Brasil