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    Macunaíma

    (Mário de Andrade)

    1. BIOGRAFIA

    Mário de Andrade nasceu na cidade de São Pau-lo em 9 de outubro de 1883. Não se mostrou um bom

    estudante, era rebelde edistraído. Entretanto, ogosto pelos estudos,

     pr incipalmente pelamúsica, foi se manifes-

    tando. Estudou no Con-servatório Dramático eMusical, onde depois foi

     professor de história damúsica. Foi, ainda, profes-sor particular de piano.

    É considerado um ar-tista completo, uma vezque, além da música, de-dicou-se à literatura, à

     pesquisa do folclore e aos ensaios sobre cultura po- pular e literatura. Escreveu crítica literária, poesia,contos, romances, ensaios, uma gramática e um dici-onário de música popular.

    Estreou na literatura em 1917 com Há uma gota de sangue em cada poema. Em 1922, participou da Sema-na de Arte Moderna, tendo sido um de seus líderes maisatuantes. Foi um modernista convicto, tanto na formaquanto nas idéias. Entre 1934 e 1937, dirigiu o departa-

    mento de Cultura de São Paulo, tendo fundado a Disco-teca Pública e promovido o Primeiro Congresso daLíngua Nacional. Foi ainda um dos fundadores da USPe criou a Biblioteca Municipal, que hoje leva seu nome.

    Com a Segunda Guerra Mundial e os horrores daditadura do Estado Novo, vieram as perseguições con-tra Mário e sua grande desilusão com o mundo e comas pessoas. Seu repúdio ao fascismo aproximou-o daesquerda, do Comunismo. Desgastado pelo trabalhoe por uma angústia de natureza existencial, Mário iso-lou-se em sua casa, onde produziu seus últimos tra-

     balhos e faleceu de um ataque cardíaco em 25 defevereiro de 1945.

    2. INTRODUÇÃO

     Macunaíma é um dos primeiros romances moder-nos brasileiros que apresentam um espírito altamenterevolucionário nos aspectos formais ou temáticos,com linguagem calcada em neologismos e na fala popular. Seus aspectos formais parecem ultrapassar 

    as conquistas de Oswald de Andrade em  Memórias sentimentais de João Miramar . Mário de Andradeinsere elementos de brasileirismo que ampliam a pro- posta de seu companheiro de geração modernista. Suaobra é o primeiro romance que coloca em prática osobjetivos do  Movimento Antropófago, criado exata-mente por Oswald de Andrade.

     Macunaíma é um romance ou novela classifica-do pelo subtítulo dado pelo próprio autor “o heróisem nenhum caráter”. Mário procurou representar no anti-herói, epíteto do herói cômico, um ataque àsdesvirtudes nacionais e se aprofundou nos defeitosque reconhecia no homem brasileiro. A obra mistu-ra elementos como o fantástico, o mitológico, o len-dário, o histórico e as crendices populares,reelaborando-os por meio de uma linguagem queatende às perspectivas da geração desbravadora de1922, abrasileirando a língua e recriando-a com ne-ologismos, populismos e regionalismos homogene-amente reunidos.

    Desse modo, Macunaíma traduz o espírito revo-

    lucionário dos autores da geração de 22. Vejamosalgumas palavras do próprio autor sobre o caráter experimental de suas obras: Minhas obras todas na

     significação verdadeira delas eu as mostro nem mes-mo como soluções possíveis e transitórias. São pro-curas. Consagram e perpetuam esta inquietação

     gostosa de procurar. Eis o que é, e o que imagino será toda a minha obra: uma curiosidade em via de satisfação. Macunaíma é uma experiência literária bastante original, tanto na forma, como a técnica nar-rativa e a linguagem, quanto no conteúdo, como a

    maneira de conceber o assunto, atingindo a comple-ta renovação pretendida pelo Modernismo.

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    A obra foi escrita na chácara Pio Lourenço, pertode Araraquara, de 16 a 23 de dezembro de 1927.O trabalho nasceu de um jorro, apesar de o autor ter sistematizado lendas, superstições, frases feitas, pro-vérbios etc. Escreveu sete cadernos, que depois fo-ram reduzidos para dois.

    A difícil classificação é outro ponto que merecedestaque. Seria um romance ou uma novela? O pró-

     prio Mário classificou seu texto como rapsódia, umavez que, à maneira da rapsódia musical que misturatemas livres a músicas populares, apresenta grandevariedade de motivos populares. A tradição da rapsó-dia remonta primeiramente aos antigos rapsodos gre-gos, que fundiam letras e solfas populares, depois ao próprio nascimento dos velhos romances versifica-dos, as canções de gesta. Se tomarmos o sentido maisantigo da palavra romance, como façanhas de umherói, podemos considerar Macunaíma como roman-ce. Como as epopéias medievais, a obra apresenta

    aspectos de sobre-humanidade e o maravilhoso, estáfora do tempo e do espaço.

    3.ANÁLISE DO ENREDO

    I. Macunaíma

    No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói denossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.1 Hou-ve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o

    murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu umacriança feia.2 Essa criança é que chamaram de Macunaíma.3

    Macunaíma passou seis anos sem falar nada alémde: “Ai! Que preguiça!”. Quando lhe mostravam di-

    nheiro, “dandava”4 para ganhar vintém. Fazem comele uma simpatia, dando água de chocalho,5 e ele co-meça a falar. Macunaíma gosta muito de brincar 6 comas mulheres. Macunaíma tem dois irmãos: Jiguê eMaanape. Macunaíma pede à mãe que o leve para pas-sear, mas ela está sempre trabalhando e não tem tempo para ele. Assim, a mulher de Jiguê acompanha Macu-naíma aos passeios. Toda vez que Sofará7 coloca Ma-

    cunaíma no chão, ele se transforma num príncipe e osdois brincam.8 Quando Jiguê volta da caça, descobreque a mulher não trabalhou e bate nela. Jiguê sai paracaçar anta com corda de fibra de carauá.9 Macunaíma pede corda, mas não ganha. Depois de muito choro,não deixando ninguém dormir, Sofará faz uma corda para ele. Macunaíma manda o pai-de-terreiro fazer fei-tiço. Depois disso pede à mãe para passear. Sofará saicom ele, que arma a corda para pegar anta e passa atarde inteira brincando com a cunhada. A armadilhade Macunaíma pega uma anta. Jiguê divide a anta, mas

    dá só as tripas10

     para o herói, que jura vingança. Nodia seguinte, Macunaíma e Sofará passam a tardeno mato brincando. Jiguê descobre tudo. Dá uma surraem Macunaíma, que mastiga uma raiz e fica curado.Jiguê devolve a companheira ao pai. Macunaíma di-verte-se decepando cabeça de saúva.11 Urina na mãe, já que a sua rede fica em cima da dela.

    II. Maioridade

    Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxandopela mão uma cunhã.12 Era a companheira nova dele e

    chamava Iriqui.13

     Ela trazia sempre um ratão vivo escondi-do nas maçarocas14 dos cabelos e faceirava muito. Pinta-va a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãspassava coquinho de açaí nos beiços que ficavam total-mente roxos.15

    1 Aqui temos uma referência antropológica interessante. Como pode um filho de índia ser negro? Basta nos lembrarmos que os negrosfugiam para os quilombos e raramente conseguiam levar junto as mulheres, evidentemente mais fracas, daí raptarem índias e manteremcom elas relações, o que resultava no nascimento de cafuzos. Por outro lado, Von den Sateinem refere-se a uma tribo de índios tapanhu-mas, que eram negros e viviam na confluência dos rios Tapajós e Arinos.2 O nascimento de Macunaíma já demonstra sua tendência a anti-herói, descendente direto dos pícaros das novelas espanholas, aexemplo de D. Quixote de La Mancha  de Cervantes. Macunaíma é resultante de uma fusão racial: índio e negro, portanto cafuzo.3 Mário de Andrade colheu o nome do protagonista e de seus irmãos na obra de Koch-Grünberg. O nome foi empregado pelos missioná-

    rios para traduzir o de Deus, nos catecismos. A decomposição da palavra gera falsa interpretação, porque significaria “o grande mau”.Mas o anti-herói não é de todo mau, encarnando em vários momentos atitudes boas.4 Repetição da expressão popular: “dandar para ganhar vintém”.5 Simpatia nordestina.6 O verbo ganha aqui o sentido conotativo de relações sexuais.7 Mulher de Noé, segundo a mitologia indígena, que repovoou a terra depois do dilúvio.8 Essa transformação faz parte de uma lenda.9 Planta bromeliácea (Neoglaziovia variegata , Mez.), de fibras têxteis, também chamada caroá-verdadeiro, carauá, caruá, croá .10 Essa passagem refere-se a uma lenda do jabuti e da onça, divulgada por Couto de Magalhães.11 Em Macunaíma , em vários momentos encontramos referências a formigas.12 Rapariga ou mulher indígena. (Do tupi-guarani)13 Figura mitológica Caxinauá. Seu nome significa “foi também”. Se analisarmos o final do capítulo notaremos que ela foi também com osirmãos. M. Cavalcanti Proença observa que Iriqui foi também amante de Macunaíma, depois de Sofará.14 Rolo de cabelo encrespado a ferro.15 No Pará, as moças que manipulam o coco de açaí ficam com as mãos roxas e, esfregando limão, o roxo transforma-se em vermelhovivo. Mário de Andrade atribui esse processo a Iriqui.

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    Depois que comeram a anta, a fome tomou contado mocambo, porque Maraguigana16 mandara umaenchente grande para punir Maanape, que matou um boto para comer. A enchente destruiu o milharal.Macunaíma inventa que viu timbó17 numa grota dorio. Os irmãos sofrem na lama para acharem o timbóe os peixes.  E pululavam se livrando dos buracos,aos berros, com as mãos para trás por causa dos can-

    dirus safadinhos querendo entrar por eles.

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     Macu-naíma fingia procurar também, mas não saía do lugar.De tardezinha, os manos vieram tiriricas19  buscar Macunaíma. Este teve medo20 e inventou uma histó-ria de que timbó já foi gente e que resolveu sumir. Osmanos admiraram a inteligência do menino.

     Na maloca, Macunaíma pediu à mãe que fechas-se os olhos e perguntou: Quem leva nossa casa práoutra banda do rio lá no teso, quem que leva? Trans- porta a casa para o lado seco do rio, onde havia far-tura de comida. A mãe colhe muitas bananas para

    levar para Jiguê, Maanape e Iriqui. Macunaíma ficacom raiva e pergunta novamente para a mãe, fazen-do a maloca voltar para o outro lado. De raiva, amãe carrega Macunaíma na cintura e deixa o meni-no num capoeirão chamado Cafundó do Judas.21

    A velha botou o curumim no campo onde ele não podia mais crescer e falou: — Agora vossa mãe vaiembora. Tu ficas perdido no coberto e podes cres-cer mais alto.

    Abandonado, Macunaíma viu-se perdido, mas nãochorou porque não havia ninguém para ouvi-lo. Ma-

    cunaíma encontrou o Currupira e pediu comida. Cur-rupira deu carne moqueada da própria perna paraMacunaíma e ensinou o caminho errado para poder comer o curumim.22 Macunaíma, por preguiça, mudao caminho, seguindo em linha reta. O Currupira montanum veado e chama a perna, que responde da barrigade Macunaíma: Que foi? Macunaíma foge, mas aca- ba bebendo água suja de uma poça e vomita o pedaço

    da perna do Currupira, que continua a responder dochão. Macunaíma aproveita para fugir.

    Macunaíma encontra uma cutia fazendo farinha.23

    Pede comida. A cutia dá um banho em Macunaímacom manipueira,24  água envenenada de lavagem demandioca, mas esquece de passar na cabeça do herói.Assim, o corpo do herói desenvolve-se, mas a cabeçafica rombuda e com carinha enjoativa de piá.25 Macu-

    naíma volta para casa com a cara amarrada e fala paraa mãe que sonhou que caiu seu dente. A velha comentaque aquilo é morte de parente.26 Macunaíma fala quea mãe vive só mais uma Sol , só porque o pariu.

     No dia seguinte, depois que todos saíram, o qualvira formiga quenquém e morde Iriqui para fazer fes-ta nela. Iriqui não gosta e atira Macunaíma longe. Ma-cunaíma vira um pé de urucum.27  Iriqui colhe assementes para enfeitar-se. Macunaíma vira gente e brinca com Iriqui. Jiguê não gostou da traição, masacabou ficando quieto, porque Macunaíma tinha vi-

    rado homem troncudo e viu a fartura que havia namaloca. Deu um suspiro catou os carrapatos e dor-miu folgado na rede.

     No outro dia, depois de brincar com Iriqui, Macu-naíma atravessou o reino encantado da Pedra Bonitaem Pernambuco e quando estava chegando na cida-de de Santarém topou com uma viada parida. A veadaescapuliu. O herói prendeu então a cria para atrair amãe. Quando a veada chegou perto, Macunaíma ati-rou a flecha e descobriu que quem estava morta era a própria mãe.28 Tinha sido uma peça do Anhanga29[…]

    Os três irmãos choram muito, bebem oloniti e co-mem carimã.30 Enterram a mãe debaixo de uma pe-dra, num lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape,que era catimbozeiro de marca maior, grava um epi-táfio. Macunaíma cumpriu o jejum se lamentando.A barriga da mãe foi inchando, inchando, e no fimdas chuvas virou um cerro.31 Os três irmãos e Iriquideram-se as mãos e partiram.

    16 Espírito que anunciava a morte, segundo padre Simão de Vasconcelos.17 Denominação comum de plantas que têm propriedades tóxicas e são empregadas para envenenar o peixe.18

     Tipo de peixe que costuma penetrar nos orifícios acessíveis do corpo. Costuma entrar na uretra e não pode voltar por causa dasbarbatanas. Mário sugere a entrada pelo ânus das personagens, daí taparem com as mãos.19 Mesmo que bravos.20 A covardia do herói é uma constante na obra.21 Lugar nenhum.22 Aproveitamento literário de uma lenda amazonense.23 Mesma lenda do Currupira, a cutia é quem ensina o caminho para os meninos que fugiam do Currupira.24 Líquido venenoso, extraído da mandioca ralada.25 Índio jovem; menino.26 Crença popular.27 Considerado símbolo de amor.28 Mário de Andrade aproveita-se de uma lenda freqüente sobre a criação.29 Segundo a mitologia indígena, Anhanga é uma espécie de espírito ruim, já que na cultura indígena não existe propriamente a figura do diabo.30 Mandioca amolecida por fermentação, na água, e com a qual se fazem bolos; farinha seca e fina, de mandioca, para caldos; bolo de

    farinha de mandioca.31 Outeiro; colina; monte pequeno e penhascoso.

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    III. Ci, a mãe do mato

    Uma feita os quatro iam seguindo por um caminhono mato e estavam penando muito de sede, longe dosigapós e das lagoas. Não tinham nem mesmo umbu32

    no bairro e Vei, a Sol, esfiapando por entre a folhagemguascava33 sem parada o lombo dos andarengos34. Su-avam como numa pajelança em que todos tivessem be-suntado o corpo com azeite de piquiá35, marchavam.De repente Macunaíma parou riscando a noite do si-lêncio com um gesto imenso de alerta. Os outros esta-caram. Não se escutava nada porém Macunaímasussurrou:

     — Tem coisa.

    Iriqui espera sentada nas raízes de uma sumaú-ma e saíram procurando. Macunaíma encontrou umacunhã dormindo. Era Ci, a Mãe do Mato.36 Macu-naíma percebeu pelo peito direito seco que se trata-va de uma das mulheres da tribo da Lagoa Espelhoda Lua, que viviam perto do Rio Nhamundá.37 Oherói atirou-se sobre a cunhã para brincar, mas Cireagiu com uma lança tridente, batendo muito nele.

    Macunaíma gritava para os irmãos para que o aju-dassem: Me acudam que sinão eu mato! Os irmãosconseguem segurar Ci, que é possuída por Macuna-íma. Nesse momento, surgem araras, tuins, periqui-tos e muitos papagaios para saudar Macunaíma comoImperador do Mato Virgem.

    Os três seguiram com a nova companheira. Atra-vessaram a cidade das Flores, salto da Felicidade,a estrada dos Prazeres e chegaram no capão MeuBem, que fica na Venezuela.38  Foi de lá que Macu-naíma imperou sobre os matos misteriosos, enquan-

    to Ci comandava nos assaltos as mulheresempunhando txaras de três pontas. Macunaíma passa todo o tempo bebendo e cantando ao som da

    viola, enquanto Ci guerreia e chega cansada, mas pronta para inventar novas brincadeiras. QuandoMacunaíma estava muito bêbado para brincar oudormia no meio da brincadeira, Ci passava urtiganas partes do herói e dela.  E os dois brincavamque mais brincavam num deboche de ardor prodi-

     gioso.  Depois de seis meses, Ci deu a luz a ummenino encarnado.39 Vieram mulheres da Bahia,do Rio Grande do Norte e da Paraíba para darem aCi um cordão rubro cor de mal, tornando-a mestrado cordão encarnado em todos os Pastoris de Na-tal.40 Macunaíma ficou de resguardo durante o mês,mas recusou-se a jejuar.41 O menino tinha a cabeçaachatada. Macunaíma achatava ainda mais baten-do nela dizendo que era para o filho crescer de- pressa para ir a São Paulo ganhar muito dinheiro.42

    As icamiabas queriam bem ao menino. Puseram jóiasnele para que crescesse rico, mandaram buscar umatesoura na Bolívia e a enfiaram aberta debaixo dotravesseiro dele para que Tutu Marambá não chu- passe o umbigo do menino e o dedão do pé de Ci.43Tutu Marambá veio e chupou enganado o olho datesoura.44

    Uma noite apareceu na maloca um mocho jucuru-tu.45 Macunaíma teve medo, bebeu demais e dormiua noite inteira. Chegou a Cobra Preta e chupou o úni-co seio de Ci. O menino chupou o seio da mãe nooutro dia e morreu envenenado. Colocaram o anjinhonuma igaçaba,46 esculpida com forma de jabuti paraos boitatás47 não comerem os olhos,48 e enterraram-no no centro da taba.49 Depois do enterro, Ci presen-

    teou com uma muiraquitã50 famosa tirada de seu colar.Depois subiu para o céu por um cipó. Ci transforma-se na estrela Beta do Centauro.51 No dia seguinte,

    32 Planta que acumula água e é utilizada para matar a sede dos sertanejos.33 Fustigava.34 Mesmo que andantes, caminheiros, andarilhos.35 Mesmo que pequiá, pequi, planta da família das apocináceas. Muito utilizada em Goiás durante o cozimento do arroz e para fazerlicor.36 Ci “pertence à condição das mulheres originárias, do começo do mundo, como Sofará e Iriqui ”.37 Referência a essa tribo de mulheres sozinhas pode ser encontrada em Barbosa Rodrigues. A lenda conhecida atribui a essas índiasguerreiras o fato de raptarem homens de outras tribos e, depois de copularem, matarem todos eles, bem como queimarem o seio direitopara utilizar melhor o arco e a flecha. São popularmente conhecidas como índias amazonas.38 O roteiro da viagem é comum nos contos populares como elementos de indeterminação espacial.39 Filhos do relâmpago, segundo lenda caxinauá.40 Referência aos pastoris nordestinos, festas populares da época de natal.41 Costume daqueles que levam ou usam muiraquitã. Entre os chamacocos o pai também jejua por ocasião do nascimento do filho.42 Referência a uma espécie de chiste popular, segundo o qual os pais nordestinos batem carinhosamente na cabeça dos filhos erepetem a frase usada por Macunaíma para justificar a cabeça chata dos nordestinos.43 Crendice popular, já que é impossível a uma cobra sugar.44 Simpatia popular.45 Ave (Bubo magellanicus , Gm.) da família dos bubonídeos. (Do tupi-guarani)46 Vaso de barro, pote utilizado para água ou como urna funerária.47 Fogo fátuo.48 Mário de Andrade fundiu aqui uma lenda gaúcha: o boitatá, comedor de olhos.49 Costume comum entre os índios de várias tribos, que enterram seus mortos no centro da taba.

    50 Artefato de jade, encontrado no Baixo Amazonas, ao qual atribuem qualidades de amuleto.51 Lenda comum entre algumas tribos, Ci oferece a muiraquitã ao homem que a fez mãe e sobe ao céu, transformando-se em estrela.

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    Macunaíma visita o túmulo do filho e vê que nasceuuma plantinha, que é o guaraná.52

    IV. Boiúna Luna

    No outro dia bem cedo o herói, padecendo saudadesde Ci a companheira pra sempre inesquecível, furou o bei-ço inferior e fez da muiraquitã um tembetá.53 Sentiu que iachorar. Chamou depressa os manos, se despediu dasicamiabas e partiu.

    Gauderiaram54

     gauderiaram por todos aqueles matossobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda par-te ele recebia homenagens, era sempre acompanhado peloséquito de araras vermelhas e jandaias.55

    Macunaíma trepava num açaizeiro56 e contempla-va no céu a figura de Ci chamando-a de “marvada”.Invocava, então, os deuses cantando:

    Rudá,57 Rudá!…Tu que secas as chuvas,Faz com que os ventos do oceanoDesembestem por minha terra

    Prá que as nuvens vão-se emboraE a minha marvada brilheLimpinha e firme no céu!…

    Depois chorava encostado no ombro de Maana- pe, que invocava Acutipuru o Murucututu o Ducucu58

     para não chorar e fazer Macunaíma pegar no sono.Jiguê soluçava e atiçava o fogo para Macunaíma nãosentir frio. No outro dia, recomeçavam a caminha-da. Encontraram uma cascata chorando sem parada.A cascata era Naipi, filha do tuxáua Mexê-Mexoiti-qui,59 que na fala dela queria dizer Engatinha-En-

    gatinha. Fora uma bonita cunhatã que lutava adentadas com os índios que queriam brincar comela. A tribo dela era escrava de boiúna60 que morava

    num covão em companhia de saúvas. Quando os ipêsdavam flor, o monstro escolhia uma virgem paradormir com ela na cova cheia de esqueletos. Quan-do o corpo de Naipi menstruou, a boiúna escolheu-a. Naquela mesma noite, Naipi e Titçatê61 dormiram juntos, depois de o rapaz encher a boca dela comflores quando ela foi mordê-lo. Fugiram de canoa.Quando a boiúna descobriu, foi atrás e transformou

     Naipi numa cachoeira e Titçatê num mururê de floresarroxeadas. A boiúna mora embaixo da cachoeira.62

    Macunaíma promete matar Capei. Esta saiu da águae cuspiu uma nuvem de vespas. Macunaíma livrou-sedas vespas. A boiúna deu um golpe com a cauda, masMacunaíma abaixara-se por causa de uma picada deformiga tracuá e o rabo passou por cima, indo bater nacara da boiúna. Esta deu um bote na coxa de Macunaí-ma, mas o herói deu um afastadinho com o corpo, agar-rou no rochedo e decepou a cabeça da bicha, que veio beijar os pés do herói com olhos docinhos. Macunaíma,

    não entendendo a intenção, fugiu com os irmãos.A cabeça foi atrás, dizendo “vem cá siriri,63 vem cá”.Sobem num pé de bacupari.64 A cabeça pede que lheatirem frutos. Jogam no rio, mas a cabeça não vai bus-car. Jogam mais longe e, enquanto a cabeça vai buscar,eles fogem. Na corrida encontram o Bacharel de Ca-nanéia,65 passam pelos sambaquis66 de Caputera e Mor-rete. Entram num rancho e fecham bem a porta. Sóentão Macunaíma nota que perdeu o trebetá,67 mas osmanos não o deixaram sair para procurar. A cabeça bateu na porta, mas eles não abriram. A cabeça resol-

    veu que viraria lua e pediu ajuda para uma carangue- jeira, que afirmou que o sol derreteria seu fio. A cabeça pediu para os xexéus68 se juntarem e a noite ficou es-

    52 Lenda entre os maués, segundo a qual o guaraná nasce do corpo de um menino morto por Jurupari, invejoso de sua bondade.53 Ornamento labial indígena.54 Andar errante, de casa em casa.55 As aves cobrindo o sol para que o herói viajasse na sombra, teria acontecido com o padre Anchieta segundo o padre Simão deVasconcelos.56 Planta do açaí, que dá frutos roxos e muito apreciados principalmente no Nordeste e Norte.57 Deus do amor, que possui uma serpente para reconhecer a virgindade das donzelas.58

     Deuses indígenas que controlariam o sono.59 Personagem de uma lenda dos índios caxinauás.60 Duende noturno dos rios, embarcação mal-assombrada, mãe d’água. Aqui representada por uma grande cobra.61 Nome de um guerreiro caxinauá.62 Entre os Juruparis, há uma tradição de que as donzelas não devam ser seduzidas antes que a lua as deflore. A boiúna irá transformar-se depois em lua. Capei é a lua da mitologia taulipangue. A posse da lua sobre as virgens daria origem à menstruação, segundo lendaPiripirioca.

    Segundo a tradição, em várias narrativas é comum a existência de uma cobra grande nas cachoeiras, o que impede a travessia dosque têm medo.63 Mesmo que saci. Em vários momentos, notamos que Macunaíma tem qualidades de saci. O trecho falado pela boiúna faz parte de umcanto infantil de roda.64 Árvore frutífera.65 Figura histórica do período de colonização, mas sem dados suficientes para ser identificado.66 Montes de conchas encontrados às margens dos rios.67 Mesmo que muiraquitã.68 Ave da família dos icterídeos (Cacicus cela , Lin.), também chamada japim  e japi .

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    cura. Mas ninguém enxergaria os fios dela. A cabeçafoi buscar um cuitê69 de friagem nos Andes e mandou aaranha despejar uma gota a cada légua e meia para o fio branquear de geada.70 A cabeça despede-se, dizendo quevai para o céu.

    Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiúnaCapei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comi-do e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre

    a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fiogeado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna,mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu.Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio denoite.71

     No outro dia, os três foram procurar a muiraquitã.Perguntaram para todos os seres vivos, mas ninguémviu nem sabia de nada. Macunaíma chorou por muitotempo, dizendo que amor primeiro não tinha compa-nheiro. O Negrinho do Pastoreio72 ficou com dó deMacunaíma, que rezava sempre para ele e mandou ouirapuru73 contar para ele o que acontecera. Macuna-íma então ficou sabendo que a muiraquitã foi engoli-da por uma tracajá.74  Um pescador apanhou atartaruga, vendeu a pedra para um regatão75 peruanochamado Venceslau Pietro Pietra, homem rico quemorava em São Paulo, a cidade macota76  lambida

     pelo igarapé Tietê. Macunaíma mentiu para os irmãosdizendo que uma lacraia tinha dito toda a verdade paraele e que estava disposto a ir a São Paulo procurar otal Venceslau Pietro Pietra para retomar o tembetároubado. Depois de convidar os irmãos, quase cai emcontradição sobre a lacraia. Macunaíma ri da peçaque estava pregando no passarinho. Os irmãos resol-veram ir com Macunaíma porque ele precisava de proteção.

    V. Piaimã

    No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá77 e deuuma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a cons-

    ciência na ilha de Marapatá.78 Deixou-a bem na pontadum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelassaúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e nopino do dia os três rumaram pra margem esquerda daSol.

    Os três manos partem pelo Araguaia em direçãoa São Paulo. Macunaíma traz sua fortuna em bagosde cacau79 em várias canoas. Os dedos de Macuna-íma estão cheios de verrugas de tanto apontar o céu80

    em direção de Ci. No caminho, os manos encontra-ram uma cova cheia d’água na superfície de umalapa. A cova era a marca dum pé gigante. Como não puderam tomar banho no rio, por causa das piranhas,Macunaíma entrou na água gritando de frio. Lavou-se inteirinho, mas a água era encantada, porque eramarca do pezão de Sumé.81 Macunaíma saiu loiro ede olhos azuis. Jiguê percebeu o milagre e atirou-setambém na água, que “ já estava muito suja da ne-

     grura do herói”. Jiguê ficou cor de bronze novo.Esfregou-se tanto que jogou a maior parte da águaencantada para fora. Maanape segue os irmãos, massó havia água encantada no fundo. Por isso conti-nuou negro e só com as palmas dos pés e das mãos brancas.82 A natureza toda olhava os três manos.Macunaíma ficou com ódio e gritou se nunca tinhamvisto não.

    Os três chegam a São Paulo. A fortuna de Macu-naíma não vale quase nada. E ele não se conformade ter de trabalhar. Pensa em abandonar a empresa evoltar, mas Maanape não o deixa desistir. Entramem São Paulo numa boca-da-noite fria. O bando de papagaios que acompanha o herói despede-se, vol-tando para os matos do Norte. Nas ruas da cidade,Macunaíma lembra-se de Ci. Eh! Dessa ele nunca

     poderia esquecer não, porque a rede feiticeira queela armara pros brinquedos fora tecida com os pró-

     prios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesque-cível.83

    69 Cuieira, fruto da cuitezeira. (Var.: cuietê, cuieté, coité.) Utilizada para vasilhas.70 É interessante destacar o fato de que as aranhas realmente tecem suas teias seguindo no ar para locomoção, o que é biologicamentecomprovado.71

     A lenda da lua é conhecida entre os índios caxinauás. Mário apenas transcreveu, adaptando-a às suas necessidades literárias.72 Crendice popular, segundo a qual o Negrinho do Pastoreio fora um menino escravo morto pelo dono por perder uma égua no pasto.Segundo a crença, ele tem poderes para encontrar as coisas perdidas.73 Pássaro brasileiro ao qual se atribuem virtudes mágicas.74 Espécie de tartaruga de água-doce.75 Indivíduo que compra e vende miudezas, regateando.76 Grande, importante, excelente.77 Canoa.78 Tradição muito conhecida antes de entrar nos seringais, pois sem ela estaria apto a fazer de tudo para conseguir riqueza.79 Eram moedas tradicionais no México entre os astecas. Também na Amazônia serviam de objeto de troca no comércio.80 Crença popular de que apontar para estrelas cria verrugas no dedo.81 Referência a São Tomé, que teria peregrinado antes do descobrimento do Brasil.82 Aproveitamento da lenda das raças humanas para mostrar a miscigenação no Brasil. São três irmãos que se diferenciam, mas conti-nuam irmãos. Segundo a lenda eram três irmãos negros que choravam a morte do pai, e Deus indicou-lhes uma fonte para ficarem

    brancos feito neve. A passagem de Macunaíma  segue exatamente o que ocorreu na lenda.83 Crença indígena de que uma rede tecida com os próprios cabelos da mulher torna-a inesquecível para seu homem.

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    A cidade estava cheia de cunhãs brancas, filhinhasda mandioca.84 Macunaíma escolheu três.  Brincoucom elas na rede estranha plantada no chão,85 numamaloca mais alta86 que a Paranaguara.  Depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado

     sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra elequatrocentos bagarotes.

    A inteligência do herói estava muito perturbada. Acor-

    dou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, dispa-rando entre as malocas temíveis. E aquele diacho desagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho emque dormira […] Que mundo de bichos! que despropósitode papões roncando, mauaris87  juruparis88 sacis e boitatásnos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furadospor grotões89  donde gentama90  saía muito branquinhabranquíssima, de certo a filharada da mandioca! […] A in-teligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rin-do tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüimnão, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzi-nha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadassopros roncos esturros não eram nada disso não, eram

    mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máqui-na. As onças pardas não eram onças pardas, se chama-vam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e erammáquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás91  decuruatás92  de fumo, em vez eram caminhões bondesautobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios mo-tocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram má-quinas e tudo na cidade era só máquina! O heróiaprendendo calado. De vez em quando estremecia. Volta-va a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numacisma assombrada.

    Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deu-

    sa de deveras forçuda, Tupã

    93

     famanado que os filhosda mandioca chamavam de Máquina, mais cantadei-ra que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar.94

    Macunaíma resolve brincar com a máquina paratornar-se também imperador dos filhos da mandioca.As três moças dão muitas risadas e falam que nãotem deus nenhum e que com a máquina ninguém brin-

    ca porque ela mata. A máquina é feita pelos homense movida a eletricidade, fogo, água, vento, fumo.Macunaíma não acredita e faz um gesto com a mu-nheca direita pras moças e parte. Ele inventara a ba-nana.

    Depois disso, Macunaíma vai morar com os ir-mãos numa pensão. Em razão de ele gemer por causados sapinhos95 que pegou na primeira noite de amor 

     paulistano, Maanape rouba uma chave de sacrário edá para Macunaíma chupar. O herói chupou e saroubem.96  Maanape era feiticeiro.

    Macunaíma passa uma semana sem comer nem brincar. Só consegue pensar nas brigas dos filhos damandioca com a máquina, que mata os homens, mes-mo tendo sido eles os seus inventores. Conclui queos filhos da mandioca não ganham da máquina nemela ganha deles nesta luta. Há empate. Entretanto,continua acreditando que a máquina deva ser um deuse que os homens não são seus donos. Acha que os

    homens é que eram máquinas e as máquinas é queeram homens. Satisfeito transforma Jiguê em telefo-ne e encomenda lagostas e francesas nos cabarés.

     No dia seguinte, lembra-se da muiraquitã e resol-ve agir logo e procurar Venceslau Pietro Pietra, quemora numa casa no fim da rua Maranhão, dando vis-tas para o Pacaembu. Por causa de o regatão andar com o calcanhar para a frente e poder ser o gigantePiaimã,97 comedor de gente, Manape tenta impedir Macunaíma que não quis desistir. Por isso, Maanapeacompanha o irmão.

    Por trás da casa do gigante há uma árvore Dzalaú-ra-Iegue,98 que dá todas as frutas e é muito alta. Fa-zem um zaiacuti99 com folhagem cortada pelas saúvas para flecharem a caça devorando as frutas. Maanapeatiraria, e Macunaíma recolheria a caça. Assim fize-ram, mas o barulho tirou o gigante do farniente100 eele veio ver o que era aquilo. O gigante cantou feito

    84 Segundo uma lenda, a filha de um chefe índio aparece grávida misteriosamente. Nove meses depois nasce uma criança branca, quese chamou Mani. De sua sepultura nasceu a planta da mandioca.85 Cama.86 Arranha-céu.87 Nome dado aos espíritos maus que habitam montanhas, rios e lagos.88 Nome dado ao deus que ensinou aos índios o uso dos instrumentos musicais.89 Depressão profunda entre montanhas. No caso, passagem entre dois edifícios.90 Muita gente.91 Tipo de palmeira de lugares úmidos.92 Espata das palmeiras.93 Deus do trovão e da guerra, segundo a mitologia indígena.94 A passagem é simbólica, uma vez que mostra o conflito entre a cultura indígena e a civilização. Macunaíma atribui a tudo que vê nomesindígenas, projetando, nas máquinas da cidade, as ações dos animais que conhece do mato.95 Inflamação na boca causada pelo cogumelo Oidium albicans. Segundo a crença popular, as crianças pegam sapinho quando recebembeijos na boca. Cabe lembrar que Macunaíma é infantil.96 Crença popular de que chupar chave de sacrário cura sapinhos.97 Gigante da mitologia taulipangue.98 Nome que surge numa saga de Koch-Grünberg, que seria uma árvore que dá todo tipo de frutas.99 Escudo de folhagem usado pelos índios aritis para caçar.100 Expressão italiana que indica ócio, “fazer nada”.

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     pássaro. Macunaíma respondeu. Maanape mandou-oesconder-se.

    Maanape tentou fingir que não era gente que ti-nha secundado o gigante, mas este afirmou que eragente e mandou que mostrasse quem era.

    Maanape jogou um macuco101 morto. Piaimã engoliu omacuco e falou:

     — Foi gente. Me mostra quem era.Maanape jogou um macaco morto. Piaimã engoliu-o e

    continuou: — Foi gente. Me mostra quem era.Então enxergou o dedo mindinho102 do herói escon-

    dido e atirou uma baníni na direção. Se ouviu um gritogemido comprido, juuúque! e Macunaíma agachou coma flecha enterrada no coração. O gigante falou praMaanape:

     — Atira a gente que eu cacei!Maanape atirou guaribas103  jaós mutuns mutum-de-

    vargem mutum-de-fava mutuporanga urus urumutum,104

    todas essas caças porém Piaimã engolia e tornava a pedira gente que ele flechara. Maanape não queria dar o heróie jogava as caças. Levaram muito tempo assim e

    Macunaíma já tinha morrido. Afinal Piaimã deu um berromedonho. — Maanape, meu neto, deixa de conversa! Atira a gen-

    te que eu cacei que sinão te mato, velho safadinho!

    Maanape não queria entregar Macunaíma e jogouseis caças duma vez, gritando toma  seis. Piaimã fi-cou danado. Agarrou quatro paus do mato e veio comeles pra cima de Maanape, mandando-o sair do cami-nho. Disse que com ele era só de quatro paus na pon-ta da unha. Maanape teve muito medo e jogou o heróino chão. Maanape e Piaimã inventaram o truco.105

    Piaimã agarra o defunto pela perna e entra em casa.Maanape desce da árvore desesperado para seguir atrás do mano, mas encontra formiguinha sarará cha-mada Cambgique, que acaba indo junto, sugando todoo sangue do herói, que se esparramara no chão paramostrar os rastos para Maanape. Na porta fechada daadega, suga a última gota. A porta está trancada. Umcarrapato vem por baixo da porta e transforma-se emchave yale, para Maanape abrir a porta. Depois vira

    carrapato outra vez e manda Maanape convencer ogigante com garrafas de Chianti.106 Na outra sala daadega, estão Piaimã e sua companheira, uma caapo-ra107 velha que se chama Ceiuci e que é muito gulo-sa. Maanape dá as garrafas para Venceslau e um nacode fumo do Acará a para mulher dele.108  E o casal esqueceram109 que havia mundo.

    Macunaíma, picado em vinte vezes trinta torres-

    minhos, borbulha na polenta fervendo. Maanape cataos pedaços e os ossos e estende tudo no cimento paraesfriar. Depois a formiga derrama por cima o sanguesugado. Maanape embrulha os pedacinhos sangran-do em folhas de bananeira, joga o embrulho num sa- piquá110 e toca para a pensão, onde soprou fumo.111

    Macunaíma vem saindo, meio pamonha ainda, masMaanape dá guaraná para ele, que fica taludo outravez e não sabia o que havia acontecido.

    Macunaíma acorda com escarlatina112 e passa todoo tempo da febre planejando arrumar uma garrucha

     para matar o gigante. Na casa dos ingleses, disseram-lhe que as garruchas estavam ainda verdes, mas re-solvem sacudir a árvore.113   Cai uma garruchatemporã. Macunaíma agradece e vai embora. Maa-nape também quer garrucha, balas e uísque. Macu-naíma, que queria fazer os outros acreditarem quefalava inglês, disse ao irmão que ele mesmo iria lá, porque senão dariam conserva a Maanape em vez degarrucha. Mas não consegue nenhuma garrucha. Naárvore baleira, derrubam um desperdício de balas. Ma-cunaíma volta dizendo que não havia garrucha por-

    que as formigas oncinhas114

     comeram tudo, mas quedava a garrucha dele. Quando alguém mexesse comele, Maanape atiraria. Depois disso, transforma Ji-guê em telefone e liga para xingar a mãe do gigante.

    VI. A francesa e o gigante

    Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dor-mir.115 Macunaíma queria erguer um papiri116  pros trêsmorarem porém jamais que papiri se acabava. Os puchirões

    101 Espécie de galináceo.102 Referência à história de João e Maria.103 Espécie de macaco.104 Espécies de aves.105 Criação de Mário de Andrade para o surgimento do jogo de cartas chamado truco, cuja carta principal é quatro de paus.106 Tipo de vinho tinto italiano.107 Duende maligno que habita nossas florestas. Misto de currupira e saci.108 Segundo a crença popular, o que mais agrada a Caipora é fumo.109 Presença da figura silepse de número.110 Saco de malotagem.111 Lenda indígena, segundo a qual soprando-se sobre um morto pode dar-lhe vida.112 Doença infecciosa e epidêmica caracterizada pelo desenvolvimento de pontos vermelhos na pele, os quais se transformam emmanchas amplas e se espalham por todo o corpo.113 Recriação do episódio narrado em Koch-Grünberg, Kalawunseg, o mentiroso .114 Segundo M. Cavalcanti Proença, esse nome é dado à forma áptera de uma vespa.115 Presença da elipse do verbo gostar: “Jiguê gostava muito de dormir”.116 Mesmo que mutirões, ajuntamento de pessoas para realizar uma construção.

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    goravam sempre porque Jiguê passava o dia dormindo eMaanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou numacolher, virou-a num bichinho e falou:

     — Agora você fica sovertida no pó de café. Quandomano Maanape vier beber, morda a língua dele!

    Então pegando num cabeceiro117 de algodão, virou-onuma tatorana branca e falou:

     — Agora você fica sovertida na maqueira.118 Quandomano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele!119

    Assim aconteceu com os dois manos. Maanapefoi mordido pelo bichinho quando foi tomar café.Depois atirou-o longe. Jiguê foi chupado pelo man-darová120  branquinho, que ficou rosado do sanguedele. Assustado, atirou-o longe. Foram os três cons-truir o papiri. Os dois manos ficavam de um lado eMacunaíma do outro pegando os tijolos que eles jo-gavam. Os dois queriam vingança. Jiguê pegou umtijolo e transformou em bola de couro duríssima paranão machucar muito. Maanape deu um pontapé paraela bater em Macunaíma, que teve o nariz esborra-

    chado. Macunaíma ficou com raiva e falou que nãofazia mais papiri. Transformou todo o material daconstrução em uma nuvem de içás,121 que tomou SãoPaulo por três dias.

    O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. Abola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou obicho-do-café, Jiguê a lagarta rosada e Macunaíma o fute-bol, três pragas.

    Pensando em Ci, Macunaíma concluiu que não podia mais aparecer na rua Maranhão porque seriareconhecido pelo gigante. Resolveu enganá-lo dizen-

    do ao telefone que uma francesa queria falar com elea respeito da máquina de negócios. O gigante man-dou que viesse agorinha, porque a mulher havia saí-do com as filhas e podiam negociar mais folgado.Macunaíma vestiu-se de mulher, exagerando na pin-tura e no arranjo, e foi ao palácio do gigante Piaimã.Antes tomou várias precauções, defumando-se, alfi-netando ramo de pinhão no peito para evitar quebran-to. Venceslau Pietro Pietra recebeu Macunaíma, queestava vestido de francesa, no portão. Depois de mui-tos salamaleques, tirou os carrapatos da francesa e

    levou-a para uma sala de jantar muito bonita. Umverdadeiro banquete fora preparado. A francesa sen-

    tou-se numa rede e comeu bem. Depois resolveu en-trar no assunto e perguntou se o gigante tinha umamuiraquitã com forma de jacaré. O gigante trouxe umcaramujo, puxando para fora uma pedra verde.  Ma-cunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoçãoe percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem per-

     guntando si o gigante não queria vender a pedra.O gigante piscou dizendo que não vendia. A francesa

    suplicou para levar a pedra emprestada para casa.O gigante piscou de novo dizendo que também nãoemprestava. Os dois conversam, e a francesa chama ogigante de regatão. Este a mandou dobrar a língua edisse que era colecionador.

    O gigante buscou um grajaú grande feito de em- bira e cheio de pedras. Contou que era um coleciona-dor célebre de pedras. A jóia da coleção era amuiraquitã, comprada da imperatriz das icamiabas por mil contos. Macunaíma sabia que era mentira. O gi-gante disse que era capaz de dar a pedra, porque esta-

    va querendo brincar com a francesa. QuandoMacunaíma percebeu a intenção do gigante, saiu cor-rendo pelo jardim com o gigante atrás dele. Macuna-íma escondeu-se numa moita, mas lá havia uma pretinha, Caterina. Macunaíma ameaçou-a e deu umtapa nela. Ficou com a mão grudada.122 Caterina erauma boneca de cera de carnaúba posta ali pelo gigan-te. Macunaíma foi batendo, chutando a boneca e fi-cando mais grudado nela. O gigante tirou Macunaímada boneca e o colocou num cesto. Macunaíma conse-guiu sair do cesto, depois de assoprar raiz de cuma-

    cá123

     em pó para bambear cordas.Ao sair encontrou-se com o jaguara124 do gigante,que se chamava Xaréu, nome de peixe para não ficar hidrófobo. Macunaíma foge com o cachorro no en-calço.125 Passam rente à Ponta do Calabouço, tomamrumo de Guajará Mirim e voltam para leste. Em Ita-maracá, Macunaíma come uma dúzia de mangas-jas-mim. Em Barbacena, Macunaíma toma leite de umavaca guzerá. Atravessa o Paraná ao voltar dos pam- pas. No Espírito Santo quase arrebenta a cabeça numa pedra. Corre para as barrancas da ilha do Bananal,

    entra pelo buraco de um formigueiro de trinta me-tros. O cão fica vigiando. Chega o gigante, que ar-

    117 Travesseiro.118 Rede de dormir.119 Mário de Andrade adapta a Saga 7 de Koch-Grünberg, atribuindo a Macunaíma a criação da lagarta rosada do algodão, a broca docafé e o futebol. Como nas lendas, Macunaíma e Jiguê têm o dom de transformar e criar coisas.120 Mário utiliza como sinônimos tatorana e mandarová, apesar de serem ambos larvas de borboletas, não pertencem a uma mesmaespécie.121 Formigas saúvas fêmeas, que levantam vôo nupcial de outubro a dezembro. Chamada também tanajura.122 Aproveitamento da história infantil da boneca de piche.123 Trepadeira latescente, que é usada entre os sertanejos, associada a superstições.124 Mesmo que cão, cachorro.125 Durante as fugas, Macunaíma supera o tempo e o espaço.

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    ranca uma palmeira, corta o grelo do pau e enfia-o pelo buraco para fazer a francesa sair. Mas ela nãosai. O gigante coloca pimenta, que são formigas ana-quilãs,126 ameaça buscar uma jararaca. Macunaíma pede ao gigante para esperar que já sai, porque com a jararaca ninguém não pode não. Primeiro tira osmangarás127 do peito e bota na boca do buraco, pe-dindo que o gigante jogasse aquilo para fora. Depois

    faz o mesmo com o vestido, a cinta, os sapatos e to-das as roupas. O gigante joga tudo longe, sem olhar oque é. Macunaíma põe o sim-sinhô128 dele na bocado buraco e fala:

     — Agora me bote fora só mais esta cabaça fedorenta.Piaimã agarra, cego de raiva, o sim-sinhô sem ver o

    que é e atira com o herói e tudo légua e meia adiante.E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longeganhava os mororós.129

    Macunaíma chega na pensão muito acabado de can-saço. Come uma fritada de sururu130 de Maceió, um

     pato seco de Marajó, molhando a janta com mocoro-ró.131 Depois descansa. Estava muito contrariado.

    VII. Macumba

    Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguiureaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era matarPiaimã… Então saiu do cidade e foi no mato Fulano expe-rimentar força.132 Campeou légua e meia e afinal enxer-gou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba133

    e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o ventosacudia a folhagem na altura porém. “Inda não tenho bas-tante força não”, Macunaíma refletiu. Agarrou num dente

    do ratinho chamado crô, fez uma bruta incisão na perna,

    134

    de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pen-são. Estava desconsolado de não ter força ainda e vinhanuma distração tamanha que deu uma topada.

    Então, de tanta dor, o herói viu no alto as estrelas 135 eentre elas enxergou Capei minguadinha136  cercada de

    névoa. Quando míngua a Luna não comeces coisa algu- ma  suspirou. E continuou consolado.

    Macunaíma desiste de atacar diretamente o giganteporque não tinha força e resolve procurar ajuda na ma-cumba. Vai para o Rio de Janeiro para conseguir proteçãode Exu na macumba de Tia Ciata. Durante a cerimônia,Tia Ciata chama pelos nomes das entidades e o coro res-ponde com um “Vamo sa-ra-vá”137. Macunaíma derramavinho na mesa durante as comidas.138 Todos pensam queele é o predestinado. Logo depois uma polaca entra em

    transe. Ela e a mãe de santo dançam nuas. Macunaímaentra na dança e todos o comemoram como o filho de Exu,que encarna e todos fazem pedidos. Alguns pedidos eleconsente, outros não. O herói quer se vingar de Piaimã.Depois de Exu consentir na ajuda, Macunaíma pede que ogigante leve uma surra,139 pise em vidro, passe em espi-nheiro, sinta o frio dos Andes, leve coice de cavalo, chifradade touro. Piaimã, em São Paulo, sofre tudo e pede baixoque o espanque devagar porque aquilo dói e ele tem famí-lia. A cerimônia termina com uma reza geral. A polaca cos-pe um anel de azeviche.140

    Todos terminam fazendo festa, comendo presunto edançando um samba de arromba. Depois de tudo acaba-do, saem na madrugada os macumbeiros Macunaíma,Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars,Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento.141

    VIII. Vei, a sol142

    Macunaíma ia seguindo e topou com a árvore Volomãbem alta. Num galho estava um pitiguari143 que nem bemenxergou o herói, se desgoelou cantando — “Olha no ca-minho quem vem! Olha no caminho quem vem!”Macunaíma olhou pra cima com intenção de agradecer masVolomã estava cheinha de fruta. O herói vinha dando ho-

    ras de tanta fome e a barriga dele empacou

    144

     espiandoaquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris abricôs mucujásmiritis guabijus melancias ariticúns, todas essas frutas.

     — Volomã’, me dá uma fruta, Macunaíma pediu.O pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes: — Boiôiô, boiôiô!145 quizama quizu!

    126 Formigas amazônicas, que são a pimenta do gigante Piaimã, segundo a lenda.127 Inflorescências terminais das bananeiras. Mário aproveita uma das sagas de Grünberg.128 Mesmo que pênis.129 Nome dado na Amazônia à Bauhinia , espécie arbustiva, também chamada de unha de vaca ou pé-de-boi. No contexto da obra,significa fugir ou escapulir.130 Espécie de molusco comestível; mexilhão.131 Espécie de cajuada.132 Experimentar força é uma expressão usada na lenda do gavião jovem e da tartaruga.133 Espécie de árvore muito resistente.134 Costume comum a muitas tribos, para demonstrar valentia.135 Expressão popular que indica muita dor.136 Reduzida, pequena.137 Expressão muito utilizada nos rituais da cultura negra e na macumba.138 Derrubar vinho na mesa é sinal de boa sorte.139 Ritual de feitiçaria, vudu, envultamento. Normalmente usa-se um boneco para tal prática.140 Em rituais de exorcismo, consta que o diabo saiu do corpo em forma de um anel de azeviche.141 Refere-se Mário de Andrade a si mesmo como Macunaíma e cita diversos outros escritores e poetas modernistas que fizeram parte junto com ele da geração modernista de 1922. Blaise Cendrars visitou o Brasil em mais de uma ocasião.142 Na lenda taulipangue, o sol é masculino, mas Mário transforma-o em feminino, influenciado pela forma tupi.143 Nome como é um conhecido um pássaro que em outras regiões chama-se gente-de-fora-aí-vem.144 Parou, estancou.145 Saudação do pitiguari. As palavras que fazem cair os frutos são recolhidas da lenda colhida por Sílvio Romero.

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    Caíram todas as frutas e ele comeu bem. Volomã ficoucom ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além dabaía de Guanabara numa ilhota deserta, habitada antiga-mente pela ninfa Alamoa146 que veio com os holandeses.Macunaíma pendia tanto de fadiga que pegou no sonodurante o pulo. Caiu dormindo embaixo duma palmeirinhaguairô muito aromada onde um urubu estavaencarapitado.147

    O urubu precisou fazer necessidade. O herói fi-

    cou escorrendo sujeira de urubu. Era madrugada eestava frio. Macunaíma acordou tremendo, todo en-lambuzado, mas ainda examinou a pedra mirim dailhota em busca de cova com dinheiro enterrado. Nãohavia. Nem correntinha encantada de prata que indi-ca tesouro de holandês. Havia formigas jaquitaguasruivinhas.

    Então passou Caiuanogue, a estrela-da-manhã.Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra elaque o carregasse pro céu. Caiuanogue foi se chegandoporém o herói fedia muito.

     — Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora.Assim nasceu a expressão “Vá tomar banho!” que os

    brasileiros empregam se referindo a certos imigrantes eu-ropeus.

    Macunaíma pede à lua que o aqueça, mas esta omanda pedir ao seu vizinho,148 o sol, que chega comsua vela da jangada pintada com murici.149 Junto comele vêm as três filhas, que limpam o herói e cuidamdele. O sol queria que Macunaíma casasse com umadas filhas, dando-lhe de dote a Europa, a França e aBahia.150 Notando que Macunaíma estava na sem-vergonhice com suas filhas, o sol não teve vontadede aquecer a terra. As moças amarram o sol, e Macu-naíma dá-lhe muitos socos na barriga. Acabou sain-do um fogaréu por detrás151 e todos se esquentaram.Seguem na jangada. Macunaíma está feliz, com oscarinhos das filhas do sol, e acaba cantando assim:

    Quando eu morrer não me chores,Deixo a vida sem sodade; — Mandu sarará,Tive por pai o desterro,Por mãe a infelicidade, — Mandu sarará,

    Papai chegou e me disse: — Não hás de ter um amor! — Mandu sarará,

    Mamãe veio e me botouUm colar feito de dor, — Mandu sarará,

    Que o tatu prepare a covaDos seus dentes desdentados, — Mandu sarará,

    Para o mais desinfelizDe todos os desgraçados, — Mandu sarará…152

    A jangada chega ao Rio de Janeiro. Sol desembar-ca com as moças e manda Macunaíma comportar-se bem durante sua ausência. Macunaíma promete, masnão resiste aos encantos das mulheres e drecreta comsolenidade: Pouca saúde e muita saúva, os males do

     Brasil são.153 Pula em terra e faz continência para ocapitão Santo Antônio.154 Traz uma portuguesa paraa jangada. Quando Vei retorna, repreende Macunaí-ma e diz que, se ele tivesse se comportado bem, teriase casado com uma de suas f ilhas e ficado jovem parasempre.155 Macunaíma fica com vontade de chorar ediz: que se soubesse… O sol responde que o se eu

     soubesse é santo que nunca não valeu pra ninguém.156

    Macunaíma responde que não queria nenhuma dastrês filhas do sol.  Pois nem eu queria nenhumadas três?, sabe? Três, diabo fez.157 Vei segue para acidade, e Macunaíma fica com a portuguesa na jan-gada. Na despedida, recebe do sol a pedra Vató,158

    146 Referência folclórica à ilha de Fernando de Noronha. A Alamoa (alemã), assim chamada por causa de seus cabelos vermelhos, seriauma ninfa, fada e gênio do mal da ilha, cruel. Segundo a lenda, a ninfa seria a guardiã dos tesouros da Holanda que teriam sidoenterrados na ilha. Propositadamente, Mário desgeografiza o mito.147 Sentado.148 O diálogo parece ter sido tirado de uma brincadeira infantil em que uma criança pede um foguinho às outras e estas respondem paraprocurar no vizinho.

    149 Costume dos barqueiros de Belém de pintarem as velas com vermelho de murici ou azul de anil para evitarem a umidade e o mofo.150 Transcrição de versos sertanejos.151 Recolhida de uma lenda, segundo a qual os homens teriam recebido o fogo.152 O refrão é retirado de quadras típicas. Outras passagens parecem ter sido recriadas de versos indígenas recolhidos por Martius.153 Dístico recolhido por vários cronistas por causa dos estragos causados pelas formigas durante o período de colonização do Brasil. O“pouca saúde” parece ter surgido de uma frase célebre do prof. Miguel Pereira que classifica o Brasil como um vasto hospital. Entretanto,se fizermos uma leitura mais detalhada poderemos enxergar no dístico certa ambigüidade por causa da inversão do verbo ser. A palavrasão  tanto pode ser lida como verbo ou como sinônimo de saudável. Nesse último caso, os males do Brasil saudável seriam as muitasformigas e a pouca saúde. Cabe lembrar que, em todos os capítulos, encontramos referências às formigas.154 Capitão do exército que recebeu patente em 1811 por haver prestado serviços de guerra.155 A passagem, como todo o capítulo, resulta da recriação de uma história colhida por Koch-Grünberg, mas adaptada por Mário deAndrade.156 Expressão nordestina que significa que desculpas não convencem.157 Expressão popular que se refere à superstição de que se deve evitar companhias e negócios em que figurem três indivíduos.158 A passagem retoma a lenda do surgimento do fogo, segundo a qual as fezes de Pael teriam se transformado nas pedras Vató, que dãofogo ao serem atritadas uma na outra.

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    que dá fogo quando se quer. Quando Macunaíma dor-mia com a portuguesa num banco do Flamengo, sur-ge uma assombração medonha: Mianiquê-Teibê,159

    que respirava com os dedos, escutava pelo umbigo,tinha olhos no peito e duas bocas na dobra interior dos dedos dos pés. Mianiquê-Teibê come a portugue-sa. Macunaíma não acha mais graça na capital da Re- pública e volta para casa. Troca a pedra Vató por um

    retrato no jornal.IX. Carta pras icamiabas

    Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazo-nas.

    Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte Seis,São Paulo.

    Senhoras:Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e

    a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciarestas linhas de saudade e muito amor, com desagradávelnova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo —

    a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes — não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinãoque pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirmacavalgardes ginetes belígeros160 e virdes da Hélade clás-sica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós,Imperator vosso, tais dislates161 da erudição porém heisde convir conosco que, assim, ficais mais heróicas e maisconspícuas,162 tocadas por essa plátina respeitável da tra-dição e da pureza antiga.

    Mas não devemos esperdiçarmos163 vosso tempo fero,e muito menos conturbarmos vosso entendimento, comnotícias de mau calibre; passemos, pois, imediato, ao rela-to dos nossos feitos por cá.

    Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partí-ramos, quando a mais temerosa desdita164 pesou sobreNós. Por uma bela noite dos idos de maio do anotranslato,165 perdíamos a muiraquitã; que outrém grafaramuraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologiasesdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tãofamiliar às vossas trompas de Eustáquio, é quasi desco-nhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guer-reiros chamam-se polícias, grilos, guardas-çívicas,boxistas, legalistas, mazorqueiros166 etc.; sendo que al-guns desses termos são neologismos absurdos — baga-ço nefando com que os desleixados e petimetres

    conspurcam167 o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos sub   tegmine fagi , sobre alíngua portuguesa, também chamada lusitana. O que vosinteressará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guer-reiros de cá não buscam mavórticas damas para o enla-ce epitalámico168; mas antes as preferem dóceis efacilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas depapel a que o vulgo chamará dinheiro — o curriculum vitae da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra empertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os

    ouvidos latinos do vosso imperador, é desconhecida dosguerreiros, e de todos em geral que por estas partes res-piram. Apenas alguns “sujeitos de importância em virtudee letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luísde Souza, citado pelo doutor Rui Barbosa, ainda sobreas muiraquitãs projectam as suas luzes para aquilatá-lasde medíocre valia, originárias da Ásia, e não de vossosdedos, violentos no polir.

    ......................................................................................As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e

    sábias, não se contentam com os dons e exceléncia que aNatura lhes concedeu; assaz se preocupam elas de simesmas; e não puderam acabarem consigo, que não man-

    dassem vir de todas as partes do globo, tudo o que demais sublimado e gentil acrisolou a sciéncia169 fescenina,170

    digo, feminina171 das civilizações avitas. Assim é que cha-maram mestras da velha Europa, e sobretudo de França,e com elas aprenderam a passarem o tempo de maneirabem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horasnesse delicado mester, ora encantam os convívios teatraisda sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses tra-balhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que,em chegando a noute,172 mal lhes sobra vagar para brin-carem e presto se entregam nos braços de Orfeu, como sediz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia enoute divergem singularmente do vosso horário belígero;o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute,quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro,é o mais reparador.

    Porém senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, poreste grandioso país, de doenças e insectos por cuidar! …Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos cor-roídos pelo morbo173 e pelos miriápodes! Em breve sere-mos novamente uma colónia da Inglaterra ou da Américado Norte! […] Por isso e para eterna lembrança destespaulistas, que são a única gente útil do país, e por issochamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho demetrificarmos um dístico, em que se encerram os segre-dos de tanta desgraça:

    159 Personagem de uma lenda registrada por Brandão de Amorim. Vários outros autores se referem à mesma personagem.160 Cavalos que servem na guerra.161 Asneiras.162 Notáveis, eminentes, distintas.163 Desperdiçar.164 Desventura, infelicidade.165 Mesmo que passado.166 Desordeiros.167 Sujam, emporcalham.168 Relativo a poema lírico dedicado às bodas de alguém. Aqui no sentido de casamento apenas.169 Ciência.170 Mesmo que pornográfica.171 A suposta falha é, na verdade, uma fina ironia de Mário de Andrade, sugerindo inicialmente pornográfica e depois feminina.172 Mesmo que noite.173 Doença, estado patológico.

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    “Pouca saúde e muita saúva,os males do Brasil são.”Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas

    súbditas, assaz hemos sofrido e curtido árduos e constan-tes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nosapartaram do Império do Mato Virgem. Por cá tudo sãodelícias e venturas, porém nenhum gozo teremos e ne-nhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdidotalismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossasrelações com o doutor Venceslau são as milhores possí-

    veis; que as negociações estão entaboladas174

     e perfeita-mente encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemãoas alvíçaras175 que enunciamos atrás. Com pouco o vossoabstémio176 Imperador se contenta; si não puderdes envi-ar duzentas igaras cheias de bagos de cacau, mandai, cêm,ou mesmo cinqüenta!

    Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde efraternidade. Acatai com respeito e obediéncia estas maltraçadas linhas; e, principalmente, não vos esqueçais dasalvíçaras e das polonesas, de que muito hemos mister.

    Ci guarde a Vossas Excias.Macunaíma,Imperator.177

    A carta é escrita em português que se pretendeclássico. Macunaíma procura dar notícias sobre a re-cuperação da muiraquitã e pedir dinheiro, reclaman-do dos preços de tudo, inclusive do que cobram as polacas e francesas para brincar. Aproveita para des-crever a vida em São Paulo, exibindo conhecimentosgramaticais e citações latinas. Dirige críticas àquelesque desconhecem os rigores da língua portuguesa, aos políticos, inclusive o presidente da República, a quechama “Papai-grande”.

    X. Pauí-pódole178

    Venceslau Pietro Pietra ficara muito doente com a sovae estava todo envolvido em rama de algodão. Passou me-ses na rede. Macunaíma não podia nem dar passo praconseguir a muiraquitã agora guardada dentro do caramujopor debaixo do corpo do gigante. Imaginou botar formigacupim no chinelo do outro porque isso traz morte, dizem,porém Piaimã tinha pé pra trás e não usava chinelo.

    Macunaíma estava muito contrariado com aquele chove-não-molha e passava o dia na rede mastigando beijumembeca179 entre codórios180 longos de restilo181. Nessetempo veio pedir pousada na pensão o índio Antônio, san-to famoso com a companheira dele, Mãe de Deus. Foi visi-tar Macunaíma, fez discurso e batizou o herói diante dodeus que havia de vir e tinha forma nem bem de peixe nembem de anta. Foi assim que Macunaíma entrou pra reli-gião Caraimonhaga,182 que estava fazendo furor no sertãoda Bahia.

    Macunaíma aperfeiçoa-se no brasileiro falado eno português escrito. Sabe nome de tudo. Certa feitavai à cidade e fica olhando vitrine com uma porçãode monstros. Uma moça bota uma flor na lapela ecobra mil-réis.183 Macunaíma não sabia o nome do buraco da roupa onde a cunhatã enfiara a flor, queera botoeira. Procura na memória, mas confunde-secom outros buracos. Acaba usando a língua dele echama de puíto.184 A moça gosta tanto do nome quesai repetindo se as pessoas não querem que ela colo-que uma flor no puíto delas, sem saber que é palavrãona língua de Macunaíma. Este fica irritado porquenão consegue dominar a língua da terra.

     No Dia do Cruzeiro, Macunaíma resolve ir ver aqueima de fogos no Ipiranga. Leva uma alemãzinhade chapéu enfeitado com margaridas. Ela quer fincar uma margarida no puíto do herói, que ri muito, vendoque a palavra já entrou no dicionário. Macunaíma in-terrompe um “mulato da maior mulataria” que falasobre o Cruzeiro do Sul e narra a lenda indígena doCruzeiro do Sul, que é o Pai do Mutum.185

    Era uma vez dois cunhados que moravam muito longeum do outro. Um chamava Camã-Pabinque e eracatimbozeiro.186 Uma feita o cunhado de Camã-Pabinqueentrou no mato por amor de caçar um bocado. Estava fa-zendo e topou com um Pauí-Pódole e seu Compadre ovagalume Camaiuá.187 E Pauí-pódole era o Pai do Mutum.Estava trepado no galho alto da acapu,188 descansando.Vai, o cunhado do feiticeiro voltou pra maloca e falou pracompanheira dele que tinha topado com Pauí-pódole e seu

    174 Estabelecidas.175 Grafa-se alvíssaras: prêmio ou recompensa.176 Que se abstém de alguma coisa.177

     O estilo pretencioso e classicizante de Mário de Andrade não passa de uma crítica irônica ao falar empolado e pedante de tantosbrasileiros, que imitam os lusitanos por obediência muitas vezes servil e anacrônica. A intenção clara é defender por oposição o falarbrasileiro que domina toda a obra, desobedecendo as normas da prosódia lusíada e propagado tantas vezes pelo mesmo autor em suailíada modernista.178 O capítulo é uma reprodução da lenda de Mauai-Pódole, Emorom-Pódole, Pauí-Pódole, com pequenas alterações. Aproveita-se amitologia indígena sobre o surgimento do Cruzeiro do Sul, que para os silvícolas é um imenso mutum. A expressão pódole significa pai.179 Biscoitos do Amazonas. Bolo de fécula de mandioca.180 Cálices.181 Aguardente, cachaça forte.182 Refere-se a figuras históricas que aparecem em Confissões da Bahia e Visitações do Santo Ofício , editadas por Capistrano de Abreu.183 Referência a um costume da década de 1920. As moças vendiam flores em benefício de instituições.184 Mesmo que ânus. Lenda de Puíto que zombava dos outros porque estes não tinham ânus.185 Ave cracídea.186 Feiticeiro.187 Vespa que se transforma na Alfa do Centauro.188 Tipo de árvore muito resistente e de vargem alta.

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    Compadre Camaiuá. E o Pai do Mutum com seu Compa-dre num tempo muito de dantes já foram gente que nemnós. O homem falou mais que bem que tinha querido ma-tar Pauí-pódole com a sarabatana porém não alcançara opoleiro alto do Pai do Mutum na acapu. E então pegou nafrecha de pracuúba189 com ponta de taboca e foi pescarcarataís.190 Logo Camã-Pabinque chegou na maloca docunhado e falou:

     — Mana, o que foi que vosso companheiro falou pravocê?

    O feiticeiro vai ao mato e encontra o Pai do Mu-tum. Transforma-se na formiga Ilague,191  mas nãoconsegue aproximar-se porque o Mutum afasta-o comum sopro. Transforma-se em formiga Opalá192, masnada. Depois, em formiga Megue e ferra o Mutumno furinho do nariz. Com o espirro, a formiga é atira-da longe. O feiticeiro tomou um susto e nunca maisvoltou a ser gente. Macunaíma repete seu famoso dís-tico.

    Pauí-pódole pede aos vaga-lumes para ilumina-rem seu caminho para ir ao céu e não conviver comformigas. Um vaga-lume foi pedindo ajuda para ooutro, até que uma nuvem de vaga-lumes seguiu parao céu e nunca mais voltou. É aquele caminho de luzque daqui se enxerga atravessando o espaço. Pauí-

     pódole então avoou pro céu e ficou lá. Minha gente!aquelas quatro estrelas não é Cruzeiro, que Cruzeironada! É o Pai do Mutum! É o Pai, do Mutum! minha

     gente! É o Pai do Mutum, Pauí-pódole que pára nocampo vasto do Céu! […] Tem mais não.

    Todos saíram comovidos, ninguém se importavamais com o dia do Cruzeiro. Foram botar pelego193

    debaixo do lençol, porque brincar com fogo faz mijar na cama.194 Foram todos dormir. E a escuridão se fez.

    Macunaíma estava comovido. Olha para cima evê Pauí-pódole rindo para ele, agradece e despede-sedo herói. Macunaíma vai agradecer, porém o pássaroerguendo a poeira da neblina largou numa carreiraesparramada pelo campo vasto do céu.

    XI. A velha Ceiuci

    No outro dia o herói acordou muito constipado.195 Eraporque apesar do calorão da noite ele dormira de roupacom medo da Caruviana196 que pega indivíduo dormindonu. Mas estava muito ganjento com o sucesso do discursoda véspera. Esperou impaciente os quinze dias da doença

    resolvido a contar mais casos pro povo. Porém quando sesentiu bom era manhãzinha e quem conta história de diacria rabo de cotia.197 Por isso convidou os manos pra ca-çar, fizeram.

    Quando chegaram ao bosque da Saúde o herói mur-murou:

     — Aqui serve.

    Macunaíma botou fogo no bosque e ficou espe-

    rando que saísse algum veado mateiro, mas não tinhanenhum. Só saíram dois ratos chamuscados, que fo-ram caçados e comidos por Macunaíma na pensão,que não avisou os irmãos. Lá chegando contou paratodos que tinha ido caçar na feira do Arouche e mata-ra dois… mateiros, não eram mateiros, mas dois vea-dos catingueiros que comera com os manos. Até vinhatrazendo um naco pra vocês mas porém escorregueina esquina, caí derrubei o embrulho e cachorro co-meu tudo.198 Todos ficaram desconfiados do herói.Quando Maanape e Jiguê voltaram, os vizinhos per-

    guntaram para eles se Macunaíma caçara dois catin-gueiros na feira do Arouche. Os manos que nãogostavam de mentir, exclamaram irritadíssimos:

     — Mas que catingueiros esses! O herói nunca matouviado! Não tinha nenhum viado na caçada não! Gato miador,pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos chamusca-dos que Macunaíma pegou e comeu.

    Os vizinhos vão ao quarto de Macunaíma, quetocava flauta, tomar satisfação. Ele admira-se de tan-ta gente no quarto, e confirma a história; todos riem

    dele. Macunaíma confessa que mentiu e todos saemde fininho. Os manos ficam admirados com a inteli-gência do herói.

    Macunaíma começa a cantar, e seus olhos come-çam a chorar a cada estrofe. Os irmãos falam sobreos bons tempos. O herói depois quis ofender o gigan-te, mas não conseguiu ligar. Fuma fava de paricá199

     para ter bons sonhos e adormece. No outro dia, resol-ve pregar uma peça nos manos para se vingar. Disse-lhes que tinha achado rasto de tapir na frente da bolsade mercadorias. Os manos vão caçar com Macunaí-

    ma, mas não acharam rasto nenhum. Macunaíma dis-se: — Tetápe, dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte.Junta gente para ajudar. Macunaíma repete a frase. Já

    189 Tipo de leguminosa de casca vermelha ou branca.190 Peixe de couro de água-doce.191 Formiga tocandira entre os taulipangues.192 Formiga tocandira de cor cinzenta, menor que a ilague.193 Espécie de manta de couro de carneiro, usada para montaria.194 Crendice popular.195 Resfriado.196 Garoa que acompanha a friagem no interior da Bahia. No Pará, é vento frio.197 Ditado popular.198 Maneira de terminar as histórias populares.199 Usado pelos pajés, que cheiravam o pó antes de fazerem profecias e augúrios.

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    é quase noite e nada de rasto. Resolvem perguntar osignificado da frase. Macunaíma não sabia, masaprendeu as palavras em casa quando pequeno. Ma-cunaíma disse que tinha rasto e não que tem. Atira aculpa sobre Jiguê e Maanape. As pessoas irritam-secontra eles e começam a gritar “lincha, lincha”. Ma-cunaíma toma as dores dos irmãos e todos se voltamcontra ele, que discute com um rapaz que discursa e

    chama o herói de desconhecido. Uma moça reclamade um comerciante que a bolinou. Macunaíma pensaque é com ele e chama a moça de lambisgóia. Logoavança para a multidão. Dá um pontapé nas costas deum advogado que tentou fugir e uma bolacha nas fu-ças de um grilo200 alto, loiro e bonito, só porque teveódio da beleza do rapaz. O grilo prende Macunaíma,depois fala uma porção de coisas em língua estran-geira. Chega outro grilo, e os dois empurraram o he-rói ladeira abaixo. Um senhor na rua Líbero defendeMacunaíma, alegando que ele não fizera nada. Logo

    o povo mandava soltar Macunaíma, que aproveita atrapalhada para fugir. Pega um bonde.

    Venceslau Pietro Pietra está na calçada tomando afresca com a família. Convalescendo da surra, está todoenvolvido em algodão. Macunaíma aposta com o me-nino Chuvisco que consegue assustar o gigante.201

    Macunaíma atira palavrões no gigante, que não se im- porta e ainda manda guardar alguns para brinquedodas filhas. Chuvisco zomba de Macunaíma, que setransforma em formiga para ficar perto do gigante ever se Chuvisco consegue assustar Piaimã. Chuvisco

    sobe na neblina e respinga o gigante quando passa so- bre ele. A família inteira recolhe-se. É assim até hoje. A família do gigante tem medo de Chuvisco mas de palavra-feia não.202 Macunaíma fala palavrão paraChuvisco na língua do lim-pim-guá-pá:203  — Pois en-tão, rival: Vá-pá-à-pá mer-per-da-pá!

    Macunaíma quer pescar, mas não tem nenhum ar-tefato de pescaria. Faz um anzol de cera de manda-guari, mas o bagre leva. Macunaíma vê um inglês pescando e resolve combinar um golpe com os ma-nos para tirar anzol do inglês. Macunaíma vira aima-

    rá e é pescado pelo inglês. Maanape pede o pescadomaior para o inglês, que é Macunaíma. Assim é feitotrês vezes, mas o inglês tira o anzol. Macunaíma vira piranha e arranca o anzol. Os dois manos já saíam,quando escutaram o inglês dizendo ao uruguaio que

    iria para a sua terra porque não tem mais anzol para pescar. Macunaíma transforma o inglês no LondonBank, só de caçoada.

     No outro dia, Macunaíma vai pescar no Tietê.Maanape avisa que ele não deve ir para não encontrar com Ceiuci,204 a caapora,205 mulher do gigante, que pode comê-lo. Macunaíma não ouve o irmão. Logoque joga a linha, vem a caapora pescando de tarrafa.

    Vê a sombra de Macunaíma e pega-a com a tarrafa.Macunaíma dá bom-dia, chamando-a de minha avó.Ceiuci chama-o, mas o herói diz que não vai lá. A velhamanda marimbondos, mas ele mata. Depois, as for-migas novatas picam o herói, que cai na água por causada dor. A velha pesca Macunaíma e leva para casa.Deixa o herói preso num canto e vai ferver água.Macunaíma pede à filha mais nova de Ceiuci que oesconda. A moça tranca-se com ele no quarto. A ve-lha bate no quarto da filha e pede que ela entregueMacunaíma senão a expulsaria de casa. Macunaíma

     joga dinheiro por baixo da porta e este se transformaem comida. Mas isso não diminuiu a fome da velha.A moça propõe três adivinhações para libertar o he-rói. Quer saber o que entra duro e sai mole, mas quenão é indecência. Macunaíma diz que é indecência.Ela conta que é macarrão. Pergunta onde as mulherestêm o cabelo mais crespinho. Macunaíma respondeque é aí e aponta o ventre da moça, que o chama decachorro e diz que é na África. A moça faz a últimaadivinhação em forma de quadrinha:

    Mano, vamos fazer

    Aquilo que Deus consente:Ajuntar pêlo com pêlo,Deixar o pelado dentro.

    Macunaíma responde que aquilo quem não sabechama a moça de sem-vergonha. Ela diz que é dor-mir ajuntando os pêlos das pestanas e deixar o olho pelado dentro. Mesmo sabendo que o herói errou, amoça ajuda-o, mandando que fuja num cavalo casta-nho-escuro que está na esquina. Quando ouvisse ogrito de “Bauá! Bauá!”, era a mãe chegando. Macu-naíma encontra dois cavalos, mas escolhe o cardão- pedrês. Cavalo cardão-pedrês pra carreira Deus o fez.206 Galopa até Manaus, onde o cavalo dá uma to- pada que quase arranca chão. Depois de ver algo re-lumeando, Macunaíma cava o buraco e encontra oresto de uma estátua grega do deus Marte achada

    200 Soldado da antiga guarda-civil de São Paulo.201 Recriação da lenda A onça e a chuva .202 Adaptação do juízo moral da lenda da citação anterior: “Temos medo de chuva, mas não de onça”.203 Brincadeira infantil.204 Mário adapta a lenda da velha gulosa que aparece em Couto de Magalhães.205 Caapora é a mulher do Currupira. É Tatacy ou Tatamanha, mãe do fogo.206 Lenda recolhida por Gustavo Barroso, segundo a qual um rapaz rouba a filha do diabo, foge a cavalo e é perseguido por este. O diabonão consegue alcançá-lo por ele montar um cavalo castanho escuro.

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    naquelas paragens inda na monarquia e primeiro-de-abril passado no Araripe de Alencar pelo jornal cha-mado Comércio do Amazonas. Logo Ceiuci chega.Macunaíma esporeia o cavalo. Depois, perto de Men-donza na Argentina, quase esbarra num galé207 quefugia da Guiana Francesa. Pede aos padres que esta-vam melando que o escondam.208

    Caapora chega montada num tapir e pergunta se

    viram seu neto passar por ali no seu cavalinho co-mendo capim.209 Os padres mentem que ele já pas-sou, e ela parte. Então, os padres dão um cavalomelado-caxito para Macunaíma, que foge a galope.Passa pelo Ceará, onde decifra os letreiros indígenasdo Aratanha.210 Decifra outro no Rio Grande do Nor-te. Passa pela Pedra-Lavrada, na Paraíba. Depois Piauí,Pernambuco. A velha Ceiuci vem chegando. Macu-naíma pede para uma surucucu211 escondê-lo. Nem bem surucucu esconde o herói e chega Ceiuci per-guntando pelo neto. A surucucu mente e Ceiuci mon-

    ta num cavalo manco e sai.Macunaíma escuta a surucucu dizendo à compa-nheira para fazerem moquém dele. Pula num quarti-nho e joga o anel com brilhantão que dera de presente para Mindinho. O brilhantão vira quatro contos de car-ros de milho, adubo Polisu e uma fordeca de segundamão. A surucucu olha toda satisfeita. Macunaíma montanum baguão212 cardão-rodado, vara o chapadão dosParecis e entra na caatinga, assustando as galinhas com pintos de ouro do Camutengo213 perto de Natal. Léguae meia depois, abandona a margem do São Francisco

     por causa da enchente. No meio da catinga-de-porco,uma dona pergunta se os holandeses já foram embora.É Maria Pereira, que está ali escondida desde a guerracom os holandeses.214 Depois que a mulher se escon-de, Macunaíma some outra vez. Passa novamente paraa banda do Chuí, onde topa com um tuiuiú pescando e pede que este o leve de volta para casa.215 O tuiuiútransforma-se num aeroplano e voa sobre o chapadão

    mineiro de Urucuia, Itapecerica e batem para o Nor-deste. Passam pelas dunas de Mossoró. Macunaímaolha para baixo e enxerga o padre Bartolomeu Lou-renço de Gusmão216 de batina arregaçada com dificul-dade de caminhar no areião. O padre grita um basta,depois de Macunaíma convidá-lo para ir com eles.217

    Passam depois pela serra do Tombador no Mato Gros-so, deixando à esquerda as cochilhas de Sant’Ana do

    Livramento. Sobem até o Telhado do Mundo, matam asede nas águas do Vilcanota e voam sobre Amargosana Bahia, Gurupá e Gurupi, chegando finalmente a SãoPaulo. Não podendo pagar pela viagem, porque preci-sava economizar, Macunaíma dá um conselho para otuiuiú: Neste mundo tem três barras que são a perdi-ção dos homens: barra de rio, barra de ouro e barrade saia, não caia!218 Acaba dando dez contos para otuiuiú. Entra em casa satisfeito e conta tudo para osmanos. Maanape transforma Jiguê em telefone e dá parte da Ceiuci para a polícia, que deporta a velha gu-

    losa. A influência de Piaimã traz a mulher de volta nacompanhia lírica. A filha expulsa corre o céu, batendo perna de déu em déu. É uma cometa.

     Neste capítulo Macunaíma rompe os limites geo-gráficos em sua fuga, caracterizando diversas cida-des e regiões brasileiras. Os locais referidos na obrasão citados no trabalho Cidades, de Alencar Araripe.Essa desgeografização é outro elemento importanteem Macunaíma, pois serve como elemento caracteri-zador do Brasil, ao mesmo tempo que mostra a obracomo uma espécie de lenda ao atribuir à personagem

     principal o poder de transportar-se imediatamente deum ponto a outro do país.

    XII. Tequeteque,219

      Chupimzão220

      e a injustiça

    dos homens

    No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mes-mo delirado a noite inteira e sonhado com navio.

     — Isso é viagem por mar,221 falou a dona da pensão.

    207 Embarcação de guerra, comprida e estreita.208 Os padres fazem o papel dos macacos da lenda, escondendo o herói fugitivo num pote vazio.209 Trecho de uma simpatia usada em Cuiabá contra terçol: “Santa Luzia passou por aqui com seu cavalinho comendo capim”.210

     Município de Pacatuba.211 Espécie de cobra.212 Cavalo.213 Crendice de Natal, Rio Grande do Norte. Uma galinha amarela cruza o caminho e desaparece.214 O buraco de Maria Pereira ainda existe à margem do rio São Francisco, perto de Taipu (Teodoro Sampaio).215 Lenda do moço índio conduzido pelo tuiuiú, no Poranduba amazonense , de Barbosa Rodrigues.216 Referência ao padre voador, que teria inventado a primeira máquina voadora, a passarola, e que aparece como personagem noMemorial do convento , de José Saramago.217 O tuiuiú parece-se muito com os desenhos da passarola. O padre grita um basta ao convite porque foi colocado em ridículo emPortugal por causa de sua vocação para voar.218 Ditado popular.219 Referência ao nome de uma ave, provavelmente uma alusão ao tico-tico que aparece no capítulo, mas que também pode designarsírio mascate.220 Referência ao pássaro chamado chupim, que derruba os ovos do tico-tico e coloca os seus no lugar. Assim, o tico-tico cria os filhotesdo chupim, que por isso ganhou esse nome, indicando que é um aproveitador.221 Crença de que sonhar com navio é viagem por mar.

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    Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logoJiguê na máquina telefone pra insultar a mãe de VenceslauPietro Pietra. Mas a sombra telefonista222 avisou que nãosecundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis selevantar pra ir saber o que era. Porém sentia um calorãocoçado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou:

     — Ai… que preguiça…Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens.223

    Quando os manos vieram saber o que era, era sarampão.Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em

    Beberibe224

    , que curava com alma de índio e a água depote. Bento deu uma agüinha e fez reza cantada. Numasemana o herói já estava descascando.225 Então se levan-tou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante.

    Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinhocontou que Piaimã com toda a família fora na Europa des-cansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado ese contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado evoltou macambúzio pra pensão. Maanape e Jiguê encon-traram o herói na porta da rua e perguntaram pra ele:

     — Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados?Então Macunaíma contou o sucedido e principiou cho-

    rando. Os manos ficaram bem tristes de ver o herói assime levaram ele visitar o Leprosário de Guapira, porémMacunaíma estava muito contrariado e o passeio não tevegraça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinhae todos já estavam desesperados. Tiraram uma porçãoenorme de tabaco dum cornimboque226 imitando cabeçade tucano e espirraram bem. Então puderam pensamen-tear.227

    Macunaíma lembrou que podiam ir para a Europatambém. Maanape sugeriu que Macunaíma fingissede pianista228 e arrumasse uma pensão do Governo efosse sozinho. Macunaíma queria que fossem todos juntos, mas Maanape disse que ir com o dinheiro do

    governo era melhor. Macunaíma bateu na testa e dis-se que tinha achado. Fingiria de pintor era mais boni-to. Buscou óculos, um gramofoninho, meias de golfee luvas, ficando parecido com pintor. No outro dia, pra esperar a nomeação, matou o tempo fazendo pin-turas. Assim: agarrou num romance do Eça de Quei-

    rós e foi na Cantareira passear. Encontra um turcoespertalhão que o cumprimenta. Pouco depois, o tur-co encontra um gambá e faz o bicho engolir dez pra-tas.229 Volta até o herói, aperta a barriga do bicho,que acaba botando o dinheiro para fora. Macunaímacompra o gambá, pelo qual o turco pediu quatrocen-tos contos. Macunaíma entrega tudo que possui: umaletra de quarenta contos e seis fichas do Cassino Co-

     pacabana. Pouco adiante o bicho quer fazer necessi-dade. Macunaíma apara tudo no bolso, mas só temexcremento. Macunaíma sai gritando pelo caminho.Encontra com Zé Prequeté, com quem mexe.230 Aochegar em casa desesperado, os irmãos já estão vol-tando do palácio do governo, desapontados com anegativa porque havia mil vezes mil pintores encami-nhados à Europa.231 Macunaíma gastara o último di-nheiro. Não podiam ir à Europa por conta própria. Num ataque, o herói tira as calças e pisa em cimadelas.232 Acaba se acalmando e diz:

    Paciência, manos! Não Não vou na Europa não! Souamericano e meu lugar é na América. A civilização euro-péia de-certo esculhamba a inteireza do nosso caráter.233

    Durante três semanas, Macunaíma e os irmãos cor-rem o Brasil em busca de uma panela de dinheiro en-terrada.234 Ao voltarem, Macunaíma vai à PraçaAntônio Prado meditar. Já pensava até em modificar seu dístico para  pouca saúde e muitos pintores, osmales do Brasil são.235 quando ouve um chorinho atrásdele. Há um tico-tico e um chupim no chão. O chupimgrandalhão pede comida para o tico-tico, que sofre para

    conseguir sustentar o grandalhão.