MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

download MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

of 17

Transcript of MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    1/17

    A Aldeia Ausente

    ndios Caboclos Escravos e Imigrantes na Formao do Campesinato Brasileiro

    Mrio Maestri*

    A Formao do Campesinato no Brasil

    Em meados do sculo 20, orientados por necessidades polticas, e apoiados nas teses aprovadas,em 1928, pelo 6 Congresso da Internacional Comunista sobre os pases coloniais, que defendiam a

    aliana dos trabalhadores burguesia nacional ,2 cientistas sociais brasileiros deduziramliteralmente a gnese do campesinato brasileiro do desenvolvimento daquela categoria na Europa.

    Essa leitura ideolgica e mecanicista do passado contribuiu para bloquear o estudo e acompreenso das profundas especificidades do desenvolvimento histrico da formao socialbrasileira. Acomodando a realidade nacional a categorias e processos europeus, essas vises

    primaram por desconhecer importantes vias singulares da formao do campesinato no Brasil, vistocomo categoria constitutiva desde os primeiros momentos da colonizao lusitana.Ainda em 1963, Alberto Passos Guimares propunha: Jamais, ao longo de toda a histria da

    sociedade brasileira, esteve ausente, por um instante sequer, o inconcilivel antagonismo entre aclasse dos latifundirios e a classe camponesa, tal como igualmente sucedeu em qualquer tempo e em

    qualquer parte do mundo. 3Em verdade, esses analistas despreocuparam-se at mesmo com umadefinio da categoria campons que permitisse o acompanhamento efetivo da sua formao noBrasil.

    Acreditamos que tenham sido sobretudo cinco asviasque levaram formao do campesinatobrasileiro propriamente dito, categoria que se encontra, atualmente, em acelerado processo desuperao devido a sua crescente submisso produo e ao mercado capitalistas. Ou sejam: as viasnativa,cabocla, escravista, quilombola ecolonial.

    O desconhecimento da singularidade da formao do campesinato brasileiro tem diludo acompreenso das decorrncias de importantes singularidades davia colonialessenciais compreensode aspectos determinantes da histria nacional, entre elas, a fragilidade e o carter tardio da formaodo campesinato brasileiro propriamente dito.

    A Categoria Campons

    Compreendemos como unidade produtiva camponesa o ncleo dedicado a uma produoagrcola e artesanal autnoma que, apoiado essencialmente na diviso e na fora de trabalho familiar,

    volta-se satisfao das necessidades de subsistncia. A mercantilizao de parte da produo buscaenfrentar necessidades superadas atravs das trocas e da economia monetria.Nas comunidades camponesas, as prticas agrcolas depassaram claramente o nvel horticultor,

    j que delas dependem dominantemente a subsistncia da comunidade familiar. A unidade produtivacamponesa articula-se em forma diferenciada com a diviso do trabalho, atravs da esfera mercantilsubordinada. O artesanato, a pesca, a coleta, etc. desempenham papis eventualmente importantesmas secundrios.

    O ncleo familiar campons mantm posse relativamente estvel sobre a terra, quando no

    1. Agradecemos a leituras do texto do engenheiro-agrnomo Humberto Sorio Junior, professor da

    Faculdade de Agronomia da UPF e2. Cf. FRANK, Pierre.Histoire de lInternationale Comuniste. Montreuil: La Brche, 1979. pp.603-7.3 . Cf. GUIMARES, Alberto Passos.Quatro sculos de latifndio. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, sd.

    p.110.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    2/17

    possui sua propriedade, o que lhe permite investir trabalho na incrementao da rentabilidade da terrae da explorao drenagem, irrigao, desempedramento, benfeitorias, cultivos perenes, etc.

    Mesmo quando apenas parte dos ncleos familiares residem na aldeia, a comunidadecamponesa apresente-se comumente como comunidade alde tendencialmente autnoma, devido

    necessidade de defesa e domnio do territrio de trocas matrimoniais e econmicas de acesso aofcios e servios especializados, etc.

    A clara dominncia das prticas agrcolas na unidade camponesa nasce de desenvolvimentomnimo dos meios e tcnicas produtivas que se expressam eventualmente em agricultura intensiva ousemi-intensiva permitida pelo uso da trao animal de arados mais ou menos complexos deferramentas de ferro de tcnicas de irrigao, adubao, rotao de vegetais, etc.

    A produo camponesa superao qualitativa da produo domstica [horticultora], que seapoia em tcnicas extensiva, ferramentas simples e possui o fogo e a fora humana como nicasformas de energias. A continuidade entre a produo domstica e a camponesa tendem a confundir osnveis mais elevados da primeira forma de produo com os menos desenvolvidos da segunda.

    Classe em si classe para si

    A propriedade capitalista naturalmentevista pelo trabalhador como meio de expropriao desua fora de trabalho e dos bens que produz. Para o campons, em sua relao com o capital, a

    propriedade privada aparece como garantia de sua sobrevivncia e de sua famlia.4

    Os camponeses detentores de parcelas constitutem uma massa imensa, cujos membros vivemem situao idnticas, mas sem que entre eles existam mltiplas relaes. O seu modo de produoisola-os uns dos outros, em vez de os levar a um intercmbio mtuo. [...] Na medida em que subsisteentre os camponeses detentores de parcelas uma conexo apenas local e a identidade dos seusinteresses no gera entre eles nenhuma comunidade, nenhuma unio nacional e nenhuma organizao

    poltica, no formam uma classe. So portanto, incapazes de fazer valer o seu interesse de classe meseu prprio nome.5

    Comunidades Aldees

    Antes da chamada Descoberta, a ocupao territorial do Brasil dava-se em ritmo desigual emrelao sobretudo a importantes regies da Amrica. O que ajuda a compreender a profundadiversidade entre as formaes sociais brasileiras e da Meso-Amrica e dos Andes Centrais.

    Em regies dos atuais territrios da Bolvia, Colmbia, Equador, Guatemala, Mxico, Peru,etc., desenvolveram-se slidas comunidades aldes que praticaram produo agrcola intensivabaseada sobretudo no milho e na batata. Essa tradio agrcola desconheceu o arado, a trao animal ea associao gado-agricultura.

    Apoiada na enxada e no basto de plantar [simples e desenvolvido] e, eventualmente nairrigao adubamento terraceamento e silagem, essa cultura agrcola apesar de envolver apenas 5%dos territrios do continente americano, assegurou-lhe 90% de sua populao, com densidades

    demogrficas entre 35 a 40 habitantes por km2.As sociedades agrcolas americanas avanadas apoiavam-se na famlia nuclear e na

    comunidade alde, fortemente cimentada pelos laos que mantinha com terrenos agrcolaspotenciados pelo trabalho. Essas terras eram de domnio comunitrio e os vnculos parentais e vicinais

    4. BONAMIGO, Carlos Antnio. O trabalho cooperativo como princpio educativo: a trajetria de umacooperativa de produo agr

    5. MARX, Karl.O 18 Brumrio de Lus Bonaparte.Lisboa: Avante, 1982. P. 126-7.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    3/17

    muito fortes.6

    Os atuais territrios do Brasil jamais conhecerem comunidades americanas que dominassemformas de produo agrcola avanada. Originrias da Amaznia Central, as comunidades de culturatupi-guarani constituram o complexo civilizatrio horticultor mais desenvolvido jamais estabelecido

    nessas regies, antes da colonizao lusitana. Acredita-se que as demais comunidades americanashorticultora da regio tenham absorvido e adaptado a horticultora agrcola tupi-guarani.

    Horticultura Braslica

    Em 1500, nas terras do litoral, relativamente mais frteis do que as do interior, viviapopulao estimada em um milho de americanos. Nessa poca, as matas que cobriam a longa faixalitornea que se estendia do cabo de So Roque, no atual Rio Grande do Norte, ao Rio Grande do Sul,eram habitadas por aproximadamente 600 mil nativos de lngua tupi-guarani tupinambs, sobretudo,

    e guaranis, em menor quantidade.7

    De 150 a 250 tupi-guaranis viviam em aldeias independentes, estabelecidas em territrios dedomnio comunitrio, dedicados caa, pesca, coleta e horticultura. Em mdia, uma aldeia tupido litoral necessitava um territrio de uns 45 km. Portanto, uma ocupao demogrfica de densidadesignificativamente baixa, sobretudo em relao aos nveis alcanados nas regies assinaladas da Amrica

    Central e Andina.8

    Os tupi-guaranis praticavam horticultura parcelar, familiar e extensiva de subsistncia, em reaflorestal tropical e subtropical. Essa produo apoiava-se nos diversos tipos de milho (Zea mays), defeijo (Phaseoluse Canavalia), de batata-doce (Ipomoea batatas) e, sobretudo, de mandioca (Manihotesculenta) raiz provavelmente originria do litoral tropical brasileiro, rica em amido, excelente fontede energia, que se torna alimento quase perfeito quando ingerido com qualquer fonte protica como ascarnes.

    Alm de outros gneros, essas comunidades exploraram igualmente o car (Dioscora sp), oamendoim (Arachis hypogaea), a abbora (Cucurbita), a banana, o abacaxi, o tabaco, o algodo e aspimentas. Fatores geo-ecolgicos e sobretudo o nvel de desenvolvimento civilizatrio determinavam

    que a prtica horticultora tupi-guarani assumisse carter itinerante.9

    A tcnica de base dessas prticas horticultoras coivara nascia da abundncia e da qualidade dasterras da ausncia de ferramentas desenvolvidas do desconhecimento da fertilizao das terras e daescassez relativa de braos. A horticultura tupi-guarani assentava-se sobre o uso da energia humana edo fogo, desconhecendo o arado, a trao animal, a irrigao e a adubao em larga escala, a no serem forma embrionria.

    Cultura de Plantao Enxertia

    Os tupi-guarani praticavam horticultura de plantao enxertia tutorada, sobretudo, no cultivo das

    6. Cf. CARDOSO, C.F.C & BRIGNOLI, Hctor Prez. Histria economica de Amrica Latina. I. 4 ed.Barcelona: Crtica, 1987. pp.128Inka. SORIANO, Waltdemar E. [Org.] Los modos de produccin en elImperio de los Incas.Lima: Amaru, 1981. pp. 213-30.

    7. Cf. MAESTRI, Mrio. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e genocdio tupinamb no litoralbrasileiro. [sculo XVI]. PFAUSTO, Carlos. Fragmentos de histria e cultura tupinamb. CUNHA, M.C. da[Org.]Histria dos ndios do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras Braslia: CNPq, 1992. p. 383.

    8. Cf. FERNANDES, Florestan.A funo social da guerra na sociedade tupinamb. 2 ed. So Paulo: Pioneira,

    1970. p. 55.9. Cf. GALVO, Eduardo. Elementos bsicos da horticultura de subsistncia indgena. REVISTA DO MUSEU

    PAULISTA. Nova Srie, XIV. RIBEIRO, Darcy [Ed.]. Suma etnolgica brasileira. 2 ed. 1. Etnobiologia.Petrpolis: Vozes\FINEP, 1987. p. 69.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    4/17

    mandiocas. Este tipo de cultura, realizada atravs da replantao de frao do caule ou do rebento noexige sementes e possui rendimento relativamente elevado. Nesse tipo de cultura, em geral, os produtos

    so conservados nas plantaes at o momento do consumo, pois degradam-se com facilidade. 10

    As operaes horticultoras tipi-guaranis eram simples. Antes das chuvas, abria se clareira na

    mata virgem com machados de pedra polida, abatendo-se apenas as rvores pequenas e mdias. Essasferramentas, com uns 500 gramas de peso, permitiam derrubar, em quatro horas, uma rvore de madeiraresistente de uns 30 cm. de dimetro, na altura do corte. A derrubada das matas e a limpeza dos terrenoseram tarefas desenvolvidas em forma associada pelos homens de uma residncia coletiva maloka ou

    da aldeia taba.11

    Aberta a clareira, deixava-se tudo secar, de duas semanas a dois meses. A seguir, lanava sefogo. A queima dos troncos e dos ramos limpava os campos e libertava quantidades de nutrientesminerais que aumentavam a fertilidade dos terrenos. Esse mtodo de limpeza causava importantes

    danos ao ecossistema.12

    As mulheres ocupavam se dos trabalhos agrcolas restantes. Aps preparo superficial dos

    terrenos, plantavam se hortas familiares heterogneas de aproximadamente meio hectare.13Os pedaosde mandioca eram enterrados na terra. Os gros de milho eram plantados com a ajuda de basto simples

    pontudo de madeira, ferramenta feminina por excelncia.14

    Ao contrrio da agricultura cerealfera, a horticultura de plantao enxertia, essencialmentefamiliar, dispensa o uso de equipes de trabalhadores para a realizao de obras coletivas adubamento, irrigao, terraplanagem, etc. que incorporem trabalho pretrito terra, aumentandosua produtividade. Ela dispensa igualmente pesadas tarefas cclicas como a guarda, beneficiamento,colheitas, transporte, etc., que tornem os alimentos parcialmente produtos do trabalho comunitrio. Astarefas da horticultura podem ser realizadas por uma s pessoa isolada. Entretanto, elas envolvemtrabalho comumente dirio de combate a pragas, extirpao de ervas competidoras, etc., realizados em

    geral em forma associada.

    Grupos Aldees Frgeis

    A cultura de plantao enxertia no enseja a formao de grandes estoques, conservados emceleiros. Os tupi-guaranis colhiam os produtos para serem consumidos imediatamente, j que apenas asdiversas variedades de mandioca permitem conservao mais longa. Aps crescimento de seis meses, amandioca resiste, madura, sob a terra, por pouco mais de um ano. Para ser consumida, ela necessitavacomplexas manipulaes, entre elas, a extrao do cido ciandrico, venenoso, realizadas pelas mulheres.15

    As determinaes gerais da horticultura de plantao-enxertia ensejavam frgil coeso dos

    grupos sociais aldees.16Os membros de umatabatupi lutavam coesos pelo controle dos territrios

    10. Cf. MEILLASSOUX, Claude.Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento, 1977. p. 51 71.11 Cf. IHERING, Hermann von. Os machados de pedra dos ndios do Brasil e o seu emprego nas derrubadas

    de mato. REVISTA DO INSTIT426-33.12. Cf. STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo: EDUSP, 1974. p.162

    ABBEVILLE, Claude d'. Hist. Belo Horizonte, Itatiaia So Paulo: EDUSP, 1975. p. 226 RIBEIRO, Darcy[Ed.].Suma etnolgica brasileira. 2 ed. 3. Ob.cit. p. 47.

    13. Cf. GALVO, Eduardo. Elementos bsicos da horticultura de subsistncia indgena. Ob.cit. p. 126.14. Cf. ABBEVILLE. Histria da misso dos padres capuchinhos na Ilha de Maranho. Ob.cit. p. 242

    GALVO. Elementos bsicos da 125.15 Cf. MAESTRI, Mrio. A agricultura africana nos sculos XVI e XVII no litoral angolano. Porto Alegre:

    EdUFRGS, 1978. p. 87.16 Cf. CHILDE, V. Gordon.La naissance de la civilization. Paris: Mdiations, 1964, p. 66.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    5/17

    comunitrios, exigidos por seu modo de produo. Porm, a cada trs a cinco anos, transferiam aaldeia para alguns quilmetros de distncia, sobretudo devido degenerao das condieshiginico-ambientais e ao esgotamento dos recursos fornecidos pela caa e coleta.

    O deslocamento das plantao, permitido pela abundncia da terra, mantinha eficientemente o

    estado sanitrio das culturas, atravs da quebra do ciclo dos agentes causadores das enfermidades nosvegetais, hoje em dia obtido precariamente e com altos investimentos atravs do uso intensivo deprodutos agroqumicos industriais.

    Os aldees tupis mudavam o local das aldeias, portando apenas armas e instrumentosfamiliares. Era tambm comum que as aldeias fracionassem-se durante a transferncia, quandoultrapassavam o tamanho ideal determinado pelo modo de produo em vigor. Essa ruptura noensejava grandes tenses, j que no havia produo nos celeiros para dividir, desconhecia-se culturas

    de ciclo longo e no se incorporara trabalho terra.17

    O modo de produo horticultor tupi-guarani diferenciava-se dos das comunidades camponesaseuropias alems, italianas, polonesas, etc. , assentadas na agricultura cerealfera em gneros deciclo longo no arado na trao animal na adubao na irrigao na rotao de vegetais, etc. Essemodo de produo ensejava comunidades aldes coeridas pela posse do celeiro e domnio de umaterra produtivamente potenciada pelo trabalho pretrito. Como vimos, eram tambm importantes a

    diferena das prticas tupi em relao s das comunidades andinas e meso-americanas.18

    Latifndio Territorial

    Em 1532, superado o perodo inicial de trocas de produtos americanos e europeus no litoral escambo , os portugueses iniciaram a colonizao territorial do litoral braslico atravs da

    organizao de grandes plantaes escravistas de cana-de-acar, sobretudo.19

    A tradio da produo escravista do acar fora desenvolvida nos sculos anteriores na bacia

    do Mediterrneo e, a seguir, nas ilhas atlnticas Madeira e So Tom. As costas do nordeste doBrasil, prximas dos mercados consumidores europeus, ocupadas em grande parte por comunidadestupinambs, adaptavam-se maravilhosamente plantao de canas-de-acar. A expanso da

    produo escravista aucareira foi superao das prticas mediterrneas e atlnticas.20

    O modo de produo tupi ensejava sociedade assentada na associao livre de ncleos deprodutores familiares independentes. Era limitada a autoridade do chefe principal sobre os membrosde umamaloka. O chefe databamorubi'xawa comandava os aldees discricionariamente apenas naguerra. No havia centralizao inter-alde permanente. A autonomia das aldeias e os escassos vnculos

    com a terra facilitaram a conquista-extermnio-absoro dessas comunidades.21

    A sociedade aldeo horticultura tupi-guarani foi a mais elevada e macia experincia

    proto-camponesanativa praticada nos atuais territrios do Brasil. Ela foi destruda pela escravizao

    17. Cf. METRAUX, Alfred.La civilization matrialle des tribus Tupi-Guarani. Paris: Paul Geuthner, 1928 p.4 EVREUX, Ivo d'. Vi. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1929. p. 72 RIBEIRO, Darcy [Ed.]. Sumaetnolgica brasileira. 2 ed. 2. Ob.cit. p. 43.

    18. Cf. MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 KAUTSKY, Karl. Lacuestion agraria.Mexico: Cultura

    19. Cf. MARCHANT, Alexander. Do escambo escravido: As relaes de portugueses e ndios nacolonizao do Brasil. 1500 1580.MAESTRI, M.Os senhores do litoral.Ob.cit.

    20. Cf. AZEVEDO, J. Lcio de. pocas de Portugal econmico : Esboos de histria. 4 ed. Lisboa:Clssica, 1978 CANABRAVA,A.O acar nas Antilhas. (1697 1755). Paulo: IPE/USP, 1981

    SIMONSEN, Roberto C.Histria econmica do Brasil. (1500 1820). 7 ed. So Paulo: CEN Braslia: INL,1977.21. Cf. SALVADOR, Frei Vicente do.Histria do Brasil. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia So Paulo: EDUSP,

    1982. p. 78 STADEN,Hans. Duas viagens ao Brasil. Ob.cit. p. 164.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    6/17

    dos nativos e pela expanso do latifndio e das fronteiras agrcolas.22

    Devido a isso, ao contrrio do ocorrido nas regies americanas assinaladas, foi desprezvel acontribuio da via indgena formao da comunidade camponesa nacional. Em verdade, elarestringiu-se s raras comunidades nativas independentes e s comunidades nativas vivendo em

    reservas. A escassa contribuio da via indgenana formao do campesinato brasileiro expressa-seigualmente no desaparecimento do tupi-guarani como lngua coloquial do Brasil, apesar de ter

    constitudo o principal meio de comunicao do litoral, nos sculos 16, 17 e parte do 18. 23

    Civilizao Cabocla

    Foram numerosos os americanos que se adaptaram sociedade latifundiria-exportadoraatravs de processo de superao - degenerao das tradies aldes nativas. Grande parte dessapopulao dedicou-se economia familiar no alde de subsistncia, apoiada na caa, pesca, coleta ehorticultura itinerante, em regio florestal, na periferia da sociedade oficial. A manuteno de

    determinaes de base da horticultura nativa coivara subsistncia plantas de ciclo curto produofamiliar instrumentos rsticos, etc. mantiveram e aprofundaram a fragilidade dos laosinter-familiares e dos vnculos permanente com a terra.

    O nativo semi-aculturado foi denominado de caboclo.Com o passar dos anos,caboclopassou adesignar todo e qualquer indivduo nacional dedicado economia agrcola de subsistncia. Dedenominao tnico-produtivo o termo passou a descrever essencialmente realidade social-produtiva.O caboclo mantinha relao de posse no-permanente com a terra que, associada a suadestribalizao, ensejaram o fim do domnio e controle comunal do territrio.

    O carter temporrio da ocupao da terra pelo caboclo expressa-se na ausncia de lavourasperenes e no carter sumrio de sua moradia e benfeitorias, que podiam ser reconstitudas emquesto de dias, e de seus equipamentos, capazes de serem carregados nas costas de um homem.

    A simplicidade, precariedade e autonomia dessa residncia expressa-se no fato de que,comumente, no necessita de um nico prego, dobradia, ou qualquer material a ser comprado.24

    Nesse tipo de construo, eram usados apenas recursos naturais disponveis nas proximidades do local esteios de madeira, folhas de palmeira para a cobertura dos ranchos, etc.

    Em geral, medida que avanou a fronteira da agricultura mercantil, as comunidades caboclasabandonaram as terras que detinham, sob a forma de posse, por novas terras, enquanto existiram. Ascomunidades caboclas podiam ser expulsas pelo latifndio ou pela expanso da fronteira agrcolacamponesa colonial. Marilda Gonalves da Silva lembra, ao analisar o vale do Itaja, em SantaCatarina: O crescimento da colnia fez os colonos cobiarem as terras dos sertanejos ou posseiros,como eles mesmo se denominavam. Estes, recebendo pequena indenizao pela morada e

    benfeitorias [...], mudavam-se para uns quilmetros acima.25A terra abandonada no possua plantaes perenes e trabalho pretrito coagulado a serdefendido. A inexistncia da aldeia sedentria comolocusde formao de slidos laos familiares ealdees, determinada pelo modo de produo praticado pelas comunidades caboclas dificultou aresistncia expanso dos latifndios.

    A pobreza material dessa economia e a fragilidade de seus laos aldees ensejaram igualmente

    22 Cf. MAESTRI, M.Os senhores do litoral.Ob.cit. VAINFAS, Ronaldo.A heresia dos ndios: catolicismoe rebeldia no Brasil c

    23. Cf. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mrio. Corrigir e dominar: consideraes sobre lngua, histria epoder no Brasil. REVISTA

    24. DIAS, Gentil Martins.Depois do latifndio: continuidade e mudana na sociedade rural nordestina. Rio deJaneiro: Tempo Bras25. SILVA, Marilda R.G. Ch. Gonalves da.Imigrao italiana e vocao religiosas no Vale do Itaja.

    Campinas: EdiFURB/EdUNICA

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    7/17

    produo cultural pobre, que contribuiu igualmente para essa fragilidade. Foi igualmente frgil aoposio das comunidades caboclas expanso do latifndio, mesmo quando escasseou a terra.

    Em casos extraordinrios, fenmenos ideolgicos de cunho religioso e mgico funcionaramcomo vetores aglutinadores da resistncia cabocla diante da ameaa da perda das terras controladas

    Canudos, Contestado, etc.26Essa verdadeiracivilizao caboclamantm-se em forma declinanteat hoje, na periferia e nos interstcios da fronteira agrcola mercantil. Ela foi essencial na formaodo campesinato nacional.

    Escravismo Colonial: O Campons Ausente

    De 1530 a 1888, a antiga formao social brasileira foi hegemonizada pelo modo de produo

    escravista colonial27, apoiado na explorao da mo-de-obra escravizada nativa, inicialmente, e

    africana, a seguir.28

    A necessidade da plantao escravista mercantil ensejou a apropriao latifundiria da terra,

    atravs da antiga lei portuguesa das sesmarias, que entregava grandes extenses de terra,gratuitamente, aos lusitanos capazes de organizarem explorao latifundirias mercantis. Nesseprocesso, o proto-campesinato tupi-guarani foi expropriado de suas terras e da autonomia que

    desfrutavam.29

    Na Amrica, o Brasil foi a nao americana que importou o maior nmero de trabalhadoresescravizados: dos nove a quinze milhes de africanos chegados com vida na Amrica, trs a cinco

    desembarcaram no litoral brasileiro.30

    Os africanos escravizados eram mais comumente camponeses aldees que perdiam a liberdadedevido violncia pura ou a motivos polticos e econmicos. Em geral, as mulheres eram retidascomo esposas na frica e os homens vendidos nos entrepostos europeus da costa. Na frica banto,

    grande celeiro de cativos americanos, o trabalho agrcola era tarefa feminina, como nas sociedadestupi-guaranis. 31

    Como fora comum na Grcia e em Roma escravistas, apenas nas cidades os cativos produziramem forma semi-autnoma. Em meio rural, tinham seus atos produtivos e no-produtivos estritamente

    dirigidos e controlados, contando com escassa autonomia individual e produtiva.32

    26. Cf. FAC, Rui. Cangaceiros e fanticos: gneses e lutas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1972

    QUEIROZ, Maria IsauraO messianismo no Brasil e no Novo Mundo. So Paulo: Dominus/EDUSP, 1965VILLA, Marco Antnio. Canudos: o povo da terra. So Paulo: tica, 1995 MACEDO, Jos R. &MAESTRI, Mrio.Belo Monte: uma histria da guerra de Canudos. So Paulo: Moderna, 2 ed. 1997.

    27. Cf. GORENDER, Jacob.O escravismo colonial.5 ed. ver. e ampl. So Paulo: tica, 1988.28. Cf. MONTEIRO, John Manuel. Negro da Terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So

    Paulo: Companhia das Letras29. Cf. MAESTRI, Mrio.Uma histria do Brasil: A Colnia: Da descoberta crise colonial. 2 ed. So Paulo:

    Contexto, 1996.30. Cf. FREITAS, Dcio.O escravismo brasileiro.Porto Alegre: EST: Vozes, 1980. pp. 10-2 GORENDER,

    Jacob. A escravido reabiliSo Paulo: tica, 1990. pp.120, 138-138-40 MAESTRI, Mrio. Servidonegra: trabalho e resistncia no Brasil escravista Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. pp. 33-4.

    31. Cf. MAESTRI, Mrio. Servido negra. Ob.cit. CAPELA, Jos. Escravatura : a empresa de saque. Oabolicionismo. (1810-1875). PMe negra. Lisboa: S da Costa, 1978 MEILLASSOUX, Claude.Antropologia da escravido: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1995

    32. Cf. GARLAN, Yvon. Les escalves en Grce Ancienne. France, Maspero, 1982 GIARDINA, A. &SCHIAVONE, E. (Org.) Societ romana. I. L'Italia: insediamenti e forme economiche. Roma-Bari,Laterza, 1981 STAERMAN, E.M. & TOFIMOVA, M.L.La schiavit nell'Italia Imperiale. Roma, Riuniti,1975 MAESTRI, Mrio. Oescravismo antigo. 17. So Paulo: Atual, 1999.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    8/17

    Trabalho Servil

    As prticas agrcolas escravistas assentaram-se na grande lavoura de exportao. Os trabalhosagrcolas eram realizados por grupos de cativos feitorizados eitos que utilizavam ferramentas

    muito rsticas. A escravido brasileira praticamente desconheceu o arado. Seu principal instrumentofoi o enxado pesado e resistente. Nas plantagens, a policultura era prtica marginalizada. A produoescravista mercantil determinou que os produtores diretos no estabelecessem qualquer vnculos deposse e propriedade com a terra trabalhada.

    Fora casos extraordinrios, a reproduo da populao escravizada deu-se essencialmente

    atravs do trfico, primeiro transatlntico, a seguir interprovincial.33O escravismo ensejou formassingulares e bastardas de vnculos familiares entre a populao cativa. Mais do que falar de famlia

    escrava, temos que falar dos tipos singulares de famlias de trabalhadores escravizados.34

    A produo autnoma de cativos, nos domingos, de meios de subsistncia, em nesgas de terras,foi fenmeno extraordinrio e assistemtico no escravismo brasileiro. Ele tendeu a dissolver-se

    quando da acelerao da economia escravista. Tal fato e a subordinao, no interior das unidadesprodutivas, dessas prticas extraordinrias s exigncias da produo mercantil, determinaram a

    inexistncia do proto-campesinato negro proposto pelos defensores da brecha camponesa.35

    A abolio da escravido, em 1888, nica revoluo social vitoriosa no Brasil36, deu-se nocontexto da importncia decrescente de uma classe escravizada concentrada nas grandes fazendas

    cafeicultoras.37

    Sobretudo no Centro-Sul, os cativos mobilizaram-se por suas liberdades civis, ignorandotendencialmente a luta por uma terra com a qual praticamente no mantinham vnculos positivos. NoBrasil, quando da Abolio, os cativos desertavam para as cidades ou alugaram seus braos nasfazendas, sem se mobilizarem pela posse da terra. Ex-cativos dedicaram-se igualmente a uma

    produo cabocla, como veremos a seguir.

    Fragilidade do Campesinato Negro

    O carter socializado e feitorizada da explorao da terra nos latifndios a debilidade esingularidade da famlia escrava a singulariedade das hortas dos cativos a coeso da apropriaolatifundiria foram fatores contribuintes para a inexistncia de campesinato negro substancial, antes,quando e aps a Abolio.

    Esses fatores contriburam igualmente fragilidade da cultura de razes escrava eafro-descendentes nos campos, fenmeno que se expressou no desaparecimento de lnguas,koinsefalares crioulos de origens africanas, apesar dos milhes de locutores africanos que conheceu o Brasil.

    33. Cf. CONRAD, Robert. Tumbeiros: o trfico escravista para o Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1985SALVADOR, Jos Gonalves.Os magnatas do trfico negreiro : sculos XVI e XVII. Jos GonalvesSalvador. So Paulo: Pioneira EDUSP, 1981.

    34. Cf SLANES, Robert W. Escravido e famlia: padres de casamento e estabilidade familiar numacomunidade escrava (Campinas, sA paz das senzalas:famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro,c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997. PRAXIS, Minas Gerais, ano V, n. 11,

    pp.155-7.35. Cf. CARDOSO, Ciro F. Escravo ou campons? O protocampesinato negro nas Amricas. So Paulo:

    Brasiliense, 1987 Cf. GORENDER,A escravido reabilitada.So Paulo: tica, 1990. pp. 70-86.36. Cf. GORENDER, Jacob.A escravido reabilitada.Ob. Cit.. pp. 132-88 GORENDER, Jacob.A burguesia

    brasileira. So Paulo: BrasAlm d: Brasil sculos XIX e XX. Pernambuco: Fundao Joaquim NabucoMassangana, 2001. pp. 49-77.37. Cf. COSTA, Emlia Viotti.Da senzala colnia. 2 ed. So Paulo: Cincias Humanas, 1982 CONRAD,

    Robert.Os ltimos anos da: 1850 1888. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, Braslia: INL, 1975.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    9/17

    38A ao poltica das elites dificultou o desenvolvimento e consolidao de campesinato de

    origem nacional. A Repblica constituiu tambm resposta dos latifundirios ao movimentoabolicionista nacional-reformista que defendia a formao de classe de pequenos proprietrios atravs

    de distribuio de terra s classes livres pobres nacionais caboclos, ex-escravos, etc.Nos ltimos anos do cativeiros, expressando importantes correntes de opinio do movimento

    abolicionista, Andr Rebouas propunha ser a abolio do latifndio complemento inseparvel daabolio do escravo [sic], e defendia que a elevao do negro pela propriedade territorial seria o

    nico meio de impedir a sua reescravizao.39

    Na defesa do Terceiro Reinado, Pedro II aproximou-se das comunidades negras libertas. Na sualtima Fala do Trono, props a aprovao de lei que regularizasse a propriedade territorial efacilitasse a aquisio e cultura das terras devolutas , concedendo ao governo o direito deexpropriar, no interesse pblico, as terras que confinam com as ferrovias, desde que no sejam

    cultivadas pelos donos.40 Os empregados das ferrovia faziam seus cultivos de sobrevivncia nas

    faixas de domnio das ferrovias 20 metros para cada lado do eixo central , surgindo da a expressocomprida que nem lavoura de tuco.41

    O historiador Robert Conrad chega a caracteriza a Repblica como verdadeiracontra-revoluopoltica que, entregando o poder s oligarquias agrrias regionais, barrou reformada ordem fundiria, consolidando o poder oligrquico em todo o Brasil, exceo do Rio Grande do

    Sul.42

    Fragilidade da Via Quilombola

    Durante a escravido colonial, cativos fugiram para os sertes onde formaram pequenas,mdias e grandes comunidades camponesas clandestinas, conhecidas pelos nomes de quilombos,mocambos e palmares. Na maioria das vezes, essas comunidades possuam algumas dezenas de

    habitantes. Alguns delas congregaram centenas e at milhares de membros.43

    Havia quilombos na periferia das cidades aplicados rapinagem nas cercanias de estradas oucaminhos dedicados nas florestas ao extrativismo explorando a economia pastoril envolvidos com aminerao do ouro e a cata de diamantes. Porm, os quilombos dedicados agricultura desubsistncia foram certamente os mais comuns e mais populosos.

    Nos mocambos agrcolas, os quilombolas plantavam roados de abboras, feijo, mandioca,milho, cana de acar. Praticavam a pesca, caa, coleta. Criavam galinhas, porcos, cabras e outrospequenos animais. Neles, viviam em cabanas individuais ou coletivas e trocavam comumente aproduo excedente nas vilas e fazendas mais prximas.

    A existncia dos quilombos foi sempre precria. Em verdade, fora casos excepcionais, como a

    38. Cf. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mrio. Corrigir e dominar: consideraes sobre lngua, histria epoder no Brasil. Ob.cit.

    39. FAC, Rui. Notas sobre o problema agrrio. MARINGHELA, Carloset al. A questo agrria no Brasil.2 ed. So Paulo: Debat

    40. VILLA, Marco Antnio.Canudos: o povo da terra. So Paulo: tica, 1995. pp. 97-9.41. Tuco: Homem que trabalha na conservao do leito das ferrovias. Depoimento do engenheiro-agrnomo

    Humberto Srio Jnior.

    42 Cf. CONRAD, Robert E. A ps-abolio: a reao dos fazendeiros e a queda do Imprio.[ex.datilografado] GORENDER, Jacob.ASo Paulo: tica, 1990. p. 186.43. Cf. REIS, J.J. & GOMES, Flvio dos Santos.Liberdade por um fio: histria dos quilombos no Brasil. So

    Paulo: Companhia das

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    10/17

    confederao dos quilombos dos Palmares44, eles reproduziram-se demograficamente com extrema

    dificuldade ou no alcanaram a faz-lo.45

    As razes da dificuldade dos quilombos de se reproduzirem eram endgenas e exgenas. Emtorno de dois teros dos africanos desembarcados no Brasil eram homens. No raro, as cativas viviamvida relativamente menos dura do que os cativos sob a escravido. Era elevada a taxa demasculinidade dos quilombos. Os mocambeiros procuravam suprir a carncia de mulheres com o

    seqestro de mulheres cativas, libertas e livres.46

    Terras Quilombolas

    O carter clandestino e disperso da comunidade quilombola determinava que mantivesse comdificuldade relaes com comunidades congneres, o que dificultava a equalizao sexual e etria.Essas determinaes dificultavam a expanso vegetativa. o nmero de mulheres em idade frtil eno o de homens que favorece o crescimento populacional. Eram excepcionais os laos familiares

    slidos articulados no seio das comunidades quilombolas.A existncia de uma comunidade calhambola era sempre eventual refgio sobretudo para os

    cativos da regio. A captura dos fujes era um timo negcio. Durante a escravido, expediesenviadas pelos senhores e pelo Estado perseguiram, atacaram e destruram as comunidades rurais detrabalhadores escravizados escapados, igualmente ameaadas pela expanso da fronteira agrcola.

    A economia quilombola assemelhava-se essencialmente produo cabocla coivararusticidade das ferramentas inexistncia da trao animal subsistncia plantas de ciclo rpidodeslocamento das aldeias, etc. Ela no construa laos profundos com a terra ocupada.

    Os quilombolas protegiam suas liberdades, e no a terra que exploravam. Da o hbitoextremamente difundido dos mocambeiros de abandonarem as aldeias e plantaes e se embrenharemnas florestas, quando assaltados. Salvos das tropas reescravizadoras, fundavam-se outro povoado,

    geralmente em locais e territrios desconhecido pelos agressores.A estrutura produtiva as dificuldades de expanso demogrfica vegetativa o carter

    clandestino a represso policial a expanso das fronteiras agrcolas, etc. fragilizavamestruturalmente a reproduo das comunidades quilombolas, j pouco numerosas na poca daAbolio, sobretudo nas regies de grande concentrao de cativos Centro Sul.

    Terras Negras

    J antes da Abolio, senhores entregaram, em vida ou por testamento, nesgas de terrasdistantes e pouco frteis para cativos mais prximos. Sobretudo aps a Abolio, essas terras negras

    44. ALVES FILHO, Ivan Alves.Memorial dos Palmares. Rio de Janeiro: Xenon, 1988 CARNEIRO, dison.Oquilombo dos Palmares. 4 edSo Paulo: CEN, 1988 ENNES, Ernesto.As guerras nos Palmares: subsdios

    para a sua histria. 1. Volume: Domingos Jorge Velho e a Troia Negra. 1687-1709. So Paulo: CEN, 1938FREITAS, Dcio. Palmares: a guerra dos escravos. 5 ed. reescrita, revista e ampliada. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1984 FREITAS, Mrio Martins de. Reino negro de Palmares. 2a. ed. Rio de Janeiro:Biblioteca do Exrcito, 1988 PRET, Benjamin. Que foi o quilombo de Palmares?. ANHAMBI, ano VI,vol. 22, abril 1956 RODRIGUES, Nina.Os africanos no Brasil. 5 ed. So Paulo: CEN, 1977.

    45 Cf. GOMES, Flvio dos Santos.Histrias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Riode janeiro sc. XIX. RUma negao da ordem escravista:quilombos em Minas Gerais no sculo XVIII.So Paulo: cone, 1988 MOURA, Clvis. Rebelies da senzala. Quilombos, insurreies e guerrilhas. 3

    ed. So Paulo: Livraria Editora Cincias Humanas, 1981.46 Cf. MAESTRI, Mrio. Em torno ao quilombo. HISTRIA EM CADERNOS. Revista do Mestrado em

    Histria da UFRJ. n 2. Rio de Janeiro,

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    11/17

    comumente transformaram-se em pontos de atrao para outros afro-descendentes.Antes da Abolio, cativos fugidos, libertos, negros livres subsistiram como caboclosnas

    margens e nos interstcios das fronteiras agrcolas em expanso. Engrossadas aps a Abolio, essascomunidades deram origem a um campesinato negro que tendeu a se fechar sobre si, como j o

    haviam feito oscaboclosdescendentes de nativos.O distanciamento das roas das vilas defendia os caboclosnegros das investidas dos grandes

    proprietrios e aumentava a dificuldade da mercantilizao da produo. Estudando o municpio deValena, Bahia, a partir dos anos 1940, Martins Dias refere-se a esse fenmeno: [...] a populaoroceiro, formada por descendentes de escravos e de ndios, aparentemente se contentava comatividades menos promissoras e se estabelecia em reas menos disputadas e mais afastadas doscentros urbanos.

    O isolamento relativo seria resultado da experincia de dominao e explorao a que foramsubmetidos escravos, ndios e seus descendentes. Um velho roceiro teria explicado ao autor que ospretos e os caboclos evitavam ao mximo qualquer tipo de contato com a cidade e com as elitesurbanas. [...] a possibilidade de isolamento da roa prometia queles grupos um retorno liberdade h

    muito perdida.47

    O reconhecimento pela Constituio de 1988 do direito de propriedade das terras ocupadas porcomunidades remanescente de quilombos est ensejando amplo mapeamento das ocorrncias dessascomunidades no territrio nacional. Descuradas por nossas cincias sociais, no so raroscomunidades remanescentes de quilombos em Estados como o Par e o Maranho.

    A socialmente correta extenso da acepo de terra quilombolas terras negrassurgidas dedoaes e apropriaes no quilombolas permitir a legalizao da propriedade de terras decomunidades camponesas negras nascidas antes ou aps a Abolio. A definio da poca e origemda formao dessas comunidades manter a sua integridade histrica e enriquecera o conhecimentoda contribuio davia quilombolaeescravista formao do nosso campesinato.

    Produtores No Proprietrios Dependentes

    Atravs do Brasil, no interior das fazendas mercantis agrcolas e pastoris, desenvolveu-secomumente pequena produo de subsistncia praticada por homens livres, geralmente sob licena

    verbal dos proprietrios. 48 Esses produtores contribuam comumente com a fora de trabalho nomomento de pique da produo mercantil vigiavam os limites dos campos funcionavam comoguardas e capangas dos fazendeiros, etc.

    Parte dessa produo, essencialmente voltada subsistncia feijo, mandioca, milho, melo,melancia, etc. , era entregue aos proprietrios da terra, segundo diviso pactuada ou consuetudinria.Uma pequena parte de produo era comumente comercializada. Os moradores, posteiros, rendeiros,etc. e suas famlias viviam em isolamento relativo nos latifndios, sem direitos sobre a terra, alm dodireito do uso.

    Como os caboclos, posseiros,intrusos, etc., esses moradores precrios dos grandes latifndiosforam comumente expulsos da terra que ocuparam pela expanso da produo mercantil ou porintrodues tecnolgicas que tornaram desnecessrios seus servios.

    A inexistncia de fortes laos aldees e familiares aprofundavam ainda mais ohandicapsocial,poltico e cultural vivido por caboclos, posseiros, meeiros, moradores, intrusos, etc. que raramentechegaram a vislumbrar a possibilidade da legalizao dapossedas terras que exploraram, asseguradapela lei de 1850. No raro, posseiros eram sumariamente expulsos ou mesmo eliminados pelos

    47. DIAS, Gentil Martins.Depois do latifndio: continuidade e mudana na sociedade rural nordestina. Rio deJaneiro: Tempo Brasi48. Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste.4 ed. Revista e atualizada. So Paulo:

    Cincias Humanas, 1980

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    12/17

    capangas do latifndio exteriorizarem a inteno de legalizar as terras em que viviam.O racismo a falta de representao poltica a ausncia de conhecimento legais a baixa renda

    monetria, a prtica de lnguas e e padres no oficiais da lngua nacional, etc. foram fenmenos que,associados falta de experincia histrica com a propriedade da terra e a uma forma de produo que

    estabelecia frgeis vnculos com ela, tornaram comumente inviveis as possibilidades delegitimao das terras detidas por essas comunidades.49

    Ordem Oligrquica

    A partir de 1889, na repblica oligrquica, a sociedade camponesa subsistiu apenas nos porosde uma sociedade de classes que manteve em forma hegemnica o carter latifundirio daapropriao da terra. No novo contexto, a marginalizao poltica e social das comunidades caboclasde razes nativas ou africanas deu-se sem grandes dificuldades.

    Como assinalado, sobretudo a inexistncia da slidas comunidades familiares e aldes e asfrgeis ligaes orgnicas com a terra ocupada permitiram que as terrascaboclas,indgenas, negrasequilombolas continuassem a ser apropriadas pelo latifndio em contnua expanso, comumente

    atravs da compra e legalizao fraudulenta de posses.50e, principalmente, expulso por jagunos.A histria do incessante processo de espoliao das comunidades caboclas nacionais, que

    prossegue at hoje, encontra-se registrado na documentao oficial, sobretudo policial nos cartriose registros de terra nos processos civis e penais, etc. Pelas razes assinaladas, essas comunidadesraramente conseguiram organizar-se solidamente.

    Nos casos singulares em que se insurgiram contra a ordem instituda, foram massacradas pelosexrcitos e tropas regionais e nacionais, sem conseguirem elevar o nvel de conscinciareligiosa-messinica que materializou comumente suas lutas ao nvel de conscincia poltica, quepermitisse generalizar a mobilizao.

    Neste contexto geral, at 1930, a Repblica manteve facilmente as classes subalternizadasplenamente afastadas da gesto do Estado. Sobretudo os segmentos rurais majoritrios noconseguiam organizar-se minimamente como sociedade civil. A nacionalidade e a cidadania foramsempre compreendidas no Brasil como exclusivo monoplio das elites.

    O Hiato Campons

    O surgimento de campesinato nacional propriamente dito deve-se sobretudo a processoinicialmente marginal na ocupao e explorao do territrio brasileiro. Ou seja, colonizao depequenos lotes de terras por imigrantes no-portugueses proprietrios.

    Aps a tentativa fracassada de meados do Setecentos com colonos aorianos, em incios dosculo 19, devido ao estabelecimento da administrao lusitana no Rio de Janeiro, promoveu-se aformao de classe de pequenos agricultores proprietrios que produzisse alimentos para as capitaisbraos para os exrcitos e populao livre e branca para o novo imprio escravista, onde dominava aspopulaes escravizadas e mestias.

    Sobretudo aps a independncia, em 1822, camponeses europeus com pouca ou nenhuma terra,inicialmente suos e alemes e, a partir de 1875, sobretudo italianos, mas tambm russos, judeus,poloneses, etc. partiram para o Brasil atrados pela promessa de terra, inicialmente gratuita, e, aps

    1850, financiada.51

    49. DIAS, Gentil Martins.Depois do latifndio: continuidade e mudana na sociedade rural nordestina. Rio de

    Janeiro: Tempo Brasi50. Cf. ZARTH, P. A.Histria agrria do Planalto Gacho.1850-1920. Iju: EdiIJU, 1997. p. 75.51. Cf. MAESTRI, Mrio.Ossenhores da Serra: a colonizao italiana no Rio Grande do Sul. 2 ed. ver. e

    ampl. Passo Fundo: EdiA produo de fumo em Santa Cruz do Sul RS 1849 1993.Santa Cruz do Sul:

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    13/17

    A Lei de Terras, de 1850, constituiu reao ao fim do trfico transatlntico de escravo e aomedo da crise da mo-de-obra no Brasil. Pondo fim entrega gratuita de terra, pretendia impedir quea ampliao da classe de camponeses proprietrios desviasse o homem livre pobre da necessidade devender sua fora de trabalho a vil preo nos latifndios.

    Em 1842, Bernardo de Vasconcelos e Jos Cesrio de Miranda Ribeiro recomendavam aoImperador: Aumentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se, consequentemente, a suaaquisio, de esperar que o imigrado pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo,

    antes de obter meios de se fazer proprietrio.52

    Ocupao em Xadrez

    Sobretudo no sul do Brasil, formaram-se vastos segmentos de pequenos camponesesproprietrios, atravs da ocupao e cultivo de colnias contguas localizadas nos dois lados decaminhos abertos nas matas linhas coloniais em terras inservveis economia latifundiria.

    Essas unidades produtivas familiares praticavam agricultura semi-intensiva e intensivaserviam-se de ferramentas relativamente variadas e desenvolvidas utilizavam o arado e a traoanimal praticavam a rotao dos cultivos e a adubao parcial, limitada pelo volume do estercoproduzido pelo gado ordenhado ou manejado diariamente cultivavam gneros de ciclo breve e longoinvestiam pesadamente na melhoria dos campos e nas benfeitorias das exploraes.

    A importncia do cultivo de cereais milho, trigo, cevada, arroz, etc. e de outros produtos delonga e mdia conservao, determinava que o celeiro, opaiole acantinaocupassem papel essencialna organizao dessas exploraes, que se dotavam de outras importantes benfeitorias e instalaes

    chiqueiro, galinheiro, horta, parreiral, potreiro, etc.53

    O fato das picadas e caminhos ligarem as exploraes a centros urbanos coloniais, em contatocom aglomerao de maior porte, portos fluviais, estaes ferrovirias, etc., permitia o escoamento da

    produo excedente, inserindo essas comunidades camponesas na diviso regional, nacional einternacional do trabalho.

    Ao contrrio das comunidades caboclas, as comunidades colnias esforavam-se paralocalizarem-se o mais prximo possvel das aglomeraes urbanas e melhorarem seus meios deacesso a elas. Para esses produtores, no havia dvida que ocupar a ltima e mais distante colnia eradefinitivamente o fim da picada!

    Terra Mercado e Trabalho

    A crise final do escravismo desviou parte da imigrao europia para So Paulo, centro daproduo cafeicultora, onde, nos primeiros tempos, sobretudo famlias italianas receberam moradiaterras entre os cafezais para plantar gneros de subsistncia terrenos para criar alguns animais eremunerao anual em troca do cuidado de um certo nmero de ps de caf. Muitos colonosadquiriram nesgas de terras cansadas, fortalecendo a formao do campesinato brasileiro. Em 1927,existiam trinta mil pequenos proprietrio de stios dedicados cafeicultura. Eram sobretudo

    ex-colonos que se tinham tornado pequenos proprietrio.54

    EDUNISC, 1997 ROCHE, Jean.A colonizao alem e o Rio Grande do Sul. I. Porto Alegre: Globo, sdWACHOWICZ, Ruy Christovam. O Curitiba: Fundao Cultural, Casa Romrio Martins, 1981STAWINSKI, Alberto Victor. Primrdios da imigrao polonesa no Rio Grande do Sul (1875-1975).Porto Alegre, EST/UCS, 1976. p . 27.

    52. ApudGUIMARES, Alberto Passos.Quatro sculos de latifndio. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, sd.p.112.53. Cf. MAESTRI, Mrio.Os senhores da Serra. Ob.cit. p. 86.54. Cf. GORENDER, Jacob.Gnese e desenvolvimento do capitalismo no campo brrasileiro. Porto Alegre:

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    14/17

    A mercantilizao de parte crescente da produo camponesa, que dificultava eventuaistendncias ao acaboclamento, fenmeno conhecido em casos singulares pelas comunidades coloniais,era exigida pela necessidade da extino da dvida contrada com a aquisio da terra e de pagamentodos impostos coloniais, condio imprescindvel para transformar o direito de domnio e explorao

    da terra em direito de propriedade plena.Estas comunidades de pequenos agricultores proprietrios originaram sociedades camponesas

    coeridas por slidos laos familiares e profunda identificao com a propriedade da terra, como meioe caminho de insero social e cidad. Para essas comunidades a perda da terra era sinnimo defracasso social e, comumente, dissoluo do prprio ncleo familiar. Porm, ao contrrio da Europa,essas comunidades no assumiram uma organizao alde.

    A distribuio das colnias em xadrez, rompia com a difundida tradio europia do camponsde morar em aldeia e partir, pela manh, para ocupar-se na sua nesga ou nesgas de terra, de sua posse

    ou arrendadas.55

    Salvo engano, no h estudos elucidando se nesse zoneamento singular do territrio houve avontade consciente de dificultar a formao de comunidades aldes camponesas, para, eventualmente,facilitar a assimilao das comunidades, no formando os temidos kistos raciais. Ou surgiram tambmpara facilitar a gesto social e poltica dos colonos, atravs de sua disperso territorial relativa.

    A Aldeia Virtual

    A disperso relativa das famlias coloniais em relao realidade conhecida em muitas regiesda Europa parece ter contribudo fortemente ao surgimento de centros alternativos de agregaosocial camponesa, organizados sobretudo em torno de uma ampla rede de capelasreligiosas ao longodos caminhos das linhas, verdadeiras das aldeiasvirtuaissubstitutivas.

    Essas capelas habituais nas colnias alems, italianas e polonesas congregavam as

    comunidades camponesas familiares prximas de uma linha, capazes de mobilizarem-se rapidamentepara atividades comuns construo e conservao de caminhos obras comunitrias etc.Geralmente associadas a uma casa comercial e organizadas em torno de seus diretores

    fabriqueiros, as capelas viabilizavam a realizao de variadas atividades permitidas pela aldeiacamponesa auto-ajuda centralizao de servios e comrcio representatividade poltica comunaltrocas matrimoniais, etc.

    Ainda que em forma diferenciada, a carncia de braos e a abundncia relativa de terradeterminaram forte tendncia natalistas nessas comunidades de pequenos camponeses proprietrios,ensejando reproduo demogrfica e territorial ampliada que extravasou as prprias fronteiras doBrasil, formando sociedade camponesa colonial singular, em relao Europa e ao Brasil.

    As fortes razes com a propriedade da terra e os slidos laos inter-familiares e

    inter-comunitrios ensejaram a manuteno de uma comunidade cultural e lingstica que viveatualmente processo de dissoluo tendencial apenas devido a sua subjuno crescente produo emercado capitalistas.

    O Fim da Terra

    Nos anos 1940-50, o desenvolvimento demogrfico a crescente penetrao capitalista aelevao dos preos da terra, etc. ps fim abundncia relativa de terras, encerrando tendencialmentea capacidade de reproduo estrutural da comunidade colonial atravs do deslocamento de populaesdas Colnia Velhas para as Colnias Novas. Esse fenmeno originou o surgimento dos colonos sem

    Mercado Aberto, 1987.p. 30.55. GUTIERREZ, Ester & GUTIERREZ, Rogrio. Arquitetura e assentamento talo-gacho. (1875-1914).

    Passo Fundo: EdUPF, 2000.

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    15/17

    terra ou com pouca terra para sustentar um ncleo familiar, com o conseqente abandono do campopela cidade. Na dcada de 1960, apenas no Rio Grande do Sul, 270 mil famlias gachas necessitavam

    de terras.56

    O golpe de 1964, patrocinado pelo empresariado nacional ascendente, associado s classes

    latifundirias em declnio, procurou canalizar para a Amaznia a presso dos segmentos camponesessem terra, em geral, e de origem europia, em especial. Crendo poderem administrar sempre suaexecuo, a ditadura impulsionou o Estatuto da Terra, at hoje o mais eficaz instrumento paradesapropriao de terras para fins de reforma agrria.

    Efetivamente, a Lei 4504/64 define o conceito de funo social da terra a que deveenquadrar-se e satisfazer os imveis rurais: aproveitamento racional e adequado dos recursos naturaisdisponveis e preservao do meio ambiente observncia das disposies que regulam as relaes detrabalho explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores.

    A fora e a influncia do Estatuto da Terra foram to grandes que o conceito de funo socialda terra foi transcrito integralmente no artigo 186 da Constituio Federal de 1988. Entretanto,procurando neutralizar as possibilidades da lei, o latifndio amenizou-a quando da Lei 8629/93,sancionada pelo presidente Itamar Franco.

    No um azar da sorte que um dos principais focos do nascimento do Movimento dosTrabalhadores Sem Terra tenha ocorrido, em 1979, em Ronda Alta, no norte do Rio Grande do Sul, e,em 1980, em Encruzilhada Natalino, em regio onde se defrontavam a tradio colonial camponesa e

    latifundiria de apropriao da terra.57

    A existncia de significativa camadas de camponeses sem terra ou com pouca terra, oriundos deuma comunidade que historicamente fizera a experincia com a posse e com explorao familiar daterra, coeridas por slidos laos familiares e vicinais, ensejou as bases para um movimento de lutapela partio do latifndio que superaria tudo o que fora conhecido na histria do pas.

    As quatorze famlias da Cooperativa de Produo Agropecuria Cascata Ltda do Assentamento

    16 de Maio, formado por 86 ncleos familiares, nos municpios gachos de Ponto, assentadasdefinitivamente em 1993, aps um longo perodo de luta, ao serem entrevistadas, em 2001 declararamque, em sua maioria absoluta viviam e trabalhavam com os pais em pequenas propriedades, emmunicpios da regio norte do Rio Grande do Sul . Noventa por cento dos entrevistados eram de

    famlias coloniais pobre de origem italiana e alem.58

    A confluncia das necessidade objetivas desses segmentos sociais com a vontade subjetiva dosorganizadores do movimento, no qual, inicialmente, a Igreja progressista teve papel determinantes,ensejou processo que extrapolou rapidamente o ncleo inicial de trabalhadores de origem colonial,envolvendo segmentos explorados de outras origens, animados e orientados pelas novas formas deluta.

    A Aldeia Virtual

    A confluncia das diversas tradies camponesas nesse novo movimento de luta pela terra noanula completamente suas experincias histricas originais. crvel que a maior resistncia entre osassentados de origem no colonial em explorarem comunitariamente a terra nasa de ocupao eexplorao esparsa do territrio. Esse fenmeno apontado por estudos localizados exige entretantocomprovao emprica mais cabal.

    A prpria ocupao e paisagem dos lotes dos assentados pode expressar comumente as antigas

    56.

    Cf. TELMO.Acampamento Natalino: histria da luta pela reforma agrria. Passo Fundo: EdiUPF, 1997.57. Cf. STEDILE, Joa Pedro & GRGEN, Frei Srgio.A luta pela terra no Brasil.So Paulo: Scrita, 199358. BONAMIGO, BONAMIGO, Carlos Antnio. O trabalho cooperativo como princpio educativo: a

    trajetria de uma cooperativa de pro

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    16/17

    paisagens das exploraes das diversas comunidades camponesas. Nesse caso, parece encontra-se amaior tradio dos descendentes de colonos de arborizarem suas glebas, tradio menos fortes emagricultores ex-posseiros.

    Portanto, um projeto subjetivo MST , que interpretou corretamente necessidades objetivas

    de uma ampla comunidade social os camponeses sem terra ou com pouca terra, contribuiu paraminorar debilidades histricas das classes subalternas rurais brasileiras. Isto , a falta de instituies,espaos, relaes e tradies que facilitassem e apoiassem a luta pela terra.

    As prticas propiciadas pelo MST longa permanncia nos acampamentos apresentaocoletiva das reivindicaes luta associada da terra gesto de mstica anti-latifundiria eanti-capitalista, etc. criariam as bases para o desenvolvimento de solidarismo campons aldeo,parcialmente presente nas comunidades coloniais e quase inexistentes nas caboclas.

    Um solidarismo campons que tende a afrouxar seus laos quando, o acampadoorganiza-se noassentamento em forma individual. Fenmeno subjetivo que se deve a sua reinsero objetiva nadiviso do trabalho como campons pequeno proprietrio.

    Enquanto o operrio vende ao capital o nico que tem, sua fora de trabalho, e o vende em

    forma socializada, o campons comparece ao mercado, sozinho, dono das coisas que produziu, emgeral, como proprietrio dos seus meios de produo. Assim sendo, as condies individuais efamiliares de trabalho do campons, isoladas, produzem tambm um conscincia, uma viso de

    mundo, que reflete, que expressa esse isolamento"59

    Refletindo sobre a longa trajetria que levou obteno da terra na fazenda Anoni, umassentado conclua, em 2001, sobre a diviso da terra ocorrida em fins de 1986, que determinou o fimdo acampamento central dos sem-terra. Eu acho que foi o mal nosso se instalar no meio da fazenda[...]. [...] Porque depois o pessoal comeou a se acomodar, n [...]. [...] Houve uma diviso doacampamento em dezesseis acampamento [...]. [...] esparramar todo mundo e a o pessoal no queria

    mais lutar [...].60

    Para o Estado de classe, questo primordial a ruptura de uma experincia que tende a unificarpequenos camponeses, camponeses assentados, camponeses sem terra, etc., propiciando as condiespara a concentrao e centralizao da vontade social, poltica e ideolgica dessas comunidades,fenmeno historicamente desconhecidos no Brasil.

    A dificuldade no surgimento, desenvolvimento e consolidao dessa conscincia e vontadesocial, devido s determinaes objetivas das comunidades rurais no proprietrias, condioimprescindvel para a manuteno da atual gesto autoritria e expropriao do trabalho no Brasil.Asuperao dessa realidade histrica determinao essencial para a construo de sociedade cidadno Brasil.

    Nesse contexto geral, tambm interessante ressaltar que o grande handicap negativo doprojeto poltico do MST provm precisamente da forma em que conseguiu estabelecer suas profundasrazes com a sociedade brasileira.

    Por um desses paradoxos da histria, a proposta de aliana oferecida pela cidade ao campo,como via de superao da prpria dependncia do campo da cidade e da explorao capitalista,defendida, nos anos 1920, por Antonio Gramsci na Itlia, d-se hoje, no Brasil, do o campo para acidade.

    No indiferente para a superao das contradies apontadas, que hoje dependenteprofundamente do MST, o fato de que, em forma tardia, esse movimento represente reivindicaes eexpresse vises de mundo alimentadas por segmentoscamponeses sem terra miserveise pequenosproprietrios pobres, em uma sociedade dominada pela produo e classes trabalhadoras fabris.Fenmeno essencial na determinao de sua orientao poltica, ideolgica e social.

    59. MARTINS, Jos de Souza. 1982 13-560. BONAMIGO, Carlos Antnio. O trabalho cooperativo como princpio educativo: a trajetria de uma

    cooperativa de produo agrop

  • 7/25/2019 MAESTRI, Mario. A Aldeia Ausente

    17/17

    Mrio Maestri, 54, doutor pela Universit Catholique de Louvain, Blgica e professor do Programade Ps-Graduao em Histria da UPF. E-mail:[email protected]