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1 MADRAS As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário Janaína Laport Bêta Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética). Orientador: Prof. Manuel Antônio de Castro Rio de Janeiro Dezembro 2010

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MADRAS

As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário

Janaína Laport Bêta

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Prof. Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro Dezembro 2010

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MADRAS As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário

Janaína Laport Bêta

Orientador: Profº Doutor Manuel Antônio de Castro.

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Examinada por:

Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro

____________________________________________________________

Prof. Doutor Antônio Jardim - Departamento de Ciência da Literatura – UFRJ

____________________________________________________________

Prof. Doutor Gilvan Fogel – IFCS - UFRJ

Profª Doutora Angélica Soares – Departamento de Ciência da Literatura – UFRJ, Suplente

Profª. Doutora Cláudia Andréia Prata - PPGHC – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro Dezembro 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

Bêta, Janaína Laport. MADRAS. As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário / Janaína Laport Bêta. Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), 2010.

ix, 155f.: il.; 31 cm. Orientador: Manuel Antônio de Castro.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação de Ciência da Literatura (Poética), 2010.

Referências Bibliográficas: f. 147-155. 1. Introdução sobre o assunto e o Título. 2. A loucura como Início. 3. Bispo e os Conceitos de Arte Contemporânea. 4. O Contemporâneo como conceito X O tempo como questão. 5. O Sagrado e o movimento do Ser nas Obras de Bispo. I. Castro, Manuel Antônio de. (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Literatura (Poética). III. Madras – As Dobras do Sagrado no Tecido Poético de Arthur Bispo do Rosário.

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Àqueles pelos quais sou:

A você meu amor, por sua presença. Por manter-se ao meu lado sendo a única pessoa com a qual compartilho feliz o silêncio.

À nossa linda Maria, que através de nós veio, para ser, e é.

A Antonio Jardim: por apresentar-me ao pensar poético; por sua amizade afetuosa; pela luz de seu talento que reafirma em música o vigorar da poesia.

E especialmente a Manuel Antônio de Castro: Meu Grande Mestre, alguém a quem esperava, mesmo sem saber que. Ao modo oriental, guia-me para além de mim, dizendo: aproprie-se de seu próprio. Agradeço ainda pela simplicidade

franciscana, por sua sabedoria e bondade.

A Gilvan Fogel agradeço a acolhida, uma honra.

in memoriam:

Àqueles que aqui já não estão: pelo perfume da saudade.

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Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Manoel de Barros

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RESUMO

MADRAS

Janaína Laport Bêta

Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Desejo neste estudo habitar as obras que através de Arthur Bispo do Rosário vieram à presença. Uma busca por restaurar a potência do olhar pensante, habitando o que nelas se doa. Habitar é de-morar. De-morando no olhar a possibilidade de retorno ao ver inaugural, ao espanto, ao não-visto de tudo aquilo que vem à presença. Re-conhecendo, no que não se doa em totalidade ao ver, num resguardar-se, o vigorar inesgotável da própria Arte. Entrever a silenciosa e originária fonte de todo o não-visto: A Linguagem, essência da arte, morada do ser. Nas obras sua fala. As mais de oitocentas obras de Bispo o revelam como um dos guardiões dessa morada. A Linguagem fala através das obras, mas por vezes é inaudível, abafada por ensurdecedor ruído dos muitos conceitos que a história da arte enquanto disciplina formula, brada. Conceitos que disseminam ainda espécie de miopia que oculta a verdade ao submeter a Arte à razão. O exercício de pensamento proposto não buscará catalogar ou conceituar, mas dialogar com questões corporificadas em obras na condição poética do a-se-pensar. Contudo, questões que permeiam o universo de Bispo são complexas. Paradoxalmente afirmamos que tal complexidade se dá pela simplicidade que as constituem. Desabituamo-nos com o simples, soterrados sob montanha de teorias estéticas. Há que se ajustar as lentes. No percurso, avistaremos conceitos: contemporâneo, subjetividade e vanguardas artísticas – lotes lindeiros, quase miragens, ladeando veredas do próprio, do delírio inspirado, caminho que conduzirá à questões da ordem do tempo, da loucura e do sagrado.

Palavras-chave: Arte, Bispo do Rosário, Linguagem, Loucura, Sagrado.

Rio de Janeiro

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Dezembro 2010

ABSTRACT

MADRAS The folds in of the Sacred the fabric Poetic Arthur Bispo do Rosário

Janaína Laport Bêta

Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

In this study, the desire to reside works through Arthur Bispo do Rosario came to attend. A search for restoring the power of the thoughtfullook, living in what donates on them. To reside is of-living. Of-living in looking at the possibility of returning after seeing the opening, the astonishment, the unseen of everything that comes to presence. Re-knowing in what is not donated in full to see, guarding itself, the inexhaustible force of his own Art. To glimpse the silent and originating source of all unseen: The Language, the essence of art – home ofthe being. In the works, his speech.Bispo‟s more than eight hundred works reveal him as a one guardian of this home. The Language speaks through works; sometimes it is inaudible, drowned out by a deafening noise of the many concepts that art history, as a discipline, formulates, calls. Concepts that even spread a kind of myopia that hides the truth by submitting Art to reason. The proposed exercise of thought will not seek to catalogue or conceptualize, but, instead, will engage with issues embodied in works, in the poetic condition about-to-think. However, issues that permeate the Bispo‟s universe are complex. Paradoxically, we affirm that such complexity is given by the simplicity that constitutes them. We are out of the habit of what is simple;we are buried under a mountain of aesthetic theories. Lenses should be adjusted. On the way we will see concepts: contemporary, subjectivity, and artistic avant-gardes – borderinglots, almost mirages, flanking paths of their own, of the inspiredrave, pathway that will lead to questions of time order, of madness, and of sacred.

Keywords: Art, Bispo do Rosário, Language, Madness, Sacred.

Rio de Janeiro Dezembro 2010

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Sumário:

1. O Tecido - - - - - - - - - - - - - - [apresentação] - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -10

1.1. Da Trama e da Urdidura - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -11 1.2. Tecelão ou Alfaiate - - - [o homem Bispo do Rosário]- - - - - - - - - - -13 1.3. Dos fios - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 17 2. O Molde - - - - - - - - [Para o retalhar conceitual do tecido - - - - - - - - - - - - - -20 Tentativas de aproximação entre Bispo e Agamben

2.1. A negatividade- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -26 A arte contemporânea em Duchamp por Agamben e suas relações com Bispo do Rosário 2. 2.O duplo: Sagrado e profano - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 35

3. O Risco - - - - - - - - - - - -[entre o duplo e a dobra] - - - - - - - - - - - - - - - - - 40 3.1. A primeira dobra no duplo - - - -[Doença mental e loucura] - - - - - - -40 3.2. A segunda dobra no duplo - - - -[Bispo o artista contemporâneo]- - - 46 Os atributos do tempo 4. O Corte - - - - - - - - - - - [entre a dobra e o duplo] - - - - - - - - - - - - - - - - -58 Refazendo o percurso ou outra tentativa de pensar o Sagrado

5. Alinhavos- - - - - -[As dobras poéticas no Manto da Apresentação] - - - - - - -64 5.1. O Ver - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 66 5.2. Obra - - - - - - - - - - - - - - [mecanismos e criação] - - - - - - - - - - - - - 72 5.3. Poíesis e Tékhne- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 75 5.4. O Próprio e a Realidade- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 76 5.5. O Figurar do Manto - - - - - - - - [e o espaço-tempo] - - - - - - - - - - - 85 5.6. O Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -89

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5.7. Memória - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -91 6. Costura - - - - - - - - - - - - - - - - [Ou sutura do ser] - - - - - - - - - - - - - - - - -97 6.1. Manto da Apresentação- - - -[Veste para um grego intempestivo]- - - 97 6.2. A Loucura e suas Dobras - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -99 6.3. Daseinsanálise- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -100 6.4. Daseinsanálise e Esquizofrenia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 105 6.5. A abertura e os modos de ser do esquizofrênico - - - - - - - - - 108 6.6. No dia 22 de dezembro eu vim - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -115 6.7. O Sagrado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -121 6.8. A Finitude - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -129 7. Arremate- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 134

8. Bordado- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -136

9. Chuleio- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -137

10. Aviamentos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -147

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1. O Tecido - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Apresentação

Da trama e da urdidura do Madras – o rico tecido cuja intensidade dos

matizes traz um perfume do oriente no rastro pictórico do fazer artesanal de

mãos indianas, que mergulham em tinas de cor as fibras a serem urdidas por

outras mãos, dando corpo ao peculiar xadrez – a inspiração: pensar [como

tecido poético] a produção plástica que através de Arthur Bispo do Rosário veio

à presença.

Das inquietudes despertas na feitura do trabalho final de graduação,

questionamentos se transubstanciaram em algo maior: Necessidade

[inicialmente entendia como reta – que não admitindo curvas – impulsionava

em novo percurso, que a cada passo foi revelando a plenitude de um traçado

circular. Por pequeno segmento deste círculo, estes escritos em forma de

dissertação de mestrado].

Necessidade. Não encontro modo outro de nomear [capaz de abarcar

em totalidade e intensidade] a relação entre mim e as questões que desde

então me tomaram. Vinda da área de Artes, com formação em História da Arte,

não encontrava, entre os inúmeros conceitos disponíveis, algum que

excedesse o mero tangenciar as obras. Conceitos sempre insuficientes diante

das questões que se apresentam ao ver no universo da produção poética de

Bispo do Rosário – aquele que se apresentou ao mundo não como artista, mas

como inventariante das obras dos homens sobre a terra.

Como usar ferramentas da razão para pensar a loucura?

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1.1. Da Trama e da Urdidura - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Depois de longa procura, ela me dá a notícia: Assim aqui nada repousa sobre

razão profunda.

Stefan George1

A poética em Bispo do Rosário e o Madras. Fios que da roca partem

formando meadas de rica cor e no tear se entrecruzam em urdidura e trama – o

gesto inegavelmente mais forte que a mão a urdir. Fios de vida e morte,

loucura e sanidade, limite e não-limite se entretecem em obras de densa carga

poética. Moira de artista. Da condição à possibilidade: ser tecelão. Fio-destino:

estar acima da razão cotidiana e fraca, entregar-se ao movimento do ser,

deixando-se arrebatar pelo delírio inspirado. Obrar em arte. Esgarçando

cuidadosamente as meadas deste Madras, por entre as labirínticas fibras que

se entrelaçam, buscaremos o a-se-pensar. Em cada uma das obras a fala do

pulsar poético que habita a existência humana. Ou melhor, cada obra a dizer

da condição humana: habitar o poético, habitar poeticamente, fundar mundo. O

real dizendo-se em cada dobra deste tecido vivo.

Pensava, anteriormente, que o artista Bispo havia construído o conjunto

de suas obras lançando-se sobre o tecido urdido em vivências, tudo ali partindo

dele, de seu intelecto. Julgava serem as obras fruto de intencionalidade.

Acreditava na subjetividade artística – e não apenas na de Bispo. Julgava

também, na condição de historiadora, poder lançar-me sobre o tecido que

constitui sua poética e, em metacostura, coser um manto, um traje, a escrita

crítica. Avistava questões e ainda assim insistia em buscar agulhas, para, com

linhas de pensamento advindas de retroses conceituais, iniciar costura.

Assim procedi por algum tempo, buscando em pensamentos prontos

“suporte” para a escrita. Até que, em dado momento, questões que não cabiam

1 Apud HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem, pág. 124.

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em conceitos se apresentaram mudando o curso do trabalho, redesenhando

todo o percurso.

Desde então, inúmeros descobrimentos me tomaram de assalto. Entre

eles o mais importante é hoje perceber não haver linhas, tampouco moldes ou

medidas capazes de auxiliar em costura de pensamento que se dirija às obras

de arte; arrisco ainda dizer que em especial aquelas que através de Bispo

vieram à presença. Percebemos que ao traçarmos uma reta a ser seguida, por

vezes não observamos devidamente o caminho. Caminhos se dão no

caminhar. Ao refazer o percurso pelas questões que habitam as veredas do

pensar poético pude perceber que ainda que pareça não avançarmos, a

circularidade se revela muito mais profícua, pois passando inúmeras vezes

pelo mesmo ponto, olhando-o de diferentes modos a cada refazer do caminho,

tanto a vereda quanto nós haveremos sempre de sermos outros. Nas páginas

que se seguem, teço os registros deste percurso que começa por via conceitual

e bifurca-se em estâncias do poético...

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1. 2. Tecelão ou Alfaiate? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O homem Bispo do Rosário

Antes de nos enveredarmos pelo labirinto das obras, busquemos

primeiramente conhecer um pouco da história do homem Arthur Bispo do

Rosário2.

Bispo, ao ser interrogado sobre sua origem, dizia ser enviado dos céus.

E respondia:

– Um dia eu simplesmente apareci no mundo.

Nasceu no Sergipe, na cidade de Japaratuba, em 5 de outubro de 19093,

filho de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus.

Diagnosticado pela psiquiatria como esquizofrênico-paranóico foi interno da

Colônia Juliano Moreira. De sua vida pessoal pouco sabemos: Foi marinheiro,

pugilista, funcionário da Light e prestava serviços a uma família em Botafogo,

zona sul do Rio de Janeiro por ocasião do primeiro surto, ocorrido em 22 de

dezembro de 1938. Sobre este fato temos a narrativa do próprio Bispo,

registrada nos bordados de um de seus estandartes:

22 DEZEMBRO 1938 – MEIA NOITE ACOMPANHADO POR – 7

– ANJOS EM NUVENS ESPECIAIS FORMA ESTEIRA – MIM

DEIXARAM NA CASA NOS FUNDO MURRADO RUA SÃO

CLEMENTE – 301 – BOTAFOGO ENTRE AS RUAS PALMEIRAS

2 A respeito de sua vida há excelente biografia escrita pela jornalista Luciana Hidalgo intitulada:

Arthur Bispo do Rosário o senhor do labirinto. Bem como o livro catálogo lançado pela equipe de direção do Museu que fica na Colônia Juliano Moreira: Bispo do Rosário século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2006. 3 Há divergências quanto sua data de nascimento. Na biografia escrita por Luciana Hidalgo

consta a data de 5 de outubro, já no livro editado pelo Museu Bispo do Rosário cita a data de 14 de maio segundo registros da Marinha de Guerra do Brasil., onde Bispo teria servido de 1925 a 1933. Já nos registros da companhia Light, onde Bispo teria trabalhado até 1937, a data é 16 de março de 1911.

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E MATRIZ EU COM LANÇA NAS MÃO NESTA NUVES

ESPÍRITO MALISMO NÃO PENETRA AS 11 HORAS ANTES DE

IR AO CENTRO DA CIDADE NA RUA PRIMEIRO DE MARÇO –

PRAÇA – 15 – EU FIZ ORAÇÃO DO CLEDO NO CORREDOR

PERTO DA PORTA – VEIO MIM – HUMBERTO MAGALHAES

LEONI – ADVOGADO MESTRE PARA ONDE EU IA

PERGUNTOU EU VOU ME APRESENTAR – NA IGREJA DA

CANDELÁRIA ESTA FOI MINHA RESPOSTA EU ABRIR A

PORTA LADO LESTE UM JARDIM VARAS CORES AO 7 –

METROS DE FRENTE UM PORTÃO DE – 2 METROS DE

ALTURA DE FERRO LADO ESQUERDA COM SEUS

GRADEADOS TODAS DE PONTA LANÇA UM METRO E VINTE

DE ALTURA – 10 – ESPAÇOS – UMA POLEGADA SOBRE UMA

PILATRA DE 60 – CITIMETROS DE CIMENTO PISO DE LADO

ESQUERDA – 70 – LARGURA ATÉ PORTÃO EU FIQUEI NA

CALÇADA ESPERANDO NO PONTO DE PARADA – FICA

ENFRENTE NUMERO 301 – BONDE – JARDIM LEBLO TOMEI

ESTA CONDUÇÃO JÁ NO FIM DESTA RUA AOS 10 – MINUTOS

FEZ CURVA PARA LADO ESQUERDA – SEGUE VIAGEM PELA

PRAIA DE BOTAFOGO RUA SENADOR VERGUEIRO EM SUA

VELOCIDADE NORMAL VAI PELO CENTRO – QUASE NO FIM

UM PEQUENO QUARTEIRÃO FAZ CURVA PARA A DIREITA

NESTA RUA DE ESQUINA OBSERVO UMA EMBAIXADA –

CURVA A ESQUERDA ENTRA NA PRAIA DO FLAMENGO

LOGO OBSERVEI QUE É OS FUNDOS DO PALACIO DO

CATETE – SEDE DE SUA EXCELENCIA PRESIDENTE –

ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL – UM PORTÃO DE FERRO

LARGO COM SUAS GRADES DE PONTA DE LANÇAS SOBRE

PILATRAS DE PEDRA AOS 2 – METROS DE ALTURA PODE

SER MAIS – 100 DISTANCIA UM SOLDADO EXERCITO DE

SINTILNELA COM SEU FUZIL NA COSTA SUA BANDLEIRA

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AFRENTE COURO PROXIMO GURITA JARDIM [...] (Apud.

HIDALGO, 1996, p. 11).

Bispo, que então descansava no quintal do casarão da família Leone

onde era auxiliar de serviços gerais, situado à rua São Clemente, 301, em

Botafogo RJ, percebe o céu se abrir e diante de seu pasmo 7 anjos o

convocam a inventariar a passagem do homem sobre a terra. Tomado pela

força da visão, Bispo sai a vaguear pelas ruas desertas naquela noite de 22 de

dezembro. Ao patrão, o advogado Humberto Magalhães, diz apenas que irá se

apresentar na Igreja da Candelária. “A glória absoluta: ele era enfim

reconhecido. Como Jesus Cristo? „Esta falando com ele‟, arriscaria em

confissão”. (HIDALGO, 1996, p. 13). Perambulou pelas igrejas do Centro da

cidade por dois dias – sua via crucis – escoltado por anjos. A peregrinação

terminou no Mosteiro de São Bento por julgar poder ser reconhecido pelos

monges como um enviado de Deus. No dia 24 de dezembro, acontece o marco

humano entre a “realidade” e o delírio: Bispo é recolhido ao hospício da Praia

Vermelha. Era quase natal. Não estaria presente na ceia da família Leone.

A jornalista Luciana Hidalgo, em seu livro Arthur Bispo do Rosário o

senhor do labirinto, esclarece-nos os pormenores do “exílio” de Bispo da terra

dos homens. Teria chegado ao manicômio da praia vermelha – Hospital

Nacional dos Alienados (ex- Pedro II), pelas mãos das autoridades, assim

como Lima Barreto que também passou uma temporada por lá em 1919 e

1920, e demais “loucos” da época. Como todo paciente que caia nas malhas da

psiquiatria naquele tempo, Bispo, dado como indigente, recebeu o mesmo

tratamento: despido de seus trajes foi impelido a vestir o uniforme oficial do

“hospital”. Depois o claustro.

Passadas as festas natalinas, um mês após a internação, em 25 de

janeiro, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, sendo

alojado no pavilhão 11 do Núcleo Ulisses Viana, o mais constrangedor dos

setores, reservado aos pacientes mais agressivos e agitados, onde

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permaneceria por longos cinquenta anos – de 1939 a 1989. Neste período

houve algumas saídas, entre os anos de 1940 e 1960, onde procurou os

antigos patrões em Botafogo, sendo sempre bem recebido. Realizou ainda

alguns trabalhos: em um escritório de advocacia; na portaria do Hotel Suíço, na

Glória; como segurança pessoal do senador Gilberto Marinho; e no início dos

anos 60, a clínica pediátrica AMIU, em Botafogo, onde ficou voluntariamente

isolado num quartinho do sótão e produziu grande parte de sua obra. No ano

de 1964, retornou à Colônia Juliano Moreira, lá permanecendo até sua morte,

em 5 de julho de 1989 às 19h, de infarto do miocárdio, arteriosclerose e

broncopneumonia.

Mesmo recluso Bispo não se desvirtuou da convocação, assumindo

posição de inventariante das obras do homem sobre a terra, pôs-se a obrar

incessantemente, deixando-nos por legado uma das mais intrigantes

produções plásticas contemporâneas, constituída de “restos”, ou seja, materiais

desprezados, dos mais diversos, apropriações, que através de suas mãos dão

corpo ao poético em inúmeros estandartes, bordados, ORFAs4,

assemblagens,5 miniaturas, e tudo o mais que se apresentou como necessário

ao ofício de inventariar.

Mesmo sem recursos Bispo obrou, atendendo ao chamado, à

necessidade da arte. E não havendo fio, desteceu seus uniformes e lençóis

azuis de interno. Como base para os ricos bordados, ordinários cobertores, que

no operar da arte transfiguraram-se em ricos fardões dignos da academia,

4 O.R.F.A. – Sigla para: objetos recobertos por fio azul. Bispo necessitava reproduzir o que via,

para poder juntar em seu inventário toda produção humana. ORFAs eram réplicas de objetos cotidianos, como que “mumificados” pelo fio azul. Imagem no capítulo Chuleio, p. 139. Ilustração 3. 5 O termo assemblage é incorporado às artes em 1953, cunhado por Jean Dubuffet (1901 –

1985) para fazer referência a trabalhos que, segundo ele, "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. A ideia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. Menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo. Imagem p. 139 (vitrine) e 140 (assemblegem),. ilustrações 4 e 5..

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faixas de misses, estandartes que narram minúcias do funcionamento do corpo

humano, da construção de fragatas, de escolas de aprendiz de marinheiros, de

ferrovias, de esportes, da geometria...

Foram inúmeras as obras, confeccionadas, catalogadas (no rigor de uma

arquivologia própria) e armazenadas com o empenho e a força de uma

existência. Dentre elas um destaque: o Manto da Apresentação6, traje-obra

confeccionado por Bispo para o dia de sua morte, quando estaria diante do

criador para apresentar seu trabalho: o inventário de toda produção humana

sobre a terra.

1. 3. Dos Fios - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - No osso da fala dos loucos há lírios.

Manoel de Barros

Na poética de Bispo do Rosário fragatas bordadas navegam –

Travessia.

Todo um oceano de delírio criativo. Sacralidade. Resistentes à aridez

dos conceitos, as obras convocam e, como não se firmam como fruto de

subjetividade artística, só se abrem ao ver em diálogo poético. Ao crítico é

subtraído o esforço da bagagem teórica, nada precisa carregar da ordem dos

aparatos conceituais. Dele, as obras exigem apenas o essencial: a condição do

olhar que vê, um ver voltado para as questões originárias. Um olhar aberto ao

a-se-pensar naquilo que ali se presentifica.

Muito se tem dito sobre o artista Bispo do Rosário. Pesquisadores de

distintas áreas do conhecimento humano voltam olhares nesta direção. Entre

defesas e ataques, há os que afirmem e os que repudiem sua condição de

artista. Respostas que se cristalizam em conceitos são produzidas aos montes.

6 Ver Ilustração 1 e 2 no capítulo Chuleio, p. 137 e 138.

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Hoje o pensamento que me move busca um caminhar que não se dirija a tais

cercanias, pois os conceitos muitas vezes se estabelecem quando as

respostas se tornam mais importantes que as questões, o que geralmente

ocorre a pensamentos que seguem pelo viés da metafísica7, que ao longo da

história contribuiu para a construção do que hoje conhecemos por subjetividade

artística.

Antecipadamente afirmamos não possuir respostas, e de fato não nos

empenharemos em buscá-las. As questões sim, estas nos movem. Inúmeras,

que se perfilam ao arrostarmos as obras. Antecipamos que entre as questões

que aqui se apresentarão, até mesmo quando o percurso ainda se dá por via

conceitual, não figura a discussão sobre a veracidade artística de Arthur Bispo

do Rosário, reconhecidamente um dos grandes nomes da arte contemporânea

brasileira – atestado não por este ou aquele crítico, mas pela plenitude da arte

que se doa ao ver e prescinde defesa, falam por si. Tampouco é o homem-

artista-Bispo-do-Rosário a ocupar o centro deste estudo. Esclarecemos: é o

enigma da arte nas obras quem convoca.

O pensamento imbrica questões originárias: a Loucura e o Sagrado. A

condição de interno na Colônia Juliano Moreira onde passou grande parte da

vida, até a data de sua morte em 1989, e as dissonâncias implicadas nesta

condição, não se deixa descartar impunemente. Há os que rejeitem as obras

que através de Bispo vieram à presença por considerá-las o que chamam de

art brut8; outros defendem com veemência seu espaço nas artes

contemporâneas agregando à sua história o “status” (ou melhor dizer rótulo?)

7 Buscaremos, através de verbete do Dicionário de Poética e Pensamento esclarecer o que entendemos

por metafísica: “3. (...). Qualquer tentativa de dizer o que a palavra metafísica oculta é uma

decisão pelo fracasso. E, no entanto, a palavra é simples, muito simples. Compõe-se do prefixo grego metá-, que significa: entre, além, para, junto a; e da palavra phýsis. A meta-física diz respeito à subjetividade porque o ser-humano é o Entre-da-phýsis. Porém, tal Entre é ambíguo e a phýsis é misteriosa e enigmática. Ela possibilita muitas leituras. Inclusive a metafísica. Nenhuma semântica, nenhuma lógica consegue abarcá-la e apreendê-la”. (CASTRO: Metafísica, 3). 8 Termo cunhado por Jean Dubuffet para a arte dos artistas não-intelectualizados, pacientes

mentais, etc. Entre nós Mário Pedrosa chamou arte virgem ou arte inconsciente. Roger Cardinal, na Inglaterra, traduziu o termo art brut por outsider art; e nos EUA, a arte dos loucos é rotulada de folk art, ao lado da arte dos negros e dos índios (AQUINO, 2006).

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de artista conceitual. Penso que quando somos tomados por questões,

inúmeros caminhos se fazem possíveis, no entanto, a meu ver, os até então

trilhados não se mostram profícuos. Nega-se ou afirma-se uma condição

mental em busca de respostas, mas não há um verdadeiro abrir-se ao que se

coloca nesta discussão, ou seja: a loucura, que põe em xeque a ideia de

subjetividade, autonomia e vontade que impera atualmente no meio artístico.

Quanto ao sagrado ali manifesto pouco ou nada se diz.

Não nos posicionamos ao lado de nenhum grupo. Não creio que uma

obra de arte precise de classificações ou catalogações para vir a ser. De modo

algum temos a pretensão de buscar soluções que possibilitem conceituar as

obras de Bispo do Rosário, tampouco solucionar o enigma que constitui a Arte.

Manuel Antônio de Castro, em seu ensaio O contemporâneo e o enigma da

paideia poética, traz para o pensamento reflexões de Martin Heidegger no

posfácio de A Origem da Obra de Arte que aclaram o percurso: “As reflexões

precedentes dizem respeito ao enigma da arte, ao enigma que é a própria arte.

Está longe de nós a pretensão de resolver o enigma. Permanece a tarefa de

ver o enigma” (HEIDEGGER, trad. CASTRO e SILVA, 2010, p. 201). Creio na

necessidade de aceitarmos o diálogo proposto pelas obras. Apenas

avistaremos o enigma. Mas aceitar o diálogo implica não rejeitar nenhuma das

questões que se apresentam no universo das obras. Se para muitos a loucura

em Bispo é o cerne de sua poética e para outros é o que comprometeria sua

veracidade artística, o que me parece inquestionável é que de fato ela

configura o início. Dediquemos então à loucura um olhar piedoso, lembrando

mais uma vez Martin Heidegger, que diz ser a questão a piedade do

pensamento. Aceitando a loucura como inerente ao próprio do artista Bispo,

buscarei entender sua presença na construção e constituição poética das

obras. Nossa caminhada, como mencionado anteriormente, apresentará dois

momentos. Primeiramente se moverá no duplo dos conceitos, apenas

tangenciando a loucura e o sagrado. Posteriormente, realizaremos a tentativa

de embrenharmo-nos nas dobras deste rico tecido e suas questões.

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2. O Molde: para o retalhar conceitual do tecido

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Tentativas de Aproximação entre Bispo e Agamben

Iniciando nosso percurso realizaremos breve incursão pelo pensamento

do filósofo italiano Giorgio Agamben, buscando estabelecer posteriormente

aproximações entre sua escrita e a produção plástica de Bispo do Rosário.

Esclarecemos, contudo, que o que será desenvolvido neste capítulo e

posteriormente nos 2 e 3 (como sinalizam os títulos deste e dos capítulos

subseqüentes) faz parte de nossa incursão em terreno conceitual9, exercício

importante antes de adentrarmos pelas veredas do poético.

A encenação de um ato profanatório: pinceladas em branco de titânio

sobre a célebre obra O triunfo do Genius da destruição – do pintor húngaro

Mihály Zichy, expoente do romantismo – traduz a bela capa com a qual nos

defrontamos ao termos em mãos a edição brasileira da obra Profanações, do

pensador italiano Giorgio Agamben – uma aproximação, em síntese imagética,

do denso pensamento que ali repousa na condição de escrita que aguarda

leitura.

Selvino J. Assmann, tradutor da obra em questão, em texto de acolhida,

efetua generosa cartografia das veredas da escrita das páginas

subsequuentes, descrevendo o autor como “intelectual instigante, exigente e

intempestivo”10 – e para nossa conformada angústia, antecipa o que em breve

descobriríamos – capaz de impressionar (e assustar) os mais aplicados

9 Neste capítulo buscaremos entender um pouco do pensamento de Giorgio Agamben, em

conceitos relativos ao sagrado e ao profano, bem como ao contemporâneo que habitam sua escrita. “Ensaiaremos”, mais adiante, aproximarmo-nos das obras de Bispo por este caminho. Contudo, se revelará claramente a insuficiência de tal percurso calcado no sendo (ente), na subjetividade artística, diante das questões do ser que habitam a arte, e que persistem, convocam. Questões essas a serem tratadas oportunamente. 10 ASSMANN, Selvino J. “Apresentação”. In: Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São

Paulo: Boitempo, 2007. p. 7.

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leitores. Os mecanismos da escrita de Agamben percorrem o inimaginável ao

realizar uma leitura ímpar da situação política atual, “andando sinuosamente

entre uma miríade de autores antigos (como Aristóteles), medievais, modernos

e contemporâneos” (Ibid., p. 7), transitando pelos mais diversificados campos

do saber, estabelecendo diagonais de pensamento que vão da teologia à

política, da metafísica à literatura. Seu pensar imbrica entre outros caminhos –

como nos esclarece o autor que o apresenta – pelo da biopolítica, vendo-a

como luta da vida e das formas de vida contra o poder. Poder que denuncia

pelo ato de subjugar essas mesmas formas, submetendo-as a seus fins

particulares, muitas vezes pouco ou nada legítimos.

Em Profanações11, conceitos essenciais ao nosso estudo são

elaborados em torno de elementar questão – o Sagrado, analisado de forma

precisa, em raciocínio que abarca de modo irretocável o sentido pleno que esta

condição (expressão?) assume no mundo contemporâneo. Para Agamben,

esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece

atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. O pensador finca seu

movimento de resistência, buscando des-criar o que existe. Re-busca as

longínquas terras da infância e na potencialidade ali resguardada – no

encantamento do jogar e amar, na capacidade de viver em plenitude um

estranhamento sem reservas, lá onde nos desvencilhamos do medo de estar

entre o dizível e o indizível – encontra modos para des-criar a obviedade

existente. Conclama-nos a penetrar por frestas da subjetividade, da liberdade

individual, conscientes de que no império do necessário e da impossibilidade

não há sujeito, não há liberdade, tão pouco criação.

Da infância quer o entre-lugar, aquele entre o dizível e o indizível. O

retorno ao início, para onde julga ser a habitação da liberdade, da

subjetividade. No elaborar do conceito de potência, desperta-nos para a

possibilidade da vida ser pensada como o que excede as próprias formas e

realizações, afirmando que a potência não se esgota no ato, mas que há toda

uma relação com a privação, onde ela pode a própria impotência. Fazendo-nos

11

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

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repensar questões primordiais como: potência-ato, possível-real, ofertando-nos

uma nova forma de olhar para o ato da criação e da obra. Com relação à Ética,

a luta por ela no pensamento de Agamben é menos luta pelo cumprimento de

uma norma, da realização de essências humanas, destino, vocações históricas

ou espirituais; tornando-se tão e simplesmente a luta pela liberdade, pela

experimentação da própria existência como possibilidade ou potência de ser e

de não-ser.

Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência”, potência de ser e de não ser (AGAMBEN, 2007, 9).

No conceito de profanação, concentra-se o instrumento de sua filosofia.

Por ferramenta, o ato de profanar o sagrado busca devolver ao mundo, à

humanidade, o que lhe foi historicamente subtraído ao uso pela sacralização.

Desloca esta visão para o âmbito da política e partindo de Walter Benjamin –

para quem o capitalismo é visto como religião – propõe a “profanação do

improfanável” como tarefa “política da geração que vem”. Alertando-nos para a

necessidade de nos libertarmos do consumismo desmedido e asfixiante no

qual estamos soterrados, tratando-se ao mesmo tempo – como nos esclarece

Assmann –- de “afastarmo-nos do eu soberano de Descartes, e chamar a

atenção para o impessoal, o obscuro, o pré-individual da vida de cada um de

nós”. Na Incessante tarefa de profanar, nem mesmo a figura do autor está a

salvo, como bem elabora nos ensaios Genius e O Autor como Gesto. Com

relação ao jogo sacralizar x profanar, agracia-nos com o brilho de seu

pensamento em Elogio da profanação, escrito de particular interesse para

nosso estudo, ao qual retornaremos mais adiante.

Outros escritos de Agamben que não constam em Profanações nos

serão igualmente importantes ao percurso – O fim do Poema, Ideia da Prosa, O

cinema de Guy Debord e O Homem sem Conteúdo. Nos dois primeiros

Agamben pensa os Institutos Poéticos – o enjambement, a versura, a rima, a

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cesura e o fim do poema – aquilo que, em princípio, seria próprio da poesia e

não da prosa, trazendo-os para o seu pensar filosófico a junção entre poesia e

filosofia como algo elementar. Para o italiano (cujo pensar neste ponto difere de

Heidegger) poesia e prosa não constituem troncos paralelos em um mesmo

bosque, mas ramificações de um mesmo caule – a Linguagem.

Dentre os institutos poéticos por ele pensados, o que mais nos atraiu

neste pequeno estudo é o enjambement, que podemos definir em sua usual

aplicação no poema, como a oposição entre um limite métrico e um limite

sintático. O enjambement, ou ao menos sua possibilidade, constitui em seu

pensamento, a única garantia de diferenciação entre verso e prosa, a

configurar-se como único traço distintivo. (...) revela uma não-coincidência, um

deslocamento entre o metro e a sintaxe, entre o ritmo sonoro e o sentido, como

se o poema vivesse desse íntimo desacordo (AGAMBEN, 1998). No

enjambement, o verso se interrompe saltando sobre o abismo do sentido, para

pousar na linha seguinte, transgredindo assim a própria unidade puramente

sonora, bem como, e de modo simultâneo, sua identidade e medida. Para

Agamben este instituto poético desvela a qualidade bustrofédica da poesia,

revelando a hibridez que habita todo discurso humano: o misto de poesia e

prosa. Pensando o enjambement como o salto sobre o abismo do sentido, vê

na versura (termo que vai colher entre aqueles que aram a terra) o exato tempo

do salto – da queda, do “cair para cima”, do estar sobre o abismo.

Em O Fim do Poema – título do escrito, bem como instituto poético ali

articulado –, reforça que a poesia não vive senão na tensão e no contraste (e,

portanto também na interferência) entre o som e o sentido. Agamben o define

como última estrutura formal perceptível de um texto poético. Questiona-nos:

se o poema se estabelece e se sustenta na tensão entre som e sentido, o que

acontece quando o poema finda? Como se dá o enjambement final e o que

acontece no término do poema, quando obviamente já não é possível tal

oposição? Se o verso define-se pelo enjambement e se sabemos não ser

possível enjambement no fim do poema, então devemos concluir, segundo

Agamben, que o último verso não é um verso. Como se o poema fosse incapaz

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de findar-se, pois admitir o fim, seria cair formalmente na ruína do verso, seria

permitir a coincidência exata entre som e sentido. Então, o poema (na figura do

poeta que o escreve) em busca de solução, suspende o próprio fim numa

tentativa de não se arruinar no fosso abissal do sentido. Tendo estas reflexões

em mente, o filósofo, a partir das palavras de Dante – no De Vulgari Eloquentia,

afirma que: “belíssimas são as terminações dos últimos versos, se caem, com

as rimas, no silêncio” – e questiona o que seria esse “silêncio”. Seria a poesia

transitando definitivamente para a prosa? As bodas místicas entre o som e o

sentido? Ou, ao contrário, seria a separação definitiva de ambos? Assim não

deixaria detrás de si um espaço vazio12. Conclui, entretanto, que no fim do

poema o vazio não está atrás, mas sim adiante. Para ele, o fim do poema não

constitui como o enjambement um salto sobre, mas sim um lançar-se no

abismo, um mergulho, uma queda sem fim para lá onde a linguagem habita,

onde tudo se constitui pura abertura; infinitos possíveis.

Em O cinema de Guy Debord, o pensador articula questões relativas ao

modo como o homem, em relação aos demais animais irracionais, relaciona-se

com a imagem, defendendo-o como única espécie que por elas se interessa:

“Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que

o homem é o animal que vai ao cinema”.13

Refletindo sobre o que é inerente à linguagem cinematográfica,

Agamben, define-a como um não arquétipo, como a imagem-movimento,

carregada de tensão dinâmica, experiência histórica – não a cronológica, mas a

“messiânica”, da “Salvação, uma história última, escatológica, em que coisa

alguma deve ser consumada. Cada momento, cada imagem está carregada de

história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra”.14 Esta

situação messiânica que avista no cinema de Guy Debord – também

partilhada, segundo ele, por Godard – é calcada num mesmo paradigma: a

12

AGAMBEN: 2002, p. 146) “O fim do poema”. Tradução de Sérgio Alcides. Revista Cacto nº 1, agosto

2002. p. 142-149. 13

O cinema de Guy Dedord; imagem e memória. Disponível em:http://www.intermidias.blogspot.com/2007/07/0-cinema-de-guy-debord-de-giorgio.html. § 3. 14

Ibid. §4.

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montagem. Para o filósofo, nela reside o caráter mais próprio do cinema, sua

condição de possibilidade – a repetição e a paragem.

Para pensar a repetição, Agamben solicita a companhia dos que a

pensaram anteriormente: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze.

Ao se aproximar do conceito de memória, afirma que: repetir uma coisa é

torná-la de novo possível15. Nesse sentido, a memória é entendida como

aquela capaz de modalizar o real, capaz de transformar o real em possível e o

possível em real e, com isso, define ser isto o que o cinema faz todo o tempo.

Para ele, através da repetição, Debord abre uma zona de indecidibilidade entre

o real e o possível.

Ao falar da segunda condição de possibilidade do cinema – a paragem –

, diz ser ela o fator que o aproxima da poesia e o distancia da prosa. É neste

ponto, ao estabelecer paralelo entre o enjambement e a paragem, que o

pensamento de Agamben desperta em nós maior atenção, avizinhando-se de

nosso particular interesse. Para ele, se o enjambement é uma das condições

de possibilidade de trazer para o poema uma disjunção entre som e sentido, a

paragem, tal como Debord a pratica, traria para o cinema a hesitação

prolongada entre a imagem e o sentido.

Para o filósofo, repetição e paragem juntas realizam a tarefa messiânica

do cinema, não no que se refere aos atos de criação, mas de des-criação. E

busca em Deleuze eco para seu pensar: “(...) cada ato de criação é sempre um

ato de resistência”. Mas o que significa resistir? É antes de mais nada ter a

força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte que o fato que aí

está”.16

De um modo geral, ao habitar a escrita de Giorgio Agamben, temos a

incessante busca por uma aproximação entre a poesia e a filosofia, bem como

da consolidação de uma nova Estância crítica, mais próxima à fala do poeta,

sendo este um ponto convergente em seus inúmeros escritos. Dentre outras

questões que habitam O cinema de Guy Debord, o que particularmente suscita-

15

(AGAMBEN, 2007, p.3) 16

Ibid. §12.

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nos interesse consiste no sinalizar da possibilidade de pensarmos, a partir dos

institutos poéticos, os mais diversificados segmentos da cultura humana.

2.1. A Negatividade - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A arte contemporânea em Duchamp por Agamben e as relações com Bispo do Rosário

As obras de arte são sempre o produto de um risco corrido, de uma experiência levada ao extremo, até o ponto em que o homem não

pode mais continuar. Rilke

O pensar de Nietzsche acerca de Kant, colocação que se revela nuclear

ao nosso intento, habita as primeiras linhas do capítulo um, de O Homem sem

Conteúdo. Agamben, ao transcrever as palavras do pensador da Vontade de

Potência, sinaliza-nos o caminho a percorrer: Kant, como todos os filósofos, em

vez de encarar o problema estético a partir da experiência do artista (do

criador), refletiu sobre a arte e o belo apenas do ponto de vista do “espectador”

(Apud AGAMBEN, 1996).

De acordo com ele, Nietzsche aponta que outro equívoco de Kant seria

o de ter classificado o Belo, o que para ele consistia no próprio da arte, como

algo desinteressado. Nietzsche em seu escrito viria propor uma espécie de

purificação no sentido de Belo. O que, segundo Agamben, realiza-se da

seguinte forma:

Essa purificação se realiza por uma inversão da perspectiva tradicional sobre a obra de arte: a dimensão da esteticidade – a apreensão sensível do objeto belo pelo espectador – cede lugar à experiência criadora do artista que vê em sua própria obra uma promessa de

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felicidade. Na “hora da mais curta sombra”, chegada ao limite extremo de seu destino, a arte sai do horizonte neutro da esteticidade para se reconhecer na “esfera de ouro” da vontade de potência. Pigmaleão, o escultor que se apaixona por sua própria criação até desejar que ela não pertença mais à arte, mas à vida, é o símbolo dessa rotação da ideia de beleza desinteressada, como denominador da arte, à de felicidade, ou seja, à ideia de um crescimento e de um desenvolvimento ilimitado dos valores vitais, enquanto que o ponto focal da reflexão sobre a arte se desloca do espectador desinteressado ao artista interessado (AGAMBEN, 1996, cap. 1 § 2).

Desde Kant, como denuncia Nietzsche em citação de Agamben, o

desinteresse e o gozo estético coordenam as artes, ficando vedada a nós a

possibilidade de compreensão da ameaça que a arte representou entre os

gregos e o que temia Platão ao expulsar o poeta da pólis. Entre os povos da

Grécia Antiga grande teria sido o poder da arte sobre a alma. Hoje, contudo,

caberia a nós apenas manifestar reações de espectadores benévolos, em tudo

diferindo dos gregos – para os quais os efeitos da imaginação inspirada

resultava em “terror divino”. Segundo Agamben, esse “terror divino”, a partir de

certo momento, entretanto, voltaria frequentemente a ser entrevisto nos

escritos de artistas e nos registros das experiências com a arte. Com relação a

este dado, o italiano nos diz:

A arte – para quem a cria – se torna uma experiência cada vez mais inquietante, frente à qual falar de interesse é pelo menos um eufemismo, porque o que está em jogo não parece ser, de modo algum, a produção de uma obra bela, mas a vida ou a morte do autor, ou, pelo menos, sua salvação espiritual (Ibid, § 7).

Em posição duelar, encontra-se a crescente inocência do expectador frente ao

objeto belo e a perigosa experiência do artista, para quem esta experiência

com a arte e sua promessa de felicidade, torna-se o veneno que condena à

morte a própria experiência. Na concepção de Baudelaire, segundo Agamben,

este duelo revela-se mortal, e assim o artista grita de terror antes de ser

vencido.

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Ao final do capítulo, Agamben faz menção ao “embarque da arte moderna para

Cítera”, e ao fato de isto não haver conduzido o artista à felicidade, mas sim a

se medir ao Mais Inquietante, ao terror divino, o mesmo que levou Platão a

banir os poetas de sua cidade. Entre os modos de entendimento deste trecho

está o que o considera uma alusão aos movimentos de Não-arte liderados por

Marcel Duchamp, onde o artista assumindo a posição de pensador, do crítico,

decide banir de sua “polis” o próprio objeto de arte, já então a seu ver

contaminado, corrompido pelo poder do sistema. E assim é decretada, pós-

Hegel, a segunda morte da arte. A arte se purificaria do espectador para se

reencontrar, em sua integridade, frente a uma ameaça absoluta.

Para Agamben – segundo Suely Cavendish17 – a arte não morre, como um

zumbi sobrevive eternamente a si mesma – em destino definido por escolha

própria, tornando-se um nada após seu autoaniquilamento. A subjetividade

artística moderna, contemporânea, sem conteúdo afirma a todo tempo a si

mesma, firmando-se puramente em sua força de negação. Assim, a essência

da arte se confunde com a essência do niilismo, com o ser se destinando ao

homem na forma do Nada, em circularidade, reflexividade, num dobrar-se

infinitamente sobre si mesma. É importante frisar aqui que o pensador italiano

não busca desvelar a essência alienada da obra de arte, mas sim, refletir de

modo pertinente o destino da Arte em nosso tempo, no desejo vê-la assumir

um posicionamento verdadeiro e crítico, o que proporcionaria um salvar-se do

afogamento no “pântano da estética e da técnica”, restaurando o status poético

humano à sua dimensão originária. Para Cavendish, nesse pensamento –

reunificação humanista e retorno à origem – configura-se a utopia em Giorgio

Agamben.

No pensamento de Agamben, ready-made é o fenômeno através do qual

a arte sinaliza de modo crítico para as muitas cisões que o artista e a própria

17

Toda nossa tentativa de entender o pensamento de Agamben em O Homen sem Conteúdo, realizada a partir deste parágrafo, seguirá os passos do estudo de Suely Cavendish: Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. Disponível em: http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/a41.htm.

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arte de nosso tempo vivenciam. Cisões instauradas a partir da trincadura entre

trabalho manual e intelectual, manifestada em todas as direções no universo

artístico. A mesma trincadura manifesta a subjetividade do artista que se aparta

de seu fazer, de sua comunidade, perdendo a identificação imediata com seu

material. Por fosso a dividir a criação humana – o juízo estético, o mesmo a

promover a rachadura e se instalar no aberto, condenando a margens distintas

a obra de arte e o produto da técnica, a visão do artista e a do espectador que

avalia, o fazer intelectual do artista e a habilidade manual, a artesania. O ready-

made surgiria então como o apelo mais contundente, como um apontar para o

fechamento desta fenda, visto que neles a própria arte produz a supressão do

status, do glamour do “trabalho artístico” frente ao manual ou ao produto da

técnica. Agamben afirma ser a arte moderna (contemporânea?), arte sem

conteúdo, onde o artista experimenta na obra a subjetividade artística como

essência absoluta, onde todo o conteúdo torna-se indiferente. Para ele, o

grande problema reside no fato de que o puro princípio criativo formal separado

de qualquer conteúdo, torna-se insubstânciável, abstrato, aniquilando todo e

qualquer esforço do conteúdo atualizar-se, transcender-se. Assim, resta ao

artista apenas a angústia da situação sem saída – se busca sua certeza num

conteúdo ou fé particular, mente, pois sabe que só a pura subjetividade

artística pode ser a essência de tudo. Por outro lado, se a busca se norteia na

pura subjetividade artística, sua realidade, estabelece um paradoxo – ter que

encontrar sua essência naquilo que não tem essência, buscando conteúdo no

que é mera forma. Logo, percebendo-se participante de um jogo

alucinadamente perigoso, ele, o artista, utiliza como matéria prima apenas

signos, sendo a forma tudo com o que pode contar para deixar o mundo das

formas. E assim enclausura-se no círculo vicioso que criou para si.

Suely Cavendish, seguindo fio de Ariadne – rastro das argumentações

do pensador italiano que se embrenha no labirinto –, diz que a arte jaz em sua

incapacidade de atingir a dimensão concreta da obra, habitando e se deixando

habitar pelo nada, sendo a crise em nosso tempo uma crise da poesia, em seu

entendimento pleno na expressão poíesis. O que de fato estaria em crise em

nosso tempo seria a essência alienada da poíesis, ou seja, da produção

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humana, do trabalho humano. Nesse ponto, a autora diz que o pensamento de

Agamben se avizinha ao de Marx.

Para discutir a questão acerca de o ser humano possuir um status

poiético, produtivo, o pensador convoca seus pares, os Antigos, trazendo do

Symposium de Platão a definição de poíesis: “Toda causa que traz à existência

aquilo que ali não havia antes [...]”. Toda vez que algo que não existia é trazido

à presença, há poíesis. Assim, tanto é poíesis a obra do artista quanto a do

artesão, sendo a própria natureza, em sua constância em “trazer a presença”,

também poíesis. De Aristóteles, vai buscar no segundo livro em que este trata

da física, a Tékhne, nome ali atribuído a tudo aquilo que não contém em si

mesmo seu próprio princípio e origem, encontrando sua entrada a partir da

atividade produtiva humana; assim se referindo tanto à atividade do artesão

que molda o vaso, quanto a atividade do artista que esculpi a estátua. Assim

chegamos ao ponto em que percebemos que, tanto na definição de Platão

quanto na de Aristóteles, haveria uma unicidade da atividade produtiva

humana, que como esclarece Cavendish, Agamben busca destacar.

Com o advento da 1ª revolução industrial, bem como o desenvolvimento

de novas tecnologias, a unicidade acima descrita se parte, surgindo um duplo

modo das coisas produzidas pelo homem virem à presença. Neste momento,

surgem duas possibilidades de produção – os que seguem o estatuto da

estética: as obras de arte e os produtos da técnica. Desde o seu princípio a

estética passa então a definir como caráter particular da obra de arte a

originalidade. A autora nos diz que por originalidade Agamben compreende não

apenas o que é único, diferente de tudo o mais, mas a proximidade com

relação à origem (Ibid., §10).

Valendo-se dessa condição de permanente proximidade com a origem,

com sua Arkhé Formal, o pensador defende que a originalidade na obra de arte

tem relação de tal proximidade com a poíesis, que exclui a possibilidade de que

sua entrada em presença possa ser reproduzida, como se a forma se

autoproduzisse em presença apenas no ato da criação estética. Gostaríamos

de estabelecer nesse ponto, uma suspensão na linear leitura que até aqui

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realizamos no texto de Cavendish, pois uma questão acerca deste

posicionamento de Agamben, que aos poucos se insinuava, toma corpo. Com

base nas reflexões sobre originalidade, questiono como o italiano pensaria a

gravura – a litografia, a xilogravura, as gravuras em metal etc. – bem como os

múltiplos; ou ainda o cinema peloo qual demonstrou tamanho apreço em seu

escrito sobre Guy Debord? Se não é possível reproduzir a entrada em

presença, seria a gravura ou o cinema em sua inerente reprodutibilidade

apenas produto da técnica? Talvez com relação aos múltiplos objetos do

contemporâneo seja mais simples o esquivar da questão, contudo, permanece

de modo incômodo o eco do conceito, quando nos propomos a pensar as

gravuras ao longo da história da arte. As magníficas águas-fortes de Rembrant

a exemplo – Da P.A a uma hipotética tiragem 25/2518, rigorosamente iguais e

autênticas, não havendo diferença entra original e cópia. Seriam entradas em

presença apenas as matrizes, e não o que através delas vêm à presença? E

caso as consideremos não originais, perderia então toda a tiragem o “status” de

obra de arte?

Deixemos de lado por hora tal questão. Retomemos o pensamento de

Agamben através do fio mediador de Suely Cavendish. Segundo ele, não há a

mesma relação de proximidade com a imagem (eidos) nos produtos da técnica,

onde a reprodutibilidade é compreendida como relação de não proximidade

com a origem, ficando a originalidade como caráter essencial da obra de arte.

A dualidade da poiética humana agora nos parece tão comum e natural

que, segundo o italiano, esquecemo-nos que apenas recentemente a obra de

arte adentrou a dimensão estética. Desde o alargamento da fissura entre arte e

técnica, houve o gradativo desaparecimento das oficinas e das escolas de arte

e demais estruturas de composição artística. Diluíram-se os espaços onde

personalidades se integravam.

18

Forma de numeração usualmente utilizada nas gravuras para definir sua posição de impressão. P.A – indicação da primeira cópia, a Prova de Artista, que não entra na contagem posterior da tiragem.

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O artista no qual o demônio crítico moderno se insinuou deve livrar-se dessa comunidade ou perecer. Outro aspecto que diferencia a arte nos tempos modernos é que ela agora constrói seu próprio mundo, consignado à dimensão estética atemporal dos museus.19

Esse amor dos tempos modernos, da arte pela arte mesma, nas

palavras do italiano quase não é encontrado na Idade Média. Lá a

subjetividade do artista confundia-se com os seus materiais, diante da obra de

arte acabada era impossível falar de participação estética. O homem medieval

[e não apenas ele, mas outros posteriores – Miguel Ângelo Buonarroti a

exemplo] ao produzir sua arte, estava construindo, delimitando e percorrendo

os limites de seu mundo, relacionando-se intimamente com ele em completa

inteiração. Após a fissura entre arte e técnica, houve uma mudança de foco

para o puro princípio criativo da arte como finalidade de si mesma. Funda-se

então a busca incessante de cada um dos lados (seja o do julgamento estético

– por críticos, espectadores e artistas; ou o da subjetividade artística sem

conteúdo – por artistas) pela dissolução da concretude da obra em um

infindável paradoxo.

A unidade original da obra de arte rompeu-se, deixando, de um lado o julgamento estético, e de outro a subjetividade artística sem conteúdo, o puro princípio criativo (Ibid.).

Para Giorgio Agamben, Duchamp com seus ready-mades – segundo a

leitura que até aqui nos conduz – é tão somente a execução em arte de um ato

gratuito que faz um objeto comprado numa loja de departamentos – produto da

técnica – entrar na esfera da arte. Um jogo criativo que expõe a fratura na

unicidade original ao expor o duplo status da atividade criativa humana, visto

introduzir um objeto reprodutível na esfera de objetos de autenticidade e

singularidade. Entretanto, ressalta que tal gesto não procede e, ao exemplificar,

diz que a improcedência ficou evidente quando Duchamp quis fazer do ready-

19

CAVENDISH, Suely. Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. §12.

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made uma via de mão dupla, por tentar transformar um Rembrandt numa tábua

de engomar. O pensador afirma que a passagem de um status a outro é

impossível: O que é reprodutível não pode se tornar original, e o que é

irreprodutível não pode ser reproduzido (Ibid §13). Para ele, os ready-mades

habitam uma espécie de limbo.

A nosso ver, a via dos ready-mades é de mão única, pois acreditamos

ser possível usar a ironia artística como matéria prima que agregue à técnica

atributos de originalidade, contudo, cremos como Agamben, ser impossível

destituir uma obra de arte de sua originalidade, de sua condição poética.

Acerca da poética de Duchamp, consideramos importante inserir neste ponto

outro parecer:

No trabalho de Marcel Duchamp, há um alvo preciso: o sistema de arte. Para ele, atacar o sistema da arte significava investir contra todo o aparelho cultural-ideológico. Não se trata de atacar cegamente um moinho, mas de nele penetrar e, compreendendo seu funcionamento, inverter seu mecanismo, voltando-o contra si mesmo. Neste sentido, a arte vai adquirir um outro percurso, pois pretende agir dentro das forças da sociedade, desarticulando o sistema cultural dominante (ZILIO, 1997, p. 32).

Segundo Cavendish, para Agamben nos ready-mades nada assume

presença, nada que não havia antes é trazido à existência, que não seja a

privação de uma potencialidade que não encontra sua realidade em parte

alguma. Agamben coloca como contraponto a Duchamp (o homem sem

conteúdo) e sua obra os artistas medievais com conteúdo. Achamos pertinente

trazer para o diálogo um artista também anterior à fratura da presença discutida

pelo italiano, não da Idade Média, mas grande mestre da transição entre

renascimento e maneirismo, também italiano, anteriormente mencionado por

nós – Michelangelo Buonarroti e sua primorosa obra: as pinturas do teto da

Capela Sistina. Para ele, o trabalho artístico era o meio pelo qual o homem

podia alcançar a consciência individual e a compreensão do mundo, o que

converteu para si em uma espécie de religião universal. Em esforço hercúleo, o

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até então escultor [o que explicita de modo indiscutível sua genialidade], realiza

em apenas quatro anos de trabalho solitário grandiosa obra. Por motivos muito

próprios, relativos à intensa luta entre razão e fé, bem como demais conflitos

de artista (plenamente aceitáveis em um homem do renascimento), dispensou

ajudantes. Deitado de costas sobre andaimes altíssimos realizou a mais bela e

árdua obra pictórica da história da arte, onde não apenas narrou o mito cristão,

mas criou mundo de dimensões sobre-humanas esculpido a pincéis. Se como

diz Agamben, uma obra como o mictório R. Mutt é em si apenas potentia,

existindo apenas no modo da disponibilidade, de ser útil para alguma coisa, a

pintura de Miguel Ângelo Buonarroti abarca, em contrapartida, o conceito de

energéia – o que entra e permanece em presença efetiva pela poíesis,

reunindo finalidade e forma – plena, inteira, possuindo a si mesma como seu

próprio fim, como princípio criativo sempre ativo, que se refaz, atualiza-se,

atributo esse que a sustém através dos tempo, mantendo-a contemporânea.

Agamben diz em O homem sem conteúdo, que devido à instituição

Museu, onde quer a obra de arte seja produzida e exibida, seu aspecto

energéico (o ser-para-o-trabalho) ou princípio criativo ativo é apagado, para dar

lugar a sua função de estimulante para o sentimento estético, tornando-se

mero suporte desta fruição. Essa disponibilidade para a fruição obscurece o

caratér energéico de sua duração final em sua própria forma20. [O que de modo

algum se dá na obra pictórica de Michelangelo, por não estar no museu, bem

como justifica o tamanho impacto provocado pelas obras de Bispo nos que a

viram antes que estas para lá fossem]. Na condição de dynamus

(disponibilidade para o que quer que seja) assumida pela obra de arte

deslocada para o museu, a divisão do status unitário migra da esfera da

energéia para aquela da dinâmica, como o produto da técnica – posto em

trabalho para a mera potencialidade. Finalizando as questões de O homem

sem conteúdo, pensadas por Suely Cavendish, chegamos ao ponto em que

Agamben fecha o ciclo acerca dos ready-mades, dizendo que a condição de

esquiva no que se refere à fruição estética similar àquelas do consumo do

20

CAVENDISH, Poíesis, Negatividade e a Condição Moderna da Arte em Giorgio Agamben. §16.

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produto técnico, atualizam (ao menos por breve instante) a suspensão desses

dois estados, evidenciando a laceração de modo mais efetivo que a obra

aberta, apresenta-se assim como verdadeira disponibilidade para o nada.

Assim teríamos nos ready-mades (bem como na pop art) o próprio atingir

presença da privação. Após todas as colocações feitas, Cavendish finaliza com

a seguinte questão do pensador: “Como é possível alcançar uma nova poética

de maneira original?”.

2. 2. O duplo: Sagrado e profano

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Nenhuma intimidade que não seja com

o estranhamento. Sereno abrigo da própria impotência.

Alberto Pucheu

Segundo Giorgio Agamben21, Consagrar, ou seja, tornar algo sagrado,

era entre os juristas romanos termo que designava a saída das coisas da

esfera do direito humano. Ao buscar a etimologia do termo religio, ao contrário

do que se possa previamente pensar, o italiano descobre que não deriva de

religare (o que une o humano e o divino), mas, de relegere que nos diz

justamente do contrário – o que se deve observar para respeitar a separação

entre o sagrado e o profano. Assim religio seria menos o que une homens e

deuses, e mais o que cuida para que se mantenham distintos. Portanto a

religião, segundo ele, não se opõem à incredulidade e à indiferença em relação

ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e distraída.

Ao embrenhar-se por veredas políticas, Agamben diz que, para Walter

Benjamin, o capitalismo não representa apenas a secularização do

protestantismo, mas constitui, ele próprio, um ato religioso, a saber, uma

religião que se desenvolveu de modo parasitário a partir do cristianismo.

21

(AGAMBEN, 2007, p.65).

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Denuncia que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no

cristianismo, generaliza e absolutiza em todo âmbito a estrutura da separação

que define a religião.

Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano [...]. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo que é feito, produzido e vivido [...] acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada [...] na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta é a esfera do consumo (AGAMBEN, 2007, p. 66).

Por esta via de pensamento, deslocar algo para uma esfera separada,

fora do uso, é um ato de (con)sagração. Se entendermos por sagrado aquilo

que foi retirado do uso dos homens, profano é o que de sagrado ou religioso

que era, foi devolvido ao uso e à propriedade dos homens. Para ele, a escritura

é uma proposta profana, por mover-se conscientemente entre o dizível e o

indizível. A obra plástica a seu modo é também uma forma de escrita, nesse

sentido, a fim de pensar a obra de Bispo pelo viés conceitual, poderíamos dizer

que através de suas caixas de acumulação, onde repousam moedas e fichas

de ônibus que tiveram o fluxo interrompido, o artista registra em caligrafia

espacial, a profanação do que é mais que sagrado em uma sociedade

capitalista: o dinheiro.

Mas Bispo também “profana” (se pensarmos profanar no sentido

proposto pelo italiano) objetos corriqueiros, cotidianos, interrompendo-lhes a

circulação, arrancando-lhes a condição do que é para o descarte: sejam

talheres, sapatos ou botões. Mostrando, com isso, que nesses “objetos”

também há a potência do não ser. “Profanar é assumir a vida como jogo, jogo

que nos tira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de inversão do mesmo”

(Ibid.. p.13).

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Bispo joga ao buscar inventariar o universo ao seu redor. É imbuído de

um propósito sagrado, contudo, um sagrado diferente daquele promovido por

mecanismos capitalistas. O sagrado em Bispo é o próprio poético, o deixar-se

tomar pela loucura, pela linguagem. É experiência, no sentido de ex-peras,

excede, vai além dos limites do possível é delírio inspirado, fuga da norma, não

se relaciona com o sagrado “exterior” mapeado por Agamben (dominação). Do

mesmo modo que, como nos diz Manuel Antônio de Castro, há dois

Ocidentes22, há diferenças fundamentais entre o Sagrado que move Bispo e o

sagrado pensado por Agamben. Bispo funda profanação reversa, que

(des)sacraliza para (res)Sacralizar.

Ainda segundo Agamben, a profanação sempre implica em

neutralização daquilo que se profana. “Depois de ter sido profanado, o que

estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso”

(Ibid., p. 68). É neste ponto que o jogo de fato se instaura. O artista elege,

objetos não auráticos, isto é, que nasceram para o consumo; retira-os de

circulação, destituindo-os de sua serventia imediata; profana-os, para a seguir

obrá-los, inserindo-os em seu inventário. Assim (re)sacraliza-os em obra. Sua

ação última é um ato sacralizador e simultaneamente profanatório, visto que

despe os objetos da costumeira (des)utilidade que lhes era conferida em

mundo de consumo e descarte. “Profanar significa abrir a possibilidade de uma

forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um

uso particular” (Ibid., p. 66).

22 O autor no ensaio Os dois Ocidentes: Poética. Disponível em http//:www.travessia

poética.blogspot.com, nos diz: “O primeiro Ocidente é o que todos conhecem num itinerário estruturado em torno de uma construção metafísica pela qual todo saber se centraliza no ente enquanto ente, ou seja, na determinação do real enquanto um conhecimento inicialmente filosófico, depois teológico e finalmente científico. Em si, os três tem a mesma matriz: a decisão do conhecer baseado na proposição, na causalidade, no fundamento a partir de uma verdade lógica e conceitual. [...] O segundo ocidente. [...] Há um outro ocidente. O dos mitos, o das grandes obras de arte, o dos místicos e o dos pensadores. Este ocidente sempre existiu, mas foi silenciado pelo outro. E se hoje o outro se globalizou, também é verdade que este se Ocidente silenciado também se globalizou. Mas é uma outra globalização: o da escuta do sentido do ser enquanto poíesis e pensamento [...].

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Os objetos de Arthur Bispo do Rosário são ambíguos, são da ordem do

jogo, remontam à infância, à liberdade perdida; põem a todo o momento em

evidência a potência das coisas. Sua obra constitui sim, há que se reconhecer,

resistência ao sistema, minando-o de dentro de um de seus dispositivos;

contudo, seu resistir é poético, sem o alarde de discursos, conceitos ou

políticas. Não há nele “engajamento”, vontade de luta. Há necessidade.

De todo modo, como nada passa impunemente de uma de uma esfera a

outra no mundo funcional regido pelos atributos do universo capitalista, suas

obras – se a pensarmos pelo ponto de vista conceitual, seguindo o pensar de

Agamben –, como tudo que é submetido ao jogo de transitar do sagrado ao

profano e do profano ao sagrado, leva consigo uma espécie de carga. Há que

se prestar contas de “algo parecido com um resíduo de profanidade em toda

coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto

profanado” (Ibid.). Com isso, as obras de Bispo, criadas no delírio sagrado,

para “uso” definido – levadas a Deus no dia da Apresentação – hoje habitam o

museu.

Assim, percebemos com clareza, como o “uso” é sempre, ainda segundo

palavras de Agamben, uma relação com o inapropriável, referindo-se às coisas

enquanto não podem tornar-se objetos de posse. O uso evidência a verdadeira

natureza da propriedade. A propriedade configura tão somente um “dispositivo”

que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, onde é

convertido em direito. “A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no

Museu” (Ibid., pp. 72-3). Agamben diz, em O homem sem conteúdo, que devido

à instituição Museu, onde quer que a obra de arte seja produzida e exibida, seu

aspecto energéico (o ser-para-o-trabalho) ou princípio criativo ativo, é apagado,

para dar lugar a sua função de estimulante para o sentimento estético,

tornando-se mero suporte desta fruição.

Vejamos então a ironia que cerca Bispo, inerente aos mecanismos de

exclusão e dominação: O mesmo homem diagnosticado portador de doença

mental (institucionalização da loucura) por trazer à presença coisas a título de

inventariar o universo, posteriormente à sua morte, tem estas mesmas coisas

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legitimadas em obras pela estética vigente, bem como a condição de doente

mental revogada, para que possa ser engolfado pela instituição museu. Assim,

as obras do artista não-artista seguem para o consumo. De “doente mental”

passa a artista contemporâneo, par de Marcel Duchamp. A proximidade entre

ambos se dá, pois além de terem tido o mesmo destino infeliz para suas obras

que – independentemente da própria vontade – foram encaminhadas ao

museu; comungam a utilização, ainda que diferenciada, daquilo (como material

para as obras) que pela mão do homem vem à presença pelo domínio da

técnica.

Para Giorgio Agamben, Duchamp com seus ready-mades é tão somente

a execução em arte de um ato gratuito que faz um objeto comprado numa loja

de departamentos – produto da técnica – entrar na esfera da arte. Um jogo

criativo, que expõe a fratura na unicidade original expondo o duplo status da

atividade criativa humana – a fratura da presença, quando Tekhné e Poíesis

tornaram-se distintas com o advento da indústria. O ready-made seria tão

somente a introdução de um objeto reprodutível na esfera de objetos de

autenticidade e singularidade.

Bispo utiliza para compor suas assemblagens, utensílios cotidianos,

todos destinados a um uso, uma serventia. Serventia esta que o fez elegê-los,

visto que seu trabalho é inventariar a produção do homem sobre a terra, seu

mundificar. Contudo, Bispo não os desloca para evidenciar essa ou aquela

fissura no fazer humano. É fato que com sua ação uma fissura interna inerente

a eles se evidencia – não desconsideramos a fala de Agamben, ao tratar da

sociedade consumista e o contínuo ato de destituir do uso os produtos da

técnica, condenando-os ao consumo e descarte.

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3. O Risco: Entre o duplo e a dobra - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

O louco é como o beija-flor, vive a dois metros do chão.

Bispo do Rosário

3. 1. A primeira dobra no duplo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O Início Doença Mental e Loucura No dia 22 de dezembro de 1938 eu vim!

Faz-se escuridão. Cessam luzes num Fiat Lux às avessas. No abismo

de sentidos findam o que supostamente seria clareza e simplicidade. Casa dos

Leone – Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Excessivo clarão: 7 anjos em

nuvens especiais.

O início – vidência, delírio? De caseiro a escolhido: fim do sergipano de

Japaratuba, não mais lembranças, tudo é memória a mover-se no forte

esquecimento. Do corriqueiro humano à perda do vínculo, agora vê o escuro,

distingui sombras, nelas o vulto do labor messiânico. Desse escuro que se

segue ao apagar das luzes de então, emerge Bispo do Rosário artista – aquele

que nos deixaria por legado mais de oitocentas e cinquuenta obras, desafiantes

ostensivas por força e verdade da escrita da arte. É convocado a inventariar o

mundo, catalogar toda produção do homem sobre a terra para apresentá-la ao

Criador; do delírio surge concretamente uma das mais notáveis produções

artísticas contemporâneas.

Louco, gênio, vanguardista, esquizofrênico?

Mesmo entre os que não consideram a biografia do artista como algo

fundamental em sua poética, nenhum texto crítico desconsidera seu primeiro

surto. Esta data inaugura o artista. A partir dela o tempo para ele toma outra

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dimensão, não é mais aquele que os relógios governam. Uma força estranha

aos seus conhecimentos o toca, colocando-o diante da grandiosidade do

Tempo. Ele, o tempo, mostra-se em sua face mais grandiosa: Tecido de

nossas vidas.

Este o tecido poético com que o artista dá corpo à suas obras

transubstancia os monturos em sua travessia. Ao perceber o sentido maior do

tempo, não mais se entrega às medições abstratas, há agora a concretude do

fio – que destece e tece ao inverso de Penélope. Seu fio – não apenas o azul

destecido do uniforme de interno, mas a própria arte – é como o de Ariadne a

guiar Teseu no labirinto. Através do fio-ampulheta o artista segue, cambiando

razão por invejável lucidez. Penso que supervalorizamos a consciência,

deveríamos lembrar mais vezes que ela é pobre, apenas apara choques e

reage a estímulos, como num jogo de squash23. A riqueza habita o

inconsciente. De lá, chegam-nos os cantos de mnemosýne. A Memória nos é,

no consciente, evanescente, muitas vezes nos foge à lembrança. Em nossa

overdose de racionalidade, confundimos memória com reminiscências.

O ser artista em Bispo provém do estar à margem do óbvio, das regras

estabelecidas pela razão, pela ciência, que busca aprisionar tudo em conceitos

para não perder o suposto leme da vida. Estar à margem é admitir que não

controlamos tal leme, é avistar, mesmo em meio à nevoeiros de confusão, a

terceira margem do rio. O próprio da loucura implica reconhecer a fraqueza das

sínteses racionais e se embrenhar por vezes no prolixo dos sonhos. É o rejeitar

a segurança do modelo (que se tem para cada coisa, cada fazer, cada

pensamento), modelo castrador da capacidade criadora, que segue formatando

homens, em busca (isto sim o insano) de melhor compreendê-lo. Acredito na

loucura e seu vigor a mover o louco artista Bispo do Rosário. Digo louco, mas

esclareço que não me refiro à doença mental, à loucura institucionalizada, mas

sim ao delírio inspirado, aquele que aproxima o homem de algo maior que si

mesmo. Aos aflitos em negar sua loucura, afirmo com tranquilidade uma vez

mais o óbvio: a obra não nasceu deste ou daquele prontuário psiquiátrico.

23

Frase retirada da fala da psicanalista Maria Rita Kehl no programa Café Filosófico da TV Cultura.

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Devemos olhar a condição de louco, aquela que a psiquiatria não olha, e que

me parece nem mesmo a crítica de arte o faz, com um olhar sem pré-

conceitos, livre de pré-noções, de modo que não a estigmatize nem a

subestime. Sabemos que as produções trazidas como questão no presente

trabalho excedem a condição de objetos, pois são obras. Como tais não podem

ser frutos de arte-terapia, não advêm de oficinas para pacientes mentais e não

configuram lenitivo para males da alma. São a força do real acontecendo, sem

que para isso seja necessária nossa permissão. Obviamente não devem ser

pensadas a partir de classificações restritivas, tampouco submetidas àqueles

que insistem em teorizar de modo estratificado, esquartejando Arte em

“categorias”, tipos e subtipos: arte de loucos, arte marginal, arte popular ou

qualquer uma das inúmeras nomenclaturas criadas e aplicadas pelos que se

dizem aptos a fazê-lo.

Ainda que discorde dos que dizem ser a arte de Bispo um fruto da

doença, devido a sua condição de paciente psiquiátrico, e que por conta da

condição de esquizofrênico depreciam suas obras, tampouco creio que

possamos olhar sua poética do mesmo modo que a de outros artistas. Van

Gogh a exemplo, aproximação tentadora e recorrente, visto que ambos

padeciam de esquizofrenia. O pintor holandês possuía plena consciência

artística, foi estudioso da pintura, vivendo a plenitude deste circuito ainda que

não reconhecido de imediato, estando presencialmente junto à vanguarda de

seu tempo; um entendedor das questões pictóricas e mercado de artes. Sua

poética não se funde com sua condição. Suas obras em nada se relacionam a

seus surtos patológicos. Não podemos esquecer: Vincent Van Gogh foi artista

e esquizofrênico, mas a esquizofrenia não constituiu o motor de sua arte, não

foi a deflagradora. Sofria de esquizofrenia, mas poderia ser outra patologia

qualquer, hipertensão, diabetes..., sem que isso interferisse diretamente em

seu modo de pensar pintura. Em Bispo é diferente. A loucura não pode ser

descartada ao pensarmos sua poética, sua arte não se dá por eruditos meios,

não é calcada em conceitos como alguns textos24 críticos buscam afirmar ao

24

Refiro-me mais particularmente ao excelente texto de Ricardo Aquino “Do pitoresco ao

Pontual: uma a Imagem-Biografia” [do qual discordo em alguns pontos]. In: Bispo do Rosário

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defenderem sua condição de artista conceitual. A poética em Bispo se dá na

simplicidade complexa do delírio, inegável movimento do real que antecede

sua institucionalização como artista. Loucura, delírio, são partes do que lhe é

próprio, com isso, não podemos e não devemos mutilá-lo nesse aspecto. Ainda

que não seja a condição mental a fazer de Bispo um artista, tampouco será o

aparato conceitual que a todo custo querem agregar às suas obras. Uma crítica

que busque de fato pensar poeticamente deve reconhecer a importância de

olhar cuidadosamente o que fez aflorar suas possibilidades artísticas, seu devir

de artista.

Há sempre mistério e consequentemente temor a circundar a loucura.

Talvez, por nos retirar do confortável território da racionalidade onde se calca o

pensamento ocidental desde Descartes, onde tudo é supostamente passível de

medida. A doença mental pode até vir a ser mensurável, mas a loucura, esta é

imensurável. Pensar Bispo implica em rever certos pontos cruciais que são,

para alguns, suporte da crítica em nosso tempo. Obriga-nos a questionar se a

autonomia da obra não teria sido seguidamente confundida com autonomia do

artista. A obra de Bispo faz ruir também a ideia de erudição como pré-requisito

para a produção artística a ditar regras no contemporâneo. O mais contraditório

é que a condição de louco é um dado importante na constituição de um

indivíduo. Obviamente sabemos que em arte não é a biografia do artista que

deve ser pensada, mas há nesse caso, um ponto muito incômodo para a

crítica: o contemporâneo em artes se firma sobre subjetividades artísticas.

Fala-se constantemente nas escolas de artes sobre a importância do artista na

“defesa da obra”. O que vale é o pensamento conceitual. A ideia do “artista”.

Inegavelmente isto se dá subjetivamente, ou seja, segundo a visão de mundo

daquele indivíduo consciente de sua condição, que passa a ser visto por seus

pares como alguém apto a produzir “obras de arte” calcadas em conceitos

específicos, a serem consumidas por um pequeno grupo de iniciados. Para a

crítica vigente que se calca em subjetividades, a loucura em Bispo constitui

século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e prefeitura da cidade do Rio de Janeiro,

2006.

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incômodo paradoxo e torna a afirmação de sua obra como conceitual – posição

para nós no mínimo contraditória. Parece-me que o esforço em descartar a

condição de louco, relaciona-se diretamente à necessidade de extirpar algo

que se coloca como entrave a um sistema de análise pré-estabelecido. A crítica

que envereda por este caminho acaba por se trair, perde-se em um amontoado

de contraditos. Basta um breve exercício no campo da suposição para mostrar

o equívoco que a negação da loucura no artista Bispo do Rosário representa

para um pensamento calcado na intencionalidade do artista (recorrente na

crítica e na produção da arte em nosso tempo).

Imaginemos um senhor, funcionário de abastada família, a bordar

toalhas de linho ou até mesmo um manto litúrgico, em um quartinho de fundos

em um casarão em Botafogo, com linha Cléa nº 5. Ainda que seus bordados

tivessem identidade visual com as obras em questão, seria ele inegavelmente

artista? Seria ele Bispo do Rosário? Poderia almejar fazer parte e seria aceito

pelo circuito das artes como um artista conceitual? A meu ver pensar em toda

sua plenitude a poética de Bispo implica percorrer caminhos delicados, quase

tabus, que se cruzam necessariamente, volto a afirmar, com a loucura, o

delírio. Uma vez mais fica também clara a importância da busca por um

caminho que faça a essencial distinção entre loucura e doença mental (que a

meu ver seria sua institucionalização). Essencial, desse modo, épensar a

Loucura como o que liberta dos ditames da razão, loucura inspirada, seja ela

imanente ou transcendente. Esteja ela de acordo com o pensamento de

George Bataille, no qual a loucura é vista como a experiência interior plena,

transposição dos limites do possível, mergulho no impossível; ou com o

pensamento de Heidegger, em que Transcendência é a pro-cura do sentido do

ser no apropriar-se do seu próprio.

Gosto de pensar a loucura como um modo de transcendência, onde

transcender pode ser visto como colocar-se em meio às coisas, estar-em-meio-

a, estar no entre-mundo, ser livre. Liberdade, nos escritos de Martin

Heidegger, é a capacidade de transcendência que o ser-aí (homem) tem de

fundar-se enquanto funda mundo. Pensar a arte de Bispo implica em admitir

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que, em via de mão dupla, a esquizofrenia, doença mental que o segrega,

condenando-o à vida em colônia psiquiátrica, também é loucura, que o liberta

(dos grilhões da mesmice cotidiana e suas regras) para criar. Loucura que é

delírio criativo e está no diálogo Fedro de Platão. Delírio inspirado por Deuses,

como nos disse Sócrates, ao se referir a profetiza de Delfos e às sacerdotisas

de Dodona, que prestavam grandes serviços às pessoas e à Grécia quando

por ele possuídas. Loucura em Bispo é a fuga da norma, manifestação plena

da arte que através do homem diz o sagrado.

Dizer o sagrado lá onde ele se confronta com a razão é afirmar-se louco

em um mundo regido pela racionalidade. Segregação e reclusão são

implicações da incursão da loucura no âmbito da razão. A loucura culmina na

retirada do homem Bispo do que até então entendia por mundo, por tempo.

Contudo, inaugura o artista. O delírio concede espaço-temporalidade outra, a

da criação, onde pode de fato viver e mundificar. Posto fora da perspectiva do

mundo racional, em ponto de vista deslocado do usual, sua linha do horizonte

se expande. Pôde ver a si e ao tempo. Recluso das fortes luzes projetadas

pelos holofotes da razão, finalmente viu o claro, as trevas e o mundo, e então

se fez seu inventariante. O real, em pleno movimento de velamento e

desvelamento, mostrou-se a ele em nuances de clareza e escuridão. Bispo

aprendeu a ver o e no escuro, desse ver brotou a poética de suas obras.

Esta é apenas uma breve introdução sobre a loucura (a qual retornarei

posteriormente), pequena parte da apresentação do tecido poético sobre o qual

nos debruçaremos ao longo deste estudo. Passo agora à outra extremidade: o

pensamento crítico que busca inserir as obras de Bispo na História da Arte

como produções conceituais. Mais adiante farei a apresentação da outra

questão que me move: o Sagrado. Pois se a loucura constitui o início, creio ser

o princípio. Antes, contudo, considero importante refletir o pensamento dos que

defendem o teor “intelectual racional” do artista contemporâneo Bispo do

Rosário, ou seja, a proximidade entre suas obras e as de Duchamp, enfim, o

conceitual.

Sigo.

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3. 2. A segunda dobra no duplo: Bispo – Artista contemporâneo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Os atributos do tempo

Como não bastassem todas as questões que povoam o território dos

passos de Bispo sobre a terra das artes – e que persistem desde o primeiro

instante em que avistamos suas obras, algo pelo qual nos movemos, sendo, ao

mesmo tempo, destino e mola propulsora de nosso pensar – outra,

absolutamente intrínseca as demais surge. Não fosse Bispo, como o

pensamento insiste em sugerir, um enjambement25 na História da Arte,

supondo-o agora, segundo crítica vigente, aberto a toda sorte de classificações

(e isto é fato) e a aderência dos múltiplos sentidos, que o faz não apenas

artista contemporâneo mas seu expoente brasileiro, não estaríamos diante de

nova perspectiva de pensamento que se instaura, e se faz urgente? Bispo do

Rosário artista contemporâneo – afirmação que nos conduz à urgência da

questão: o que de fato chamamos, com tal propriedade, contemporâneo? O

que de fato é o contemporâneo?

Muito se tem dito sobre o assunto, conceitos divergentes se acotovelam

em produções teóricas que o cercam. Pensá-lo é versar sobre algo inquietante

e complexo. Há os que digam que contemporâneo é aquilo que divide o mesmo

lugar no tempo, e apenas isto. Mas que tempo seria esse? O cronológico

regido por calendários e relógios? Estaria a arte submetida a um modus vivendi

temporal? Quando falamos de contemporâneo em arte, sempre nos vem a

ideia de modernidade, vanguarda. Mas ser contemporâneo é o mesmo que ser

moderno? Deve o modernismo ser entendido como um movimento em

particular ou como um modo de ver e ser no contemporâneo? O

contemporâneo é essencialmente moderno, tudo que é moderno instaura-se

25

Bispo do Rosário para mim se apresenta como o lugar da arte onde o sentido metafísico se choca com o não-sentido poético. Em livre associação poderíamos divagar sua condição como um Enjambement (um dos institutos poéticos pensados por Giorgio Agamben e que configura pausa entre som e sentido em verso do poema). Bispo: Enjambement na história da arte? Abismo. O inclassificável que estabelece uma pausa no pensamento estético, mantendo-o suspenso sobre o fosso, mostrando-nos a força, o vigor do Nada que é o véu do Ser.

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como vanguarda ou trata-se de três distintos modos de ser e viver arte e

tempo?

Em ensaio intitulado O Agoral, o poeta e filósofo Antônio Cicero diz do

modernismo não como nome próprio de um movimento particular de

vanguarda, mas sim, designação comum a todos eles. Sendo, em suas

palavras, algo costumeiro tomarmos modernidade por contemporaneidade,

como se o movimento modernista (semana de 22) tivesse tornado o Brasil

contemporâneo da Europa. Cicero, estabelecendo estágio de tensão, busca

aclarar a oposição entre ambos. Em seu pensamento, ser contemporâneo é tão

apenas dividir o mesmo tempo cronológico. Duas pessoas seriam

contemporâneas na medida em que pudessem ser presentificáveis,

comparecíveis entre si, só se for alguma coisa ou alguém. Assim, segundo ele,

ao insistirmos no uso do termo contemporâneo simpliciter, desconectado de

algo específico, estaríamos incidindo em erro do emprego da palavra. A

contemporaneidade seria sempre relativa, uma vez que não se pode ser

contemporâneo de modo absoluto, já que isto nada quer dizer, tampouco se

pode desejar sê-lo (CICERO, 1995, p.172).

Quanto ao moderno, o poeta esclarece que a palavra é um adjetivo

vindo do advérbio latino modo, dizendo agora mesmo; sendo o moderno o que

toma por referência o agora – ou aquilo a que chama agoral. Esclarece ser o

contemporâneo algo contingente, relativo, não passando de uma entre

inúmeras possibilidades; já o agoral, algo definido, pois mesmo que – analogia

ao exemplo do autor – agora não fosse dia 6 de janeiro de 2010, ainda assim,

agora seria agora. Para Antônio Cícero o agora configura espetáculo

insubstancial, pois de certo modo o que nos é contemporâneo hoje, constitui a

negação de algo passado, algo que se dissolveu. Vê a negação como

propulsora de outras realidades, sendo a positividade uma negação da

negatividade. No centro do mundo, como parte essencial do agora, a

negatividade, como possibilidade de mudança, liberdade, imaginação.

Em texto intitulado O que é o Contemporâneo?, Giorgio Agamben expõe

seu pensar sobre o tema e sua posição diverge de Antônio Cicero.

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Contrariando seus argumentos, utiliza a palavra de modo isolado. Logo nas

primeiras linhas, Agamben busca Nietzsche, (através de Barthes, em um

apontamento dos seus cursos no Collége de France) para quem o

contemporâneo seria o intempestivo, ou seja, aquilo que está fora do tempo, do

próprio tempo. Partindo das palavras do filósofo alemão, Agamben diz consistir

a contemporaneidade uma singular relação com o próprio tempo. Ao homem

verdadeiramente contemporâneo há a possibilidade de aderir ao tempo e

simultaneamente distanciar-se dele, em um perpétuo anacronismo entre aquele

e esse; ele não se adéqua às suas pretensões e é, por isso, nesse sentido,

inatual. No desvio ou anacronismo ao próprio tempo, a extrema aptidão em

percebê-lo em totalidade, em apreendê-lo. Segundo suas palavras, coincidir

plenamente com sua época impede vê-la, torna impossível olhá-la fixamente.

Em Agamben, temos que contemporâneo por excelência o poeta deve manter

fixos os olhos no seu tempo:

[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro. [...] o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que todas as luzes, se volta diretamente e singularmente para ele. Contemporâneo é aquele que recebe em plena face o feixe de treva que provém de seu tempo26.

Da neurofisiologia da visão as off-cells27, Agamben conceitua o modo de

pensar o escuro não como simples ausência da luz, mas algo próximo a não-

visão, resultante da atividade das off-cells, produto da nossa retina. Diz que

perceber o escuro da contemporaneidade é uma habilidade específica,

particular, não uma espécie de inércia. No contemporâneo, o hábil neutralizar

das luzes da própria época desvela sua treva, o seu escuro especial, sua

negatividade enquanto latente potência de luzes.

26

GIORGIO, Agamben. O que é o contemporâneo?, p. 3. 27

Segundo o filósofo, série de células periféricas da retina que em ausência de luz entram em atividade e produzem espécie particular de visão a que chamamos escuro.

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Na densa treva, circunda estrelas avistadas no céu à noite, a promessa

da luminosidade destas que, em distantes galáxias do universo em expansão,

distanciam-se de nós em tão forte velocidade que supera a da própria luz que

emitem. Assim, aquilo que percebemos como escuro, na verdade seria tão

somente a luz destas estrelas que se distanciam, a viajar em nossa direção,

sem jamais poder nos alcançar. Na astrofísica, Agamben busca o modo,

científico e um tanto poético, de dizer o escuro contemporâneo:

Perceber no escuro do presente esta luz que busca nos alcançar e não o pode fazer, é isso o que significa ser contemporâneo [...] luz que sem jamais poder nos alcançar está perenemente viajando em nossa direção28.

O pensamento de Agamben que diz dessa capacidade de ver o escuro

de seu tempo como inerente àquele que é verdadeiramente contemporâneo,

conduz meu olhar uma vez mais à obra de Arthur Bispo do Rosário. Penso que,

o que faz de Bispo artista contemporâneo por excelência em nada se refere ao

amontoado de conceitos que a escrita da arte busca afixar com as constantes

comparações de sua obra a essa ou aquela produção, agrupando-a de modo

díspar a de outros artistas das quais em muito diverge do ponto de vista

poético. Mais à frente pensaremos melhor o tempo como questão e sua

importância (ou ausência de) na palavra contemporâneo. A meu ver, o que faz

de Bispo um contemporâneo por excelência é a habilidade em ver o e no

escuro. É o estar fora das luzes de seu tempo (e aqui emprego à palavra tempo

a conotação de sociedade), e ainda assim senti-lo, vê-lo ao modo de um

oráculo ou mesmo do vidente Tirésias29. Viveu plenamente a escuridão por

estar excluído das luzes sociais. Na reclusão aprendeu a ver o escuro do

28

Ibid. Op.cit. 29

Advinho, filho de Everes e da ninfa Cáriclo. Ainda jovem viu duas serpentes se unirem, separou-as e

transformou-se em mulher. Sete anos depois encontrou as serpentes enlaçadas e interveio do mesmo

modo. Retomou então a forma primitiva. Por sua dupla existência foi tomado por árbitro em discussão

acerca do amor entre júpiter e Juno. Declarando que era a mulher quem sentia mais prazer, desagradou

Juno que encolerizada o cegou. Para compensá-lo, júpiter tornou-o capaz de predizer o futuro e concedeu-

lhe o privilégio de viver longo tempo. São atribuídas a Tirésias numerosas profecias ligadas aos mais

importantes acontecimentos em Tebas. Teria sido ele a revelar a Édipo seu involuntário incesto.

(PESSANHA, 1976, 180).

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“tempo” que, apesar dos pesares, também era o seu. Escuro esse que abrigou

a criação, oriunda de outro que a gerou. Assim, mesmo estando à margem de

categorias eruditas de produção artística, obrou. Sabemos que sem deixar sua

cela em visita ao mundo das artes plásticas e seu circuito, tampouco tendo

acesso a bibliotecas ou mídia especializada, como disse Frederico Moraes,

ainda na década de 60 criou assemblagens como as de Arman ou Daniel

Spoerri30, expoentes do novo realismo (Apud. HIDALGO, 1996, p. 195); e que

seu manto e demais trajes se afinam aos Parangolés31 de Hélio Oiticica.

Contudo, não é ainda a mera afinidade visual com obras destes artistas, ou

com algumas de Marcel Duchamp, que o fazem um artista “contemporâneo”

conceitual, pois de vanguardas ele nada sabia32.

Não é incomum textos críticos estabelecerem vínculos entre as poéticas

de Bispo e Marcel Duchamp (tido entre muitos como o pai da arte conceitual).

Ainda que nada realmente concreto seja dito, apontam certas convergências,

seja no que se refere aos conceitos ou à “utilização dos ready-mades”. Destas,

algumas primam pela sofisticação, outras caminham entre obviedades, como a

semelhança visual entre a obra Roda de Bicicleta, 1913, de Duchamp e a Roda

da Fortuna, de Bispo33. Não discordo da possibilidade relacional, sobretudo por

ser Duchamp caminho inevitável a qualquer aferimento sobre arte

contemporânea que percorra o caminho da análise. Contudo, a meu ver,

precisamente em Bispo, esta aproximação se dá menos por similitudes que por

oposição.

30

Arman – Pintor e escultor franco americano. Nasceu em Nice a 17 de novembro de 1928 e morreu em Nova Iorque em 22 de outubro de 2005. Foi um dos fundadores do Grupo Noveau Réalisme em 1960. Veja imagens no capítulo Chuleio, p. 144, ilustração 9. Daniel Spoerri (ou Daniel Isaac Feinstein) – artista e escritor suíço, nascido na Romênia em 1930, reconhecido como “a figura central da arte pósguerra européia”. Integrante do Novo Realismo e do Fluxus. Veja imagens no capítulo Chuleio, p. 143, ilustrações 8. 31

Ver ilustração 12, p. 146. 32

Esclarecemos que ao dizer que de vanguardas Bispo nada sabia, referimo-nos ao modo como a academia entende e pensa a vanguarda. Ou seja, academicamente falando Bispo não conheceu vanguardas. 33

Imagens no capítulo Chuleio, Roda da Fortuna, p. 141, ilustração 6.e Duchamp, p. 144, ilustração 10.

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51

Vanguarda é geralmente entendida como tradição da ruptura, Bispo não

tinha intenção de romper com nenhum modo de arte instituído, sequer entendia

por arte suas obras; enquanto produzia não se preocupava com a aceitação ou

negação, com avaliações da crítica especializada; produzia obras para levar a

Deus no dia da apresentação. Com relação à vanguarda talvez seja importante

considerar o que nos diz Antônio Cícero, quanto a não deixar de ser um

equívoco o pensamento que a entende como tradição da ruptura, pois em

primeiro lugar, a vanguarda não seria uma, mas muitas, bem diferentes entre

si; em segundo lugar, também as rupturas teriam diferentes naturezas. Se

pensarmos vanguarda como aquilo que pretende revelar a poesia em estado

essencial e selvagem, desmantelando (como nos diz Cícero) as convenções

que a elidem ou domestica, aí sim teremos um paralelo entre Bispo e

Vanguarda. Fora essa possibilidade específica, a proximidade visual entre

Duchamp vanguardista e Bispo do Rosário não se explica racionalmente ou

conceitualmente, posto que, Bispo desconhecia os conceitos que regiam os

ready-mades. O que em nada diminui o valor de suas obras, visto que, como

bem nos disse ainda Cícero acerca da poesia e que aqui estendo às artes

plásticas: “Demonstrou-se na prática que não é a obediência a esta ou àquela

regra particular, a adoção desta ou daquela forma, a pertinência a este ou

aquele gênero o que garante a qualidade artística da obra de arte” (CICERO,

2000, p. 24). Com relação ao mais famoso ready-made de Duchamp, o poeta e

filósofo faz colocação importantíssima. Diz que a partir de Fontaine34 o próprio

conceito de arte foi amplamente discutido. Que ainda que uma obra possua

valor artístico e estético quase insignificante, isso não constitui empecilho para

que possua uma vastíssima importância conceitual. Temos então que o valor

puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensina, e não nela

própria, mas logo que o conhecimento se espalha ela, a coisa-obra, torna-se

mero exemplo, ilustração de conceito. Segundo Cícero, tomar uma obra

importante do ponto de vista conceitual como uma obra necessariamente

importante do ponto de vista artístico, plástico, foi um equívoco da vanguarda e

34

Célebre e polêmica obra de Marcel Duchamp, Fonte - o mictório assinado R.MUTT. Imagem p. 145, ilustração 11.

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de seus admiradores. Do mesmo modo que não perceber ou negar que uma

obra esteticamente fraca como a Fontaine pode ter uma grande importância

conceitual e histórica, constitui grave erro dos inimigos da vanguarda.

A obra de Bispo é artística, de profunda estesia35, em tudo se opondo

aos ready-mades. A semelhança entre Bispo e Duchamp reside no fato de

ambos serem artistas. A forma de ver e ser que habita todo artista é o que os

aproximam e não algumas semelhanças meramente formais de suas obras

com gestos poéticos tão distintos. Se Duchamp constitui caminho inevitável

para se alcançar a poética de Bispo, há que se reconhecer em Miguel Ângelo

outro par. O aceno, se não por outros motivos, dá-se ao menos por sua crença

no trabalho, na poesia do laborar. Guarnecendo nossa tentativa de estreitar

distâncias entre poéticas, pensemos um pouco o italiano. Miguel Ângelo

testemunhou uma completa mudança na posição do artista, que, guardadas e

feitas todas as ressalvas, passava a ver a arte, após o dardo disparado por

Leonardo da Vinci (que alcançou nosso tempo sublimando a responsabilidade

perceptiva e intelectual do artista), como “coisa mental”. Ainda assim,

solidificou a ideia de criação artística através do labor, pondo-se a serviço da

necessidade de obrar. Alimentou imageticamente a história da criação de

inúmeras gerações, dando forma à imagem de Deus Pai, cultivada por

inúmeras pessoas que ainda hoje, diante de nosso pasmo, desconhecem o

autor e a obra a qual pertence. Homem tempestuoso, de conflitos múltiplos,

doou-se completamente à causa da arte, acreditando acima de tudo na poética

do trabalho, embora tenha negado sua própria condição, dizendo em resposta

35

A palavra estesia a mim soa serena, ainda que vigorosa, e particularmente ligada ao ver. Não ao ver dos olhos (órgãos da visão), mas um outro ver, que requer olhos de ver, que por sua vez não requer qualificação científica, racional, mas apenas entrega. Trata-se de um abrir-se ao ver, ao mistério do ser, aquilo que experienciamos diante da natureza e também da arte. Estesia me diz do sentimento de comunhão com o belo em momentos em que somos capazes de nos perceber no tempo, onde o tempo inventado por nós (o cronológico) é suspenso, toda abstração se dissolve e ficamos diante do real. É nesses momentos de verticalidade poética do tempo em que estamos prontos para assistir uma folha seca que se desprende de uma árvore, que sinto a estesia no mundo, quando percebendo o exato instante de seu desprendimento somos resgatados da “temporalidade” mecânica por algo que em sua simplicidade se revela sagrado. A folha é puro gesto, baila no traçar de sua queda embalada pelo sussurro do encontro do vento com o limite da matéria em seu ser no mundo; dança; música; e a um só tempo, pintura, no matiz que ali se abre ao ver; e poema, na narrativa amarelecida de sua trajetória que diz finitude e renascimento. Estesia.

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a uma carta recebida certa vez, na qual se referiam a ele como escultor Miguel

Ângelo: “[...] nunca fui pintor ou escultor no sentido de possuir uma loja...

embora tenha servido aos papas, mas fiz isso sob compulsão” (Apud.

GOMBRICH, 1995, p. 312).

Bispo criou sua impressionante obra onde também corporificou a

imagem da criação, ainda que não a divina, mas a humana. Enformou em

réplicas que excederam o mero representar (aproximando-se talvez da

mímesis, se a pensarmos sob a condição do repetir encantadamente) a criação

do homem, o seu mundificar, inventariando-a para levar a Deus no dia da

apresentação. Sua obra não passa pelo crivo da coisa mental, pois é fé

messiânica, fruto do delírio, convocação de sete anjos no dia do surto

esquizofrênico. Entre suas obras, há as que não são propriamente criações,

são reproduções de objetos cotidianos, mas excedem esta cerceadora

possibilidade, são des-criações do real, pois ao inventariar o mundo Bispo obra

e obrando mundifica, re-criando seu universo. Esta é apenas uma edificação

extemporânea entre as poéticas de Bispo e Michelangelo – crença na obra, no

caracter energéico das obras, o ser-para-o-trabalho que em ambas residem.

O que dizer com relação a Marcel Duchamp, aquele que ao contrário de

Miguel Ângelo, dissolveu o objeto artístico, aniquilando a presença, fazendo

com que o objetivo da atividade artística deixasse de ser a arte, para ir em

direção ao seu oposto, a antiarte? A respeito do posicionamento

conceitualístico de Duchamp, Giulio Carlo Argan diz que é algo mais que a

morte da arte em Hegel, por sua condição de não ser apenas uma ausência,

mas uma presença contrária; e algo menos por sempre implicar uma operação

artística, ainda que de sinal contrário. Diz do evidente paradoxo: “se o fazer

antiarte é o único modo de fazer arte, a arte (em Duchamp) destrói-se no modo

de fazer-se a si própria” (ARGAN, 1993, p. 119).

Marcel Duchamp o artista de vanguarda, “pai da arte contemporânea”, é

o que produz objetos de não-arte. Já Bispo, ocupando a posição controversa

de negar a condição de artista (interno em hospital psiquiátrico e inventariante

do mundo eleito ícone da arte contemporânea brasileira mesmo contra sua

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vontade), produz objetos de arte. Assim temos mais um estranhamento a

habitar o campo das artes no contemporâneo: Duchamp é o artista que faz

antiarte e Bispo o antiartista que faz arte. Se o conceito de ready-made é o de

deslocar um objeto estranho à arte para esfera dela, podemos pensar não a

obra, mas o próprio Bispo como ready-made, obra de críticos que o inseriram

no sistema. Reforçamos que de modo algum duvido do teor artístico das obras

produzidas por Bispo do Rosário naturalmente legitimadas por sua força

poiética, questionamos apenas as questões que envolvem o processo de

institucionalização do artista.

Antiarte – como esclareceu Agamben – é em si pura negatividade.

Bispo, antiartista (na condição de potência, daquilo que é e não-é) torna-se a

presentificação humana do não, ou seja do Nada. Na história de sua poética se

afirma e se firma como tal. Mas a grandiosa obra presentifica-se, legitimada em

seu próprio vir-à-presença. A história clama o artista, Bispo nega-se. Não se

trata apenas de manter-se em relação com a privação para poder a própria

impotência, na poética de Bispo temos o Nada a obrar, ou seja, o sagrado.

Bispo revela a verdade do ser (velamento) e do sendo (desvelamento) em seu

constante movimento de desvelar autovelante. Enquanto louco, nega a loucura

em seu obrar, pois sabemos que onde há obra não há loucura; enquanto

artista, nega-se do mesmo modo, jamais o sendo teoricamente. A verdade nas

obras que através de Bispo vieram à presença não é correta, não é da ordem

da correção, não segue a clareza do pensamento racional, é verdade enquanto

alétheia, a verdade da arte, ou seja, algo que se vela e desvela, havendo

sempre um não visto em tudo o que se mostra. No caso de Bispo em especial,

o próprio artista é obra do sagrado.

Duchamp e as obras mentais, antiarte; Bispo e seu inventário. Como

aproximá-los? Não há proximidade possível que não por oposição.

Encontraremos, é fato, em meio ao inventário do interno da Juliano Moreira,

objetos que, por seu DNA industrial, assemelhem-se aos ready-mades de

Duchamp, sem, contudo, propor-nos as mesmas questões.

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A poética de Bispo é excessiva, ao contrário da de Duchamp, enxuta,

racional. As obras de Bispo carregam um excesso que nos expõem à falta, à

necessidade. O mesmo excesso que Clarice Lispector derrama em seus

escritos: em G.H. comendo a massa branca da barata ou na necessidade de

Lori em aprender a ser, para só então aprender a amar; no excesso de

desamparo explícito na escassez de vida em Macabéa que luta por aprender

viver-morrer; ou no delírio de um Eu anônimo que expõe suas ânsias a um Tu

indefinido; ou ainda do querer que culmina em felicidade clandestina, um

querer-saber que queima, paixão, que faz prolongar por tempo comprido o

desejo daquilo que é tão somente promessa de prazer. Excesso do antes,

prolongado no sentir o peso do livro fechado sobre o peito, adiando em

promessas o conhecimento – tempo suspenso, como o da espera por

núpcias36. Tudo que cega das luzes de “nosso tempo” e habilita a ver além, a

rasgar o véu do nada que vela o ser. Mesmo excesso que mostra a fome em

ser, que se derrama na poesia verborrágica de Stella do Patrocínio, ela que

compartilhou do mesmo tempo e espaço que Bispo do Rosário, sem que

tivessem se encontrado uma só vez; aquela que em sua antilucidez tanto

entendeu da própria fome e da alheia: Você está me comendo tanto pelos

olhos/ que já não tenho de onde tirar forças/ para te alimentar37. Fome análoga

a que novamente Clarice Lispector empresta voz: [...] A fome, esta é que é em

si mesma a fé – e ter necessidade é a minha garantia de que sempre me será

dado. A necessidade é o meu Guia38. Esta fome, esta necessidade, move o

artista. E a necessidade tem a exata medida de seu difícil espanto, que

chamarei questão, no árduo caminho a ser percorrido rumo à

despersonalização do autor. Bispo, portador da síndrome da alma fendida

sabia disso e disse: Eu preciso dessas palavras – escrita. A necessidade da 36

Obras citadas de Clarice Lispector, respectivamente: A paixão Segundo G.H; Uma Aprendizagem ou do Livro dos Prazeres; A Hora da Estrela; Água-Viva; Felicidade Clandestina. 37

Stela do Patrocínio nasceu no Rio de Janeiro, em 9 de janeiro de 1941. Aos 21 anos, foi internada em um centro psiquiátrico. Em 1966, foi transferida para o Hospital Psiquiátrico Juliana Moreira, onde permaneceu até morrer, em 1992. Foi contemporânea de Bispo do Rosário. Teve seus poemas publicados pela editora Azougue, em 2001, sob o título Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome. 38

LISPECTOR, Clarice. A paixão Segundo G.H, p.169.

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obra, a obra como necessidade, que é excesso e conduz ao limite do possível

rompendo suas barreiras, permitindo o mergulho no impossível, o salto sobre o

abismo. Experienciar o limite é saber não haver fronteira demarcada entre o

riso e o pranto, mas circularidade. Avistar o impossível é arrostar o real, pois no

impossível é que está a realidade39. Cruzar as fronteiras do possível e

mergulhar no supostamente impossível é conhecer a si mesmo, é estar na

fronteira do limite que é a vida e do não-limite que é a morte. Viver a

consciência da morte é habitar o entre, saber fazer a travessia é o que

deveríamos chamar sanidade.

O delírio em Bispo busca suturar o humano do homem. Suturar o

humano é deixar-se Ser. Se Arthur Bispo do Rosário é um artista

“contemporâneo” isso se deve não a conceitos e regras por ele seguidas, ou

por outros atribuídas às suas produções, mas por ter sabido habitar o tempo.

Em seu delírio obrou, e sua obra se firmou nesta atopia conhecida por

“contemporâneo”, habitada por todo artista que, ao achar que seu eu não está

à altura da vida, percebe imediatamente que, ainda assim, sua vida sempre

está à altura da vida, registro de dedicação nas pinceladas do obrar. O não-

lugar onde é sempre possível que se reúnam Safo, Emily Dickinson, Clarice

Lispector, Stela do Patrocínio...; em que Waltércio Caldas dialoga com Rodin;

onde podem estar a um mesmo tempo Leonilson, Caravaggio, Fídias...; ou

seja, lugar de todo artista que, inspirado, trouxe grandiosas obras à presença,

independentemente da suficiência ou insuficiência de conceitos sempre

menores diante da Arte que se firma, quando assim deseja, como misteriosa

doação do Nada.

Acredito mais no escuro do delírio, que nas luzes da razão. O escuro é o

próprio do artista Bispo. Escuro que também é doação da luz, só que de outra,

a luz da criação. A plasticidade dotada de sofisticado pensamento artístico

não-intencional constitui esse escuro inerente, essa fissura. Por ela,

espectadores, fruidores, estudiosos da arte e suas teorias são tragados.

Apenas nós. As inúmeras teorias vão por terra, desaparecendo, insuficientes,

39

Uma Aprendizagem ou do Livro dos prazeres, p. 106.

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feito gotas d‟água a se esvair no árido solo de conceitos prévios, insuficientes

diante daquilo que se fecha à análise em seus contraditos. Somente as

questões permanecem. Convidando-nos a seguir adiante. Seguimos:

Descalços, desarmados, sem sombreiro sob o calor quase asfixiante das obras

cujo autor ao insistir em seu cunho messiânico, conduz ao não-saber próximo

da angústia. Bispo (o artista-obra) retira tudo que temos e nos deixa nus. Como

classificar um artista que se nega como tal, fazendo-se assim, felizmente,

inclassificável? Por outro lado, como negligenciar obra que se firma como arte

independente da vontade de seu autor? Bispo, por sua especial condição, e

pela inquestionável poesia e força de sua obra, faz-se enigma, desafiando-nos

a pensá-lo.

Inúmeras perguntas perfilam-se entre conceitos e fenômeno. Quanto às

vanguardas, Bispo invalida o suporte conceitual que teoricamente as rege.

Nega a subjetividade artística, até então carro chefe da produção

contemporânea. No reconhecer a força de sua obra, o implicar em aceitá-la

como originária – no desvelar da verdade, a arte que se dá não por eruditos

meios, mas na simplicidade do delírio, inegável movimento do real que

antecede a institucionalização do artista Bispo do Rosário. Seria o gesto mais

forte que a mão ao urdir? Talvez seja o momento de questionar se a autonomia

da obra não estaria seguidamente sendo confundida com autonomia do

artista... E que dizer de toda erudição que vem se instituindo quase como pré-

requisito para a produção artística contemporânea?

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4. O Corte: Entre o duplo e a Dobra - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O Princípio Refazendo o percurso ou outra tentativa de pensar o Sagrado.

Retomando o capítulo 2, onde realizamos breve tentativa de pensar o

sagrado na produção poética de Bispo, percebemos um exemplo de condução

do pensamento por via conceitual, que aplica às obras algo externo a elas: o

conceito filosófico de Agamben acerca da sacralização e profanação. Mas a

força destas obras reside em outra esfera, não cabe em conceitos (ainda que

bem elaborados) ditados à priori. Passemos então a pensar uma das

assemblagens e os apetrechos que as compõem por outro viés de

pensamento: segundo trecho de a Origem da Obra de Arte de Martin

Heidegger, pensador que propõe questões em detrimento aos conceitos. Dirijo

mais uma vez meu olhar em direção às obras.

Pensar as obras de Bispo do Rosário é enveredar pelos caminhos do

sagrado, da con-sagração, em sua poética de inventariar o universo as coisas

do cotidiano obram. Inventariar, a saber, re-inventar. Coisas perfeitas ao

desuso, objetos desprezados – sob o olhar encantado do poeta das linhas,

encontram a sagração. Outro revelar poético, quase místico, diz de sua obra

ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados,

coisas apropriadas ao abandono. O poeta outro – da palavra - percebe entre os

objetos um buquê de pedras em flor e desvenda: Esse Arthur Bispo do Rosário

acreditava em nada e em Deus40. Obra – fragmentos de vida que se

potencializam no acúmulo. Corporificar, catalogar: homem, mundo, anseios,

devires. Obrar em arte. No labor, o corpo poético da fé messiânica. Em tudo

que é humano, o nobre habita a criação – em Bispo a sagração da condição

humana – ex-voto à existência e a capacidade do homem de se re-criar. Tantas

obras a ler, todas ali – estandartes que trazem um oceano de emoções no

desejo de além-mar; objetos para a grande viagem – inúmeros quase

incontáveis – presentificam o universo em azul; venda para olhos – no devir da

cegueira a viagem interior do oráculo; faixas de misses: roteiros de viagens;

40 BARROS, Manoel. Livro Sobre Nada. São Paulo: Record, 2002, p. 83.

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Cama: a viagem do sonho no amor por Rosângela Maria [sua Dulcinea]; o

Manto da Apresentação em toda sua complexidade poiética: traje de gala para

o viajor; capa de Exu: mensageiro entre mundos – o que viaja. Bispo, que

anseia a viagem, antes necessita inventariar41. Assemblagens acolhem sapatos

com desejo de caminho; bolsas para todos os passeios; gravatas para trajes

endomingados; talheres para todos os apetites. No universo-labirinto de Bispo,

encontramos coisas produzidas como utensílio para algo que seriam

destituídas de sua utilidade pelo mundo do consumo e descarte,

transubstanciadas em obras.

Para Martin Heidegger, no utensílio reside um parentesco com a obra de

arte, sendo ele também um produto do trabalho humano. “O utensílio, o sendo

tão familiar em seu ser, ocupa simultaneamente uma posição singular entre a

coisa e a obra” (HEIDEGGER, 2010, § 41, p.77). Os utensílios dos quais Bispo

se apropria são próximos da mera coisa, visto que estão prestes a serem

despojados de seu ser-utensílio, ou seja, o despojamento do caráter da

serventia e da fabricação. Despojamento que se daria pelo desgaste em

sociedade de consumo e descarte. Para Heidegger, o ser utensílio do utensílio

consiste em sua serventia. Tentemos, desse modo, seguir com cautela, para

não incidirmos no erro de que o pensador nos alerta: tomar coisa e obra,

apressadamente como variantes do utensílio.

Bispo usa, em suas obras, utensílios que foram produzidos pela

indústria, ou seja, produtos da técnica. Contudo, seu modo de uso é diferente

do de Duchamp, como dito anteriormente. Lancemo-nos em busca de auxílio

nos escritos de Heidegger, para tentarmos pensar esta questão, relendo o

trecho de densa carga poética, leitura da obra Os Sapatos, de Vincent Van

Gogh, que realizou:

Da escura abertura do gasto interior dos sapatos, a fadiga dos passos do trabalho olha firmemente. No peso denso e firme dos sapatos, se

41

Venda para os olhos, Faixas de miss, Cama e Capa de Exu são obras do artista, ou seja, peças poéticas que compõem seu inventário.

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acumula a tenacidade do lento caminhar através dos alongados e sempre mesmos sulcos do campo, sobre o qual sopra contínuo um vento áspero. No couro está a umidade e a fartura do solo. Sob as solas insinua-se a solidão do caminho do campo em meio à noite que vem caindo. Nos sapatos vibra o apelo silencioso da Terra, sua calma doação do grão amadurecente e o não esclarecido recusar-se do desolado inculto terreno do campo de inverno. Através deste utensílio perpassa a aflição sem queixa pela certeza do pão, a alegria sem palavras da renovada superação da necessidade, o tremor diante do anúncio do nascimento e o calafrio diante da ameaça de morte. À Terra pertence este utensílio e no Mundo da camponesa está ele abrigado. A partir deste pertencer que abriga, o próprio utensílio surge para seu repousar em si (HEIDEGGER, 2010, p.81).

Heidegger partindo da leitura do par de sapatos chega ao ser-utensílio

do utensílio. Importante assinalar que, não parte dos da camponesa

propriamente, pois para ela que apenas os calça, ali não reside poesia, mas

serventia. Heidegger não lê o utensílio-sapato deixado a um canto de uma

humilde casa no campo. Lê sim, a obra, Os Sapatos de Van Gogh, na obra a

verdade e a poesia do ser-utensílio do utensílio sapatos. Apenas a obra é

capaz de tal fala. Nos da camponesa a verdade que se desvela é a

confiabilidade. Segundo Heidegger, “em virtude dela, (a confiabilidade), e

através deste utensílio a camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra”

(Ibid., p. 93). Esta confiabilidade a faz certa de seu mundo.

Nos utensílios por Bispo apropriados não vige propriamente o ser-

utensílio do utensílio caneca, posto que, transformadas em assemblagens não

servem café com leite aos internos. Não estão ali para o uso, ao menos não o

costumeiro uso de sua confiabilidade como caneca. Mas de um outro modo

que não o do serviço cotidiano, pois as canecas ali enfileiradas desvelam a

verdade poética do ser-utensílio exposto na obra.

Passemos então a olhar a assemblagem42: Trinta e duas canecas de

alumínio lustroso desviadas de seus destinos, dispostas quatro a quatro, em

superfície que se espacializa verticalmente, dando corpo à obra. Olhando para

as canecas enfileiradas, percebemos claramente um ordenar o caos. Cada

utensílio que estaria condenado ao descarte, teve seu fluxo de consumo, sua

42

Ver ilustração 5, p.140.

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circulação nas mesas dos refeitórios da colônia Juliano Moreira, interrompido

pelo interno Bispo do Rosário. Olhando-as enfileiradas, em tão perfeita ordem –

cada qual presa pela respectiva alça – percebemos em cada uma delas uma

história. Seja nas rasuras em forma de ranhuras que se firmaram sobre a

superfície polida do alumínio, ou em suas bordas ligeiramente disformes. São

utensílios calejados pelo uso cotidiano. Podemos perceber em cada uma as

marcas de sua utilidade, da confiabilidade, quando andaram de mão em mão,

de lábios em lábios, saciando fome e sede, na humilde tarefa de servir. A

silenciosa disposição, o repouso ao qual Bispo as impõe, faz-nos ouvir a

melodia composta a partir da memória dos ruídos matinais do trabalho, do

tilintar do alumínio sobre mesas recobertas pelo azul-asséptico de alguma

fórmica; do encontro, do esbarro, quando se anula a distância entre duas ou

mais, no recolher à cozinha. Bispo devolve a estas canecas o vigor poético de

seu trabalho, dando-nos a conhecer, como Van Gogh fez com as botinas, o

que o utensílio-canecas é na verdade. O holandês usou tintas à óleo e a

técnica que dominava, Bispo lançou mão do que tinha, utilizando as canecas

em si, para dizer delas o que são. Propriamente, como nos diz Heidegger, o

ser-utensílio do utensílio vem muito mais para seu aparecer somente através

da obra. Na obra se dá a abertura do ente em seu ser. É isto que na obra está

em obra: o acontecimento da verdade.

Partindo de um conceito prévio, ou seja, a noção de sagrado, construída

pelo pensamento de Giorgio Agamben, buscamos pensar a questão do

sagrado em Bispo. A insuficiência de tais conceitos diante do vigor poiético das

obras nos conduziu às cercanias do pensamento do grande filósofo Martin

Heidegger, aquele que defendeu a autonomia do caminho, onde podemos

aprender que são as questões que nos solicitam, não o contrário. Contudo,

uma vez mais nos desvirtuamos da questão. Em uma atitude claramente

conceitual, lançamos mão dos escritos de Heidegger feito súmula papal.

Estando de posse do molde, traçamos o risco que supostamente nos levaria a

construir um manto sacro para Bispo do Rosário. Como nos disse Alberto

Caeiro, é preciso retirar as tintas com que nos pintaram os sentidos, no

entanto, o processo é lento e árduo. Não é assim tão simples negar a tradição

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do pensamento que se firmou desde o início do que entendemos por Ocidente.

Martin Heidegger configura um marco do pensamento humano pelo modo

originário como se volta para as questões essenciais. Contudo, aplicar seu

pensamento na leitura de obras de arte, em nada difere de aplicar o de

qualquer outro filósofo, e pouco se distancia também, a meu ver, das tão

criticadas análises formais. Buscar elementos externos que se agreguem às

obras para só assim nos sentirmos confortáveis em olhá-las, implica, a meu

ver, permanecer na sombra do pensamento metafísico, no qual todas as

respostas repousam; caminho que ao nosso intento se configura improfícuo.

Não buscamos respostas, tão pouco as oferecemos. Não as buscando não

julgamos pretensiosa a tarefa de questionar aquelas que se apresentam. Não

acreditamos possível nos aproximarmos pela via da análise e do conceito, da

questão do Sagrado nas obras de Bispo. Se assim cremos, demorarmo-nos

nisto não teria sido então perda de tempo?

Quando escolhemos o percurso mais rápido por simples receio de

perder tempo, estamos desconsiderando algo essencial: não perdemos tempo,

pois ele, o tempo – ao contrário do que julgamos ou imaginamos

displicentemente – não passa. Somos nós quem passamos por ele. Escolher o

percurso mais fácil, abrindo mão do que se crê, implica em algo muito mais

sério que a suposta perda de tempo. Buscar respostas às perguntas que não

são nossas e fechar os olhos aos próprios questionamentos pelo conforto de

estarmos de acordo com regras pré-estabelacidas por outros, implica em

perder-se de si mesmo. Considero salutar o exercício acima, por evidenciar de

certo modo o equívoco de se seguir moldes. Martin Heidegger deixa claro em

seus escritos não haver mapas, regras, apenas caminhos. Haveremos sempre

de nos deixar tomar pelas questões e permitir que elas conduzam o

pensamento. Pela via conceitual sempre poderemos afirmar e negar o que

quisermos sobre o que quer que seja, sem, no entanto, conseguirmos dar um

passo além da fronteira do exercício retórico.

O sagrado que se desvela nas obras que através de Bispo vêm à

presença é de um vigor que não cabe na ordem das análises, sejam elas

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formais ou filosóficas. O Sagrado que ali se doa ao VER não é da ordem do

complexo, mas do simples. É o desdobrar-se da verdade da arte, verdade

como aléthia, movimento de velamento e desvelamento. Será sempre algo

apenas entre-visto. As obras de Bispo a nosso ver são da ordem do Sagrado

justamente pelos desdobramentos que desvelam sua simplicidade. Pelo

extraordinário que se dá no ordinário. Por constituir obra rica em nuances do

mais elevado pensamento plástico contemporâneo e vir a ser exatamente

através de ingênuas mãos. Ingênuas do ponto de vista da arte acadêmica,

conceitual, contudo, fortes o suficiente para se deixarem tomar pelo delírio

criativo.

A sacralidade da arte em Bispo se dá em nuances de claro-escuro.

Tanto o claro quanto o escuro são possibilidades da luz, potência de toda

criação. Recordemos trecho de Clarice Lispector, onde é dito lindamente algo

muito apropriado:

Mas era como uma pessoa que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta sobre a visão: ela não sabia que existia ver. Mas, como na verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não a soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada, inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que existe – ela sentiria falta do que deveria ser seu43.

Bispo não conheceu a Arte nos moldes dau academia; também não

chegou a ser um estudioso diletante no assunto, nada sabia das inúmeras

poéticas existentes, não as havia visto. Só soube da falta – que talvez fosse

como aquela saudade daquilo que ainda não se conhece, que chega de

manso, vai tomando contornos e se avoluma em algo a que chamamos

Necessidade. Daquela que haveria de Ser. Simples assim.

43

A Paixão segundo G.H, p.. 135, 1º§.

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5. Alinhavos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - As dobras poéticas no Manto da Apresentação.

Neste percurso tivemos momentos onde nossa caminhada se deu no

que chamamos de duplo, posteriormente entre o duplo e a dobra e finalmente,

a partir deste capítulo, nosso empenho se configura em realizar

encaminhamentos por entre as dobras do poético, estabelecendo diálogo com

a obra que se presentificou através de Bispo do Rosário.

A escrita de Guimarães Rosa sempre nos provoca um despertar.

Rememoremos uma importante frase: “o que é para ser são as palavras”.44 Há,

e disto não há dúvida, um saber que repousa nas palavras e que inúmeras

vezes desconsideramos, especialmente quando nos movemos no duplo. Assim

reconhecendo, antes de seguirmos adiante pela vereda do poético,

buscaremos de modo bastante breve, aclarar o que ouvimos nas expressões

duplo e dobra, bem como no vocábulo diálogo.

No que se refere ao duplo e as dobras, esclarecemos que entendemos por

duplo o horizonte dos conceitos universais e abstratos que dicotomizam o real,

através de jogos de oposições entre “verdades” e “inverdades”, bem como de

todas as “certezas” que se dão no âmbito do racional exacerbado,

hipertrofiado, que cambia em alternadamente, o “correto” e “incorreto”. Já por

dobra, entendemos o pensamento que se dedica às questões. Aquele que não

pretende solucionar enigmas, muito menos os da arte, mas tão somente avistá-

los. Na dobra, quando algo é avistado, há a plena consciência da existência

daquilo que se velou ao ver, de algo ainda não visto, que repousa no velado

aguardo de um sempre inesgotável a-se-pensar. Agora pensemos um pouco a

palavra diálogo. Ela é formada a partir do prefixo grego: dia- e do radical –logo,

de lógos, linguagem. Segundo Manuel de Castro45, Dia- é um prefixo grego que

congrega dois sentidos fundamentais: através de e entre; enquanto Lógos é

44

(Apud. CASTRO, In: A leitura como diálogo poético). 45

CASTRO, In: A leitura como diálogo poético. Disponível em http//www.travessiapoetica.letras.ufrj.br

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uma palavra grega que se forma do verbo legein, e apresenta dois sentidos

interligados e complementares: reunir e dizer. Estes dois sentidos se fazem

especialmente presentes na palavra diálogo. Castro nos diz ser a palavra

lógos, intraduzível. Diante dessa constatação, podemos rememorar o

fragmento 50 de Heráclito: “Auscultando não a mim, mas ao lógos, é sábio

dizer que tudo é um”. Partindo desta breve definição-reflexão, esclarecemos

que em nosso estudo, o vocábulo diálogo tem o sentido de escuta, ou melhor

dizendo, ausculta. O dialogar com a obra a nosso ver consiste em escutar a

fala da obra que se dá no silêncio do pensamento questionador. Através da

obra, somos conduzidos à ausculta do lógos, e auscultando o lógos,

apreendemos a obra enquanto sentido, mundo, verdade. Dialogar então seria

estar num entre lógos e obra, e avistar através dele a unidade na tríade Arte,

Pensamento, Linguagem.

Após leituras sobre as questões originárias do Ser que constam nos

escritos de Martin Heidegger, percebemos na fala das obras o pronunciamento

de muitas questões. Ainda na tentativa de remover camadas depositadas por

inúmeras teorias estéticas que há muito formatam o pensamento que se ocupa

das artes, buscaremos avistar, ou seja, entre-ver, na circularidade do Manto da

Apresentação um aceno da corporeidade plástica do círculo poético. Não é

nosso intento pensar o Manto a partir das questões que constituem o caminho

sugerido por Heidegger, mas sim o inverso, avistar questões da ordem do

tempo, da memória, da loucura, do sagrado, a partir da plasticidade da obra.

Na realização deste exercício de pensamento, em movimento inverso, também

buscaremos pensar a possibilidade artística que aflorou em Bispo do Rosário,

[um grego intempestivo, como mais adiante teremos oportunidade de entre-

ver]. Aceitando o convite ao pensamento através das questões que o figurar da

obra apresenta, teremos, neste capítulo, registros dos diálogos.

Olhar o Manto da Apresentação é avistar as questões que movem o

pensamento. Olhar o Manto e Vê-lo implica em reconhecer que o olhar é tão

somente uma ferramenta e em muito difere do Ver. Mais importante que o olhar

é o Ver, que não se distingue do ouvir. O ver só é ver se nele se dá também a

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escuta, ou melhor, ausculta. No Ver não apenas vemos como também

escutamos e dialogamos. Ele deve ser pensado e entendido como um abrir-se

ao dia-logo. Abrir-se ao Ver é acolher-se, é receber a si mesmo, é recolher-se

em autodiálogo, é auscultar o lógos. As possibilidades do ver nos são doadas

por aquilo que se mostra, ou seja, se doa ao e no Ver. Mas o olhar pode

perceber ou não. Para de fato vermos precisamos, por nossa vez, termos

consciência do aberto que somos e no qual também desde sempre estamos

jogados, para assim, e só assim, alcançarmos a plenitude do Ver originário.

Contudo, há ainda outro ver, mais imediato, e que em comum com o Ver

originário tem o diferir do mero olhar. Para este outro ver, usaremos o olhar,

mas o olhar pensante, para tanto há que se cultivar “olhos que vejam”. É mister

despi-lo de tudo que os turvem, ou seja, livrá-los da subjetividade, bem como

dos conceitos, que anexados à ferramenta do olhar como desnecessárias

lentes, tornam baços os olhos, distorcendo aquilo que se mostra no aberto, no

horizonte da visão. Precisamos compreender e ultrapassar o que se interpõe

entre o que se mostra ao ver e o que conseguimos “ver” daquilo que se mostra.

5.1. O Ver - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Olhar difere de ver, e especialmente do Ver.

Repousa em todo ser humano o Ver enquanto possibilidade, Ver este,

que é a um mesmo tempo, mostrar-se. Haveremos antes e primeiro – neste

início de percurso pelas veredas das questões originárias que se apresentam

no figurar do Manto – de (re)buscar o Ver em sua plenitude. Há aqui a

necessidade de esclarecer qual caminho se apresenta primeiramente em

nossa caminhada. Haveremos de nos lançar em exercício de pensamento que

nos desperte a compreensão do essencial ao Ver: o existir. Buscando pensar a

existência humana seremos conduzidos à essência do Ver, pois repousa no

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homem, no próprio de seu ser, o Ver como potência no enigma do revelar-se.

Na existência a essência do Ver se dá no movimento do que se mostra no

aberto entre homem e mundo.

Os seres (animais e vegetais) existem. Mas só ao homem é dada a

existência. Gilvan Fogel, em ensaio intitulado A respeito de homem, de vida e

de corpo46, tendo por norte uma página de Martin Heidegger em Sobre o

Humanismo, realiza profundo encaminhamento acerca da questão da

existência e do homem. Acompanharemos suas reflexões para que em nós

também se aclare esta questão e seu imbricar na questão do Ver. Heidegger

nos diz que “somente o homem foi introduzido no destino da ek-sistência”. Para

Heidegger o homem é o Dasein, Ser-aí, existência. Diante disso, Fogel

esclarece:

[...] que a essência do homem esteja na ek-sistência quer dizer que o „homem se essencializa de tal modo (West so...) que ele é o lugar (“Da”), isto é, a clareira do ser. Este ser do lugar (“Da”), e ele só, possui o caráter fundamental (“Grundzug”) de ek-sistência, isto é, da in-sistência ek-stática na verdade do ser (Apud. FOGEL, 2010, p. 2).

A partir do pensar de Fogel, temos que, essencializar diz expor, realizar

um modo próprio de ser. Essência então seria: expor-se, fazer-se, vir a ser.

Essência, portanto, não diz de núcleo, ou de pureza, mas de origem, gênese,

diz de movimento-gênese, movimento originário. Essência diz daquilo que

move a si mesmo e determina posição: auto-ex-posição. Como um posicionar-

se fora, um expor-se como e na abertura. É próprio do homem vir a ser si

próprio em seu modo próprio de ser. O homem como clareira do ser mostra-se

no aberto de si ao mesmo tempo que configura o aberto para o mostrar-se dos

demais seres. O homem se essencializa e, ao cumprir sua gênese ontológica,

configura-se lugar, clareira do ser. Mas é preciso que fique claro que isto não

se dá a partir de sua vontade, mas como salto, doação, mistério. É um

acontecimento. Para Heidegger este acontecimento é a “insistência ekstática

46

Mimeo, 2010.

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na verdade do ser” ou clareira. Mas o que seria esta verdade do ser? Como

compreendê-la?

Precisamos primeiramente entender que verdade na dinâmica do

pensamento originário, não diz correção. Verdade deve ser pensada no modo

grego, como alétheia, que diz de desocultação, desvelamento. Verdade sendo

aquilo que se mostra, desoculta-se, ou seja, trata-se de algo que salta do

velado para o desvelado. Verdade é movimento de desencobrimento, que

desencobre e encobre a origem. Se retirarmos um véu de algo, ao pô-lo de

lado, este algo que repousava sob ele aparece, contudo o véu não desaparece,

apenas se deixa tomar pelo movimento e ao ser posto de lado encobrirá o que

ali estiver. Quando algo é no desencoberto, outro algo é no velado. Esta

verdade do ser, este desencobrimento, deve de ser entendido como liberação

de uma essência, de um modo possível de ser. Liberação nas palavras de

Fogel diz exposição, vida, deste modo concretização, realização.

Tornar-se ou fazer-se visível, aparecer ou mostrar-se para aquele que está na determinação ou na possibilidade desta essência, que então assim se revela se mostra. E assim se revelando ou se mostrando (se descobrindo, se desencobrindo, fazendo-se verdade) essência se faz história (FOGEL, 2010, p. 3).

O estudioso previne que História não deve ser entendida como passado,

como historiografia, mas como acontecimento, onde acontecer e fazer-se

visível se correspondem e se encontram no fazer-se da verdade. Na expressão

fazer-se, tornar-se visível que não devemos ouvir o que se refere ao fenômeno

da materialidade, algo físico, ligado apenas ao órgão da visão, mas sim como o

que se mostra, a saber, revela-se no seu sentido. É tornar-se visível na sua

força de realização, no seu ser. Ser ek-sistência, ek-sistir seria ser no ek, no

ex, no fora, no aberto, ser o que se revela, se mostra. Se se revela é ação

acontecendo, é sendo. O ser sendo é ente. O homem é este modo de ser, é

esse modo de existir. Aqui, ao perceber este tornar-se visível do homem no

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aberto e como aberto, chegamos à questão que impulsionou este percurso

reflexivo: O Ver.

Apenas ao homem é dado este modo de ser ou estar no viver. Ser na

possibilidade e no sentido. Fogel nos esclarece que na possibilidade e

determinação do aparecer repousa ao mesmo tempo a possibilidade do Ver.

Este ver seria uma espécie de fora (enquanto aparecer) que me joga dentro

(enquanto refletir) na condição de ser, viver, existir. Este Ver faz o homem

consciente do viver, o faz interessado pelos mecanismos da existência. Este

Ver, proveniente da consciência do existir enquanto doação, portanto, não fala

exatamente da capacidade do sentido visão, mas evoca o modo de ser que é

ser no sentido [...] do aparecer ou do fazer-se visível. No fazer-se do visível

funda-se o Ver. O fazer-se visível, a ek-sistência que é abertura, acontece

fechada, dá-se no dentro, no retraimento, na latência, ou seja, concretizada,

realizada ou entificada, ou seja, no ente. Assim, o modo de ser aberto da ek-

sistência, na verdade, no desencobrimento, no exposto, ou apto a aparecer ou

mostrar-se, dá-se dissimuladamente, retraído. O ser é o aberto no velado. Ao

desvelar-se, fecha-se no ente. Por isso o ser homem dá-se em extravio,

desviado de sua essência, de seu modo próprio de ser, o que, ainda segundo

Fogel, a cada passo de seu caminho, de sua travessia, precisa ser

reconquistado, retomado. Contudo, o encobrimento, a entificação não constitui

erro a ser reparado, mas faz parte do destinar-se do homem, constitui sua

errância. A insistente existência humana se dá num aberto-fechado, num entre

abertura e retraimento, escapando-nos à percepção. Segundo o pensamento

de Fogel a guiar nosso percurso nesta reflexão sobre o ver, a verdade da vida,

da existência, é mulher, sempre dissimulada como Capitu. O Manto nos diz em

seu avesso, desta condição feminina da existência.

Precisamos buscar a cada passo de nosso caminho, ver e re-ver este aberto

no fechado. Pensar o ser é vê-lo nele mesmo, o aberto no fechado, a ek-

sistência na insistência. De certo modo assim se configura ver o Ver. Ver é

pensar, é pensar-se no movimento do real. Podemos e devemos entender o

pensar como um ver que é escuta, um pensar desde e como escuta a que

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Fogel chamará Corpo. O saber ver o ver seria possibilitar “Um diálogo da alma

com ela mesma” 47. Ou seja, autoescuta, ausculta.

Arthur Bispo do Rosário não segredou e inúmeras vezes disse, para os

que quisessem ouvir: Minha obra é para quem enxerga. Certa vez, depois de

diversas tentativas todas sem sucesso de ser recebido pelo artista, o

psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, que à frente de um projeto de pesquisa

para o Ministério da Saúde entrou no manicômio para documentá-lo em fotos e

vídeos, conseguiu finalmente ser recebido para uma visita na cela onde Bispo

trabalhava e abrigava sua produção (aliás, um complexo de celas, para que

pudesse armazenar toda produção). Ao entrar, o fotógrafo foi tomado de

assalto pelo conjunto das obras, viu-se diante de um labirinto em movimento,

algo semelhante às ruas de comércio popular no centro da cidade. Entre outras

coisas era esmagadora a força advinda do acúmulo. A visita se repetiu, mas o

anfitrião permanecia impassível, concentrado, calado, entregue ao trabalho

permanecia sentado a bordar. Hugo Denizart, movido pela curiosidade, certa

vez apontou uma obra e comentou:

– Bispo, não estou entendendo aquilo.

Ao que o artista respondeu:

– Ué, você não enxerga?

– Enxergo.

– Então está visto.48

Bispo sabia que para enxergar, Ver, é preciso mais que apenas olhar. É

preciso desacostumar os olhos, lançar-se no aberto do ver. Gilvan Fogel, em

outro ensaio: O desaprendizado do Símbolo (A poética do Ver Imediato), diz

que o calo é o hábito. O hábito cultural. O hábito é como um uniforme, espécie

de “hábito” com o qual vestimos a alma. O hábito é o mecânico, automático,

que gera apatia e indiferença calcada nos conceitos e fórmulas que tornam

47

(Platão. Apud, FOGEL, p. 4). 48

(Apud. HIDALGO, 1996, p.134).

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nossos olhos baços. Há o imperar das atitudes que uniformizam. Para tudo há

bulas. Para de fato vermos precisamos nos despir dos trajes que nos

impuseram. Precisamos desaprender o que sabemos, para re-aprender a Ver.

Diante de uma obra de arte somos sempre convocados. Mas quando se

trata de uma obra plástica, é o Ver que nos convoca no aberto do mundo. A

obra se coloca como espelho, na obra enquanto mundo entre-vemos a verdade

do ser, o ser enquanto verdade, a verdade do homem enquanto clareira do ser,

ou seja, aquele que se instala no aberto, para ser desde sempre a própria

abertura, ainda que resguardada no velado, no fechado. Olhar o manto e ver o

Ver é deixar-se convocar pelo sentido do Ser enquanto Verdade,

desencobrimento, movimento do Real, Realidade. É aceitar o convite para

auscutar o diálogo da vida com a própria vida que nos conduz a uma

experiência de quase morte, ou de morte em vida, pois trata-se de buscar no

ver, des-ver a insistência, ou seja, o fechado, o ente. Ou, usando uma

expressão do poeta Manoel de Barros, transver a existência, vendo além do

visto todo o não visto, percebendo que no fechado do ôntico há frestas que

conduzem ao aberto ontológico por onde a vida, não como bios, mas sim

dzoé49, flui.

5. 2. Obra: Mecanismos e Criação - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

49

Esclarecendo Zoé e Bios: Dzoé é a totalidade da vida, que abarca especialmente o silêncio e o vazio, Arkhé, origem. Bios é a vida biológica e se origina a partir de Dzoé. “É importante insistir que a dzoé, como tal, é o surgir para..., é o desabrochar e abrir-se para o aberto. Por isso os gregos chegaram a chamar seus deuses de dzoia, ou seja, originariamente, o que surge e se acha presente em seu surgir [...] Dzoé/physis constituem-se nas duas palavras fundamentais do pensamento originário e constituem o ser, porque o ser é sendo, surgindo. É no surgir e a partir de si mesmo que a physis/Dzoé é o ser”.(CASTRO, 2007) Poética e paixão: o amar, p. 4, como citado na bibliografia.

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A condição do artista Bispo e a grandiosa obra que se quis Manto da

Apresentação conduzem discussão acerca dos mecanismos, ou seja, os

processos nos quais se cria uma obra, ou melhor, os processos pelos quais

uma obra vem à presença. Emmanuel Carneiro Leão nos diz, no que se refere

aos mecanismos da criação, que devemos desenvolver um questionar acerca

da proveniência da obra. Afinal, uma obra é derivada da ação de mecanismos?

Se assim for de onde vem o princípio criativo, a força criadora de tais

mecanismos?

Poderíamos dizer de imediato, impulsionados pelo hábito que engessa o

pensamento, que a força criadora que os move seria proveniente do autor-

artista. Mas se considerarmos o artista a um mesmo tempo aquele que cria e a

força que move este criar, teremos então a certeza de que o artista ao ver a

obra, detém todo o conhecimento acerca das inesgotáveis possibilidades de

realização desta enquanto obra de arte, abarcando seu sentido em totalidade,

afinal a obra não pode ser enigma para a força que a origina. Ou será que

também ele, o artista, seria um mecanismo? Podemos supor que tomada por

esta questão Clarice Lispector tenha nos dito: [...] Ver o ovo é a promessa de

um dia chegar a ver o ovo [...] – Olhar é o necessário instrumento que, depois

de usado, jogarei fora [...]50.

Este é um trecho do conto O ovo e a galinha que nos concede um

entrever da relação artista-arte-obra. A partir dele, podemos refletir ser o artista

é o guardião da obra tal qual a galinha é do ovo. Contudo, a galinha, ainda que

guardiã, não possui o ovo, não entende a plenitude do ovo. O ovo a ela chega

como um movimento do real, um mistério que eclodirá. Nem toda filosofia ou

ciência explicará o ovo à galinha. O ovo é enigma51.

50

(LISPECTOR:1998, 49) 51

Esse parágrafo é um pequeno trecho de um ensaio de minha autoria acerca da pintura de título O que é isto, a pintura? Alguns apontamentos sobre diálogo com a cor em Van Gogh e Mark Rothko. In: Revista Terceira Margem ano XIV Nº 22 – jan-jun/2010.

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[...] O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo (LISPECTOR, 1999, p. 46).

Na verdade, ao pensarmos tal questão, descobrimo-nos atados a uma

circularidade que afirma que a obra é ação de mecanismos, e que os

mecanismos por sua vez, são solicitados pela obra. A obra não origina os

mecanismos, tampouco estes originam a obra, ao menos não sozinhos. “Ao

contrário, tanto os mecanismos como as obras são, cada qual à sua maneira e

na reciprocidade diferente de sua proveniência, por um terceiro, pela

originariedade da criação” (LEÃO, 1977, p.189). A necessidade da Obra: Ser

criada. A necessidade do artista: Criar. Ambos, obra e artista, movem-se no

operar de uma força maior: A criação.

Ainda acerca dos mecanismos, Carneiro Leão nos diz que na fabricação

de um instrumento o operário é preso à funcionalidade dos materiais, se

pretende fabricar uma lâmina que tenha corte preciso, elege o aço, que

desaparecerá sob a forma de faca, ao precisarmos utilizar a faca lembraremos

menos do material que lhe deu forma ou de quem o forjou, que de seu corte, de

sua funcionalidade. Quando se pensa em um sapato que ofereça durabilidade

e conforto, escolhe-se o couro, e o mesmo processo se dá. Nem aço nem

couro aparecerão na funcionalidade do uso, estarão transfigurados em faca e

calçado. Já na obra de arte algo distinto acontece, é ela quem determina o

material, e ao inverso do processo de fabricação de objetos, não o faz

desaparecer, mas o eleva a si mesmo na tensão cultura e natureza. Na

criação, obra e mecanismos pertencem ao âmbito das relações. É a criação

quem determina como e em que grau se dará as relações. Sempre haverá a

articulação de cultura e natureza em uma obra e, além disso, destino, ou seja,

aquilo que estabeleceu o próprio de cada artista e determinará a poética de sua

produção artística. Nesta dinâmica da criação, a obra em se dizendo ao artista,

elege o material e através do material eleito e do fazer do artista a obra se abre

ao ver, vindo à presença. Na e através da obra, o material será elevado a si

mesmo, do mesmo modo em que o artista só chegará a ser artista através da

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obra, do fazer. “Assim é na escultura que a lenha vira madeira, é na pintura que

a tinta se faz cor, é na sinfonia que o som se torna música, é na poesia que a

língua vem a ser linguagem”, (Ibid., Op. cit., p.190) e é a obra quem faz o

artista e não o contrário como alguns supõem.

O erigir em obra sobe sempre a escada de um fazer [...] tudo se cria na criação da obra. Toda criação é original por ser originária. Nos vórtices desta originariedade os mecanismos são como as escadas. Só se chega à obra pela escada dos mecanismos. Mas nunca se chegará à obra, se desde o primeiro degrau não se for jogando a escada fora. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada desde que se tenha sido colhido pela originariedade da obra. Os mecanismos só se tornam veículos da criação de uma obra quando a criação libertar a obra dos veículos. Pois então a obra será veículo da criação (LEÃO, 1977, p. 190).

Os lençóis, cobertores e uniformes da colônia só se mostram como fio

(tecidos e bordados) no Manto, tais materiais não excedem a possibilidade de

base para a escada que o artista, no operar da criação, utilizará a fim de que a

obra seja. Bispo em gesto cadenciado, apropriando-se do material que as

condições oferecem (neste ponto há que se pensar a questão do destino),

destece o tecido vulgar dissolvendo aquela possibilidade ente-objeto; ao final

do processo há o aparecer, o re-vigorar, o devolver ao material sua

possibilidade ser-coisa: o vigor original, o fio. O fio sim será a escada para que

se alcance a realização em obra. A escada-fio por sua vez, tatuando em

bordados o corpo do Manto, desaparecerá, lá apenas haverá o vigorar do fio no

figurar da obra. No dar-se dessa transfiguração: escada-fio (ser-coisa) em fio-

bordados (ser-obra), outra simultânea se dá, dissolvendo o estigma da

condição de paciente mental. No obrar, no lançar-se no agir, na poesia do

laborar, o fundar da condição artista se sobreporá à condição de excluído. Na

tensão entre “razão” e “des-razão” estabelecida pelo sistema social, o fio e a

ação do real são um fundar sanidade – guiam o artista pelo labirinto. Bispo

caminha noo fio a guiá-lo. Na criação todo equilíbrio necessário à travessia.

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No (con)figurar-se da obra, o cobertor ordinário da base acolhe o fio em

bordados, enquanto o “louco”, apropriando-se de seu próprio, chega a Ser o

que é: artista. Ali, no operar da criação originária, o fio que borda é fio outro, do

Tempo, da Memória, do Destino. Da roca das Moiras aquele que, no

(entre)tecer-se, dá corpo ao essencial da criação: a verdade como

desvelamento. Por tecelã: a Linguagem. Bispo não excede a condição de mão

a urdir, acata seu destino, isto lhe basta. A Linguagem em seu desvelamento é

a Verdade da criação, diante dela toda “subjetividade” não excede a escala de

nanopartícula de lápis em península. Na obra Manto da Apresentação,

percebemos no movimento do real e das questões originárias o desvelar do

Sagrado enquanto realidade e mundo.

5. 3. Poíesis e Tékhne - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Nos bordados que tatuam o corpo do Manto, o gesto cadenciado das

mãos falam em misto de delicadeza e dor, próprios da arte enquanto um fazer

que é a um mesmo tempo in-cisão e sutura. Mas a delicadeza dos bordados

não diz de fragilidade. No bordar, agulha e linha encerram a força da re-união

entre poíesis e tékhne, modos de vir-a-presença que a experiência moderna de

arte separou.

Entre os gregos tanto poíesis quanto tékhne, nomeavam o fazer

artístico. Tékhne inclusive seria o mais amplo entre os termos, designando de

uma forma mais dinâmica e universal do saber. Tékhne se refere ao saber

fazer, uma competência, que como nos diz Carneiro Leão “deixa o real realizar-

se em novos modos de ser” (LEÃO, 2010, p.81). Para um grego não significa

nem arte, nem artesanato “mas um deixar-aparecer algo como nisso ou aquilo,

dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos

pensam a tekhné, o produzir, a partir do deixar-aparecer” (HEIDEGGER, 2008,

p. 139). Já Poíesis, remete-nos para a produção em geral, no sentido de

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produzir e deixar aparecer novas relações; mas também, para o tipo mais

completo e importante de produção: a poesia – forma consumada de todas as

artes52. Nos bordados do Manto da Apresentação, percebemos o vigorar de

poíesis e tékhne, na re-união originária entre o saber das mãos e a poesia.

Indo além, vislumbramos também o operar da Phýsis. Para um grego não havia

distinção entre poíesis e tékhne, mas sim entre estas e a phýsis, contudo, esta

distinção nunca foi da ordem da exclusão, mas ao contrário, da inclusão.

Precisamos, como nos diz Carneiro Leão, aprender a ouvir a palavra phýsis

nomear não apenas o natural, ou a natureza, mas também o sobrenatural, ou

seja: a história, a cultura, o saber, o mito.

5.4. O Próprio e a Realidade - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que

fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu

decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza

especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo

neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei

sendo especificamente humana.

Clarice Lispector53

Anteriormente dissemos que Bispo lançando mão do que lhe era próprio

pôs-se a obrar. Procuremos pensar um pouco melhor sobre o que vem a ser o

próprio, para não incidirmos em erro de entendê-lo como o Eu, ou como algo

subjetivo. O próprio não é o Eu. O Eu se constitui a partir da funcionalidade,

das funções que as conjunturas impõem. Já o Próprio é um dar-se do destino e

da história. Manuel de Castro54 nos diz que este dar-se acontece dentro de um

conjunto de relações e referências, mas não se reduz a relação com o meio ou

com a cultura. Ao contrário, vigora na e a partir da essência de si mesmo, ou

seja, vigora no ser, sem, contudo, excluir todas as dimensões de sua essência,

52

Segundo Platão nos ditos de Heidegger (Apud. LEÃO, 2010, p.81). 53

A paixão segundo GH p. 124 2º§.

54 Próprio. In: http://www.travessiapoetica.letras.ufrj.br.

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ou seja, as genético-familiares, históricas, sociais, psíquicas, religiosas e

criativas. Somos uma amálgama de tudo, mas que ao mesmo tempo resguarda

no centro deste tudo, o Nada. Sabemos ser amálgama uma reunião. Se re-

uniu, antes estava disperso, havia distância entre. Importante considerar não

apenas o espaço que algo amalgamado ocupa, mas também o espaço que

habita e compõe a amálgama enquanto amálgama, ou seja, aquilo que se

reuniu. Há um vigorar de espaços, ainda que não visíveis ou não

compreensíveis, “entre” as partes reunidas. Há o vazio. Por este vazio o fluir de

toda possibilidade; é por estas frestas que o que nos é próprio flui, mas não em

um movimento de dentro para fora, como se houvesse núcleos de

possibilidades encerrados em caixas; tampouco seria um movimento inverso,

como um rio que corre de fora, vazando em reservatório interno. As

possibilidades do que nos é próprio é um vigorar a partir do Nada que habita os

interstícios daquilo que faz de nós o que somos, ou seja: nossa etnia, família,

história, lugar etc., enfim, todas as condições que nos foram doadas pelo

destino. É no vigorar deste Nada, que habita estas trincaduras ou minúsculas

fendas entre os fatores que nos constituem, que repousa todas as

possibilidades de sermos. Um Nada que é Origem e mistério.

O próprio irrompe desta conjuntura, firmando-se num querer poder, e

seu agir se firma na visão de um fim que busca realização, plenificação. O

eclodir do próprio se estabelece na combinação entre possibilidades e

condições. As condições são dadas pelo meio social, cultural, histórico,

familiar etc. Mas não operam isoladamente. Só se fazem férteis dentro das

possibilidades, que já vigem desde sempre vigem no que é próprio a cada ser.

Não basta condições de realizações propiciadas pelo meio, se não vigora no

próprio as possibilidades para o que se deseja realizar.

Nesse movimento de realização do que nos é próprio há o imperar de

necessidades. Castro nos diz que, no convívio e vivências sociais, além da

necessidade de plenificação do próprio, há ainda, na dinâmica de todo existir

humano, as necessidades conjunturais que também estabelecem seus fins. O

movimento do ser em sua travessia histórica-destinal se dá nesta disputa

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estabelecida entre as necessidades e os fins do próprio e o fins e necessidades

conjunturais, onde sempre há um preço a ser pago por nossas escolhas. O Eu

inúmeras vezes se torna, revela-se, inimigo do próprio, porque em verdade é

um produto de outros. Não há singularidade no eu, pois este se compõe de

camadas sobrepostas, advindas do exterior que moldam sua funcionalidade

para a execução das funções que as conjunturas impõem. Conjunturas que se

ordenam em sistemas e que, por sua vez, impedem que o próprio de cada um

ecloda. O sistema, não raras vezes, impede que cada um chegue-a-ser-o-que-

é em plenitude e realização. Contudo, na obliquidade da presença da realidade

em nossa travessia, o próprio vigora nas frestas, nos interstícios de cada

sistema imposto pela “realidade” na qual estamos inseridos. Devemos estar

atentos ao duplo sentido do vocábulo realidade. Há aquela que conhecemos de

modo mecanizado, de engrenagens hostis, onde somos apenas uma roldana a

mais dentro de um sistema que nos comanda, mas há outra, ou melhor, há o

real que empobrecidamente também chamamos realidade. Haveremos sempre

de lembrar as palavras de Manuel de Castro ao dizer que: “realidade não é

meio natural ou social, não são as conjunturas. Realidade é o vigorar da

Essência do próprio. No e como próprio se dá a Essencialização da

realidade”.55 Não é a realidade que “edifica” o próprio, é no agir do próprio que

se dá o vigor da realidade.

Pensemos um pouco essa questão em Arthur Bispo do Rosário. Ao ser

diagnosticado louco, se torna “incapaz” para a execução de suas funções

dentro do sistema. Por ser considerado improdutivo é segregado, banido do

convívio social. A sociedade o julga e condena. Por sentença: reclusão e

solidão. O sistema que moldou seu “Eu” para o desempenho de funções

específicas – marinheiro, pugilista, servidor doméstico – e reconhece a

falência:aA psiquiatria o diagnostica como esquizofrênico. No entanto, no

movimento do real o aniquilamento do “Eu” pela esquizofrenia (que enquanto

doença, ou melhor, privação da saúde, mostra a perturbação da realização da

liberdade, sobre a qual refletiremos mais adiante) revela-se em Bispo ao

mesmo tempo como cura. Pois deste esfacelamento do eu (que na verdade era

55

CASTRO. In: Próprio. p. 1, 2º§.

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produto de outros, e por isso “sujeito” paciente de tal ação), emergiu o próprio

em plenitude e realizações.

Bispo em estado de privação, foi arremessado de volta ao Caos, lá onde

vige a origem. Do mergulho em profundas e turbulentas águas, emergiu ao

largo das distorções impostas pelo sistema ou pela razão. À margem, pôde

apropriar-se de seu próprio. No movimento do real que aparentemente

aniquilava seu querer, em verdade se desvelou um querer poder, um querer

ser, e do Ser emergiu a possibilidade, ou devir artista. A possibilidade de

eclosão do artista é a presença do próprio do Ser sendo. Possibilidade que, no

movimento do real, da verdade enquanto alétheia, passa de presença que

repousa no velado, ao desvelado, mostrando-se no aberto do mundo. Diferindo

do eu (mosaico que se constitui de fragmentos de muitos) a presença é

singular. Sua singularidade é o vigor do velado do próprio, do desconhecido,

daquilo que ainda não se mostrara, e em não se mostrando é promessa,

possibilidade. A presença da possibilidade de ser artista, em Bispo do Rosário,

eclodiu da e na solidão do delírio. Dessa presença no velado do próprio eclodiu

a possibilidade do artista, que na força do agir enquanto poíesis e através dela

presentificaram-se inúmeras obras, inclusive o Manto, obra-lugar onde

podemos distinguir entre os bordados o caos e o cosmos, enquanto origem e

possibilidade de mundo.

Bispo do Rosário, já na condição de interno da Colônia, quando era

chegado o momento de sua Transformação56 – como ele mesmo costumava

chamar as “crises” – isolava-se por vontade própria em sua cela e mergulhava

no trabalho. A partir dos supostos surtos, cuidava com solidão e trabalho.

56

O diálogo e o trecho abaixo podem auxiliar no entendimento do modo de Bispo lidar com estas “transformações”: – Estou me transformando e quanto menos comunicação com o lado de fora melhor. -–Mas eu tenho que ver pelo menos se você está vivo – retrucava o guarda José Januário. [...] lá dentro ele ficava [...] funcionários volta e meia apareciam para checar se aquele interno desvanecido pela inapetência sobrevivia. Espreitavam pela fresta, ofereciam-lhe frutas e se iam. A cena era a de um copião com planos renitentes. Bispo estava sempre vivo, aplicado na arte dos bordados, objetos e esculturas minúsculas. O dono do mundo, daquele pedaço de mundo” (HIDALGO, 1996, pp. 88-9).

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Heidegger, no belíssimo texto Por que ficamos na Província?57, diz que nas

grandes cidades o homem consegue isolar-se como mal consegue em outros

lugares, sem, contudo, experimentar de fato a solidão. O isolamento em Bispo

excedia ao mero estar sozinho, tratava-se de um experienciar a solidão, que

“traz consigo a força primigênia que não nos isola, mas lança toda a existência

na proximidade profunda de todas as coisas” (HEIDEGGER, 1977, p. 325). No

desvelar da loucura enquanto verdade do ser em Bispo e em seu modo

particular de buscar cura, percebemos seu “entendimento de que a solidão

acontecendo é a singularidade de só ser e não de ser só”58.

Bispo desaprendeu o social, o coletivo, o público e o hábito de ver e

interpretar conforme os padrões do sistema. Ao ensozinhar-se, singularizar-se,

fazer-se um, deu-se o restaurar da unidade. Aprendendo a ser só, re-aprendeu

a ser. No encaminhamento da solidão encontrou o lugar e a hora do ver

(FOGEL, 2007). Solidão em Bispo não diz de mórbida interiorização no

recolhimento e miudeza de um eu, isso seria doença. Em Bispo solidão é

escuta, é cura. Refletindo acerca do mito de Cura59 temos que este, como nos

diz Manuel de Castro, se manifesta no Cuidado com que nos lançamos nas

pro-curas. Pro-cura como um ocupar-se, que é o cuidado no mundo, em meio

aos entes, às coisas. Na pro-cura, deu-se a solidão do obrar como cura.

Realizar solidão em sua existência foi desaprender o usual, o vulgar, e atender

à exigência, à necessidade do fazer, re-criando o próprio caminho. Andou e viu

57

(HEIDEGGER, 1977, p. 325). 58

CASTRO, Manuel. In: Próprio. Op.cit. 59

Mito de Cura: “Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe da forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma da argila, o que ele fez de bom grado. Quando porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra, querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu equitativa: “Tu Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi Cuidado quem primeiro o formou, ficará sob seus cuidados enquanto ele viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar Homem, pois foi feito de “húmus” terra fértil)”. In: CASTRO, Manuel. Mito de Cura: O apelo e Escuta da Procura. Disponível em: http//www.travessiapoetica.letras.ufrj.br.

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através do agir o propiciar do desvelar da verdade enquanto mundo nas obras.

O artista percebeu que só poderia ser, pondo-se a caminho, aceitando a

viagem, a experiência.

No ritmo de trabalho no qual se lançou, ocultava-se uma lei que ele

próprio possivelmente desconhecia, mas que ainda assim obedeceu. A seu

modo percebeu a vida como um jogo de Mando e de Obediência60. Bispo

obedeceu e assim se descobriu capaz de criar para além de si, em dinâmica de

autossuperação. Este jogo de Mando e Obediência está presente não apenas

na vida de Bispo, mas em todas as vidas entregues à criação, na própria vida

enquanto criação. Neste jogo, que atende pelo nome de destino, avistamos

Moira61, a que podemos chamar “nossa medida”. Moira é algo que nos mede

por ser a essência de todo agir. Somos medidos por nossas ações, pela força

do agir e do Ver. Em encontro ao nosso pensamento, o saber do poeta num

dos versos de Caeiro nos esclarece a questão:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Por que eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho de minha altura (PESSOA, 1997, p. 22).

Por Moira devemos entender:

60

Esta frase é título de um ensaio, In: Assim falou Nietzsche III: Para uma filosofia do futuro. pp.58-62. Todo o desenvolvimento que realizaremos deste tema gira em torno das questões levantadas por Gilvan Fogel no ensaio citado. 61

O Dicionário de Mitologia Greco-romana traz o seguinte verbete acerca das Moiras (ou Parcas, seu nome latino): [...] Parca significa “parte” – de vida, felicidade, de infortúnio. Cada ser humano possuía sua Parca. Depois essa abstração tornou-se uma divindade, assemelhando-se a Quere [...]. Aos poucos, desenvolveu-se a ideia de uma Parca [Moira] universal, dominando o destino de todos os homens. E finalmente, passou-se a conceber três Parcas. Filhas de Júpiter e Têmis, ou segundo outra versão, da Noite, personificavam o Destino, poder incontrolável que regula a sorte de todos os homens, do nascimento até a morte. [...] Seus nomes correspondem a suas funções: Cloto, a fiandeira, tecia o fio da vida de todos os homens, desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, determinava-lhe o tamanho e enrolava o fio, estabelecendo a qualidade de vida que cabia a cada um; Átropos, a irremovível, cortava-o, quando a vida que representava chegava ao fim [...].

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[...] uma medida que nos mede, mas da qual não temos domínio, isto é, não a temos, somos possuídos por ela. E só nela e por ela podemos chegar a ser livres, uma liberdade conquistada a cada dia que a moira se torna nosso destino, livremente vivido e experienciado (CASTRO, 2008 – Moira)62.

Moira não é uma escolha. Não passa pelo crivo da vontade ou da

subjetividade. É, segundo palavras de Castro, um deixar-se tomar pelo

extraordinário, é Obediência. É um deixar-se possuir pelo acontecer poético,

mas não como êxtase É tão somente um amadurecimento do poético tomando

corpo no que nos é próprio. Ser tomado por Moira e deixar-se Ser, e “Ser não é

uma opção, porém, um vigilante e pleno deixar acontecer” (CASTRO, Op.cit.).

Se deixar-se tomar por Moira é Obediência, pensemos então o que esta

palavra nos diz. Voltando nosso olhar nesta direção, encontramos o

pensamento de Gilvan Fogel a nos esclarecer que, tanto em alemão quanto em

português, Obedecer provem do vocábulo “ouvir”. Em alemão “gehorcher”

(obedecer) e “Gehorsam” (obediência) vêm de “hören” e, mais, de “horchen”,

que diz auscultar. O mesmo se dando em português, onde obedecer vem

igualmente de ouvir “audire‟, “ob-audire‟. Portanto, percebemos que obediência

é escuta (FOGEL, 2001, p. 58). Ao ouvirmos as palavras mando e obediência

juntas em uma sentença, errônea e apressadamente, poderíamos entendê-las

como prepotência e subserviência. Busquemos então, na fala do filósofo,

escutar o que cada uma delas nos diz:

Escutar (obedecer) quer dizer recolher-se em si, isto é, no interesse e identidades próprios (e isto quer dizer o “si”) é fazer com que tal interesse, tal identidade venham a ser o que são. Escuta é a via pela qual se dá participação vital, ou seja, o caminho que é o concretizar-se da experiência (FOGEL, 2001, p.59).

62

Disponível em: http// www.travessiapoética.blogspot.com

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O escutar e obedecer em Bispo não deve ser confundido com a

dinâmica dos delírios, das alucinações, do modo como tem sido pensado pela

psiquiatria clássica, algo com o que dialogaremos mais adiante. Em nosso

estudo, compreendemos a escuta do artista como um mover-se que é

realização. É a escuta do apelo do que lhe é próprio. Do próprio, que conclama,

convoca ao fazer, ao obrar, e ainda que isto se dê em meio ao revolto oceano

do delírio, não é o delírio que convoca. Haveremos de considerar a hipótese

inversa. O delírio, as vozes são o efeito “colateral” dessa convocação. No caso

específico de Bispo, artista e portador de esquizofrenia, há um duplo convocar:

o de seu próprio e o das coisas, que pode tê-lo conduzido ao delírio, como

oportunamente refletiremos ao pensar sua condição de ser esquizofrênico.

Reconhecendo no obrar do artista a obediência, há que se pensar o

mando. Ateremos-nos uma vez mais ao escrito em que Gilvan Fogel cita a

vida segredada à Zaratustra:

[...] mandar é mais difícil que o obedecer. E não só porque quem manda carrega o fardo de quem obedece e porque este fardo facilmente o esmaga. Uma tentativa e um risco mostrou-se-me em todo mando e sempre, ao mandar, o vivente arrisca a si próprio (Apud. FOGEL, 2001, p. 59).

Partindo desta frase o estudioso completa:

[...] Mandar é dar ocupação, definir tarefa e assim, determinar destino ou fazer vida. “Fardo” é peso, é o que pesa e que, quando se precisa carregar é difícil, duro, penoso de suportar. É também o que é de responsabilidade ou de dever próprios. E isto é principalmente e, sobretudo a própria vida e o próprio destino, com todos os afazeres e cargas. Àquele que é mandado é dado, por parte de quem manda, destino e vida. Assim, por isso, quem manda ao mandar, “assume, toma sobre si o destino, a vida do outro – o seu “fardo”! (FOGEL, 2001, p. 59).

Acompanhando o pensamento, temos que, o grande perigo do mandar

consiste em que quem manda toma para si o fardo, o destino do outro,

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podendo desviar-se (a custa do peso, da sobrecarga) de sua tarefa, ou seja,

seu próprio destino. Enfim, perder-se de si mesmo. E nisso consistiria a

servidão. Assim percebemos ser mais servil quem manda do que quem

obedece. O mando se daria por arrogância, por compaixão, ou ainda

autocompaixão. Se ao mandar desvia-se o mandante de seu caminho ao tomar

para si o fardo do outro, pode estar, por escolha, afastando-se do difícil e

penoso ato de cumprir o próprio destino. Mandando usaria o outro como

pretexto para desviar-se de si mesmo.

Bispo obedece. Mas quem obedece, obedece a algo ou a alguém.

Ouve convocação de sete anjos em nuvens especiais que mandam

inventar toda a sua obra, todo o fazer humano sobre a terra. Escuta

na voz dos anjos a voz do outro e obedece. Em verdade auscu lta o

outro de si mesmo. Capacidade de esquizofrenia artística: Outrar-se.

No outro de si mesmo reconhece seu próprio, soterrado até então na

e pela servilidade ao sistema. No operar da arte e da vida em Bispo,

após o momento inaugural de seu devir artista que eclode em surto

esquizofrênico, o mando e obediência vem de si para si. Todo mando

configura-se como tentativa e risco, pois mandar é arriscar a si

próprio (FOGEL, 2001). Bispo não foge ao jogo, muito menos ao

destino, cumpre-o, ainda que este lhe seja reservado o fardo

dobrado. Não teme em se jogar no fazer que se mostra no horizonte

do delírio como feroz necessidade. Lança-se na direção de um poder-

ser que se revela na urgência de um precisando-ser.

No dia 22 de dezembro de 1938, Bispo foi convocado. No calor do

delírio, no vivenciar daquela experiência, a urgência da decisão: inventariar o

universo. No momento em que tal decisão se mostrou como absolutamente

necessária, seu próprio eclodiu enquanto possibilidade artística e com ela a

certeza de que viver estende-se desde o já feito e conquistado até o por-fazer.

Bispo escutou e decidiu co-responder ao chamado, ao mando e então se deu a

autossuperação. Esta autossuperação que tem origem no jogo de mando e

obediência se determina como decisão. Busquemos o vigor desta palavra.

Ainda segundo Fogel, Decidir vem do latim decido, decidere, que por sua vez é

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derivado de caedo que quer dizer cortar, separar cortando. “Quem decide

„corta-se‟, „separa-se‟ do que é ou disso em que está, e se lança para o que

será, para o que virá, para o que precisa ser ou vir-a-ser” (FOGEL, 2001, p.

60).

Bispo percebeu haver o feito e o por-fazer em seu destino, e que para de

fato ser, seria preciso fazer. Decidiu e na decisão o corte, a separação de si em

dois, nada mais seria como antes, ele não seria mais como antes. Rompe-se o

eu, e com ele memórias, restando apenas dentre elas, a originária. Do Caos

emergiu o fio, a obra, que promoveria a sutura do humano no homem Bispo,

pois a decisão rompe, mas, também reúne, junta, integra. Na decisão, funda-se

o artista. Descobre no fazer, no criar, a mola propulsora do ser. “O fazer dita o

viver, a hora da vida, o tempo do „Espírito‟”. Esse tomar a decisão trata-se de

um “decidir o que será desde o que é ou o que se é. É um projeto, um

programa de ser, que é a possibilidade ou o poder ser que se mostra. Decidir é

sustentar o vir-a-ser deste poder-ser da possibilidade de possibilidade que é a

vida, o existir” (FOGEL, 2001, p.61). Mandando e obedecendo a si, foi tomado

por seu destino. Entregando o eu em oferenda, acolheu o próprio. Aceitou o

que lhe era próprio e na decisão percebeu o ritmo, a cadência do devir.

Simplesmente sendo, compreendeu em plenitude às possibilidades da

existência humana, redescobriu o tempo na dinâmica do existir, no ciclo viver-

morrer.

5. 5. O figurar do Manto e o Espaço-Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Na busca por encurtar distâncias o homem traça retas com as quais

loteia o tempo, julgando assim vencer a espaço-temporalidade. Crendo deixar

atrás de si as maiores distâncias, segue, avistando adiante aquelas que se

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tornam a cada dia mais curtas. Vencendo longitudes julga estar mais próximo.

Mas mais próximo do quê?

Heidegger nos diz que diminuir distanciamentos não traz proximidade.

Afinal, “Proximidade não é pouca distância”.63 Ao buscarmos vencer o espaço,

fomos instrumentalizando o mundo e assim empobrecemos as experiências.

Tal busca culminou com a distorção da percepção de algo essencial como o

tempo, o verdadeiro Tempo, aquele que constitui o tecido de nossas vidas. Na

sede por aproximar os longes, fomos gradativamente nos afastando do outro e

de nós mesmos, e apesar de toda distância vencida o que se cultivou e ainda

se cultiva é uma progressiva ausência de proximidade entre os seres. No

Manto, obra-lugar, haveremos de exercitar o pensamento nos deixando tomar

pela questão Espaço-Tempo.

A relação real, originária, entre o homem e o espaço é um habitar, um

deixar habitar que se dá no construir. O figurar do manto é um deixar-habitar, é

construção poética. Na plasticidade da obra avistamos a comunhão entre

presença e vazio. Na circularidade de sua presença no espaço podemos entre-

ver o Tempo em dobra poética. Ao pensar o Manto no espaço, uma obra

plástica, dizemos de figurar e não de forma. Mas por quê?

O verbo figurar aqui não é escolhido ao acaso, mas sim por ser este, a

nosso ver, mais pleno que a expressão “forma”. No Figurar entrevemos

contornos do inapreensível, nele se estabelece o limite entre o que se doa ao

ver e aquilo que ainda se vela. Toda figura diz do vazio. É o vazio e não o

espaço que possibilita todo figurar. A figura64, em seu acontecer, configura o

espaço, ao mesmo tempo em que remete ao vazio que a possibilitou. Toda

obra nos diz do vazio. O vazio é doação, sem ele não há figura ou forma. No

figurar da figura-questão, ou seja, da obra, o vazio opera, mostra-se como

63

(HEIDEGGER, 2008:143). 64

Para melhor entendimento da palavra figura no âmbito das questões originárias ver:

CASTRO, Manuel Antônio de e outros. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet.

Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br.

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condição para que a obra seja. É o vazio que possibilita toda presentificação;

sem vazio não há presença.

A circularidade poética do tempo vem à presença no figurar do Manto, o

tecido en-formado traz em si a con-formação do círculo. No desenho que o

figurar delineia no Espaço, um aceno: entrevemos a ciranda, movimento

sagrado da quadratura: Céu, Terra, Mortais e Imortais65. Todo quadrado em

movimento é círculo. Céu e Terra nos dizem do Espaço, Mortais e Imortais do

tempo. No Manto, Tempo e Espaço se fazem um. Os mortais, segundo Martin

Heidegger, habitam, resguardando a quadratura em sua essência. Habitam na

medida em que salvam a terra. O pensador revigora o verbo salvar, resgatando

seu antigo sentido, onde diz não apenas do livrar dos perigos, mas também:

“deixar alguma coisa livre em seu próprio vigor” (HEIDEGGER, 2008, p. 130).

O pensador nos questiona acerca de como os mortais trazem à plenitude este

habitar, neste sentido de resguardar, salvar, deixar ser livre em seu vigor. O

estar do homem jamais seria um habitar se for tão somente estar sobre a terra,

diante dos deuses e junto aos mortais. Habitar diz de um demorar-se junto às

coisas.

O habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se

demoram: nas coisas (Ibidem, p. 131). As coisas abrigam em si a quadratura,

mas apenas quando repousam nelas enquanto coisas, seu vigor. Mas de que

modo, seguindo por este caminho, podemos entender o Manto como um

deixar-habitar? Segundo Heidegger, quando um mortal protege e cuida das

coisas em seu crescimento está habitando. Quando edifica coisas que por si só

não crescem, quando obram, habitam. Para o pensador cultivar e edificar é

construir. Construir é habitar, agir que preserva nas coisas seu vigor enquanto

coisa e assim a quadratura. No Manto entre-vemos o Céu a Terra os Mortais e

os Imortais, pois Bispo, no deixar-se tomar pela obra, preservou nas coisas,

escadas ou mecanismos, seu vigor; preservou a quadratura. Já a condição de

deixar-habitar que vige no Manto, provém da essência da obra enquanto obra,

de sua vigência poética, oferecendo-nos em seu aberto, enquanto mundo, o

65

Acerca da Quadratura, ver ensaio: A Coisa de Martin Heidegger (2008, p. 143-164).

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que ali foi cuidado, preservado. O Manto-mortalha, pela força das questões

propostas em seu acontecer no espaço, propicia estância ao vigorar da

quadratura. Espaço (Raum, Rum), segundo Heidegger, diz de algo arrumado,

liberado para um povoado. Espaço sendo aqui o que é delimitado, o que está

num limite. Devemos entender limite em seu sentido grego, “O limite não é

onde uma coisa termina, [...] mas de onde alguma coisa dá início à sua

essência” (HEIDEGGER, 2008, p. 134).

Para tecer e circular pelo espaço-obra, Bispo vê no fio azul um Fio-

ampulheta. Diante da obra-lugar Manto, também nós seguimos em direção ao

futuro (in)certo, lá onde experienciaremos a verdade que no Manto se desvela,

no tempo de nossa apresentação. Nos bordados há o operar de tempo outro, é

o tempo da narrativa, aquele que não acompanha o veloz das ruas. Manuel de

Castro nos diz que narrar é sempre especular, colocar um espelho diante do

outro e de si mesmo. Diante da obra de arte estamos sempre diante de um

espelho que nos reflete. Nessa reflexão há bem mais de nós do que supomos

conhecer. Este espelho nos acena a possibilidade de reflexão, pensamento. O

narrar é o especular que faz eclodir em nós o que nos é próprio. O Manto narra

a espera, fala da vida e da finitude. Nele todo um horizonte de experienciações

se abre ao Ver. Castro, em ensaio intitulado Presença e Forma, diz-nos que “a

palavra ex-perienciação forma-se do grego eks-peras. Onde Peras diz do que

no eclodir chega ao limite. Já o eks indicia o que já desde sempre dá o impulso

para fora, para além, isto é, o não-limite”. Assim temos que o narrar carrega a

sabedoria do que é. Bispo narra experienciando e este narrar é saber-se um

acontecer poético. É chegar a ser o que é. Castro esclarece que os gregos

denominaram a isto Morphé, ou seja, eclosão do que é, desvelamento, verdade

e realização. Morphé não é o mesmo que forma, pois forma é algo funcional

que se dá na ordem dos utensílios. Forma diz de finalidade. Morphé se dá

juntamente com o télos e este diz de sentido. A obra de arte tem sentido, não

finalidade. O Manto, ainda que produzido para ser mortalha, uma finalidade,

excedeu-a, transbordando em infindáveis sentidos. O Manto, enquanto veste,

remete-nos aos aparatos dos ritos litúrgicos, ritos que atualizam os mitos. O

Manto, em seu sentido e em sua morphé, diz do sagrado.

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5. 6. O Tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

As obras que através de Arthur Bispo do Rosário vieram à presença,

especialmente o Manto, revelam uma desconexão com o tempo como é

costumeiramente entendido, ou seja, com a noção apenas cronológica que

dele temos. O manto nos reconduz a uma experienciação do Tempo em sua

essência. Há nessa obra, e de um modo geral em toda obra de Arte, o vigorar

de uma temporalidade outra, originária, na qual estamos imersos, mas que, no

entanto, ignoramos. Possivelmente por conta do condicionamento ao qual

fomos submetidos desde o fundar da modernidade, que gradativamente foi

“transformando” a realidade (ou a ideia que dela temos) em produto de

subjetividades calcadas nos ditames da “Razão”. Olhar o Manto é aceitar o

convite à experiência originária, é reaprender o tempo, deixando-se deslocar do

condicionamento que nos massacra e cambiar na percepção que distorce o

real por outra que busca apreendê-lo não como quem o observa, mas como

parte integrante dele, vivenciando-o em seu sentido essencial. Ver o Manto é

desacostumar o olho pragmático, que fixa o linear e que da circularidade só

conhece à abstração do desenho que o movimento dos ponteiros esboçam nos

inúmeros relógios dos quais dispomos, no desejo vão de controlar aquele que

lutamos para que não se esvaia.

Para pensarmos a Arte manifesta em obra, precisamos pensar o Tempo

de um modo poético. Sobre esta questão, Manuel Antônio de Castro66 nos diz

que, em sua essência, o Tempo nas Artes é mítico-circular. Há uma tensão

que se estabelece entre mito e rito e que instaura todo o movimento de

circularidade. Por mítico podemos entender o poético, cujo mito abriga seu

vigorar inesgotável. Assim, nas artes, a impulsionar as questões temos o mito;

sendo as obras, enquanto ritos, uma busca por responder as questões que se

colocam. O poético, por sua circularidade, recoloca sempre as mesmas

66

In: Época e destinar-se do Ser, 2010.

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questões, contudo, de diferentes modos. Como o dia e a noite a se repetirem

continuamente, e ainda assim inteiramente distintos entre si. Completando a

ideia da retomada do dia e da noite em eterno retorno (numa aparente, contudo

diferente, sucessão do mesmo) temos as estações, em repetição cíclica, a

remeterem por sua vez à maior dentre todas as questões, aquela que move

todos os seres humanos: a finitude – nascimento e morte. Acompanhando a

agradável certeza de um constante re-nascer de seres sempre genuinamente

diferentes a perpetuarem nossa espécie, há a dolorosa consciência de nossa

morte. “Morrer significa: saber a morte como morte. Somente o homem morre,

o animal finda”. (HEIDEGGER, 2008, p. 156). A cada nascimento uma morte

anunciada. Viver-morrer é a realidade onde desde sempre estamos jogados.

Somos mortais. E somos menos por nossas vidas findarem e mais por que

sabemos da morte como morte. Somos mortais antes de findarem nossas

vidas. Nesta visível circularidade mítico-poética da existência, temos a mola

propulsora de todo criar. Os mortais são assim chamados por serem seres para

a morte. O homem é mortal por experienciar a morte. O homem morre. Morrer

significa saber a morte como morte, ter consciência dela. O animal não tem

consciência da morte ou de sua hora no tempo. Sendo a morte o cofre que

guarda o Nada, ou seja, aquilo que ainda não foi dado, aquilo que de nenhum

modo é ou está sendo, os mortais não são mortais por morrerem suas mortes,

mas por sabê-la como morte, e assim vislumbrarem o mistério que resguarda o

ser.

Uma obra é digna de ser chamada Arte quando tem potência de vida

mesmo ao falar da morte. O manto-mortalha é explosão de vida, vida que ali se

expõe, convidando-nos ao pensamento na unicidade circular do habitar o

espaço-tempo: presentepassadofuturo. No mais, vertigem.

O tempo mítico-poético é o da memória, inteiro, não fragmentado, onde

não há linearidade tripartida em presente, passado e futuro. Esse tempo não

passa, nós passamos por ele. Mas, iludimo-nos com o contrário e buscamos

ajustá-lo à nossa distorcida percepção da realidade. Para pensarmos o mito,

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precisamos ajustar o pensamento, entendendo que em si todo mito é a

manifestação de diferentes leis da realidade.

Os mitos são a memória operando concretamente nos ritos. Entre mito e rito há uma referência profunda, mas não complementar. Enquanto o rito se completa e termina no ritualizar de cada data e festa e jogo, o mito como que se vela em seu vigorar, jamais deixando de operar numa complementariedade [...]. Todo mito coloca questões ou leis a que tudo está submetido, e jamais explicações de ordem funcional ou complementar, pois para o mito não há um sistema prévio. Só há complementaridade entre conceito, dentro de um sistema operacional da realidade. As leis vigoram por si e não na dependência de relações ou funções, sejam de que ordem for (CASTRO, 2010, Época e destinar-se do Ser)67.

5. 7. Memória

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - (...) Então – ao ter que me entregar ao Nada – o milagre: senti como alimento no gosto da boca o sabor do Tudo

68.

Clarice Lispector

Pela obra-manto passeiam cânticos visuais de memórias – talvez em

ecos da infância perdida em uma das muitas curvas do caminho ou quem sabe

em uma das fendas da alma “esquizofrênica”. Há ainda outra memória, aquela

que convida ao pensar, remetendo a um tempo mítico-originário. O

inventariante não recorda quem foi antes da convocação por sete anjos. Escuta

o apelo e isto lhe basta: No dia 22 de dezembro eu vim.

Da força do esquecimento das lembranças em Bispo emerge o pulsar da

memória originária. Futuro, passado e presente – O Cosmos redescobre sua

origem no Caos, temporalidades implodidas figuram enformando o manto. Da

fonte originária que alimenta o rio das experienciações, vivências e devires

emergem em visualidades múltiplas, que reunidas em obra plasmam a força

67

Disponível em http//travessiapoetica.letras.ufrj.br. 68

LISPECTOR, 1999, p.136.

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das raízes. Raízes profundas, inalcançáveis, deitadas em abissais regiões.

Mas que ao irromperem no território da obra, fortalecidas em caule e tronco,

abre-se a um lançar-se-aos-céus em frondosos galhos-flor. Bordados que

dizem destas terras profundas. Neles avistamos indistintos pedaços do

Sergipe, um rio de muitas voltas, que em língua Tupi diz Japaratuba, o artista

navega estas águas impulsionado pelo sopro de Mnemosýne.

“Mnemosýne é para um grego palavra e realização criativa”.69 Nome de

uma titânida de mito imemorial recolhido por Hesíodo, filha do céu e da terra.

Por mito imemorial, Carneiro Leão diz que devemos entender uma narrativa do

pensamento que se consolida em nosso modo de ser e estar na Linguagem –

que “arrasta consigo a experiência inaugural de todo relacionamento criador,

que deixa ser, que faz aparecer o real em sua epifania”.70 Em cada mito a força

de um apelo, um princípio de transformação. Na palavra Mnemosýne reside a

concentração da Linguagem, a condensação do pensar, posto que para um

grego, as realizações humanas tem origem no furor do pensamento, furor que

as originam e mantém. Contudo, pensamento como memória ontológica,

originária, não como mera representação da consciência, a operar apenas no

consciente para que respondam ao real com uma imagem pronta. Na memória

ontológica há o dar-se e velar-se. Na dinâmica do pensar há o vir-a-ser e o

retrair-se. Por isso vige na memória, em todos os seus aparentes níveis e

desempenhos, a presença inaugural do esquecimento.

A lição do mito primordial de Mnemosýne, a memória criadora, é, pois, a entrega de uma experiência primigênia, a experiência arcaica dos primórdios. Um grego vive e experimenta no mito da memória a densidade inaugural em que a realidade lhe chega nas realizações históricas de suas vivências, nos cultos, no poder, na ciência, na técnica, na arte, na produção etc. (LEÃO, 2003, p. 144).

Sabemos que no curso de nossa vida, de nossa história, há o operar de

diversas memórias. A esse respeito Carneiro Leão nos diz que entre elas

69

(LEÃO, 2003, p. 144). 70

Ibidem, p.145.

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temos: uma memória individual que registra percepções; “uma memória

coletiva que aciona possibilidades comunitárias e convoca experiências de

participação” e, uma outra ainda, “a memória histórica, monumental, que

celebra a continuidade das transformações e as consagra para o futuro”

(LEÃO, 2003). Nas palavras do filósofo, é necessário despertar para a questão

de que estas “memórias” nada mais fazem do que reter fatos e conservar

dados a partir de um padrão de combinação e derivação. Ele nos esclarece

que, sendo toda derivada uma dependente, tais memórias seriam, em verdade,

memória mecânica, tal qual a de um computador, que precisa ser

constantemente alimentada, e ainda assim apenas reproduz o já produzido.

Seu operar é da ordem das lembranças, consolidação, para que o passado não

passe. No âmbito de atuação destas memórias o esquecimento seria algo

negativo, denotando falha no processo de armazenar, combinar e repetir.

Contudo, se apenas assim entendermos memória e esquecimento, estaremos

de fato é nos esquecendo o mais importante ao deixar que nos escape a

Memória Criativa, que realiza viagens pelas estâncias da linguagem, sendo

entre as memórias a que possibilita novas conquistas em nosso tempo histórico

e biográfico.

O esquecimento é salutar à condição humana. Esquecendo-se o já

produzido somos impelidos a lançarmo-nos em busca do novo, de novas

possibilidades e realizações. Há presumida em todas as memórias que regem

os fatos, esta outra memória, a originária, que é a fonte a alimentar toda

criação e de onde jorram todas as possibilidades.

Temos, assim, operando na presença de toda realização humana dois mecanismos e duas memórias: a memória do passado que não passa, com o mecanismo de reprodução do já produzido, cuja falha é esquecer fatos, dados e conteúdos, e a memória do futuro com o mecanismo de produção, em cuja falta reina a compulsão da repetição. O esquecimento da memória é tanto negativo quanto positivo. O esquecimento negativo impede a produção interativa da mesma coisa. O esquecimento positivo desencadeia a produção inaugural nas transformações “O esquecimento da memória” (LEÃO, 2003, p. 144).

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Do esquecimento emerge o berço do artista, num aceno de Rei mouro,

em manto vermelho-encarnado cravejado de sublimes bordados: a Chegança,

folguedo marítimo das terras em que foi menino. O artista, em seu

esquecimento, carrega os primórdios em andor. Do popular, o sagrado e

profano se entrelaçam em arfante dança, e o apelo se corporifica em poesia.

Um manto tecido em estesias e sacralidade. Direito-Avesso.

No direito do traje, a alma-corpo do Manto. Ao dizermos corpo, chega-

nos frase de Nietzsche, no Zaratrusta:

Sou corpo e alma – assim falou a criança. E por que não se deveria falar como as crianças falam? Mas o desperto, o que sabe, diz: sou todo e inteiramente corpo e nada além disso; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo. O Corpo é a grande razão (Apud. FOGEL: 2010, pp. 8-9).

No corpo do Manto muitos fios se entrelaçam. Ao vê-lo, percebemos no

inventariar a vida em bordados e franjas toda experiência em relato: da

abstração matemática da realidade em arábicos números à concretude da

existência nos brinquedos de criança. Bordados vários. Redes: da dor na pá do

mertiolate, do riso na cesta do basquete, do sustento na tarrafa da pesca.

Dado, Dominó e tabuleiro, a vida em jogo. O jogo da criação e o sentido da

existência. E aqui o fragmento 52 de Heráclito se faz presente: “O tempo

criador é uma criança jogando dados, o reino da criação” (Apud. LEÃO, 2003,

p. 146). Jogo criador de Mnemosýne no modo de sermos.

A necessidade, quando no âmbito do jogo do Ser, transubstancia-se em

criação. Bispo é tomado pelo lúdico. A ausculta do apelo, a necessidade de

inventariar o universo da criação humana o separa do que devia ser no

horizonte das funções (homem comum a exercer o ofício de caseiro). Liberto

do “dever”, Bispo passa à simplicidade do Ser. No jogo de ser há diversão e a

diversão em Bispo é liberdade, Cura. Toda diversão não é dever é escolha.

“Divertir-se é separar-se do que se deve ser, porque diversão troca a

necessidade por liberdade” (LEÃO, 2003, p. 146).

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No jogo de Mnemosýne Bispo é artista. A liberdade que alcança é

também transcendência. Ultrapassa a si mesmo, demorando-se nesta

ultrapassagem. Liberdade, em Heidegger, é a capacidade de transcendência

que o ser-aí tem de fundar-se enquanto funda mundo. No obrar a pintura

eclode o fundar do artista como artista. Na obra, o mundificar. Temos então

que: Liberdade é liberdade para ultrapassagem (transcendência) em direção ao

mundo. Lembrando que o homem só se torna livre estando a caminho,

fazendo-se ouvinte e não escravo do destino. Contudo, devemos ter o cuidado

de não reduzir a liberdade a um mero querer humano, algo próximo da

vontade. A liberdade tem, nas palavras de Heidegger, seu parentesco mais

íntimo com a verdade (não como correção, como nos chega através da

sofística metafísica), verdade como movimento do real em seu

desencobrimento. O que liberta é o mistério do velar-se e desvelar-se, o dar-se

do desencobrimento. Todo desencobrimento provém do que é livre, dirigi-se ao

que é livre e conduz ao que é livre.71

Bispo habita, e aceita o jogo da existência como limite. Na invenção de

ser, re-cria-se, e enquanto joga mantém os olhos no horizonte, esperando que

a morte, o não-limite de todo limite, doe-se ao ver. Borda. Nos bordados,

amores e vícios. Bússolas, trilhos. Muitos barcos e um mundo inteiro num globo

bordado. O globo no manto – Travessia. Todos os anseios e devires no

derradeiro traje. O artista Bispo sabe que viver é morrer e justamente por não

se fechar à questão, espera, Obra. No obrar em arte todo o universo humano

cabe em uma única mortalha. Olho o corpo-direito do manto e penso: “Como

será a primeira primavera após a minha morte?” 72. Vivências tatuadas no

corpo. Nos bordados agulha e fio suturam o humano. Na roca, a existência. A

vida, uma teia. Bispo percebe no fio, em flashes de claro e escuro, a transição

do nascimento à morte. Fio ampulheta na travessia do tempo. Fios. Destinos. O

entrelace. Mesmo sabendo dos muitos nós é impelido a habitar o vazio.

71

HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e conferências.

72 (LISPECTOR, 1999, p. 166)

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Seguindo o fio azul destecido ao inverso de Penélope, poderíamos

avistar Teseu. Mas Bispo não anseia vencer o labirinto, mas vivenciá-lo. No fio

pelo qual se deixa conduzir em jogo de mando e obediência entre-vemos

Crono e Reia. Crono, o Tempo, mostra sua face na linearidade que conduz

adiante, na sucessão dos dias, dos muitos dias, ao longo dos cinquenta anos

de delírio inspirado. Na proveniência do fio temos o algodão, que eclodindo do

ventre da Mãe-Terra se doa ao homem, para no equilíbrio entre tudo que é;

permitir em sua maciez que a possibilidade tecelão do homem vigore. Em sua

saga da roca ao tear, diz-nos das moiras, senhoras de todos os destinos.

Pensar Crono e Reia no fio dos bordados implica perceber que da união entre

Tempo e Terra, além do milagre do algodão, avistamos no horizonte do mito o

nascimento de Zeus – a Luz que é fertilidade. Zeus nasce e, por escolha,

decide não matar o pai Crono, mas castrá-lo. A Luz que tudo reúne castra o

tempo. O faz tempo-circular. Na luz, através da luz , o fundar da circularidade

poética do tempo.

Zeus e Mnemosýne se uniram e desta união nasceram as Musas – a

referência. Da união entre Luz (fonte originária de toda criação) e Memória,

eclode toda Arte. Assim entre-vemos que: na essência da Arte não são as

Musas, mas o amor, Eros, que gera a unidade na presença de Luz e Memória.

Nas Musas a fala de Zeus e Menmosýne acerca do amor.73 No Manto, como

em toda obra de criação, há a tensão entre Eros e Thanatus. Na morte há o

desdobrar-se de Eros (pulsão de vida). Ela, a morte, jamais implica término, fim

de Eros; pois Eros é amor e o amor é força criadora e a força criadora é o que

propulsiona a Arte que é manifestação de vida em cada obra. Em cada obra,

um rito da Arte, funda-se mundo. A obra-Manto: rito a celebrar vida e morte.

73

Acerca da Mitologia: Anotações das aulas do professor doutor Manuel Antônio de Castro titular da área de Poética, na pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ/2010.

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6. A Costura – ou sutura do ser - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 6.1. Manto da Apresentação - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Veste para um grego intempestivo.

No diálogo Fedro, ao falar do amor e da paixão, Sócrates reflete sobre a

loucura, e diz que esta não é apenas um mal, pois obtemos através da loucura

inspirada pelos deuses grandes bens. Diz que foi ao delírio que se deveu

purificações e ritos misteriosos que preservaram de males o homem realmente

inspirado.

Há sempre um temor a circundar a loucura, talvez por nos retirar do

confortável território da racionalidade onde se calca o pensamento ocidental

desde Descartes, no qual tudo é supostamente passível de medida. Pensar o

Manto da Apresentação, no entanto, implica rever certos pontos que são, para

alguns, suporte da crítica em nosso tempo. Obriga-nos a questionar se a

autonomia da obra, não teria sido seguidamente confundida com autonomia do

artista. Faz ruir a ideia da erudição como pré-requisito para a produção artística

contemporânea. Não devemos negar a loucura, tampouco confundi-la com

doença mental. Seguindo em inspiradas reflexões, Sócrates nos diria ainda

que, quem se aproxima dos umbrais da arte poética sem o delírio que é

provocado pelas Musas, julgando que apenas o intelecto o fará bom poeta,

caminhará pela imperfeição, pois a obra inteligente empalidece diante daquela

nascida do delírio (PLATÃO, 2007, p. 81).

Pensar a arte que eclode em Bispo implica em admitir que em via de

mão dupla, a esquizofrenia – doença mental que o segrega, condenando-o à

vida em colônia psiquiátrica – também é loucura, entendida como fuga da

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norma, delírio inspirado, Arte. Pela esquizofrenia é condenado à segregação,

reclusão. Retiram-no do “mundo”,exilam-no de “seu tempo”. Por não mais

corresponder ao conjunto de leis “racionais”, razão que a tudo “ilumina” e que

rege o sistema social, dele é banido. Essa é a lógica que rege os sistemas.

Para cada um deles há um conjunto de leis a determinar padrões aceitáveis

para os homens que dele se pretendem integrantes. Tais leis determinam o

comportamento padrão aceitável. Assim, com padrões rígidos a determinar o

aceitável e o inaceitável, um mesmo sistema racional, montado pelos homens

para protegê-los, pode e acaba se voltando contra os próprios homens – como

fica explicitado no caso de Bispo.

Mas o delírio, a Loucura, concedeu-lhe espaço-temporalidade outra, a

da criação. Posto em perspectiva diversa, em ponto de vista deslocado do

usual, sua linha do horizonte se expande. Recebendo em plena face o feixe de

treva que provém de “seu tempo”, banido das “luzes sociais”. Condenado ao

“escuro” pela falta de “Razão”, Bispo pôde de fato ver o Tempo e a Luz advinda

de seu interior, fonte de todo criar. Luz que se dá a partir da re-união da

sombra e da claridade. E assim distinguiu os contornos de Céu, Terra e Mundo.

Desse, o Mundo, tornou-se inventariante, pondo-se a mundificar. Bispo, ao

“surtar”, torna-se aos olhos da sociedade, alguém sem função. “No predomínio

das funções domina a funcionalidade” (LEÃO, 1977, p. 54). Obras de arte não

são do domínio da funcionalidade racional. Se a força advém da funcionalidade

e se esta assegura poder, a condição de artista em Bispo nasce justamente de

um não-poder. É o belo que se manifesta como doação do vazio. Sob a Luz da

criação, no Manto, traje de gala de um “louco”, a consciência da finitude se faz

poema. No Manto a beleza de ser evoca, convoca e provoca o ser da beleza.

“O grego não conhece a sensação do belo, isto é, não conhece o belo como

sensação; o grego só conheceria o belo como manifestação simultânea de

beleza e feiúra, seja na sensação seja fora dela” (LEÃO, 2010, p. 80). Esse

relacionar-se com o belo e o feio, com a luz e a sombra, desloca Bispo e a obra

que através dele veio à presença, para o horizonte grego, onde a experiência

originária com a Arte não está no sentir o que é, mas em ser o que sente. O

artista entrega-se aos mistérios de Ser, onde não há uma estética a reger a

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Arte ou o belo, há ontologia. Percebe ser o Ser já belo em si, por “reluzir nas

articulações das estruturas, por brilhar na harmonia de uma luminosidade de

claro e escuro” (LEÃO, 2010, p. 81). Em Bispo, a Arte se dá em gradações de

claro-escuro. O viajor-artista Bispo se prepara – em seu delírio é convocado a

inventariar toda a obra do homem sobre a terra, é convocado a inventariar o

mundo e levar ao criador no dia do juízo, ou seja, após sua morte – deseja ser

pontual a um encontro marcado ao qual (dizem) só pode faltar. Enquanto

espera, prepara o traje. Na grandeza deste traje-obra, percebemos um

simbolizar da sobrevivência do humano para além dos sistemas.

6. 2. A Loucura e suas dobras - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Em todo demente há um gênio incompreendido com

uma ideia que lhe luzia na cabeça e meteu medo, e só

no delírio pôde achar uma saída para os

estrangulamentos que a vida lhe tinha preparado.

Artaud

Abertura. Chamam a esquizofrenia curiosamente de “síndrome da alma

fendida”, como se a alma partisse e no centro do eu se instalasse uma

abertura. Apresenta-se neste momento a necessidade em dirigirmos nosso

olhar nessa direção. Acerca da abertura, pensada em sentido outro (no

possibilitar perspectivas e visibilidade do horizonte) temos:

Só nos é acessível o que se pro-sta aberto pela abertura. Só temos acesso àquilo para o que estamos abertos. [...] A abertura não nos abre apenas para o acessível. Também o acesso ao inacessível, como tal, nos é facultado pela abertura, que se exerce na própria diferenciação de aberto e fechado, de acessível e inacessível. Abertura não é assim uma coisa que se pudesse encontrar entre outras coisas. Abertura só se dá no movimento bruxoleante de, abrindo, vedar e, vedando abrir passagem. Neste movimento é que somos presenteados com a verdade

de nossa finitude (LEÃO, 1977p. 53).

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Deixemos por hora esta questão da abertura ontológica e pensemos um

pouco a questão ôntica que se apresenta, ou seja, a esquizofrenia, para

retomá-la mais adiante. Gostaríamos de esclarecer, contudo, que não

pretendemos apresentar histórico desta patologia na história da psiquiatria,

tampouco nos embrenhar em escritos de diferentes autores acerca do tema.

Nossa tentativa em pensar a esquizofrenia refere-se exclusivamente ao

interesse relativo à questão de privação da liberdade que habitam os escritos

de Martin Heideggger nos seminários de Zollikon, como também os de Menard

Boss, especificamente a partir do estudo realizado pela psicóloga Ida Elizabeth

Cardinalli, que nos parece de extrema relevância para as questões avistadas

nas dobras do tecido que constitui a poética de Bispo. Pesquisa minuciosa

sobre esta patologia nos desvirtuaria de nosso propósito.

6. 3. Daseinsanálise - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Heidegger e os Seminários de Zollikon

A psicóloga Ida Elizabeth Cardinalli, em sua dissertação de mestrado,

posteriormente publicada em livro intitulado Daseinsanalyse e Esquizofrenia,

desenvolve um importante estudo sobre analítica do Dasein e as moléstias

psíquicas, dedicando especial atenção à esquizofrenia. Introduzindo o

pensamento que desenvolverá, esclarece que, ser-no-mundo é

reconhecidamente a fundamental condição do existir humano. O Dasein, no

modo de descrição de Heidegger, existe sempre num mundo de relações com

pessoas e coisas de maior ou menor proximidade (O ser-com). Na analítica do

Dasein a doença não mais será entendida como uma entidade formada por um

conjunto de sintomas que se determine previamente. Passa a ser entendida

como um modo de existir no mundo. Diz-se, na analítica do dasein, que alguém

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está adoecido quando esta pessoa sofre de uma retração ou redução das

próprias possibilidades de realização. Entre os tipos de redução conhecidas a

mais comprometedora em relação à liberdade é a esquizofrenia. Antes de nos

embrenharmos pela questão da esquizofrenia enquanto privação ou redução

da liberdade, julgamos importante esclarecer, ainda que brevemente, o que

vem a ser analítica do Dasein, e o pensamento de Heidegger sobre o estudo e

tratamento dos descaminhos da mente humana.

Martin Heidegger vai ajustar nosso entendimento acerca das “doenças

da mente” ao definir que “as doenças físicas e psíquicas são privações na

realização do existir humano saudável” (CARDINALLI, 2004, p.21). Sobre este

tema realizou mais de vinte seminários em Zollikon na Suíça, entre os anos

1959 e 1969. Da afinidade intelectual entre ele e o psiquiatra suíço Menard

Boss surge novo modo de se pensar os problemas psiquiátricos ou psíquicos

que afligem o homem. Partindo das concepções desenvolvidas sobre a

constituição fundamental do existir humano como Da-sein, ou ser-no-mundo, o

filósofo irá propor o desenvolvimento de um novo modo de se pensar e tratar

as condições de privação de saúde. Este novo caminho para a psiquiatria

chama-se Daseinsanályse.

Heidegger, ainda no primeiro seminário em Zollikon, esclarece que,

primeiramente, precisamos entender o existir humano em seu fundamento

essencial, sendo necessário que se compreenda que este nunca é apenas um

objeto presente em um lugar qualquer. O existir humano consiste em

possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe falta e o atingem. Isto

constitui algo que não é apreensível pelos sentidos, pela percepção.

Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na psicologia e na psicopatologia devem desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma compreensão totalmente diferente (HEIDEGGER, 2009, p.33).

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102

Diz-nos que o existir humano enquanto Da-sein é “um manter aberto de

um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se

lhe falta a partir de sua clareira” (Ibidem.). Ao refletir sobre o conjunto de

sintomas das psicopatologias, afirma que o modo como a psiquiatria e

psicologia vem atuando é equivocado, especialmente por ignorar aquilo que

não se apresenta como sintoma. Esclarece que os fenômenos ontológicos

(relativos ao ser) ainda que não perceptíveis sensorialmente, são sempre

primeiros, anteriores aos fenômenos ônticos, ou seja, àqueles que se

apresentam a percepção e estão relacionados ao ente.

Heidegger contesta o que se toma por real e por ente no âmbito dos

estudos psíquicos. Segundo ele, Freud só julgou real e verdadeiro aquilo que

pôde ser subordinado a ininterruptas conexões causais de forças psicológicas.

Contesta também a afirmação do físico Max Planck que afirma que só o que

pode ser medido é real. Argumenta afirmando que há realidades impossíveis

de serem medidas com exatidão. Como exemplo, questiona-nos acerca da

tristeza. Como medi-la?

Na profundidade de uma tristeza falta totalmente qualquer ponto de apoio e ocasião para avaliá-la quantitativamente ou até medi-la. Numa tristeza só é possível mostrar como um homem é solicitado, e como sua relação com o mundo e consigo é modificada (HEIDEGGER, 2009, p. 118).

Isto nos faz pensar sempre acerca do aberto, da clareira. Afirma ser o

homem, abertura; e estar a um mesmo tempo no aberto. Mas esclarece que

abertura não é algo espacial. Diz que o homem ocupa o espaço, mas que o

ocupar o espaço pelo homem se dá no poder referir-se às coisas. Convoca-nos

ao pensamento quando diz que o aberto e o livre não está no espacial, mas

sim o contrário: o espacial que está no aberto e no livre. Esclarece que o

homem é no espaço diferentemente das coisas. O homem é a clareira do ser.

Clareira significa ser aberto.

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O homem é a clareira do ser. Mas, como discutido anteriormente – no

capítulo que tratamos as questões do ver – o homem se dá em extravio. Sua

condição de abertura ao ser se dá no fechado do ente. Segundo Heidegger, a

palavra clareira vem de leve, tornar livre. Clareira, ao contrário do que

possamos supor, não pressupõe o claro, a claridade. Mesmo na escuridão a

clareira não deixa de ser. Contudo, Luz pressupõe clareira, só podendo haver

claridade onde haja clareira. Só há luz onde há algo livre para ela. Entretanto, o

escuro não invalida a clareira. Na condição de ser Clareira repousa o poder

haver claro e escuro. No entanto, o escuro nos desorienta. Orientação vem de

oriente, que segundo Heidegger, significa o surgir do sol, da luz. Assim, em

exercício de pensamento, entendemos que somos clareira independentemente

da luz, mas ela, a luz, orienta-nos enquanto abertura de mundo.

Com relação ao espaço, temos na fala de Heidegger que: ao mesmo

tempo em que o homem o ordena para si, também deixa o espaço ser.

Sabemos que quando nos movemos em direção ao horizonte, este se afasta.

Movemo-nos sempre dentro de um horizonte, e isso vai muito além de

transportarmos nosso corpo físico. A palavra horizonte vem do verbo grego

horhizo, e diz de estabelecer limites e fins, de-limitar, de-finir. Segundo o

pensamento de Carneiro Leão, delimitando, o horizonte define as

possibilidades de diferenciação de céu e mar, constituindo a própria harmonia

invisível de contrários e oposições. “O horizonte enverga o âmbito do visível.

Tudo que cai dentro desta envergadura pode ser visto”.74 Mas há ainda todo o

não-visto, aquilo que ainda não se doou ao ver no horizonte, aquilo que ainda

não se espacializou. Nesse sentido, o homem saudável admite o espaço como

algo aberto, sem considerá-lo tematicamente, sem ocupar-se particularmente

dele. O mesmo não se dá com o homem em estado de privação, como teremos

oportunidade de constatar mais adiante no que se refere ao esquizofrênico.

O pensador frisa que, a psiquiatria e a psicologia, ao modo das ciências

naturais, ocupa-se do visível, do ôntico, mantendo-se fechada ao não-visível,

74

LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Diana e Heráclito”. In: Revista Tempo Brasileiro, nº 40, 1975, p. 50, 2º§.

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104

ao ontológico. Com relação a Freud, vai nos dizer ainda que pretendia transferir

a causalidade das ciências naturais para o psíquico. Afirma que, de um modo

geral, as ciências que se encarregam desta área se perguntam

incansavelmente sobre os processos, pelas mudanças no psíquico, mas não

pelo o que o psíquico é. O grande salto para o pensamento sobre o psíquico

seria reconhecer a falha que se tem cometido até então, de, em tudo o que é,

só se considerar o que pode ser mensurável, quantificável, em que as demais

características das coisas, todas as que não podem ser mensuradas, são

dispensadas. A ciência natural só consegue observar o homem segundo sua

presença na natureza; enquanto a psiquiatria e a psicologia insistir em

equiparar-se a ela, só saberá do homem o que se dá no âmbito do ôntico.

Heidegger, parte desta constatação e nos diz:

Surge a questão: seria possível atingir desta forma o ser homem? Dentro deste projeto científico natural só podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de determinar o ser homem por meio de um método que absolutamente não foi projetado em relação à sua essência peculiar (HEIDEGGER, 2009, p. 57).

Diante dsso, coloca-se a seguinte questão: Como se mostra o ser

homem e que espécie de acesso e de observação ele exige a partir de sua

singularidade? A analítica que foi proposta, a saber: analítica do Dasein, não se

refere a uma questão de causalidade concernente a uma relação ôntica entre

uma causa e um efeito. A finalidade desta analítica é tão somente evidenciar a

unidade original, procurando mostrar o todo de uma unidade de condições

ontológicas. Não se trata de decompor em elementos, mas sim articular a

unidade de uma estrutura. No exercício desta analítica, sua transposição para

a prática médica, para o ôntico, denomina-se Daseinsanalyse.

A analítica do Dasein, desenvolvida em Ser e Tempo (Daseinsanalytik),

configura-se como uma interpretação ontológica do ser do Dasein. O segundo

sentido apontado por Heidegger, que Ida Elizabath Cardinalli denomina

Daseinsanálise clínica (a título de diferenciá-la das outras significações) é a

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análise dos fenômenos fatuais, que se mostram em cada caso na relação

analisando/analista (CARDINALLI, 2004). Já em uma terceira definição,

Cardinalli nos dirá que “à daseinsanálise refere-se ao estabelecimento de uma

possível ciência daseinsanalítica do homem”. Como uma “antropologia

daseinsanalítica”, ou seja, um estudo dos fenômenos humanos em um contexto

histórico-social específico, partindo da compreensão do existir humano,

descritos na analítica do Dasein (Ibidem.).

6.4. Daseinsanálise e a Esquizofrenia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Em seu livro Daseinsanalyse e Esquizofrenia, estudo realizado, como

citado anteriormente, a partir dos escritos de Menard Boss, Cardinalli dedica

um capítulo ao debate do psiquiatra e pensador com a psiquiatria clássica. Da

causalidade que habita este segmento do conhecimento que se ocupa das

moléstias que afligem a mente humana, Boss afirma:

[...] quando a noção de doença pressupõe que ela seja uma entidade circunscrita e isolada da totalidade do existir humano, então ela é explicada com base nela própria. Neste caso, pressupõe-se um modelo de conhecimento em que o esclarecimento do fenômeno do adoecer poderia restringir-se apenas a descobrir a evolução, os mecanismos e as determinações causais específicas de uma dada doença (CARDINALLI, 2004,p. 47).

Especialmente com relação à esquizofrenia, ressalta que a psiquiatria

clássica não consegue aclarar a experiência deste adoecer, tampouco sua

natureza. Cardinalli nos esclarece ainda que o autor questiona também a

concepção psicanalítica do homem, pois a psicanálise pensaria a experiência

humana baseada em uma noção de um psiquismo encapsulado, separado do

mundo. Para Boss, esta noção se apoia na divisão cartesiana, na qual o

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sujeito é separado das coisas do mundo. Noção problemática ao entendimento

da dinâmica das experiências sadias e patológicas, por não esclarecer como o

homem atinge o mundo e nem como o mundo afeta o homem. Cardinalli

esclarece-nos ainda que, segundo Freud, os esquizofrênicos regridem à

organização libidinal característica do estágio do narcisismo primário: “Através

da libido, os objetos do mundo externo são descatexizados, e o resultado é

uma perda da realidade” (Freud apud CARDINALLI: 2004, p. 50). O psicótico

então, para reparar a perda da realidade, criaria uma nova realidade, por

repúdio à realidade vivenciada tentaria substituí-la. Boss questiona esse

posicionamento de Freud acerca da existência de uma realidade objetiva e

externa cuja existência independe do homem. Do ponto de vista

daseinsanalítico, o que é denominado mundo exterior seria tão somente o

“modo específico pelo qual o que vem à luz da existência humana se apresenta

a qualquer membro desperto de um grupo de pessoas histórica e

geograficamente circunscrito” (Apud. CARDINALLI: 2004, p. 51). Sabendo que

o psicótico sente-se constantemente ameaçado pelo modo como percebe seus

semelhantes e coisas de seu mundo, Boss considera que o mais importante

em qualquer acompanhamento consiste em aclarar “a diferença entre as

formas pelas quais o mundo se descortina para o psicótico e para a maioria

das pessoas de seu entorno” (Ibidem.).

Para Freud, haveria nos esquizofrênicos o predomínio da representação

da palavra em detrimento da representação da coisa, ou seja, no

esquizofrênico haveria a incapacidade de distinção entre percepção e

representação. Menard Boss vai questionar também a concepção de Freud

acerca da Linguagem. Segundo Boss, tal afirmação implica em um pressupor

que na experiência humana a Linguagem se dê separadamente da percepção

das coisas. Para o autor, centro do estudo de Cardinalli, ambas caminham

juntas e só podem ser percebidas separadamente, caso se confunda

Linguagem com língua. Para Boss, o estudo dos fenômenos humanos sadios e

patológicos, solicita de antemão, o esclarecimento de sua natureza existencial,

que irá permitir o deslocar do entendimento mais habitual acerca do homem

que se baseia em conceitos de razão, forças, impulsos, etc. Somente quando o

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pesquisador conseguir vislumbrar o existir humano como Dasein, ser-no-

mundo, ser-com-o-outro, é que conseguirá distinguir e compreender os

fenômenos específicos no existir de uma pessoa em particular, pois estes

estão diretamente relacionados à maneira como esta pessoa experiência seu

próprio existir (CARDINALLI, 2004).

Cardinalli nos esclarece que segundo a etiologia das patologias

psíquicas, existe uma relação de determinação entre as causas e as

manifestações das doenças. Boss se oporia à noção de determinismo causal,

questionando se uma ideia determinista seria adequada para o entendimento

daquilo que se refere ao humano e suas experiências. Na proposta

dasainsanalítica é sugerida a visão de uma gênese motivacional para as

patologias. Esclarecendo o significado da palavra motivo, Boss diz que,

habitualmente ela é usada no sentido de causa, causalidade, como aquilo que

determina algo. No entanto, ressalta que o termo motivo nos diz também

daquilo que apela ou solicita alguém, ou seja, que é sua motivação. Assim fica

o entendimento de que o comportamento humano, tanto o patológico quanto o

sadio, deva ser compreendido na forma das relações motivacionais, ou

contextos motivacionais. Os motivos e aquilo a que se dirigem são

determinados pela tarefa iminente, reconhecida e aceita de alguma maneira

pelo homem. Estar dirigido a uma tarefa é um apresentar-se antecipado do

futuro e revela-se pelos significados. Mas não é o homem nem o mundo que

determinam os significados de tudo. Estes lhe são revelados conforme a

abertura perceptiva, que faz com que as coisas do mundo sejam mais próximas

ou mais afastadas de si. Para o Boss, quando o comportamento humano é

entendido como motivado, preserva-se um espaço de liberdade na ação

humana, já que os motivos solicitam, mas não obrigam o homem.

Toda ação humana é motivada por conta de algo reconhecido pela pessoa em questão, e este reconhecimento acontece no estar engajado de uma pessoa, por algum fenômeno que é endereçado a ela (BOSS, Apud. CARDINALLI,2004, p. 96).

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A compreensão da Daseinsanálise nos leva a pensar acerca do modo

equivocado e estigmatizado que a psiquiatria e a sociedade em geral se

dirigem ao esquizofrênico. Ainda que este estudo não tenha cunho biográfico,

ainda que não seja sobre a vida de Bispo do Rosário, mas sim sobre sua

poética, consideramos de extrema relevância – especialmente devido ao fato

de sua produção ter se iniciado a partir da manifestação da esquizofrenia –

olharmos atentamente para o modo de ser do esquizofrênico. O que de certa

forma também nos ajudará na dinâmica do pensamento acerca da proveniência

das obras que através dele vieram à presença. Buscaremos mais adiante

aclarar as tensões: doença/obra; obra/saúde; delírio/obra/arte.

6. 5. A Abertura e os modos de ser do esquizofrênico - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

A partir deste ponto buscaremos entendimento acerca dos modos de ser

esquizofrênico com relação à privação da liberdade, com o intento de melhor

compreender o labirinto pelo qual circulamos ao nos avizinharmos da poética

de Bispo.

Para Cardinalli, no existir de um esquizofrênico, a falta de liberdade

apresenta-se em tal grau, que este não consegue sustentar sua percepção de

mundo, pois esta percepção se dá de um modo hipertrofiado, o que faz com

que não consiga manter-se independente das solicitações externas. O

esquizofrênico não consegue manter-se intacto diante da solicitação de mundo.

As psicopatologias atingem diferentes âmbitos do existir. Boss nos esclarece

que enquanto a psicose orgânica (denominação da psiquiatria clássica)

compromete a espacialidade e a temporalidade, na esquizofrenia o âmbito

mais afetado é a abertura, a liberdade. Esta, como todas as demais

psicopatologias, é entendida por Boss como privação da realização das

possibilidades humanas. Esta privação compromete a condição que caracteriza

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a humanidade do homem. Boss afirma ainda que o esquizofênico apresenta

uma dupla incapacidade:

Torna-se incapaz de se engajar no que se mostra na abertura do seu existir, não podendo responder aos apelos do que se apresenta no mundo, conforme os significados habituais presentes para as outras pessoas; não consegue manter intacto um ser-si-mesmo capaz de manter uma relação livre com o que aparece (Apud. CARDINALLI, p. 128).

Para Martin Heidegger, o comportamento humano se refere “a maneira

pela qual eu estou em relação com o que me interessa [...] a maneira como se

responde ao ente”.75 Diante do que se apresenta o comportamento do

esquizofrênico é menos capacitado a manter um enfrentamento livre e aberto

ao que se manifesta em seu caminhar, não conseguindo deixar que

permaneçam em seus lugares no mundo tanto as coisas quanto as pessoas. A

percepção do que se apresenta afeta de tal modo seu existir que ele se torna

incapaz de corresponder às coisas que se mostram, ficando a mercê das

exigências do que encontra, sendo absorvido e anulado por elas. Em reação de

autoproteção, ao aniquilamento como ser humano, furta-se às relações com

pessoas e coisas. “Quando seu existir se fecha às exigências daquilo que se

apresenta, reduz-se a realização de sua receptividade em relação ao que lhe é

apresentado do mundo” (CARDINALLI, 2004, p.132).

Segundo Cardinalli, Menard Boss considera que a caracterização da

natureza básica da esquizofrenia deve ser compreendida como privação da

liberdade e da abertura do existir, o que esclarece a própria experiência do

esquizofrênico, o entendimento dos sintomas como atitudes humanas referida

à totalidade do existir. Os fenômenos patológicos compreendidos, então, como

a maneira de alguém corresponder às solicitações de mundo. Com base em

relato de um de seus pacientes – um homem jovem, bastante inteligente e

articulado, capaz de expressar-se com clareza acerca de suas experiências –,

75

(Apud CARDINALLI, p.131).

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Boss questiona uma vez mais a psiquiatria clássica no que se refere à

esquizofrenia. Ao relato dos sintomas do paciente que dizia ser a todo tempo

convocado pelas coisas, (fossem objetos concretos ou lembranças destes,

como uma garrafa de vinho bebida anos atrás capaz de compeli-lo a descobrir

seu atual paradeiro e tudo o mais a respeito de sua origem) a psiquiatria

diagnosticaria como pensamento obsessivo (coação mental ou pressão do

pensamento). Boss, contudo questiona este parecer, afirmando:

Nosso paciente insistia que ele não estava experimentando incontroláveis processos de pensamento ou associações intrapsíquicas de uma natureza subjetiva; ao contrário, as coisas lhe chamavam desde fora, quer estivessem fisicamente presentes ou tivessem vindo à mente. Elas lhe faziam demandas exageradas, excêntricas, às quais ele não podia resistir (BOSS, Apud. CARDINALLI, 2004, p. 143).

Para Boss a privação da abertura nos esquizofrênicos pode ser

compreendida de dois modos distintos aos quais chama: limitação e des-

limitação. O primeiro refere-se ao fechamento severo diante das coisas e

pessoas no modo de existir esquizofrênico. Nele, o esquizofrênico encontra um

modo de se preservar da ameaça de aniquilamento. Segundo Cardinalli, neste

modo há um aumento da restrição da liberdade de realizar o existir. O segundo,

a nosso ver, seria o modo de ser esquizofrênico que afetou a liberdade de

existir de Bispo do Rosário. Nele, ao inverso da limitação, há a realização

excessiva da abertura ao que se apresenta do mundo. Daí a incapacidade em

se relacionar, se colocar em meio às coisas. O esquizofrênico na des-limitação

fica entregue, sendo tragado pelo que se apresenta. Tudo tem tanta

intensidade que se vivência extrema felicidade ou um grande pavor diante do

perigo que o mundo representa. Cardinalli esclarece que há neste modo de ser

esquizofrênico, um caráter de falta de limite. Para Boss, a experiência da des-

limitação tem duas faces. Numa delas o doente mostra a incapacidade em

manter-se numa relação livre consigo mesmo diante do que se apresenta do

mundo. Na outra há um permear-se de mundo que possibilita “o acesso ao

caráter de „ser o que são‟ próprio de todas as coisas” (apud CARDINALLI, p.

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133). O psiquiatra e pensador nos dirá que neste modo de existir do

esquizofrênico

é como se lhes tivessem tirado o filtro protetor que livra o homem cotidiano, dito „sadio‟, da invasão do poderoso nada [...] este nada é idêntico ao ser em si. O ser como tal, o nada ou o encoberto reinam numa plenitude que deixa provir de si tudo que terá que ser (Ibidem., p.134).

Bispo se viu à deriva em dado momento de sua travessia, em meio a

todo um oceano de percepções de um mundo “super aberto”. Lembrando a

colocação de Boss acerca de o paciente ficar “entregue, sem saída e sem

sustentação” (Ibidem.), acrescentamos que Bispo iniciou a queda, mas acabou

por aprender a flutuar no abismo. Ao mergulhar no tudo, este revelou sua

essência, ou seja, o Nada. O mergulho neste nada foi um cair para cima, foi um

experimentar a vertigem da verticalidade que aos poucos iria se revelando

poética. Das duas faces que possui, a esquizofrenia ofereceu-lhe a esquerda:

e no ruir do mundo enquanto Cosmo, o mergulho no Caos, e o encontro com a

essência das coisas.

No viver cotidiano loteado em sistemas, o sentido do ser das coisas

encontra-se encoberto pela funcionalidade. Só alguns têm entre suas a

possibilidades a de avistar, experienciar a essência das coisas. Acreditamos

seja esta a principal condição ou possibilidade de Ser, o aproximar o louco, o

artista, (poeta) e o filósofo; ainda que Boss nos diga que a impossibilidade de

suportar a percepção deste manifestar-se nesta dimensão fundamental das

coisas seja justamente o que diferencia o louco dos demais. Segundo Menard

Boss, o esquizofrênico não tem condição de suportar o que é percebido,

ficando a mercê daquilo que se manifesta, sucumbindo. Já o artista, o poeta e

o filósofo teriam esta percepção expandida associada a uma autonomia diante

dela, não se deixando tragar. Seria como um flertar com o abismo, saltando

sobre ele. Já Bispo esteve à deriva, mergulhou, avistou os limites do impossível

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em um quase afogamento, mas emergiu, com o auxílio de salva-vidas em meio

a todo um oceano de delírios: a Arte.

Agora que compreendemos um pouco melhor a trama dessa cruel

privação denominada esquizofrenia, passemos a exercitar o pensamento no

que se refere ao Bispo e sua produção. Ou seja, ao acontecimento da arte em

Bispo.

Acreditamos que todos os viventes tenham um conjunto de

possibilidades de ser em seu próprio, que podem eclodir ou não, isto

dependendo diretamente das condições em que estará lançado, sejam elas

familiares, geográficas, históricas, entre outras. Possibilidades em seu sentido

existencial, segundo esclarece Heidegger, em Seminários de Zollikon, são

sempre um poder-ser-no-mundo histórico. É um poder-ser que acontece no

mundo e está imbricado no tempo. Para Boss, o estudo das patologias

demonstram sempre uma forte ligação entre as doenças do presente e os

acontecimentos que a antecederam, ou seja, a história anterior daquele que se

encontra em estado de privação. A cada ser humano são dados os modos de

ser como possibilidades da existência, mas os acontecimentos podem restringir

ou favorecer determinados comportamentos.

Boss percebe que o estar doente é caracterizado pelo prejuízo na habilidade de realização das possibilidades, e que com tal prejuízo ocorre a interferência direta na liberdade do ser humano para realizar suas concretas possibilidades nas diferentes situações da vida (CARDINALLI, 2004, p. 109).

Acreditamos que desde sempre o ser artista era uma possibilidade em

Bispo, seu próprio, possibilidade esta que não havia encontrado condições de

vir-a-ser, soterrada sob um Eu inflado pelas funções que as conjunturas da vida

e o sistema social impuseram. As condições sociais o fizeram porteiro, caseiro,

boxer, segurança de político... não artista. A sociedade diz, e talvez o tenha

convencido durante determinado tempo, que arte é para alguns poucos

escolhidos, não pelo destino, mas pela hierarquia econômica. Talvez Bispo

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nunca tenha sequer cogitado ser artista algum dia. Bem, ao menos até o

momento do surto. Acreditamos que a força de seu próprio quanto mais

sufocada mais se intensificava e ao invés de vazar lentamente conforme as

condições, por entre as fissuras do Eu (como foi desenvolvido anteriormente no

capítulo 5.4. O Próprio e a Realidade) explodiu de uma só vez, e o eu

esfacelou-se subitamente em um grande surto esquizofrênico. “Quando

negamos algo de forma que não o excluímos simplesmente, mas o retemos

justamente no sentido de que algo lhe falta, esta negação chama-se privação”

(HEIDEGGER Apud. CARDINALLI, 2004, p. 108).

Bispo mesmo não conhecendo76 a arte percebia sua ausente presença

como uma necessidade daquilo que haveria de ser. Moira de artista. Havia a

necessidade de Ser. A impossibilidade de realização, o impedimento de uma

de suas possibilidades provavelmente o adoeceu. A Necessidade de arte se

manifesta em convocação ao obrar sob a forma de Surto. No entanto, a doença

em Bispo era um devolvê-lo à saúde. Com a doença, houve o advir das

condições de realização do seu próprio. Ao ser diagnosticado esquizofrênico

foi, como dito anteriormente, banido do sistema e pode entregar-se à obra.

Com relação à alucinação, esclarecemos que em geral a psiquiatria a

define como uma perturbação da percepção onde ocorre uma percepção

sensorial sem a presença de um estímulo adequado. Para Boss, este

entendimento não é satisfatório. Cardinalli afirma que, para ele:

A alucinação é um modo específico de entendimento das coisas e das pessoas, no qual o existir ocorre num entregar-se acentuado a uma certa relação existencial numa determinada situação [...] sempre contém sentidos e significados que correspondem ao entendimento possível do paciente em relação a si mesmo e ao que se apresenta do mundo, que não se dá necessariamente na presença concreta de um “estímulo externo” (CARDINALLI, 2004, p. 154).

76

Esclarecemos que este “não conhecer” refere-se ao conhecimento acadêmico do que vem a ser arte.

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Especificamente com relação às vozes, Boss dirá que “não conseguindo

assumir as suas possibilidades como efetivamente suas, ele (o esquizo)77

percebe o que é vivenciado como algo estranho e imposto de fora” (Ibidem.).

Na ordem dos anjos, significa o dizer de seu próprio. Podemos em livre

associação de pensamento ver esta questão associada ao jogo de mando e

obediência discutido anteriormente sob a luz do pensamento de Fogel. Bispo

negando inicialmente seu destino, sua moira, experimentou o peso de dois

fardos. Da sobrecarga, o surto. Mas em Bispo tudo se dá na ambiguidade. A

privação da arte eclode em patologia de privação de liberdade num constante e

interminável ser convocado pelas coisas para assim inventariar o universo. Mas

ser artista é o seu próprio e assim ao ser convocado produz obras de arte. A

arte o salva de si mesmo, restaurando sua liberdade. Bispo mesmo confinado é

livre para ser. Na solidão do confinamento, o tempo da obra é Cura.

No capítulo três, referimo-nos à distinção entre o pintor Vincent Van

Gogh e Bispo. Lá afirmamos que o holandês era artista e esquizofrênico. Aqui

reforçamos o dito, apenas frisando que Bispo, ao inverso dele, foi

esquizofrênico e artista. Em Van Gogh, o relacionar-se com a arte se deu em

meio a embasamentos específicos que orbitavam conhecimentos relativos a

consciência deste fazer. Eventualmente sofria surtos patológicos que o

impossibilitavam de criar. Já Bispo nada sabia do circuito das artes e dos

atributos teóricos e institucionais que o circundam. Em dado momento de sua

existência foi diagnosticado esquizofrênico por ser acometido por surto e

delírios. A partir de 22 de dezembro de 1938, sua história apaga-se de sua

lembrança e mergulhado em profundo esquecimento de seu eu funcional aceita

a convocação do delírio e se põem a obrar.

77

Parêntese nosso.

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115

6. 6. No dia 22 de dezembro eu vim - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

A Loucura em Bispo e a posição da crítica de arte. O doente mental carrega a

sombra de um morto.

Bispo do Rosário

Para Ricardo Aquino, diretor do Museu de Arte Contemporânea Arthur

Bispo do Rosário, uma das dificuldades em falar sobre o artista Bispo consiste

no permear-se entre vida e obra. Segundo Aquino, o único traço relevante na

vida do artista seria o que ele mesmo bordou em um de seus trabalhos: No dia

22 de dezembro eu vim. Aquino parte desta afirmação em seu estudo crítico-

biográfico sobre Bispo, assim como Patrícia Burrowes e Luciana Hidalgo, que

também a utilizam em seus escritos78 distintamente.. Aquino, a nosso ver,

pensa de modo um tanto quanto “recortado”.

O diretor do museu, no afã de “legitimar” a posição de Bispo como artista

contemporâneo, busca,, de modos diversos,, apartá-lo da privação

esquizofrênica. Reconhecemos que determinados ângulos de sua preocupação

são legítimos e que sua atitude poderia ser até mesmo louvável, se não tivesse

contornos tão estanques. Concordamos com sua posição quando afirma que a

obra que através de Bispo veio à presença não possa ser explicada pela

psiquiatria, pela doença mental. É fato que se torna de suma importância

esclarecer, como já dito anteriormente nos primeiros capítulos deste estudo,

que a obra de Bispo do Rosário não é “arte de louco” no sentido corriqueiro da

expressão que pressupõe produção de oficinas de arte-terapia – ainda que, em

nosso entendimento, a própria obra se encarregue de clarificar este ponto a

quem possivelmente venha se equivocar ao realizar tal juízo de valor.

Ricardo Aquino, não obstante, busca estabelecer cortes, separações,

fronteiras, entre arte e loucura quando em seu texto Do Pitoresco ao Pontual79,

78

HIDALGO, 1996 e BURROWES, 1999. 79

In: Bispo do Rosário século XX. Rio de Janeiro: Museu Bispo do Rosário e Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2006.

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já no início de seu escrito, esforça-se por descolar Bispo de seu histórico

esquizofrênico. Reproduz a frase citada anteriormente e que dá nome a este

capítulo, desconsiderando que faz parte de uma oração, de toda uma narrativa

com sentido específico e completo bordado em um estandarte. Transcrevendo

o dito apenas em parte, diz que ao fazer tal afirmação, o artista evidencia o

único traço autobiográfico que lhe era relevante:

o dia do início de seu processo de criação, ou melhor dizendo, o dia que inaugura o seu devir artista [...] o início de sua entrega ao processo de criação artística, onde ele criava suas obras e criava a si mesmo, agindo sobre o mundo. É o dia de seu nascimento, a sua chegada ao mundo da criação. (AQUINO, 2006, p.45)

Na continuidade, o autor cita Fernando Pessoa, no que este (Pessoa),

denominava o seu “dia triunfal” – o 8 de março de 1914 – dia em que escreveu

a um só fôlego os poemas de “O guardador de rebanhos”. Sendo este ato tido

como o inaugural do mestre dos heterônimos, Alberto Caeiro.

Excelente aproximação entre Bispo e Pessoa – poetas da imagem e da

palavra. Contudo, parece-nos que o objetivo de Ricardo Aquino ao fazer tal

aproximação tenha sido minimizar a força do surto esquizofrênico de Bispo.

Não obstante, ainda que seja este o caminho que suas palavras pretendam

firmar [ao menos a nosso ver] a citação conduz em direção diversa.

Ironicamente, o que pretendia enfraquecer a loucura a fortalece. Ao

reportarmo-nos às palavras do próprio Pessoa acerca da gênese dos

heterônimos, em carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro, percebemos que

ele próprio insiste em revelar seu fundo traço de histeria, admitindo-se um

histeroneurastênico propriamente; dizendo estar a origem mental de seus

heterônimos na tendência orgânica e constante para a despersonalização e

para a simulação:

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A origem de meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está em minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior [...] fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia (PESSOA, 1989),

Sendo ironia de artista a um crítico ou não, vem reverberar um

questionamento: O conhecimento deste fato (sua suposta histeria) faz com que

o consideremos menos poeta, ou ainda, faz com que sua poesia perca força?

Lisette Lagnado, em texto intitulado Arthur Bispo do Rosário e a

Instituição, faz questionamento acerca de quais seriam as consequências

desse deslocamento do que chama voz xamanística de Bispo, e afirma:

Seu novo responsável sempre diligente, logo condicionou o gênio “da cela” ao ateliê. Primeira consequência importante: o resultado da apropriação dessa obra para o campo artístico acabou afastando o sujeito de seu direito a dar vazão a loucura. O cuidado para em nenhum momento esbarrar no aprisionamento moral implícito no diagnóstico conferido a Bispo corrompe-se em domesticação da loucura. Transferido para o museu Bispo tem sua alteridade glamourizada e reduzida: não sendo trabalhada como surto de saúde e garantia última contra a falência do sujeito (como fizeram Nietzsche, Van Gogh, Artaud) seu teor explosivo é silenciado.80

Sabemos, como nos disse Foucault, que onde há obra não há loucura,

contudo, embora acreditando que as obras que através de Bispo vieram à

80

LAGNADO, 1999, pp. 106-8.

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presença tenham caráter de surto de saúde, quando Ricardo Aquino nos diz

que a trajetória biográfica de Arthur Bispo do Rosário não tem nenhuma

relevância para a apreciação ou valorização de sua obra, em verdade ele está

logrando ao artista (e não à obra) uma parcela de sua história. Há sem dúvida

em Bispo do Rosário, o devir artista manifesto, contudo, Bispo é o conjunto de

todas as possibilidades de existência do homem Arthur. A condição de esquizo

é uma das possibilidades de seu existir, ainda que constitua, como vimos

anteriormente, uma privação. Negar isto é enfraquecê-lo. Será mesmo tão

relevante negar a esquizofrenia, a loucura? O fato de ter, por principal material

a compor sua obra, a linha que desteceu de seus uniformes de interno na

Juliano Moreira não ressaltariam ainda mais o vigor poético dos bordados?

Acreditamos que não se deva descolar Bispo e loucura, mas sim obra e sujeito.

Defendendo para Bispo uma posição de artista contemporâneo “antenado” às

poéticas vigentes a custo da mutilação, ou seja, da negação de uma parcela do

que é próprio ao seu existir, apenas reforçamos o equívoco da posição que

defende ser o artista anterior à obra. O que “legitima” a possibilidade artística

em Bispo não é a negação de seu prontuário psiquiátrico, mas a arte manifesta

no conjunto de obras que através dele se presentificou.

Ricardo Aquino em seu escrito, diz lamentar os esforços de “pretensas”

biografias sobre o artista que se alimentam do que chama

o anedótico da vida asilar psiquiátrica, do risível empobrecido, alimentando-se de uma pretensa culpa da sociedade travestida de pena, com a valorização do pitoresco. Isso contribui para uma moldura folclórica em torno do artista, o que funciona como um organizador do olhar sobre o mesmo e sua obra (AQUINO, 2006, p.49).

Em sua crítica, o autor diz que se inventa um “artista” (aspas dele), cuja

produção é etiquetada como a manifestação de uma excentricidade. O “artista”

teria vindo com a concessão, ou talvez ressalva de: “um tanto genial, mas

louco, e que não faria arte” (Ibidem.). Ao final de sua colocação diz que o termo

inventar por ele utilizado tem o sentido que Michel Foucault buscou em

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Nietzsche e que implica a afirmação de que em toda invenção sempre está

presente uma relação de exercício do poder de subjugação (Ibidem. op. cit).

Buscando legitimar seu ponto de vista com relação à irrelevância da condição

esquizofrênica de Bispo, Aquino faz uma citação que uma vez mais irá, nas

estrelinhas, estabelecer um choque, para não dizer provocar um contradito,

evidenciando lacunas entre o que talvez de fato pense e aquilo que julga ser

necessário pensar. Complicando-se ainda mais faz a seguinte afirmação:

Michel Hardt e Antonio Negri (2000) fizeram a demonstração do fato de que na sociedade de controle, a maneira como o poder manipula a diferença mudou. Atualmente, o poder não retira mais de circulação “a diferença” e a recolhe em instituições disciplinares como os velhos asilos psiquiátricos, historicamente condenados ao desaparecimento. Ao contrário, a diferença é recolhida, ela é culturalizada e, dessa forma, ela pode ser melhor controlada” (AQUINO, 2006, p.49).

Acredito não haver nada mais a acrescentar acerca da posição do autor

ao buscar legitimar Bispo como artista após a transcrição acima. A sociedade

de controle tem muitos tentáculos. Os sistemas são tão poderosos ao se

estabelecerem nos mais diversificados segmentos da sociedade, sempre com

súmulas conceituais a serem aplicadas que, por vezes, as máscaras com as

quais pretende uniformizar os membros que pretende absorver, confundem até

os que dele já façam parte, ainda que estes sejam bem intencionados. Torna-

se assim desnecessário e, por que não dizer, prejudicial, que a instituição

museu, no afã de tomar o artista para si, pretenda domá-lo, buscando apagar o

que parece julgar “mácula” em sua história de vida, visto ser este um caminho

que se configura perigoso, especialmente ao dirigir-se à história de Bispo do

Rosário – vida repleta de coisas do não, 81 cuja imagem no mundo é marcada,

além da loucura, por alguns outros estigmas sociais: negro, nordestino, pobre –

vida mais que Severina. Tal caminho pode acabar por conduzir, não agora,

mas quem sabe em futuro próximo, à desconstrução de outras faces de sua

81

Expressão que tomo emprestada, de João Cabral de Mello Neto: Morte Vida Severina.

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120

história – onde se firmaria por discurso, a legitimidade (quem poderá saber?)

de embranquecê-lo ou fazê-lo poliglota com formação artística no exterior.

Com relação aos posicionamentos críticos que percebem afinidades

entre sua poética e a de artistas conceituados citados em capítulo anterior

como Duchamp, Daniel Spoerri, Arman, Hélio Oiticica entre outros,

consideramos importante fazer uma colocação acerca do que Menard Boss

pensa sobre a influência da época. O pensador afirma que o comportamento

das pessoas é circunscrito numa época específica. “Cada época concede, para

a humanidade, um Dasein, uma existência, como um âmbito aberto perceptivo,

cujos limites são peculiares a essa época” (Apud. CARDINALLI, p. 100). Como

vem nos esclarecer Cardinalli, cada momento histórico delimita os modos de

existir do homem, desqualificando alguns comportamentos e valorizando

outros. Cada época solicita aos homens a realização de algumas das

possibilidades inerentes ao existir humano. Determinada época histórica

específica pode ser mais favorável ao desenvolvimento e realização de

determinadas possibilidades para algumas pessoas (Ibidem.). Assim podemos

entender como Bispo mesmo fora do circuito, mesmo sem ser conhecedor de

artes e menos ainda, sem reconhecer-se como artista viu emergir em si esta

possibilidade. E mais que isso, teve tamanha afinidade poética às vanguardas

de seu tempo. Contudo, precisamos atentar para a compreensão de que é no

eclodir poético que a época se configura e não o contrário, sem linearidade,

apenas vertigem. O tempo se deixa entrever nesta eclosão das obras,

especialmente nas “intempestivas”. Não são as épocas que produzem as

obras, mas sim as obras que configuram e instauram as épocas. Obras e

época se dão como dobra, instauradas pela Arte desdobram-se sem exclusão.

Retomando a questão discutida anteriormente, queremos crer que, ainda

que as intenções do diretor e curador Ricardo Aquino sejam as melhores

possíveis – afirmação esta mantida livre de toda e qualquer aproximação com

provérbio da sabedoria popular acerca das “boas intenções”. Excetuando as

ressalvas, expostas talvez com excessiva veemência, o escrito do diretor e

curador parece-nos de grande valor para a História da crítica e mesmo da

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própria Arte Contemporânea. A nosso ver, Bispo era esquizofrênico e artista, e

em nada uma condição invalida a outra. Ambas co-existem em alternância.

Sabemos que onde há arte não há doença, mas saúde. Só que neste caso

específico a saúde foi doença para poder ser de fato saúde. Bispo artista e

não-artista constitui um paradoxo na história da arte. Bispo é artista e, ao

mesmo tempo, nega tal condição. As duas posições guardam parte da

verdade, mas a verdade inteira não é revelada em sua soma. Pois o

movimento poético da verdade se dá à medida que esta se desvela,

autovelando-se. A verdade não habita as afirmações, mas o ranger destas. A

verdade habita o entre. Só mesmo a poesia é capaz de suportar esse ranger.

Em Bispo, a possibilidade de ser artista vige em condições ambíguas,

paradoxais – poéticas. Que se dá num movimento que é da ordem do mistério,

do extraordinário, do Sagrado.

6.7. O Sagrado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas

ao vento que na minha antiga prece humana.

Clarice Lispector

Manto da Apresentação: Obra que se quis veste. Há os que defendam

uma marca teológica no vestuário afinal por primeira veste temos as de Adão e

Eva, após o pecado original (AGAMBEN, 2008). Já Baudelaire, em O pintor da

vida moderna, diz que a ideia que o homem tem do belo se imprime em seu

vestuário, retesa e esgarça sua roupa, arredondando ou alinhando seus gestos

até impregnar, com o passar do tempo, os traços de seu rosto. Sempre ouço

com atenção o dizer dos poetas, contudo, o Manto da Apresentação excede

todas as possibilidades previstas, pois não é mero vestuário, é Obra. O delírio

inspira o tecer da vestidura do inventariante Bispo para ocasião do prestar

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contas ao criador sobre as atividades do homem fora do paraíso. Manto-obra-

presença, veste sagrada.

Ao longo da história humana foram, e continuam sendo, inúmeros os

modos de experienciar o sagrado, causando por vezes, em nosso ocidental e

moderno pensar, certo estranhamento. São vastas as planícies por onde se

espraiam os modos de ser. Mircea Eliade, em Sagrado e Profano, tece

considerações acerca do tema. Para ele este sentimento não se vincula

propriamente às religiões, sendo antes autônomo. Percebemos estreita a

distância entre as experiências com o sagrado e as sensações advindas do

contato com o que entendemos por sublime. O autor defende – recorrendo a

seus pares – que há no homem uma sensação próxima ao pavor diante de

experiências desta ordem, o mysterium tremendum, oriundo de certa sensação

de nulidade que se estabelecesse ao reconhecermos que nossa condição não

excede a de mera criatura diante de esmagador poder. Eliade, no princípio de

seu escrito, esclarece não buscar estabelecer relações entre racional e não-

racional.

Em nós repousa o desejo de pensar o sagrado de modo, se não

inaugural, ao menos que tangencie sua essência, apartando-nos de possíveis

tensões que se instalam ao opormos o sagrado ao profano. Neste ponto,

distanciaremo-nos do autor citado, que conduz seu pensamento de modo hábil

e específico por este caminho, que embora indiscutivelmente rico ao seu

intento, inviabilizaria nosso estudo. Não há no pensamento que buscamos

construir desejo ou interesse em domar, cercear, ou delimitar fronteiras ao

sagrado, muito menos de o relacionarmos ao religioso.

O sagrado a ser pensado no Manto não se opõe ou se justapõe ao

profano. Tampouco se refere ao religioso. Não há ligação com religião, não se

refere a sistemas religiosos ou instituição. A instituição é calcada em

paradigmas, nos quais tudo difere do verdadeiramente humano do homem, que

a nosso ver, é o que está presente em toda manifestação do sagrado. O

sagrado manifesto em obra segue uma lei mais complexa do que aquelas que

regem sistemas. Passemos então a refletir acerca da Lei.

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O que seja a lei em si já carrega toda uma complexidade misteriosa.

Segundo Manuel Antônio de Castro – em ensaio intitulado A Violência no

Religioso e no Profano82 – há uma dupla possibilidade de leitura da Lei. Há a

Lei como vida, e há a vida como lei. É na Lei como vida que o sagrado se dá.

Esta é a Lei que está a serviço do homem. A outra lei é a que rege as

instituições, os sistemas e acabam por aprisionar o humano, tolhendo-o de sua

humanidade, incapacitando-o para o amar. No segundo caso é o homem quem

está a serviço da lei e não o contrário. O limite entre a “Lei” e a “lei” é muito

sutil, esfumaçado. A lei das instituições e dos sistemas não é menos real que a

Lei do humano, a ideia que a primeira representa também é real, mas nela a

percepção do real é universal e abstrata, enquanto na outra Lei esta percepção

é concreta, pois leva em conta a conjuntura humana (Ibidem.). Muitas são as

leis e sistemas que circundam a obra Manto buscando apreendê-lo em

verdades institucionais. De modo patente, temos o científico e de modo latente

o religioso.

Com relação ao científico temos que a ciência busca trazer para o

sistema uma concepção de verdade que “domestica” o real, moldando-o nas

dimensões que julga confortável. O sistema científico circunda o Manto seja na

Arte institucionalizada em sistema de arte que envolve História e crítica com

suas instituições subjacentes como Museus, galerias, publicações

especializadas etc., que defendem a autonomia, a subjetividade do artista

Bispo; seja na Psiquiatria que defende sua condição de enfermo, portador de

esquizofrenia, doença psiquiatra que o torna incapaz enquanto artista,

afirmando ser sua obra, adoecida, fruto de delírios psicóticos. A ciência e seus

paradigmas agregam ao sistema uma concepção de verdade que reduz o real

à dimensão imposta por ela. Por outro lado, o sistema religioso se coloca

através da fresta do cunho messiânico da obra. Essa característica, advinda do

delírio, fomenta certo borrar de fronteiras entre sagrado e religioso aos menos

atentos. A afirmação de Bispo com relação ao destino da obra – Traje com o

qual apresentaria a Deus toda produção humana sobre a Terra – não cerceia

82

Leitura crítica da peça O Vigário, de Rolf Hochhuth, In: http//:acd.ufrj.br/~travessiapoetic/interpretação.htm.

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suas possibilidades enquanto obra de Arte. Pois afinal, na verdadeira Arte o

que de fato impera e vigora é a autonomia da obra e não a subjetividade

artística.

O centro nervoso, o ponto em comum a unir o sistema científico e o

religioso, ainda que estes aparentemente estejam em oposição, é o constante

ignorar daquilo que de fato é o mais relevante no que se refere às obras que se

presentificaram através de Bispo: a manifestação do Sagrado. Os que da obra

se aproximam buscam reduzi-la à ação do homem Arthur Bispo do Rosário,

sempre girando em torno da subjetividade seja do louco, do artista ou do

“profeta”. A obra é reduzida à ação do homem.

Todo o arcabouço das crenças institucionais do sistema religioso, bem como o arcabouço das crenças institucionais do sistema científico acabam por se igualar, porque fundadas na crença do poder da ação do homem. E porque fundadas nessa dimensão, acabam por negar o próprio homem e levá-lo ao extermínio e à dor e sofrimento tanto físico como mental e psicológico: o religioso e o profano no fundo se tocam e só aparentemente são opostos (CASTRO, A Violência no Religioso e no Profano, p. 6)83.

Não cremos que o científico ou o religioso sejam arcabouços para a

construção da obra que através de Bispo veio à presença. No entanto,

acreditamos na fé, que em Bispo é concreta e se concreta, como movimento do

real, portanto, manifesta o Sagrado. Bispo foi sem dúvida um homem de fé, e

através dela foi instrumento, mecanismo, na ação do Sagrado. Enquanto poeta

(das linhas) soube que nenhum sistema dá conta do real, portanto não temeu

sucumbir, acreditou em seu trabalho até o último instante de seu existir.

Independentemente da finalidade de sua produção, o Manto possui enquanto

obra, um télos, um sentido que transcende a vontade do artista. Bispo bordou a

mortalha com o esmero de um traje litúrgico, digno de ritual de sacramento.

Mas a obra vai além das intenções de quem a produziu e o traje de gala

passou de mortalha a célebre obra da arte contemporânea. Manto é figura-

83

Disponível em: http//:acd.ufrj.br/travessiapoetic/.interpretacao.htm.

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125

questão que nos diz de duração e finitude, habitar e construir, condições e

possibilidades, loucura e sanidade. Ou seja, um poema tridimensional sobre o

humano.

Não cremos que a obra carregue em si questões relativas à

religiosidade de seu autor. Diante dela somos tomados por algo muito maior, é

o sagrado como questão que se presentifica e, em nosso entendimento, é o

que de fato moveu o fazer, o construir e o habitar em Bispo do Rosário.

Importante esclarecermos que não se trata apenas de um cambiar expressões,

mantendo a ideia e mudando apenas o termo, passando a empregar a palavra

Sagrado no lugar da palavra religioso. Em seu significado essencial sagrado

não é religioso. Mas então o que é o Sagrado?

Castro (Op.cit.) esclarece que entender o que seja o Sagrado implica

primeiramente em auscultar o que a palavra sagrado diz, e isto configura árduo

exercício de pensamento. A tarefa é extremamente difícil por sermos, segundo

o autor, reféns de um vocabulário onde as palavras que o circundam já se

encontram impregnadas de significados religiosos. Para Castro, o linguista

Émile Benveniste realiza um estudo bem fundamentado sobre o tema no

Vocabulário dos povos indo-europeus:

Não há na língua destes povos um vocábulo que expresse algo como uma instituição religiosa ao lado de outras instituições. Isso não quer dizer que não haja o sagrado. Muito pelo contrário. Aparece até com mais de um nome, que expressam nuances deste fenômeno onipresente (CASTRO, Ibidem.).

Benveniste destaca dois vocábulos básicos: sacer e sanctus

impregnados de significados e que se dirigem a este mundo de ideias.

Procuremos ouvir o que, segundo o autor, o vocábulo Sanctus nos diz (Ibidem).

Tal vocábulo se refere à tomada de mundo humano em relação ao divino. Diz

da percepção humana do mundo divino. Estrutura-se em mitos e ritos.

Inicialmente os ritos configuravam parte essencial do mito. Mas com o

estabelecimento das tensões e diferenciações entre o mundo religioso e o

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mundo profano, os ritos tornaram-se mais importantes que o mito. Nos

vocábulos derivados de sanctus temos a verdadeira dimensão desse gradativo

institucionalizar. Este mundo vai se estruturando em leis, que regulam e

estabelecem o que seria o mundo divino e o comportamento adequado para

com ele. Castro nos diz que, pensando as duas palavras que do vocábulo

sanctus se originaram: sancionar e sanções, teremos a noção do que ali se

estabeleceu. Apropriando-nos da questão colocada pelo autor, indagamos:

Mas o que tais palavras têm a ver com o mundo divino?

Retomemos a questão das leis. No cerne da questão está o embrião, a

definição e o alcance da Lei. A depender do contexto, do significado, lei

pressupõe um sistema. Mas o que é um sistema e quem o legitima? Que poder

o gera e o move? Na dimensão em que vigora o sistema em torno de sanctus

há uma única fonte: o homem. Este sistema diz da ordem, do mundo ordenado,

de fato com auxílio do divino. O mundo ordenado e organizado diz do homem e

do Cosmo. Abandona-se com essa ideia o real em sua dimensão de Caos.

Segundo Castro, os mitos nesta concepção dizem respeito ao Cosmos e ao

homem. Ou seja, o mundo divino assim disposto, diz de uma ordem cujo centro

é o homem. Daquela percepção inicial e indefinida da presença do sagrado,

que se denominou no vocábulo fanum, sucedeu-se outra, mais delimitada:

templum.

Esta palavra que não só denomina um espaço limitado, mas também um lugar especial, diferente dos outros espaços. Anteriormente todo espaço era fanum. A progressiva delimitação do espaço ainda passou por um estágio anterior: cada casa de alguma maneira era um fanum. Vemos por aí como a percepção do divino não se fazia a partir de uma instituição particular. A família e seus deuses, seus manes, seus antepassados e sua memória se confundiam com o sagrado (CASTRO, Ibidem.).

Fanum se tornou templum, configurando espaço demarcado e bem

definido, delimitado. Tudo que estivesse diante ou a redor do fanum/templum

era pro-fano. Assim temos que profano e não-profano (depois denominado

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religioso) em essência são percepções do real restringido a Cosmos, à ordem.

Ou seja, anterior a isto, religioso e profano não se distinguiam. Enquanto

sistemas, apenas aparentemente se opõem, sendo ambos regidos, governados

pelas leis da ordem. O não-profano ou religioso se dirige ao divino visto a partir

do homem; enquanto que o profano se dirige ao mundo do próprio homem.

Com relação às palavras derivadas de sanctus mencionadas anteriormente,

ambas se estabelecem e se aplicam nos dois mundos no estabelecer e

sancionar leis e suas sanções.

De um modo geral o que predomina em relação ao divino é o real

percebido e compreendido a partir dos conceitos advindos de sanctus. No

entanto, tudo pode parecer mais claro se nos dedicarmos a pensar e entender

o que o termo sagrado nomeia. Segundo Benveniste (Apud CASTRO, Op. cit.)

o vocábulo sacer diz da tentativa do homem de se voltar para o real e

compreendê-lo, não a partir de si mesmo, mas do incompreensível, do que por

ele não é compreendido. Sacer diria de um mergulhar no desconhecido,

mergulhar no Caos. Um salto no abismo, no mistério; um lançar-se naquilo que

antecede e ao mesmo tempo ultrapassa toda e qualquer ação do homem.

Refletindo sobre a essência da ação há de se encontrar caminho nas veredas

do real. Através de sua ação o homem ordena o real. É através desta ordem

advinda de suas ações que o homem mapeia a realidade e busca compreendê-

la. Por outro lado percebe com clareza a presença do mistério, daquilo que não

se curva ao ordinário. Há sempre algo que foge à sua ação, que não se deixa

ordenar. Por mais que busque ordenar e ordene, o homem conclui que o real

excede, estando de algum modo acima de seu limitado senso de ordem.

Percebendo a incapacidade de ordená-lo em totalidade, o homem entende que

o próprio real também age. Vemo-nos diante de uma Lei maior que as que

firmamos anteriormente, quando percebemos a ação dessa força

incompreensível, inexplicável. Diante dessa força que configura a ação do real,

não excedemos a condição de espectadores. Quando em nossas vidas somos

conduzidos ao que não podemos ordenar, onde todos os sistemas dos quais

dispomos demonstram sua ineficiência e toda força que conhecemos entrega-

se em tibieza, estamos diante daquilo que se nomeia o Sagrado. O Sagrado

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rege e é regido por Lei que não segue os parâmetros do mundo em sua ordem,

independe do homem e seu querer, esta Lei não está sujeita a sanções. É o

vigorar de verdadeira força propulsora de todo criar. É vigor do Caos, onde,

como nos afirma Castro, repousa a possibilidade de proveniência de todo

Cosmos. Diante do imensurável desta ação, cabe ao homem apenas silenciar

em reverência. Contudo, não se trata de força aniquiladora, mas de força que

conduz à plenitude da condição humana.

Bispo experienciou esta força sagrada. Na implosão da causalidade, na

não linearidade do tempo narrativo onde presentepassadofuturo são um.

Tatuados em bordados no corpo do Manto, podemos entre-ver a força do

Caos. Diante do desconhecido, do delírio inspirado que se apresentava como

força do extraordinário no ordinário de seus dias de interno, diante do Sagrado,

a Bispo só restou a potência de três verbos: silenciar, jejuar e obrar,

entregando-se à ação que o moveu em sua re-construção de mundo. Bispo

percebeu, enquanto artista-louco, que em essência, desejo e liberdade

caminham juntos, mas são distintos. Bispo percebeu-se mecanismo de uma

força maior, a força da criação, e fez de sua existência uma ode ao trabalho,

pois cria em algo que sabia maior do que si mesmo. Bispo não teve querer,

aquele subjetivo; teve poder. Poder ser. Viveu a vida em jogo de mando e

obediência. Lembrando uma vez mais as palavras de Manuel de Castro,

dizemos que apenas impulsionados por nosso querer somos, como Édipo,

conduzidos mais rapidamente à realização daquilo que não queremos, e o que

queremos não se realiza. Desejo e liberdade são como essência e aparência.

Há em todo construir a possibilidade do operar da ação aparente e/ou da ação

essencial. A ação aparente é movida por nossos desejos, nela realizamos

tendo por suporte nossas leis e sistemas institucionais. Todas as nossas

pseudo-ações, como em Édipo que tenta alterar o curso de seu destino, nada

mais fazem que reafirmar e realizar os desígnios contidos na ação do real.

Quanto à liberdade, esta se move na e pela ação essencial. A essência da

diferença entre desejo e liberdade, ação aparente e ação essencial consiste no

fato de que não somos nós a realizar a segunda, é ela quem nos realiza. É o

sagrado operando em nós.

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6.8. A Finitude - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Às vezes, só para me sentir vivendo,

penso na morte. A morte me justifica.

Clarice Lispector

Sabemos que o Manto da Apresentação é Sagrado não por sua

presença ser proveniente da necessidade de traje daquele a quem a

alucinação fez messias, mas sim pela beleza do ordinário que ali se faz

extraordinário – em parte pela gênese de pobreza, precariedade dos materiais

que dão corpo à riquíssima peça. E especialmente, pelo que se mostra no

aberto, doando-se ao ver: fim e perenidade caligrafados em mortalha que

celebra a vida e cobre o vazio, desvelando-o. No mostrar o vazio faz o nada

aparecer, o Nada que também é Deus. Neste mostrar, que é um mostrando-se,

temos o vigorar do Sagrado. A Arte manifesta o Sagrado, ao mesmo tempo em

que o Sagrado manifestando-se plenifica o homem-artista Arthur Bispo do

Rosário, ao invalidar as leis da psiquiatria e da sociedade que furtam ao

diagnosticado paciente mental a possibilidade de ação, de poíesis. A ação do

Sagrado revela num “louco” a possibilidade de ser artista. No operar do

Sagrado o fundar-se de um grego intempestivo. Na Grécia, “o maravilhoso não

é o extraordinário, mas o ordinário. O que provoca espanto e admiração é

deixar o Ser ecoar e bruxolear no e através do fazer” (LEÃO, 2010, p. 80).

No Manto há o operar de um empenho que se dedica a re-criar um modo

de ser, e assim re-inventa o perfil de uma fisionomia no transfigurar do paciente

psiquiátrico excluído da sociedade, em artista de renome internacional. Mas

também há questão maior, que se firma no diálogo que o Manto enquanto obra

propõe: a consciência humana da finitude. Limite e não-limite. Morremos desde

o nosso primeiro instante de vida. A grande dor se faz da consciência que

temos disto. Esse é o destino humano. A cada destino entrecruzado, um nó: o

dar-se das relações humanas – familiares, pessoais, sociais. Ao homem o

destino. A cada nó, possibilidades. Redes: menores, maiores. Os fios e os nós

otimizam a tessitura da rede, mas sua condição de existência é o dar-se do e

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no vazio. Sem vazio não há rede. A toda e cada rede (menor, maior) um

mesmo vazio, ainda que não possamos aferir. Muitas réguas, todas

insuficientes. Santos, loucos, artistas, cientistas, lavradores, poetas: Homens

Humanos: todos doação de um mesmo vazio. No entanto enquanto alguns se

agarram aos nós, outros se lançam, saltam sobre o abismo. Entrega, renúncia.

Aquele que renuncia faz o nada aparecer. O poeta sabe: “perder o nada é

empobrecer” (BARROS, 2002, p.163).

O Manto. No Avesso, o corpo-alma. Talvez a responsabilidade poética

não seja mesmo transmitir ou significar, mas questionar e no questionamento

abrir o caminho da sutura, re-estabelecimento do humano do e no homem. O

que nos difere dos demais animais, além da capacidade de sonhar, é o que

antes já afirmamos inúmeras vezes: a consciência da finitude. Temos mais

certeza da morte que da própria vida e isso, por vezes, nos esmaga. Melhor

pensar ser a vida apenas um afago da morte, e ser. Mas há a fome. Fome em

continuar sendo. Mesmo depois de. Para esta fome não há saciedade. Para

aliviar da consciência da morte, possibilidades: a letárgica alienação ou a

renúncia. Bispo faz sua escolha. Ou teria sido escolhido? Nos bordados

cânticos de renúncia, re-anunciam a origem. No que é próprio ao artista Bispo,

fios de fé e delírio criativo se entretecem em diálogo com o indizível. Cada

bordado uma prece. Tudo de belo e precioso é unido na feitura do traje de gala,

para ocasião de suprema honra, quando face ao criador prestará contas,

apresentando o registro de todo agir. A renúncia toma corpo no manto. Re-

anunciar a vida é fundar mundo. Palavras aliviam da fome insaciável de viver-

morrer-viver. Vida perpetuada no nomear.

Olhar o avesso do manto e convocar a lembrança:

[...] como se eu escrevesse um poema sobre o nada e me visse de

repente encarando frente a frente o próprio nada. Deus é uma palavra?

Se for estou cheio dele: milhares de palavras metidas dentro de um

jarro fechado e que às vezes eu abro – e me deslumbro. Deus palavra é

deslumbrador (LISPECTOR, 1999, p. 127).

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Bispo ansiava viajem, mas havia a necessidade: EU PRECISO DESTAS

PALAVRAS ESCRITA. Manuel de Barros já nos disse antes: “este Arthur Bispo

do Rosário acreditava em Nada e em Deus”. No avesso do manto o registro:

nomes bordados a serem lembrados diante do Criador. Em todo sistema há o

desfigurar do homem. Neles há a generalidade, a ausência dos nomes. Apenas

sujeitos a desempenharem funções, papéis. Há um quase anonimato daqueles

que os compõem. Bispo, homem-artista, fora dos sistemas – seja os da arte,

seja da sociedade – percebe a essência do ser-com, e nomeia: ... ... Aracy

Rodrigues Arruda, Helena, Dagmar... ... ... ... Cacilda, Heloisa Sampaio, Célia,

Luisa, Josefa, Eugênia, Laura, Antonieta, Maria de Lurdes, Dalmira, Regina...

... ...Afetos.

O Manto, vestindo o sagrado os acolhe no verso. Nos bordados, o

nomear. Se a alma fosse o avesso do corpo, o avesso dos feitos haveria de ser

os afetos. No entanto, sabemos não haver a dicotomia alma-corpo se

pensamos Corpo para além do dar-se da carne, da vida enquanto bios. Não há

alma e corpo, mas sim homem-corpo em um único ato, ou seja, eK-sistência.

No que se refere aos afetos, ouçamos uma vez mais o que nos diz Gilvan

Fogel:

Ao se falar de afeto, costuma-se de imediato representar ou imaginar o homem, assim como o mundo e todas as coisas, como algo já dado, constituído, e que o homem o sujeito, seria dotado do poder ou da capacidade de ter afetos, de ter sentimentos ou humores. Assim, quando se relaciona coisa, algo, enfim, realidade a humor ou afeto, pensa-se, imagina-se subsequentemente o homem, enquanto sujeito, tendo afetos ou humores, os quais somados, acrescentados às coisas, à realidade e, então, as coisas ou a realidade como um todo passam a ter e ser também afetos, humores e sentimentos. Os afetos e os humores seriam projetados, introjetados às coisas pelo homem, pela subjetividade ou pela emocionalidade humana. Esta de modo geral é uma maneira psicológica, antropológica ou antropocêntrica de se entender e de se mal entender humor, afeto, realidade e, sobretudo, o próprio homem (FOGEL, 2010, p. 9).

Na verdade precisamos compreender, com a ajuda do pensamento de

Gilvan Fogel, que a questão do afeto não gira em torno do homem numa

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relação sujeito-objeto. O homem não tem afetos, o homem é afeto, as coisas

são afeto. A vida, a existência que é desde sempre in-sistência, pois

encarnada, encorpoada, já seria sempre humorada, sempre sob a forma de um

afeto, a que podemos chamar também interesse. Afeto então seria o tônus ou a

determinação da vida, do real. Afeto é corpo, que é antes de mais nada

experiência, história, ação, drama (FOGEL, 2010).

Nos nomes tatuados no corpo-afeto do manto: mulheres. Guardiãs do

mistério da vida. Do experienciar. Do dissimular entre aberto e fechado da

existência. Vida-mãe, morte-amante? No verso-avesso da obra o nomear em

hábeis bordados é um reafirmar da importância do vocábulo tékhne. A palavra

tékhne não nomeia o fazer, mas sim o saber, sendo o saber, um saber ver. “A

visão suporta e guia toda a explosão da vida humana na totalidade do real e no

universo das realizações” (LEÃO, 2010, p. 83).

Na tékhne, acontece assim um esforço do homem por si mesmo e pelos outros. Neste sentido, a tékhne guia e fundamenta toda lida do homem com qualquer real, seja como real que já se dá e oferece por si mesmo, seja como real, que resulta da ação de uso e produção, de cultivo e cuidado de suas mãos. Mas em todos estes modos de ser não é nunca o fazer e operar a manufatura e operação o que, na tékhne, desencadeia e carrega o processo todo de desempenho, mas é a evidência da visão (Ibidem.).

Bispo seria então um visionário? No operar da arte em Bispo temos

esse movimento de vidência que constitui o cenário de existência do homem

que se reconhece imerso em um mundo, cujo sentido é o tempo. Os artistas

não são artistas por obra e graça de sua própria vontade ou de suas mãos,

mas sim, ainda segundo nos diz Carneiro Leão (Op. cit.), pela eclosão

luminosa de aparecer e desaparecer da phýsis nas relações do homem

consigo mesmo e com todos os outros seres. O Ser é destino universal. Mas

cada um de nós é sempre movido por um próprio, um ímpeto de realidade. E

esse ímpeto, ou entusiasmo, ou ainda o que alguns chamam inspiração, é tão

profundo que sua potência é a de Eros, força criadora. Em tudo que é e está

sendo há a presença desta força, que é expansiva e alavanca a superação. É a

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busca que não cessa, é necessidade de união. Por essa necessidade, que é

movida por esta força expansiva difusora, é que toda união é morte.

Dando voz ao personagem [dos mais intensos: Ângela em Um sopro de

Vida] Clarice Lispector, nessa derradeira obra, talvez pela consciência da

proximidade da própria morte, discute a finitude. Diz escrever como quem tenta

salvar a vida de alguém. “Provavelmente a minha vida”, afirma. Vai mais além

quando diz: “Viver é uma espécie de loucura que a morte faz”.

No Manto da Apresentação, a mais bela poesia manifestada em verso e

anverso, distinguimos muitas questões, entre elas a própria condição de ser do

artista, (consciência?) do fato de que entre as possibilidades que vigem no Ser,

está o reconhecimento de que há na natureza uma sabedoria que o faz, depois

de criado [enquanto aquele que se deixa tomar pelas questões], mover-se

sempre, sem descanso – ainda que desconheça pelo quê. Há apenas uma

vaga intuição. Algo como a insistência de um saber, que em verdade é tão

somente o reconhecimento de um não-saber. A questão que o move e se

apresenta como a mola propulsora de todo criar, constituinte de nossa

humanidade é a consciência de viver-morrer. Vida-morte, suplementares ou

complementares no movimento poético-circular da existência? A morte faz

parte da vida ou seria a vida a fazer parte da morte? Uma imbricando outra.

Contudo, haveremos de experienciá-las cada qual ao seu tempo. No cessar

desta, aquela. À parte isto, o Nada. Nada que é princípio-fim

Da morte ouço dizer...

Vida-Morte é espera. Eks-pera.84

A vida é limite do não-limite que é a morte.

Da vida, buscamos a piedade de um sinônimo:

Viver é Criar.

84

Do grego: “Peras diz em si o que no eclodir chega ao limite. Já o –eks indica o que já desde sempre dá o impulso para fora, para além, isto é, o não-limite” (CASTRO, Presença e Forma. Disponível em http//travessia poética.letras.ufrj.br). A vida é o limite do não-limite, que é a morte.

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7. Arremate - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Observamos os fios e realizamos análise de nosso percurso. Mas não

aquela análise que rege o horizonte dos conceitos, mas outra, a que Bispo

conheceu e liberta. Heidegger nos diz que o uso mais antigo da palavra análise

data da Grécia de Homero, no segundo livro da Odisseia. Análise nomearia o

fazer noturno de Penélope, ou seja, destecer a trama que tecera durante o dia.

Análise em grego diz do desfazer de uma trama, mas também diz soltar,

libertar, abrir as algemas, podendo significar até o desmontar os pedaços de

uma construção.

No destecer da trama do uniforme para o bordado, a análise o conduzirá

à sanidade de re-conhecer-se como ser-no-mundo. O fio azul a guiá-lo pelo

labirinto escuro em direção a Luz da criação o conduziu à obra, que já é desde

sempre saúde. Neste Madras, muitos fios: de sensações, sentimentos,

crenças, sagrações, sanidade, loucura e fé. Todo um oceano de vivências que

se entrelaçam e tecem o próprio de Bispo, que ao lançar mão sobre o tecido

essencial de sua existência funda mundo. No artista o devir alfaiate: no cortar e

coser, a obra. No conjunto das obras, a poética constitui tecido. Sobre este, em

metacostura, riscamos, cortamos, cosemos e descosemos o pensamento

diante das inúmeras questões.

No arremate não há pretensões de amarras – no avesso da escrita,

linhas que permanecerão soltas, posto que em arte e pensamento toda costura

não excede a condição de alinhavo.

A Arte como enigma. Quanto mais nos aproximamos, mais foge de nós;

tanto mais nos afastamos, mais nos avizinhamos de suas cercanias, em

inesgotável oximoro: “fugir para”. Enquanto Penélope faz sua análise, Ulysses

navega. Assim seguimos, nesse tempestuoso oceano, na condição de

navegantes entre as muitas fragatas bordadas, atraídos por aventura que

somos incapazes de recusar, e que tão pouco poderemos levar a cabo. Não há

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pretensões de encontrar porto seguro, ilha onde ancorar; seguimos desejosos

apenas de termos sido capazes de avistá-la através do nevoeiro. Saber de sua

existência. No mapa impreciso que nossa torta cartografia insiste em esboçar,

apenas o fantasma de um “X” não assinalado, a garantir a inacessibilidade às

terras vagamente avistadas e novamente perdidas no incansável movimento de

velar-se e desvelar-se da verdade, que constitui a topologia do real.

Seguimos. Quase à deriva. Sempre amantes do vento...

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8. Bordado - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Fragmentos sagrados e profanos urdiram este Madras – cortar, coser e

descoser. Um traje, um manto – a escrita.

No acúmulo de toda sorte de crenças, por vezes, na descrença – fé,

pensamento, poesia – sacralidades. A Arte, o Sagrado, aproxima-nos menos

de Deus que de nossa humana condição. Sagração dos relatos, vivências

perenes em obra e todas as possibilidades de sermos, em movimento:

angústias, alguma certeza e dúvidas atrozes conduzem a questão que se

estabelece paradoxal: eterna finitude. Seguimos. Santos em nossa

humanidade poética – na errância de vivermos o que julgamos vida, e

morrermos o que entendemos morte. Para cada milagre cotidiano e suas

particularidades – que em Arte se fazem eternos, universais – um ex-voto e

uma prece:

[...] Porque não espero mais voltar Que estas palavras afinal respondam Por tudo o que foi feito e que refeito não será E que a sentença por demais não pese sobre nós

Porque estas asas de voar já se esqueceram

E no ar apenas são andrajos que se arqueiam No ar agora cabalmente exíguo e seco Mais exíguo e mais seco que o desejo Ensinai-nos a estar postos em sossego.

Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.

(Fragmento de Quarta-feira de cinzas - T.S.Eliot)

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9. Chuleio - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Ilustração 1

Manto da Apresentação (Anverso)

Tecido, linha, papel e metal. 118,5 x 141,2 cm

Detalhe

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Ilustração 2

Verso (ou avesso) do manto

Bispo trajando o Manto

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Ilustração 3

ORFAs

Ilustração 4

Bispo trajando o fardão Eu vi Cristo ao lado de uma das vitrines

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Ilustração 5

Canecas

Assemblagem

Madeira, alumínio, metal, papel, PVa e tecido. 110 x 47 cm.

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Ilustração 6

Roda da Fortuna, Bispo do Rosário. Madeira, metal, plástico e PVA. 67x 29 x 51 cm.

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Ilustração 7

Vinte e um Veleiros, Bispo do Rosário

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Ilustração 8

Daniel Spoerri: Instalação

Daniel Spoerri: Chair

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Ilustração 9

Obras de Arman

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Ilustração 10

Roda de Bicicleta 1913/1964 – Marcel Duchamp

Ilustração 11

Fonte 1917/1964 – Marcel Duchamp

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Ilustração 12

Parangolé – Hélio Oiticica

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