Mabasso, Eliseu 2012 ...Direito Positivo e Direito Costumeiro Nas Esquadras de Moçambique...

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Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Ciências Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012 40 Artigo original Língua oficial, direito positivo e direito costumeiro nas Esquadras de Moçambique: Um caso para a linguística forense Eliseu Mabasso Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Departamento de Linguística e Literatura Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique RESUMO: O presente artigo resulta de uma investigação levada a cabo no âmbito da linguística forense, tendo como grupos-alvo os Oficiais de Permanência nas esquadras da polícia, indiciados, ofendidos e declarantes. Recorrendo ao plano de investigação descritivo, em linha com a abordagem etnográfica, o estudo analisou algumas das estratégias linguístico-discursivas adoptadas pelos intervenientes nas esquadras. Uma das constatações a assinalar no presente artigo tem a ver com o facto de a polícia, nas suas entrevistas, adoptar métodos interaccionais fortemente influenciados por elementos tradicionalmente usados para a resolução de conflitos referimo-nos ao chamado Direito Costumeiro, que acaba por colocar desafios ao sistema de administração da justiça em geral, oficialmente baseado em princípios do chamado Direito Positivo. A principal conclusão é a de que as interacções entre os diferentes intervenientes nas esquadras da Polícia da República de Moçambique, como eventos comunicativos, decorrem em condições que envolvem a ocorrência de estratégias linguístico-discursivas muito particulares, como por exemplo, a alternância de código (code switching) e a transferência negativa da língua materna (interferência). Palavras-chave: Estratégias Linguístico-Discursivas, Polícia, Direito Positivo, Direito Costumeiro. Official language, written and customary laws in Mozambican Pricincts: A case for forensic linguistic ABSTRACT: The present article results from a study on forensic linguistics. The target populations were on-duty officers indicted individuals, defendants and witnesses in police stations. The study uses a descriptive research methodology in line with the ethnographic approach and analyzes some of the linguistic discourse strategies adopted by the participants in police precincts. One of the main findings shows that when interviewing the police adopts highly and interactionally influenced traditional methods used to resolve conflicts, i.e. Customary Law. This results in challenges to the justice system in general, which is officially based upon the principles of the so called Written Law. The main conclusion of the study is that the interactions between the different participants within a police precinct of the Police Corporation of the Republic of Mozambique do take place in conditions that involve the occurrence of very peculiar linguistic discourse strategies, such as code switching and negative transference (interference) of the mother tongue. Keywords: linguistic and discursive strategies, police officers, written law, customary law ______________________________ Correspondência para: (correspondence to:) [email protected]

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Direito Positivo em Mocambique

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    Artigo original

    Lngua oficial, direito positivo e direito costumeiro nas Esquadras

    de Moambique: Um caso para a lingustica forense

    Eliseu Mabasso

    Faculdade de Letras e Cincias Sociais, Departamento de Lingustica e Literatura

    Universidade Eduardo Mondlane, Moambique

    RESUMO: O presente artigo resulta de uma investigao levada a cabo no mbito da lingustica

    forense, tendo como grupos-alvo os Oficiais de Permanncia nas esquadras da polcia, indiciados,

    ofendidos e declarantes. Recorrendo ao plano de investigao descritivo, em linha com a abordagem

    etnogrfica, o estudo analisou algumas das estratgias lingustico-discursivas adoptadas pelos intervenientes nas esquadras. Uma das constataes a assinalar no presente artigo tem a ver com o

    facto de a polcia, nas suas entrevistas, adoptar mtodos interaccionais fortemente influenciados por

    elementos tradicionalmente usados para a resoluo de conflitos referimo-nos ao chamado Direito Costumeiro, que acaba por colocar desafios ao sistema de administrao da justia em geral,

    oficialmente baseado em princpios do chamado Direito Positivo. A principal concluso a de que as

    interaces entre os diferentes intervenientes nas esquadras da Polcia da Repblica de Moambique, como eventos comunicativos, decorrem em condies que envolvem a ocorrncia de estratgias

    lingustico-discursivas muito particulares, como por exemplo, a alternncia de cdigo (code switching)

    e a transferncia negativa da lngua materna (interferncia).

    Palavras-chave: Estratgias Lingustico-Discursivas, Polcia, Direito Positivo, Direito Costumeiro.

    Official language, written and customary laws in Mozambican

    Pricincts: A case for forensic linguistic

    ABSTRACT: The present article results from a study on forensic linguistics. The target populations were on-duty officers indicted individuals, defendants and witnesses in police stations. The study uses

    a descriptive research methodology in line with the ethnographic approach and analyzes some of the

    linguistic discourse strategies adopted by the participants in police precincts. One of the main findings shows that when interviewing the police adopts highly and interactionally influenced traditional

    methods used to resolve conflicts, i.e. Customary Law. This results in challenges to the justice system

    in general, which is officially based upon the principles of the so called Written Law. The main

    conclusion of the study is that the interactions between the different participants within a police precinct of the Police Corporation of the Republic of Mozambique do take place in conditions that

    involve the occurrence of very peculiar linguistic discourse strategies, such as code switching and

    negative transference (interference) of the mother tongue.

    Keywords: linguistic and discursive strategies, police officers, written law, customary law

    ______________________________

    Correspondncia para: (correspondence to:) [email protected]

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    INTRODUO

    Moambique um pas multicultural e

    com uma elevada diversidade lingustica

    mdia, se adoptarmos a classificao

    estabelecida por Robinson (1993, p. 52).

    De acordo com este autor, a elevada

    diversidade lingustica observa-se numa

    situao em que [] uma percentagem no superior a 50% da populao fala a

    mesma lngua. Esta situao pressupe que o grau de diversidade lingustica

    calculado no a partir do nmero total de

    lnguas faladas num determinado pas mas

    sim em termos da percentagem da

    populao que fala a lngua tomada

    singularmente (IBIDEM). Assim, de todas

    as lnguas bantu faladas no pas (cerca de

    20) o Emakhwa (25.6%) e o Xichangana

    (11.3%) representam duas das lnguas com

    o maior nmero de falantes. Ao ter em

    conta estas percentagens, estamos perante

    uma situao em que nenhuma das lnguas

    moambicanas se aproxima da fasquia dos

    50%, percentagem fixada como referncia

    por Robinson. O Emakhwa, lngua que

    apresenta a maior percentagem de falantes,

    coloca Moambique numa posio bem

    abaixo do meio da tabela, da que se

    considera o pas como de elevada

    diversidade lingustica mdia. Isto coloca o

    pas no conjunto dos 25 pases que tm a

    maior diversidade lingustica no continente

    africano.

    POLTICA LINGUSTICA EM

    MOAMBIQUE

    Segundo Lopes (1997a), nem a

    Constituio de Moambique, adoptada em

    1975, nem a

    sua verso revista de 1990 apresentam, nas

    suas clusulas, uma referncia poltica de

    lngua em Moambique. Na verdade, nem

    mesmo a verso actualizada da

    Constituio da Repblica publicada em

    2004 e resultante

    de algumas alteraes decorrentes dos

    ltimos desenvolvimentos na vida scio-

    econmica e poltica do pas, trouxe algum

    dado adicional sobre a poltica de lngua

    possvel para Moambique, como se pode

    observar no disposto no artigo 9 da

    constituio, sobre as lnguas nacionais:

    O Estado valoriza as lnguas nacionais

    como patrimnio cultural e educacional e promove o desenvolvimento e

    utilizao crescente como lnguas

    veiculares da nossa identidade (REPBLICA DE MOAMBIQUE.

    CONSTITUIO, 2004, p. 7).

    e no artigo 10, sobre a Lngua Oficial:

    Na Repblica de Moambique a lngua

    portuguesa a lngua oficial

    (REPBLICA DE MOAMBIQUE. CONSTITUIO, 2004, p. 7).

    Ao observar e interpretarmos estes dois

    Artigos, deparamos com uma situao, em

    que, por um lado, o papel das lnguas bantu

    no claramente indicado, remetendo-as

    para um domnio mais vago, em que o seu

    papel limitava-se a ser veculo de

    transmisso dos valores culturais e

    educacionais e, por outro, uma indicao

    explcita de que a nica lngua oficial o

    Portugus.

    Face a um tal cenrio, vrias so as

    questes passveis de serem levantadas,

    principalmente no que toca ao direito dos

    moambicanos poderem expressar-se na

    sua lngua materna. Estamos perante uma

    situao em que o Governo moambicano

    recorreu estratgias muito enraizadas a

    nvel do continente africano que a

    estratgia de evitao. A evitao ,

    segundo Bamgbose (1991), uma tcnica

    adoptada pela maior parte dos pases

    africanos, caracterizada pelo facto de livrar

    os governos das consequncias polticas

    desagradveis que qualquer

    pronunciamento sobre a poltica de lngua

    pode provocar em certos segmentos da

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    populao. Contudo, a ausncia de uma

    declarao no significa ausncia de uma

    poltica (IBIDEM). Como sinal disso, na

    maior parte dos casos, os pases que

    embarcaram nesta estratgia acabam por

    implementar a poltica do pas ex-

    colonizador. Moambique enquadra-se

    perfeitamente nesta categoria, uma vez

    que, at o momento, no existe uma

    poltica de lngua mais clara, uma poltica

    que, mesmo de forma implcita, no

    impea o uso das lnguas bantu para fins

    oficiais. O facto de, at ao presente

    verificar-se uma notvel resistncia por

    parte dos detentores do poder poltico de

    definir uma poltica de lngua mais clara e

    inclusiva faz com que alguns autores,

    Lopes (1997b), por exemplo, considerem

    que falar do assunto no contexto poltico

    moambicano seja um tabu.

    Afigura-se-nos pertinente referir que, a

    partir do incio dos anos 80, com o

    desenvolvimento da Lingustica, em geral,

    e da Lingustica Aplicada, em particular,

    uma nova rea passou a subsidiar a

    Lingustica Aplicada na soluo de

    problemas de lngua e no combate ao

    crime por meio do uso da linguagem a Lingustica Forense. A Lingustica Forense

    definida de formas diferentes. Todavia,

    os autores convergem no que se refere

    interaco entre a linguagem, a lei e o

    crime na construo das suas definies.

    A linguagem como base para a

    construo da Lei

    Desde os tempos remotos, altura em que o

    homem se transformou num animal

    gregrio, caracterstica que veio diferenci-

    lo dos outros animais, este comea a viver

    uma nova etapa na sua evoluo, i.e., a

    transformao de uma vida nmada para

    uma vida sedentria. Porm, esta nova fase

    implicou, de entre outros aspectos, a

    necessidade de se estabelecerem princpios

    e normas de convivncia na sociedade.

    Estas normas e princpios tinham como

    pressuposto a definio do mal e do bem

    dentro do sistema de valores vigente para

    cada sociedade. Assim, cada membro da

    sociedade passou a viver dentro de um

    sistema regido por normas que vo desde

    os direitos e deveres s obrigaes perante

    os outros membros do grupo.

    Uma das consequncias evidentes do

    estabelecimento de um sistema de normas

    e valores numa dada comunidade a

    inevitvel existncia de membros que

    podero infringir esses princpios. No

    contexto africano existiram (e existem at

    aos nossos dias) formas de base tradicional

    adoptadas para punir o mal o chamado Direito Costumeiro, sobre o qual falaremos

    mais adiante. Gibbons (1994), na

    introduo sua obra Language and the

    Law, fazendo referncia linguagem como

    mecanismo usado para a construo da lei,

    diz o seguinte:

    Os conceitos bsicos dos direitos e obrigaes de um membro de uma

    comunidade esto profundamente

    inseridos na estrutura da prpria lngua e

    existiram antes de as leis serem codificadas. Alm disso, os conceitos

    que actualmente constroem os sistemas

    legais tais como culpado e assassino encontram-se ao nosso dispor atravs do

    cdigo da lngua. Existe, ento, um

    sentido muito importante da forma como

    a lngua constri a lei []. (GIBBONS, 1994, p. 3 Traduo Livre1)

    A terminologia usada no contexto das

    esquadras e tribunais tal como indiciado vs ofendido e arguido vs queixoso -nos familiar porque chegou at ns por via

    da lngua, muito embora os seus referentes

    sejam de longe anteriores aos lexemas que

    os representam. Estas designaes

    aparecem como ferramenta para reforar a

    lei que foi concebida como tentativa para

    controlar o comportamento humano

    atravs da aplicao de medidas punitivas

    aos infractores (GIBBONS, 1994). O autor

    faz referncia a dois aspectos importantes

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    no domnio legislativo: o cdigo legal,

    designado no para abarcar um aspecto

    especfico do comportamento humano,

    mas sim um conjunto de comportamentos

    relacionados em situaes de mbito

    delimitado. Por outro lado, os

    procedimentos legais tm a ver com a

    testagem da aplicabilidade das

    generalizaes encontradas no cdigo legal

    para casos particulares. Comentando sobre

    o papel da lngua como elemento central

    no funcionamento do aparelho judicial,

    Gibbons (1994) afirma que:

    [] os julgamentos so eventos lingusticos. A lngua o aspecto central para o Direito e este, tal como o

    conhecemos, inconcebvel sem a

    lngua. Muitos juristas orgulham-se pelo domnio que tm da lngua e encaram-no

    como uma habilidade importante para os

    profissionais da rea. (GIBBONS, 1994, p. 3 Traduo Livre2).

    luz da passagem acima, podemos

    depreender que, de facto, todo o processo

    que envolve um caso, seja ele de natureza

    cvel ou criminal, conduzido atravs da

    lngua. Por outras palavras, o processo que

    vai desde a produo dos Autos de

    Denncia nas esquadras da polcia at

    leitura da sentena no tribunal no seria

    possvel sem que a lngua fosse o elemento

    central. Portanto, no seria possvel falar

    na existncia e aplicao de um sistema

    legal nos moldes modernos sem que tal

    exerccio ocorresse fundamentalmente por

    via da lngua. Os prprios actores no

    processo judicial tm-se preocupado, em

    larga medida, em melhorar as suas

    capacidades de saber, o melhor possvel,

    interpretar as leis e persuadir os seus

    interlocutores atravs do uso de uma

    retrica que seja adequada e convincente.

    Este exerccio socorre-se sobretudo do

    bom uso e domnio adequado da

    linguagem.

    O sistema legal Romano, Romnico-

    Germnico e o Direito Costumeiro

    Desenvolvido pelos antigos romanos, o

    Sistema Romano constitui base legal para

    vrios pases europeus. Por consequncia,

    no caso concreto dos pases africanos,

    estes acabaram por herdar este sistema por

    via do passado colonial. O mesmo

    fenmeno extensivo a pases da Amrica

    e sia e Esccia. Segundo Gibbons3, no

    Japo e na China h uma co-existncia

    entre formas mais tradicionais de controlo

    social (Direito Costumeiro) - em que a

    resoluo de conflitos se baseia na

    discusso e compromisso e confisso em

    hasta pblica e variantes do Direito Romano.

    Um dos aspectos que aproximam, em

    grande medida, o Sistema Legal Romano

    do Sistema Legal Comum o facto de

    haver presuno de inocncia, i.e., o ru ou

    arguido inocente at prova em contrrio.

    Todavia, os procedimentos no tribunal

    diferem dos procedimentos aplicados no

    Sistema Legal Comum a vrios nveis de

    actuao. No obstante o sistema romnico

    apresenta muitas caractersticas que, do

    ponto de vista dos procedimentos

    lingustico-discursivos, assemelham- se

    aos do Sistema Legal Comum.

    O Sistema Legal Romano-Germnico teve

    o seu surgimento na Europa ocidental, com

    o ressurgimento do direito romano entre os

    sculos XII e XIII. o sistema vigente em

    toda a Europa ocidental, excepo do

    Reino Unido, que funciona sob moldes do

    chamado Common Law. De modo similar,

    o sistema romano- germnico aplicado na

    Amrica Latina, e em pases como a

    Repblica da frica do Sul e Repblica de

    Moambique. A base do seu

    funcionamento a predominncia do

    direito positivo, i.e., a lei. Por outras

    palavras, neste sistema vigora o direito

    escrito, em que a lei considerada a fonte

    principal e quase exclusiva do direito. Um

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    outro aspecto a reter sobre este sistema

    legal tem a ver com o facto de o jurista ter

    uma tarefa interpretativa, em que tem a

    obrigao de descobrir o que a lei pretende

    que seja feito.

    O Direito Costumeiro constitui base para o

    estabelecimento da ordem e sancionamento

    de prticas consideradas ilcitas,

    principalmente em sociedades de base

    tradicional. Tal como fizemos referncia

    acima, o Direito Costumeiro apresenta

    caractersticas que o distanciam de outros

    sistemas legais a vrios nveis da sua

    actuao. Gluckman (1966) a esse

    respeitocomentando sobre este sistema

    legal disse o seguinte:

    Ficou estabelecido que o direito

    costumeiro africano, semelhana de

    qualquer sistema legal, consiste em diferentes tipos de princpios, normas e

    regras. Alguns desses princpios e regras

    estabelecem princpios gerais e

    abrangentes sobre a moralidade e a poltica pblica para constituir um

    quadro ideolgico de justia

    aparentemente duradoiro. Tais princpios de conotao abrangente,

    estabelecidos em termos multivocais e

    abrangendo muitos aspectos num vasto leque de aces, so flexveis e

    adaptveis a condies e padres

    mutveis (GLUCKMAN, 1966, p. 9 Traduo Livre

    4).

    Os valores morais desempenham um papel

    preponderante neste sistema legal e estes

    variam de acordo com os princpios

    estabelecidos em cada comunidade.

    Alguns estudos realizados sobre o Direito

    Costumeiro em frica indicam que a

    adaptao pode ser fcil em algumas reas

    e difcil em outras. Alis, esta

    particularidade igualmente caracterstica

    dos outros sistemas legais, principalmente

    quando os juzes so obrigados a exercer a

    sua funo sob constantes necessidades de

    ajustamento e adaptaes decorrentes de

    mudanas em polticas pblicas e at

    mesmo em relao aos valores morais.

    No que diz respeito ao procedimento e

    produo de provas, o processo judicial no

    contexto tradicional africano caracteriza-

    se, de entre outros aspectos, pela (i)

    simplicidade e ausncia de formalidades;

    (ii) confiana em modos no racionais de

    produo de prova e tomada de deciso;

    (iii) o facto de as partes, de onde se

    incluem os prprios juzes, poderem estar

    envolvidas em relaes mltiplas e

    complexas fora do domnio dos tribunais e

    o facto de que tais relaes so anteriores

    ao caso e que continuam aps o seu

    desfecho poderem influenciar a forma

    como o processo de recolha de

    depoimentos conduzido; (iv) a existncia

    de uma abordagem de resoluo de litgios

    com base no senso comum e no

    fundamentada do ponto de vista legal; (v)

    o desejo subjacente de promover a

    reconciliao das partes e no o de fazer

    uma deliberao de base legal sobre o

    assunto que levou as partes ao tribunal; e

    (vi) o papel da religio e crenas em rituais

    e prticas na determinao da

    responsabilidade criminal (GLUCKMAN,

    1996).

    Estratgias de Comunicao

    O presente trabalho tem como pano de

    fundo a identificao e anlise de algumas

    estratgias de comunicao, com recurso a

    Tarone, Cohen e Dumas (1983). Os

    restantes elementos integrantes da cadeia

    discursiva so incorporados dentro do

    contexto das estratgias de comunicao

    analisadas. Algumas das principais

    estratgias de comunicao susceptveis de

    ocorrer no contexto das relaes inter-

    comunicacionais que caracterizam os

    tribunais, em geral, e as esquadras da

    polcia, em particular, so (i) a

    transferncia a partir da lngua materna,

    (ii) a sobregeneralizao e padro pr-

    fabricado e (iii) a sobre-elaborao.

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    Estratgias de Coeso Textual

    No que diz respeito s estratgias de

    coeso textual adoptamos, por uma lado, a

    linha seguida por Halliday e Hasan (1976),

    autores que defendem uma perspectiva

    mais formal para explicar a relao entre

    os elementos textuais e o que autores como

    de Beaugrande e Dressler (1981) chamam

    textura. Aqui fazemos apelo a estratgias de coeso como a referncia e a conjuno.

    Numa outra perspectiva, procuramos

    interpretar as relaes de coeso e

    coerncia luz dos pressupostos

    defendidos por alguns precursores da

    psicologia cognitiva tais como Carrell

    (1983); Carrell e Eisterhold (1983);

    (Widdowson, 1978); 1983), entre outros.

    Estes autores defendem uma perspectiva

    em que a compreenso de um texto vista

    no em funo do texto em si, uma vez que

    este no transmite s por si o

    conhecimento que se pretende transmitir.

    Assim, a compreenso do texto, segundo

    esses autores, consiste num processo

    interactivo entre o conhecimento por via da

    experincia da vida (background

    knowledge) do ouvinte/leitor e o texto em

    si. Esta forma de estruturar o

    conhecimento tambm conhecida por

    schema. Por definio, os schemata (plural

    de schema) so construes cognitivas que

    permitem a organizao de informao

    numa memria a mdio e longo prazo e

    que constituem a base para a previso

    humana.

    Relao com a Teoria de Lexical

    Priming

    Trata-se de uma teoria relativamente nova

    que vem operar uma reverso na relao

    entre as palavras, e entre o lxico e a

    gramtica. Tradicionalmente, a relao

    entre o lxico e a gramtica foi

    normalmente vista como um fenmeno em

    que a gramtica surge em primeiro plano e

    as palavras so lanadas nos espaos a

    criados, ou tambm que a semntica

    aparece na parte superior da hierarquia e o

    lxico que actualiza a semntica.

    Segundo o autor, o lxico est estruturado

    de uma forma complexa e sistemtica e a

    gramtica resulta dessa estrutura.

    Hoey procura explicar a perversidade da

    co-ocorrncia lexical como um processo

    psicolgico e como justificao plausvel

    para explicar o surgimento de co-

    ocorrncias lexicais pouco comuns referimo-nos aos casos em que certas

    palavras aparecem a fazer combinaes

    com outras palavras em ambientes considerados pouco usuais. Este fenmeno,

    segundo Hoey, pode ser explicado apenas

    se olharmos para a co-ocorrncia lexical

    como um processo psicolgico. Para tal, a

    melhor designao para a co-ocorrncia

    lexical, na ptica do autor, seria a de

    priming (marcao psico-lingustica).

    Relao com a Estrutura Temtica e de

    Informao

    Na comunicao quotidiana, em geral, e no

    contexto das esquadras da polcia, em

    particular, podem ocorrer instncias

    discursivas que, no sendo incorrectas do

    ponto de vista da gramtica do falante do

    PM (Portugus Moambicano), podem ser

    formulaes infelizes do ponto de vista da

    sua formulao discursiva por parte de

    falantes nativos. Para os objectivos do

    presente trabalho colocamos o enfoque da

    nossa anlise (i) na estrutura de informao

    e (ii) na estrutura temtica e sua relao

    com a estrutura de informao para

    verificarmos o impacto no processamento

    global da informao.

    Em primeiro lugar, importa recordarmos

    aqui as definies das noes de tema e

    rema. A definio que se nos afigura mais

    adequada a definio proposta pela

    Escola Lingustica de Praga por ser a mais

    adequada e a que levanta menos confuso

    em linha com a posio de Lopes (2004).

    A Escola de Praga analisa o fenmeno da

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    lngua em termos da sua funo,

    preocupando-se em ultrapassar as

    fronteiras da descrio e da explicao dos

    fenmenos lingusticos, caracterstica

    tpica de vrias escolas da altura, como a

    Escola Americana. Os precursores desta

    Escola preocupam-se no apenas em

    descrever as lnguas mas sobretudo em

    explicar a razo por que as lnguas se

    apresentam tal como se apresentam

    (Sampson, 1980). De acordo com Firbas

    (1964), citado em Lopes (2004), e que foi

    um dos primeiros linguistas checos a fazer

    uma descrio sobre a estrutura temtica,

    com base na Perspectiva Funcional da

    Frase (Functional Sentence Perspective)

    (FSP), o tema o elemento que portador de menor grau de Dinamismo

    Comunicativo (CD) e o rema o elemento que transmite a parte da

    informao mais dinmica. Estas

    formulaes pressupem que existem

    outras definies para as dicotomias em

    apreo, como o caso da que foi apresentada

    por Halliday (1985, p. 38), como sendo o elemento que serve de ponto de partida da

    mensagem. o elemento com que a orao

    se ocupa. O mesmo autor acrescenta ainda que nos casos em que o sujeito

    aparece depois do predicado, o tema um elemento textual que precede esse

    predicado. Relativamente ao rema, Hoey (2005, p, 52), apresentando uma definio

    simples, considera este elemento como

    sendo tudo o que ocorre depois do sujeito num enunciado.

    METODOLOGIA

    Optmos por adoptar uma metodologia

    com pouca ou mesmo nenhuma

    manipulao dos dados por parte do

    investigado, com base no mtodo

    etnogrficor. Uma das grandes vantagens

    do mtodo etnogrfico reside no facto de

    os dados serem recolhidos num ambiente

    natural, o que pressupe a existncia de um

    grau de explicitude baixo e a formulao

    de objectivos heursticos/sintticos.

    Um aspecto bastante fundamental a ter em

    conta o facto de o nosso estudo incidir

    sobre um fenmeno passvel de anlise a

    vrios nveis, facto que justifica a

    interligao entre os pontos tratados na

    discusso dos resultados. Assim, tendo em

    conta que o nosso maior enfoque incidia

    sobre a identificao de estratgias

    lingustico-discursivas, procurmos

    delimitar segmentos discursivos que

    apresentassem tais estratgias, agrupando-

    as de acordo com vrias categorias. Deste

    modo, as estratgias surgem como se se

    tratasse de um superordenado a nvel do

    segmento discursivo e os outros elementos

    lingusticos se subordinassem a essas

    estratgias.

    Recolha de dados

    Para a recolha de dados, seleccionmos um

    total de quatro (4) esquadras, duas das

    quais com caractersticas muito especiais,

    pelo facto de se localizarem junto a dois

    grandes hospitais da Capital,

    nomeadamente a 5. Esquadra da PRM,

    situada junto ao Hospital Central de

    Maputo (HCM); e a 18. Esquadra,

    localizada junto ao Hospital Geral Jos

    Macamo (HGJM). Por outro lado,

    escolhemos duas esquadras que respondem

    pela manuteno da Lei e Ordem em

    alguns bairros mais populosos da cidade: a

    6 Esquadra, que abrange os bairros da

    Malhangelene, parte do Bairro da

    Mafalala, Alto-Ma, Xipamanine e Bairro

    Central, e a 12. Esquadra, que cobre

    algumas zonas pertencentes ao extenso

    distrito municipal kaMaxakeni, Polana-

    Canio e Mavalane.

    As entrevistas que funcionaram como pano

    de fundo para a constituio dos dados

    foram conduzidas pelo Oficial de

    Permanncia destacado e o nico momento

    em que o investigador interferia era

    quando se tratava de recolher informao

    sobre dados scio-culturais e lingustico-

    discursivos. Destaca-se o facto de, nalguns

  • E Mabasso

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    47

    casos, a audio ter sido feita por mais de

    um Agente. As respectivas entrevistas, de

    uma forma geral, caracterizavam-se por

    momentos em que eram semi-abertas e, em

    algumas fases, passavam a ser mais

    abertas.

    Um aspecto que merece algum realce

    sobretudo por ter constitudo grande

    dificuldade no processamento dos dados

    tem a ver com a fase que se seguiu

    recolha dos dados, concretamente, o

    chamado verbatim transcript. Uma vez que

    o registo de entrevistas apenas podia ser

    presencial, vimo-nos na obrigao de

    contratar alguns peritos em transcrio

    para executarem o trabalho. Um dos

    problemas que estes enfrentaram no

    exerccio da sua tarefa prendeu-se com a

    qualidade de gravao em algumas

    cassetes, para alm do fraco domnio da

    ortografia das lnguas bantu em uso, uma

    vez que a maior parte dos intervenientes,

    tinham o Xichangana como sua L1 e que,

    vezes sem conta, recorreram alternncia

    de cdigo (code switching) como estratgia

    lingustica.

    Caractersticas Gerais dos Sujeitos

    Os nossos sujeitos so indivduos de

    ambos os sexos que, de uma forma geral,

    apresentam um nvel de proficincia

    lingustico-discursiva em lngua

    portuguesa baixo. Coincidentemente,

    Sujeitos com estas caractersticas

    constituem o segmento da populao mais

    vulnervel e que se apresenta com

    dificuldades notrias do ponto de vista

    lingustico e do discurso quando responde

    em entrevistas sobre casos de natureza

    criminal nas esquadras de Maputo.

    De um modo geral, esses Sujeitos so

    indivduos com idades compreendidas

    entre os 14 e os 44 anos, maioritariamente

    pobres e provenientes do meio suburbano.

    Na sua maioria, no tm antecedentes

    criminais e muito menos experincia sobre

    como funcionam as esquadras

    relativamente ao procedimento conducente

    produo dos Autos. O nvel de

    escolarizao vai da 4 classe do sistema

    antigo de educao ao nvel superior.

    Naturalmente, grande parte dos nossos

    interlocutores tem nveis de escolarizao

    que se situam ao nvel do ensino primrio

    do 1 e 2 graus. O Xichangana a lngua materna predominante, embora apaream

    alguns intervenientes a falarem uma

    mistura desta lngua e Xironga, sendo que

    o Portugus constitui a L2 para a quase

    totalidade destes Sujeitos.

    Natureza dos casos

    Os casos que concorreram para a recolha

    dos dados desta investigao tm a

    particularidade de serem de carcter

    sumrio, e tanto o ofendido como o

    indiciado encontravam-se presentes. So

    crimes considerados simples, os crimes

    cuja moldura penal inferior a dois anos

    efectivos (GONALVES, 1972) e que, em

    muitos casos, podem ser directamente

    encaminhados ao tribunal. Contmos,

    tambm, com alguns casos de acidentes de

    viao em que as partes envolvidas

    fizeram-se presentes esquadra, no

    obstante termos a conscincia destes no

    serem classificados como ilcitos criminais

    de facto e que acabam por ser devidamente

    deliberados ao nvel da Polcia de Trnsito.

    RESULTADOS E DISCUSSO

    Estratgias na Perspectiva da Coeso e

    Coerncia

    Os fragmentos discursivos que a seguir

    sero apresentados foram extrados das

    nossas entrevistas gravadas nalgumas

    esquadras da cidade de Maputo e

    transcritas para efeitos do presente estudo.

    Trata-se, porm, de formulaes infelizes

    do ponto de vista do falante nativo do

    Portugus e que mereceram alguma

    ateno e despertaram algum interesse por

  • Lngua oficial, direito positivo e direito costumeiro nas Esquadras de Moambique

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    48

    nossa parte. Pretendemos, a este nvel,

    colocar o enfoque da nossa anlise na (i)

    estrutura de informao e (ii) na estrutura

    temtica e a sua relao com a estrutura de

    informao.

    Enfoque na Estrutura Temtica e sua

    Relao com a Estrutura de Informao

    O pano de fundo da nossa anlise tem a ver

    com o pressuposto de que, apesar dos

    nossos Sujeitos produzirem enunciados

    gramaticalmente correctos do ponto de vista microlingustico, quer como lngua

    segunda, quer mesmo como lngua

    materna, cometem, no entanto,

    infelicidades discursivas do ponto de vista,

    no apenas do PM, mas tambm do PE.

    (1) Ofendido: Ele pediu dinheiro para comprar material, eu dei, t ver no

    ? Eu dei um na nana essa bomba que dois milhes, a outra

    [ele] foi dado um milho e meio.

    (2) Agente: Devia ter informado l. Sabe que esto a falhar? Deviam ter informado l no lar dela. Sim, a

    nossa filha, ou a vossa nora est na

    minha casa porque teve acidente, no sei de quevo explicar, foi agredida no sei o quet doente uma coisa clara. Ela foi batida, no uma coisa para

    esconder!

    Os fragmentos acima apresentados so

    transcries de entrevistas abertas

    conduzidas por um Agente da Lei e

    Ordem, envolvendo indiciados e/ou

    declarantes. Se, por um lado, verdade que

    o nvel de escolaridade, quer dos Agentes

    da Lei e Ordem quer dos indiciados , de

    uma forma geral, baixo ou mesmo abaixo

    de uma mdia que seria considerada

    aceitvel, so infelizes do ponto de vista do

    falante nativo do PM ou do PE.

    No segmento em (1) o elemento

    subentendido e que aparece destacado ele

    o tema, o elemento portador de menor

    grau de Dinamismo Comunicativo (DC) e

    o segmento foi dado um milho e meio o

    rema, portanto, o elemento que portador

    do grau mais elevado de DC. O primeiro

    segmento com a funo de SN j tinha sido

    anunciado no discurso, o que pressupe

    que constitui informao dada, de acordo com a estrutura informacional. Porm,

    sendo a principal funo discursiva das construes passivas a de colocar um

    elemento dado em posio de enfoque (LOPES, 2004, p. 190), o sujeito

    enunciador coloca o referido SN na

    primeira posio. Como se pode

    depreender, o que torna o segmento infeliz

    do ponto de vista discursivo no nos

    parece estar relacionado com a

    interpretao dos elementos em termos de

    estrutura temtica ou de informao, uma

    vez que foi dado um milho constitui, de

    facto, a informao mais dinmica, no

    obstante, existir algum lao coesivo

    [valores monetrios pagos pela aquisio

    das bombas] entre este e os dois milhes

    anteriormente anunciados no discurso.

    O que na verdade torna a construo em

    anlise infeliz do ponto de vista da norma

    europeia do Portugus o facto de as

    propriedades de seleco do verbo dar, que

    o elemento de transio no segmento

    remtico, no permitirem a ocorrncia da

    referida passiva. Por outras palavras, uma

    construo activa seria, neste caso, mais

    adequada: Em relao segunda bomba,

    paguei-lhe um milho e meio. Deste modo,

    no se perde, de forma nenhuma, o estatuto

    de informao mais dinmica e

    salvaguarda-se a gramaticalidade do

    segmento. Neste caso, em relao

    segunda bomba, seria o tema e, por

    coincidncia, a informao dada e paguei-

    lhe um milho seria o rema, do ponto de

    vista da estrutura temtica e a informao

    nova do ponto de vista da estrutura

    informacional. Alternativamente, uma

    sequncia do tipo paguei-lhe um milho e

    meio pela segunda bomba resolveria o

    problema e tornaria igualmente o

  • E Mabasso

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    49

    enunciado feliz, com a insero do item lexical pela no segmento que portador de

    menor grau de Dinamismo Comunicativo.

    verdade que o segmento que na

    sequncia anterior era portador do grau

    mais elevado de DC foi deslocado da sua

    posio inicial atravs de regras ao nvel

    da topicalizao, passando a desempenhar

    o papel de tema sem perder tal funo. Este funcionamento da dicotomia

    tema/rema em moldes diferentes da

    sequncia habitual ocorre com frequncia

    em sequncias marcadas (LOPES, 2004).

    No tocante sequncia transcrita em (2)

    Ela foi batida, no coisa para

    esconder, Ela foi batida o tema, mas

    tambm nesse contexto a informao nova,

    a que portadora do grau mais elevado de

    DC. Esta disposio em que o elemento

    mais remtico aparece como tema deve-se

    ao facto de o sujeito enunciador ter

    colocado em posio de enfoque a

    informao com o estatuto mais remtico.

    Esta informao, segundo o previsto na

    frase, efectivamente a mais dinmica

    pois, olhando para a sequncia em que ela

    se insere no discurso, a que mais

    contribui para o desenvolvimento da

    mensagem. Ora, numa sequncia no

    marcada, se salvaguardarmos os elementos

    acima referidos, teremos uma frase

    hipottica no coisa para esconder (que)

    ela foi batida. Aqui a informao que

    portadora do grau mais elevado de DC,

    passa a ocupar o lugar reservado para o

    elemento com o estatuto mais remtico, o

    lugar, portanto, previsto em sequncias no

    marcadas. O que torna tanto a primeira

    quanto a segunda sequncia infelizes tem a

    ver com as propriedades de seleco do

    verbo bater. Autores como Gonalves (1990) fizeram um estudo exaustivo sobre

    movimentos sintcticos do PM em que se

    procurava apresentar uma explicao sobre

    os processos que levam transitivizao de um verbo que, pelas propriedades de

    seleco, no pode aceder passiva no PE.

    Esta caracterstica de muitos verbos no

    PM, segundo a autora, tem como principal

    porta de entrada a gramtica das lnguas bantu, L1 da maior parte dos falantes do

    Portugus moambicano, atravs de regras

    de movimento. Tomemos o seguinte

    exemplo, que seria o equivalente na

    sequncia em anlise em Xichangana, uma

    lngua bantu do grupo Tsonga falada no sul

    do pas:

    (3) Yena abiwile, ayisvilu svakufihliwa

    (Lit:Ela foi batida, no coisa para esconder)

    Na sequncia marcada acima em

    Xichangana, vlida a mesma explicao

    apresentada para a verso do PM

    relativamente ao funcionamento da

    combinao das dicotomias tema/rema e dado/novo. Por outras palavras, yena abiwile de facto o tema, mas, porque transporta o grau mais elevado de

    Dinamismo Comunicativo, a informao

    nova. O mesmo se pode dizer em relao

    ao segmento ayisvilu svakufihla, que o rema e simultaneamente a informao

    dada. Todavia, a diferena prende-se com

    o facto de no Xichangana no ocorrer

    nenhuma infelicidade discursiva, pois a

    passiva patente no primeiro segmento seria

    feliz nesta lngua.

    Finalmente, para o caso da infelicidade no

    segmento em Portugus, a estratgia seria

    a opo por um verbo transitivo que

    pudesse salvaguardar a mensagem que o

    sujeito enunciador pretende transmitir. Um

    exemplo seria ela foi espancada, no

    coisa para esconder ou, no caso do

    correspondente no marcado, teramos o

    segmento no coisa para esconder (que)

    ela foi espancada. Os pressupostos tericos

    aqui tratados aplicam-se aos restantes

    segmentos acima apresentados, uma vez

    que as propriedades de seleco dos verbos

    dar e bater apresentam considerveis semelhanas.

    Analisando os mesmos segmentos tendo

    em conta a teoria de Hoey (2005) sobre os

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    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    50

    priming coligacionais de certos itens,

    podemos depreender que certos verbos,

    quando associados a certas unidades

    lexicais, do ponto de vista semntico,

    produzem um priming negativo, pelo

    menos luz da norma europeia do

    Portugus. O padro a produzido resume-

    se da seguinte forma:

    Aux [ser]-dar/bater [part. pasd]

    Os segmentos que estabelecem associaes

    semnticas acima analisados podem ser

    destacados da seguinte forma:

    (i) a outra [ele] foi dado um milho e meio.

    (ii) () Ela foi batida, no uma coisa para esconder!

    Cada um dos verbos acima, nomeadamente

    dar e bater cria ninhos que os circundam como resultado da propriedade

    de criatividade que caracteriza o priming

    (HOEY, 2005). Ora, dadas algumas

    restries que as associaes semnticas

    da resultantes podem sofrer em virtude

    dos falantes da variedade europeia do

    Portugus terem provavelmente resistido a

    estabelecer ligaes susceptveis de

    produzir ninhos aceitveis ao longo da histria da lngua, as combinaes em

    apreo teriam uma percentagem de

    ocorrncia muito abaixo da mdia. Por

    outras palavras, se trabalhssemos com

    uma base de dados mais representativa,

    certamente que teramos uma percentagem

    de ocorrncia de tais associaes

    semnticas prxima de zero. Como

    bvio, tal juzo seria feito em funo do

    nvel de proficincia em lngua portuguesa

    por parte dos que produzem o respectivo

    priming (marcao psico-lingustica).

    Todavia, o cenrio acima descrito j no se

    observa no caso particular do PM, uma vez

    que, nesta variedade do Portugus, as

    associaes semnticas acima ocorrem

    com maior frequncia. Por outras palavras,

    para os falantes do PM, os verbos em

    anlise estabelecem um priming com os

    elementos que os circundam nos

    segmentos em que ocorrem, o que vai

    explicar a posio de alguns linguistas,

    entre eles Gonalves (1990), para quem

    estas associaes semnticas, que resultam

    em construes estranhas norma europeia do Portugus constituiro, muito

    provavelmente, parte integrante da futura

    variedade moambicana.

    Enfoque da Anlise no mbito dos

    Moambicanismos

    Os dados recolhidos apresentam um vasto

    leque de entradas que podemos integrar no

    mbito de um possvel projecto de criao

    de um lxico da futura variedade do

    Portugus moambicano, na linha do

    Lxico de Usos concebido por Lopes,

    Sitoe e Nhamuende (2002), segundo os

    quais trata-se de traos, caractersticas e

    realizaes formais e contextuais que se

    observam na escrita e na fala, e que se

    inserem num pano de fundo moambicano,

    que define e identifica o contexto em que

    funciona o Portugus Moambicano (PM).

    As formaes PM resultam de um conjunto

    de processos lexicais, gramaticais e

    discursivos, de entre os quais podemos

    destacar alguns processos de mudana,

    nomeadamente (i) a extenso (ou

    expanso) semntica; (ii) a restrio

    semntica; (iii) a combinao de restrio

    com a extenso semntica, (iv) a

    transferncia semntica, (v) a

    generalizao semntica; e (vi) o uso

    figurativo. Os seguintes casos

    seleccionados dos nossos dados so

    ilustrativos:

    1. E disse j vendi. Sabe onde voc vendeu? Ele est ai no Mercado de Estrela Vermelha. Ento prontos, samos, viemos aqui na esquadra para

    queixar o problema. Samos com a polcia, fomos ai na no Estrela.

  • E Mabasso

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

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    2. () Tirei a bomba, fui lhe entregar quando vou lhe entregar, passou alguns

    dias, fui ter com ele, ahvenha amanh s venha amanh s 9. Vou s 9, fico l todo o dia. Ah venha s 15, ah quando acaba o dia venha amanh ou manda o mido. Mando o mido, chega l o mido acaba o dia, aparece-me

    logo a tardinha, digo como qu?

    3. Amanheceu aqui 7 horas, quando eu ia chegar, sa de novo para casa dele, hoje.

    Apanho j que ele est, meu cunhado;

    ele comeou j a contar a esse, aqui no

    casa de algum que quando enche a barriga vem abusar.

    4. Sim, mas tambm no anda, porque a bomba no est boa. Eu j disse a ele que a bomba no est boa, ele disse que

    ia l ver de novo, no veio, no foi at

    hoje. Isso de dizer que estamos a desconseguir montar no est a falar

    verdade. Ele mentiroso.

    Relativamente formao em (4) queixar o problema, estamos perante uma entrada por via da traduo do Xichangana

    kumangala mhaka. O mesmo pode-se dizer

    em relao formao em (5) acaba o dia do Xichangana kuheta siku. Formaes por

    via da traduo tendo como ponto de

    partida uma lngua bantu, so frequentes

    no PM e este fenmeno se explica pelo

    facto destas lnguas serem uma L1 para a

    maior parte dos falantes da variedade

    moambicana do Portugus. O mesmo

    pode-se dizer da formao em (6)

    amanhecer que provm do Xichangana kuxisa, o mesmo que [] ficar, permanecer em certo lugar at o romper da

    manh (LOPES, SITOE e NHAMUENDE 2002, p. 21).

    No que se refere formao em (7)

    desconseguir que no PE tem como equivalente no conseguir, trata-se, segundo Lopes, Sitoe e Nhamuende

    (2002), de um processo chamado de

    sobregeneralizao lingustica, fenmeno

    que se caracteriza pela introduo do

    prefixo des mesmo em palavras cujas bases

    apresentam limitaes para o efeito na

    norma europeia do Portugus.

    O uso destas formaes tpicas do PM por

    parte dos indiciados justificvel no

    somente pelo facto destes indiciados

    possurem um nvel de escolarizao que

    no muito elevado mas, sobretudo, pelo

    facto de a nova variedade do PM, que se

    encontra em fase avanada da sua

    formao, no se dissociar da estrutura das

    lnguas bantu (seja a nvel sintctico como

    a nvel lexical), L1 da maior parte dos

    falantes do PM em Moambique (veja-se

    Gonalves, 1990). De igual modo, a

    construo destas formaes PM est

    associada de forma intrnseca ao contexto

    scio-cultural, econmico e poltico em

    que se vai afirmando esta variedade

    naturalizada do Portugus (LOPES, 1997a).

    Tratamento de Alguns Mecanismos de

    Coeso Textual e Coerncia Discursiva

    Do ponto de vista da teoria avanada por

    Halliday e Hasan (1976) e Koch (2003)

    sobre os mecanismos de coeso, as

    construes que so objecto da nossa

    anlise apresentam algumas passagens que

    merecem a nossa ateno, muito em

    particular no tocante aos mecanismos em

    que se desencadeiam tais laos coesivos.

    Como na anlise da coeso e coerncia

    fundamental tratar a dimenso cognitiva do

    discurso, vamos tentar analisar estes

    mecanismos de coeso e coerncia

    igualmente luz da teoria dos schemata

    defendida por alguns precursores da

    psicologia cognitiva j referidos neste

    trabalho (CARRELL, 1983;

    WIDDOWSON, 1983). Tomemos as

    seguintes passagens retiradas do nosso

    corpus:

    (8) Pai da ofendida [declarante]:

    Amanheceu aqui sete horas, quando eu

    ia chegar, sa de novo para casa dele, hoje. Apanho j que ele est, meu

  • Lngua oficial, direito positivo e direito costumeiro nas Esquadras de Moambique

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    52

    cunhado, ele, comeou j a contar a

    esse, aqui no casa de algum que

    quando enche a barriga vem abusar. Aqui na minha casa. Vamos buscar

    aquelas pessoas ento? Eu estou a

    buscar esses aqui para a mesma casa.

    OK! Porqu no podemos resolver com essa nossa pessoa, que est j com

    problemas, doente, ser? Ele disse Sr. eu

    no quero saber nada. O que voc acha? Eu acho que vamos tratar a pessoa estar

    normal e vamos acompanhar ela no lar

    dela, ir falar coma famlia dela. Eh p, a

    vossa mulher esteve c em casa, mas eh p, encontrou com problemas, assim,

    assim, assim, explicar a famlia do

    marido porque o marido est na Africa do Sul. E no se pode ir entrar s

    simplesmente assim no lar! Ele nem

    quer ouvir nada! OK! O telefone o Sr. paga? Ele diz no pago nada! Dinheiro pelo menos para lhe dar

    aquecer gua para lhe tratar, disse no

    tenho dinheiro para tratar essas brincadeiras.

    (9) Pai da ofendida [declarante]: Eu

    quero dinheiro, pelo menos me dar dez contos para comprar carvo parapara ferver gua para tentar lhe lavar com

    gua quente e sal, no tem esse dinheiro para fazer essas brincadeiras. Eu desde

    Domingo estava nervoso a eles por estar

    assim, estou assumir a ela at agora.

    Para lhe tirar, lhe deixar no lar dela, donde que vem, eu tenho medo. Como

    que ela, minha filha, vai entrar? Eu

    tenho que falar com eles para ele, primo, pode haver problema Como devolver a mida no lar dela, na famlia, embora

    que o marido no est?

    (10) Agente: No lar no lar dela sabem que ela tem esses problemas?

    Pai da ofendida: Eu ontem tentei

    informar o marido, mas de uma outra maneira. No lhe falei de o tio bateu a

    sobrinha. Eu disse a mida est doente,

    est na minha casa. Ento, eu ele disse que quer falar com a mulher dele.

    Ela atendeu o telefone, ouvi falar, no

    sei o qu que falaram, no sei. Ao

    resto da famlia l, acho que ainda no

    tem conhecimento.

    Agente: Tem que tentar maneira de ir explicar a famlia l.

    Pai da ofendida: OK.

    (11) Agente: Mas do princpio a vossa

    combinao, o vosso acordo no foi esse?!

    Indiciado: Era para ir reparar, me

    entregar para eu ir montar! No falou de

    Ofendido: Ele trabalhava com um

    colego dele, o colego dele parece que

    correu com ele por causa dessedesse coisa de mfia. Eu j peguei as bombas

    com colego dele e pego as bombas e vou

    montar no carro ndziku hah! melhor, pego nas bombas e vou montar

    no carro.

    Cada um destes extractos, refere-se a

    passagens retiradas das entrevistas

    conduzidas por um Agente da Lei e

    Ordem, e os outros intervenientes,

    semelhana de todos os outros dados, so

    indiciados, declarantes ou ofendidos.

    A coerncia decorre de uma multiplicidade

    de factores de ordem lingustica,

    discursiva, cognitiva, cultural e

    interaccional. No tocante a este ltimo,

    estamos a falar da interaco entre o

    escrevente, o texto e o potencial leitor

    (KOCH, 2002). Com isto pretende-se

    reiterar a importncia dos elementos

    lingusticos e discursivos contidos no texto

    e o conhecimento e partilha do mundo

    entre o sujeito enunciador e o destinatrio.

    Se analisarmos a transcrio em (8)

    podemos depreender que os demais

    elementos por si apresentados no parecem

    mais do que fragmentos colados uns aos

    outros sem, aparentemente, nenhuma

    lgica. Muito embora, do ponto de vista do

    conhecimento lingustico, seja possvel, em

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    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    53

    algumas instncias, encontrar laos

    coesivos entre alguns elementos segundo a

    linha defendida por autores como Halliday

    e Hasan (1976) sobre a coeso textual.

    Parece-nos ser imperioso que o

    destinatrio partilhe do contexto

    situacional em que se insere o fragmento,

    por um lado, e do schema correspondente,

    por outro. Por outras palavras, a sequncia

    de elementos contidos na passagem em

    apreo no nos parece, primeira vista,

    mais do que um conjunto de proposies

    coladas umas a seguir s outras, no

    obstante podermos registar um e outro caso

    isolado de instncias que estabelecem

    relaes de coeso. Vejamos a seguinte

    passagem retirada da mesma sequncia:

    (12) [] Ele disse Sr. eu no quero saber nada! O que voc acha? Eu acho

    que vamos tratar a pessoa estar normal e

    vamos acompanhar ela no lar dela, ir

    falar com a famlia dela. Eh p, a vossa mulher esteve c em casa, mas eh p,

    encontrou com problemas, assim, assim,

    assim, explicar a famlia do marido porque o marido est na frica do Sul.

    Nesta passagem, os elementos destacados

    estabelecem um lao coesivo que contribui

    para a compreenso do trecho. O caso em

    que se insere o texto relaciona-se com um

    acto de ofensas corporais qualificadas de

    que foi vtima a queixosa, uma jovem na

    sua idade mdia. O autor material deste

    caso criminal um suposto tio da ofendida

    com quem estivera a assistir a um jogo de

    futebol no Estdio da Machava, um campo

    de futebol que se localiza nos arredores da

    cidade-capital moambicana, Maputo.

    Podemos identificar no extracto da

    interveno do pai da ofendida o recurso

    referncia exofrica estabelecida entre o

    sintagma a pessoa e o referente, como um elemento que se localiza fora do

    mundo textual, i.e., no mundo real. Por se

    referir a um elemento que precede o item

    coesivo, a pessoa, ela, dela e a vossa mulher estabelecem uma relao de

    referncia catafrica (HALLIDAY e

    HASAN, 1976). Em adio, o sintagma

    nominal a pessoa, a forma pronominal ela, o pronome possessivo dela e o sintagma nominal a vossa mulher estabelecem, de igual modo, laos

    coesivos. Todavia, para este tipo de coeso

    lexical, e socorrendo-nos de Koch (2003),

    a classificao apresentada por Halliday e

    Hasan parece pecar por no apresentar, de

    forma mais clara, os limites entre a

    referncia e a substituio. Segundo Koch,

    existem estudiosos que defendem que toda

    a co-referncia ocorre por meio de

    substituio. O mesmo autor, define

    substituio como sendo a troca de uma expresso lingustica por outra expresso

    lingustica dada (KOCH, 2003, p. 23). Por seu turno, Halliday e Hasan (1976),

    definem substituio como sendo a colocao de um item, em lugar de outro(s)

    elemento(s) do texto ou mesmo de uma

    relao inteira. Sendo assim, podemos

    considerar que os elementos em anlise

    estabelecem laos de coeso lexical por via

    da substituio, e em que a referncia

    ofendida, no caso em apreo, aparece

    substituda pelos elementos acima

    indicados.

    Conforme fizemos referncia, o segmento

    ora analisado parece-nos o nico que

    apresenta elementos que estabelecem uma

    relao de coeso, segundo a teoria

    defendida por Halliday e Hasan (1976).

    Nesta linha de ideias, os restantes

    segmentos que constituem o extracto do

    depoimento do declarante no sero seno

    uma srie de ideias coladas umas s outras

    e que no final no constituem textura

    (IBIDEM). Entretanto, se tomarmos em

    considerao a perspectiva defendida por

    alguns precursores da psicologia cognitiva,

    tais como Carrell (1983), de Beaugrande e

    Dressler (1981), que defendem a

    necessidade de se tomar em considerao a

    interaco que se estabelece entre o

    escrevente - o texto e o destinatrio -

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    54

    somos levados a reanalisar o fragmento

    fazendo apelo teoria do schemata.

    Efectivamente, parece-nos claro que a

    interpretao da mensagem atravs dos

    elementos lingusticos seria difcil por

    parte dos destinatrios, no caso vertente, a

    ofendida, o indiciado e, fundamentalmente,

    o Agente. Porm, dada a forma como os

    interlocutores deram continuidade s suas

    intervenes, possvel depreender que a

    mensagem foi processada e apreendida por

    todos os actores. Na verdade, todos os

    intervenientes esto cientes do contexto em

    que se insere o evento comunicativo em

    questo. Por outras palavras, na

    interveno em causa, o uso de conectores

    discursivos raro seno mesmo

    inexistente. Apesar disso, dado o facto de

    os elementos lingusticos da coeso no

    serem nem necessrios nem suficientes

    para que a coerncia seja estabelecida, esta

    alcanada atravs de elementos

    exteriores ao texto, nomeadamente o

    conhecimento do mundo por parte dos

    interlocutores, a situao e as normas

    sociais, entre outros.

    Hoey (2005) apresenta uma viso

    inovadora sobre o comportamento dos

    itens lexicais vis-a-vis os laos coesivos

    que estes so susceptveis de provocar ou

    evitar numa superfcie textual. Uma das

    reivindicaes evocadas por este autor

    sugere que as palavras (ou combinaes em forma de ninho) podem levar um

    priming a participar positiva ou

    negativamente em cadeias coesivas a colocao textual (HOEY, 2005, p. 116 - traduo nossa). Tomemos a passagem em

    (12) acima analisada como ponto de

    reflexo. O tema gira em volta de uma

    pessoa do sexo feminino que foi vtima de

    ofensas corporais qualificadas. Na

    sequncia em anlise aparece de forma

    subentendida e representada pelo

    pronome pessoal ela. Deste modo, plausvel considerarmos que se estabelece

    uma cadeia coesiva entre os itens lexicais a

    pessoa, ela, dela, a vossa mulher. Esta

    cadeia resulta do facto de o tpico da frase

    em que ocorre, no caso vertente um nome

    prprio de uma cidad de nome X, estabelecer um priming e participar nesta

    cadeia coesiva de forma positiva, o que

    pressupe desde logo a possibilidade de

    outros itens lexicais ou combinaes em

    forma de ninho poderem ocorrer de forma

    negativa. Poderamos tomar de forma

    aleatria a sequncia amanheceu aqui sete horas que aparece a iniciar o fragmento em (8). No referido fragmento, e mesmo

    sem termos um texto com magnitude

    suficiente que nos possa permitir tirar

    concluses com maior segurana, podemos

    considerar que a sequncia estabelece um

    priming negativo relativamente cadeia

    coesiva em que ocorre. Por outras palavras,

    e ignorando propositadamente o facto de se

    tratar de uma expresso com grande carga

    cultural da variedade moambicana do

    Portugus (PM), no ocorrem no

    fragmento elementos cujo surgimento

    possa ter sido provocado pela referida expresso.

    Um outro aspecto a ter em conta no que se

    refere aos laos coesivos veiculados pelos

    elementos em anlise (os do fragmento em

    12) tem a ver com o tipo de coeso na sua

    relao com o priming. Regista-se uma

    variao no que diz respeito ao tipo de

    coeso. Isto pressupe que existem

    palavras que estabelecem cadeias da

    coeso, atravs, por exemplo, da repetio

    ou de hipnimos. Segundo a viso do

    autor,

    [...] nem sempre nos referimos ao texto anterior tal como a literatura sobre a

    coeso tende a fazer-nos acreditar. O

    que faz com que no nos refiramos ao

    texto anterior () o facto de que fazemos uma marcao psico-lingustica

    que nos permite prever a coeso de tipos

    particulares de textos em palavras particulares e, portanto, prevemos a sua

    ocorrncia antes desta se verificar.

    (HOEY, 2005, p.122 traduo livre5)

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    Dito de outra forma - e socorrendo-nos do

    fragmento (12) em anlise - ao tomarmos o

    tema do segmento, representado de forma

    subentendida por um sujeito X do sexo

    feminino, activamos um priming que nos

    permite esperar que o mesmo estabelea

    laos coesivos (e acabou sendo o caso),

    antes da sua realizao prtica no texto.

    O exemplo em (9) insere-se na sequncia

    do mesmo caso de espancamento de uma

    senhora e, de novo, o pai da ofendida

    aparece na interveno na qualidade de

    declarante. Mais uma vez, a substituio

    aparece como estratgia de coeso textual,

    o que pressupe que deve haver um grau

    considervel de controlo por parte deste

    interlocutor. Vejamos a passagem em

    baixo retirada desta ltima interveno:

    (10) Para lhe tirar, lhe deixar no lar dela, donde que vem, eu tenho medo.

    Como que ela, minha filha, vai entrar? Eu tenho que falar com eles para

    ele, primo, pode haver problema. Como

    devolver a mida no lar dela, na

    famlia, embora que o marido no est?

    Se recuperarmos a mesma referncia

    exofrica estabelecida pelo pronome

    pessoal ela, no extracto em (8), referindo-se ofendida, a substituio

    aqui estabelecida pelos sintagmas nominais

    minha filha e a mida. Admitindo que cada um dos dois extractos em anlise (12

    e 13) apresenta quatro enunciados,

    podemos comparar a forma como o

    interlocutor estabelece a referida estratgia

    de coeso atravs do seguinte quadro de

    anlise da coeso (Tabela 1):

    TABELA 1: Anlise de mecanismos de coeso adoptados por um declarante.

    N do Enunciado Intervenes/enunciado Elemento coesivo

    1 Enunciado

    1 Interveno: Ele disse Sr. eu no quero saber nada.

    2 Interveno: Para lhe tirar, lhe deixar no lar dela, donde que vem, eu tenho medo.

    Dela

    2 Enunciado

    1 Interveno: O que voc acha?

    2 Interveno: Como que ela, minha filha, vai entrar? minha filha

    3 Enunciado

    1 Interveno: Eu acho que vamos tratar a pessoa estar normal

    e vamos acompanhar ela no lar dela, ir falar coma famlia dela. a pessoa

    2 Interveno: Eu tenho que falar com eles para ele, primo,

    pode haver problema.

    4 Enunciado

    1 Interveno: Eh p, a vossa mulher esteve c em casa, mas

    eh pa, encontrou com problemas, assim, assim, assim, explicar a famlia do marido porque o marido est na Africa do Sul.

    a vossa mulher

    2 Interveno: Como devolver a mida no lar dela, na famlia,

    embora que o marido no est? a mida

    Se fizermos uma reflexo luz das

    reivindicaes avanadas por Hoey sobre o

    comportamento das palavras no texto,

    temos a considerar que, partindo do

    mesmo tpico semelhana do fragmento

    em (12) acima, se forma uma cadeia

    coesiva, integrando as sequncias, minha filha, a mida e lar dela. Alis, o tpico em causa apresenta um priming

    positivo para estabelecer laos coesivos no

    fragmento (e no s).

    O autor supracitado apresenta uma

    segunda reivindicao no contexto da

    relao entre a teoria da marcao psico-

    lexical (lexical priming) e o texto em geral.

    Segundo a teoria, todo o item lexical (ou a

    combinao de itens lexicais) pode

    apresentar uma preferncia positiva ou

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    negativa a ocorrer como parte de um tipo

    especfico de relao semntica (HOEY,

    2005). Na verdade, estamos aqui perante

    uma verso textualizada da noo de associao semntica. Tomemos

    novamente o j referenciado extracto em

    (9), concretamente na sua parte inicial, e

    concentraremos a nossa ateno na palavra

    dinheiro.

    (14) Pai da ofendida: Eu quero

    dinheiro, pelo menos me dar dez contos para comprar carvo parapara ferver gua para tentar lhe lavar com gua quente e sal, no tem esse dinheiro para

    fazer essas brincadeiras. Eu desde Domingo estava nervoso a eles por estar assim, estou

    assumir a ela at agora. Para lhe tirar, lhe

    deixar no lar dela, donde que vem, eu tenho

    medo. Como que ela, minha filha, vai

    entrar? Eu tenho que falar com eles para ele

    primo pode haver problema. Como devolver

    a mida no lar dela, na famlia, embora que

    o marido no est.

    Para qualquer falante da lngua portuguesa,

    incluindo o falante de L2, dinheiro

    estabelece, certamente, um priming por via

    de associao semntica com itens cuja

    rea semntica tem a ver com nmeros comprar, pagar, produtos, banco, etc. No caso em apreo, dinheiro aparece como tema e, desde logo, no parece

    fugir regra, pois estabelece o priming com a combinao de itens lexicais como

    dez contose comprar carvo. Os dois pares de itens lexicais podem ser vistos

    como resultado de associaes

    psicolgicas que os falantes (pelo menos

    do PM) delas fazem. verdades que, para

    os falantes do PM, ambos os casos podem

    ser explicveis em termos de co-ocorrncia

    lexical. Todavia, uma vez que tanto dez contos como comprar carvo podem construir ninhos com outros itens lexicais

    como, por exemplo, uns dez contos/mais dez contos/cerca de dez contos, por um lado, e comprar algum carvo/comprar mais carvo/comprar menos carvo, por outro lado, a nica designao que nos parece plausvel a de

    priming, mais concretamente em termos de

    associao pragmtica.

    O elemento em anlise (dinheiro) estabelece um lao coesivo no extracto e

    este aparece de forma reiterada.

    Certamente que, sem se pretender colocar

    em causa o priming que dinheiro construiu, acredita-se que o enunciado, a

    ser pronunciado por um falante do PM

    com um nvel de proficincia razovel na

    lngua portuguesa (independentemente de

    ser ou no a variedade moambicana),

    indicaria uma situao de priming positivo

    para a coeso atravs do uso de uma rede

    ou laos coesivos representados por

    elementos tais como valor, valor monetrio, mola, taco, ferro, sendo estes trs ltimos parte integrante das

    formaes tpicas do PM (LOPES, SITOE

    e NHAMUENDE, 2002). O que justifica

    isto tem a ver com o facto de sempre que

    os intervenientes num litgio fazem

    escolhas de itens lexicais nas suas

    intervenes tomarem em considerao

    que estes estabelecero ou no laos

    coesivos nos enunciados em que ocorrem.

    Por outras palavras, de acordo com Hoey,

    laos ou cadeias coesivas podem

    estabelecer relaes de coeso de forma

    negativa ou positiva.

    A marcao psico-lingustica (priming)

    caracteriza-se, fundamentalmente, pela

    possibilidade de variar de pessoas para

    pessoa, de acordo com as suas experincias

    de vida, mas sobretudo por estar tambm

    intrinsecamente relacionada com o genre a

    que pertence o enunciado, escrito ou

    falado. Assim, importa referir que o

    priming de certos laos ou cadeias coesivas

    pode comportar-se de forma negativa,

    quando a sua ocorrncia resulta de

    associaes semnticas pouco comuns

    entre os falantes da lngua ou variedade de

    lngua. Recorrendo ao caso em anlise

    dinheiro, este aparece como tema e logo como ponto de partida para o priming.

    Falando concretamente do contexto em

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    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

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    apreo, trata-se de um montante no valor

    de dez contos destinados compra de

    carvo. Este combustvel usado pela maior

    parte dos moambicanos, principalmente

    os que habitam nas zonas suburbanas,

    custa, na verdade, dez meticais da nova

    famlia, moeda actualmente em circulao

    no pas. Os falantes do PM, durante algum

    perodo, principalmente aps a

    independncia, viram-se expostos a

    primings cujas associaes semnticas

    incluam o uso do lexema conto para se referirem ao montante igual ou superior a

    dois mil escudos portugueses, moeda ento

    em uso em Moambique. Ora, este

    priming, cuja frmula seria algo

    semelhante a (valor monetrio 1 +

    contos), tem resistido mudana, de tal

    forma que, mesmo com a introduo do

    Metical da antiga famlia, os falantes da

    variedade moambicana do Portugus

    mantiveram a sua co-ocorrncia. Por outras

    palavras, para os falantes do PM, nem com

    a introduo do Metical da antiga famlia,

    deixaram de associar contos no priming para valores a partir dos dois mil meticais

    em diante. Este comportamento,

    permanece at aos nossos dias, mesmo

    depois da introduo do Metical da nova

    famlia, em que o referido valor seria

    convertido de dez contos para dez Meticais. Verifica-se, porm, uma resistncia por parte dos falantes do PM

    em fazer o que Hoey (2005) chama de drift

    in the priming, (impulso na direco da

    marcao psico-lingustica).

    Conflito Entre Dois Sistemas?

    As estratgias lingustico-discursivas

    adoptadas pelos diferentes intervenientes

    ao nvel das esquadras da PRM surgem de

    um contexto scio-cultural que espelha

    uma realidade acentuadamente

    caracterizada por valores tradicionais para

    a deliberao de crimes. Para exemplificar,

    muito frequente os intervenientes

    gozarem de liberdade exacerbada de uso da palavra, sem serem interrompidos. Ora,

    esta prtica seria pouco susceptvel de

    ocorrer em contextos de pases de

    civilizao mais ocidentalizada ou na

    interpretao mais estrita do chamado

    Direito Positivo. Os casos de violncia

    domstica so os que tipicamente

    espelham o conflito entre a tentativa de

    manuteno de laos matrimoniais e a

    angstia dos Agentes terem que fazer valer

    a legislao aplicvel. Para exemplificar

    vrios so os casos em que a mulher, aps

    a participao de um caso na esquadra

    depois de ter sido vtima de ofensas

    corporais por parte do marido e a

    consequente notificao deste pela PRM,

    v-se no embarao de ter que manifestar o

    seu desabafo pelos sucessivos actos de agresso fsica de que tem sido vtima e,

    simultaneamente, salvaguardar a

    manuteno do vnculo matrimonial. Ao

    nosso ver, as passagens que se seguem

    servem de clara sustentao do referido

    fenmeno:

    (15) Ofendida D: Eu disse vamos juntos, ele comeou a me bater desde l

    at agora est me bater desde aqui no

    cemitrio, desde est me bater eu tenho

    dois filhos com ele est me bater desde no estou a mentir, ainda nem lhe

    dei nem uma chapada, ele esta a me

    bater, wa nyimba [em estado de gravidez] Jorge? Eu, tua mulher? Est a

    me bater?

    Neste fragmento, a ofendida descreve

    perante o Oficial de Permanncia e de

    forma emocional o episdio que resultou

    na agresso de que foi vtima. Tratando-se

    de uma pessoa em estado de gravidez, o

    caso deveria, em princpio, merecer um

    tratamento especial, dada a sua delicadeza.

    Como resposta, o Agente apela ao bom

    senso, como se pode verificar no

    fragmento abaixo:

    (16) Agente 5: No estamos a discutir aqui mas sim a procura de uma soluo.

    Vocs esto a se exaltar de qualquer

    maneira. Ela sua esposa e ele seu

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    58

    marido. O que acontece que vocs no

    sabem brincar, assim que estava sair,

    explicava de bom modo e voc tambm no havia razo de se empurrar no sei

    qu, mas ests a ver algum que bate

    algum em frente esquadra para dizer

    que voc no tem nada a ver com a polcia

    A partir desta interveno podemos

    inteirar-nos do papel de mediador ou conselheiro que o Oficial de Permanncia desempenha na deliberao

    de certos casos nas esquadras da PRM. Ao

    invs de se restringir sua tarefa de

    produzir elementos que possam constar do

    Auto de Denncia atravs da auscultao

    das partes, o Agente redobra-se em

    esforos no sentido de encontrar uma

    soluo pacfica, consensual, i.e., fora do contexto judicial. Nos casos em que

    este exerccio se demonstrar ineficiente, a

    soluo tem passado por uma medida

    correctiva que pode ser o encarceramento do indiciado durante

    algum tempo nas celas locais.

    precisamente nestas circunstncias que a

    polcia v-se numa situao de total

    embarao, como demonstra a passagem

    que se segue:

    (17) Ofendida D: Estou a pedir, eu

    tenho filho pequeno no prende meu

    marido, ele no fez nada eu estava a

    mentir; no me tocou eu cai sozinha, no me fez nada eu que cai sozinha meu

    marido esse aqui, estou a pedir!

    Certamente, esta passagem reflecte uma

    situao que, certamente, ocorre com

    muita frequncia nas esquadras da polcia,

    principalmente quando se trata de casos de

    violncia domstica. Os Agentes vem-se

    numa situao em que, sempre que tentam

    aplicar medidas legais, so as prprias

    ofendidas que imploram pela restituio

    liberdade incondicional dos respectivos

    parceiros. Esta a razo que leva, na maior

    parte dos casos, os Oficiais de

    Permanncia a no optarem por elaborar,

    de imediato, os respectivos Autos. Para

    este caso em concreto, o extracto que se

    segue foi proferido como desabafo por

    parte do Oficial de Permanncia.

    Obviamente, este deveria ter sido o

    pressuposto inicial para o tratamento do

    referido caso:

    (18) Agente 5: Senhora, eu e os outros

    Agentes vimos e a senhora est dizer que caiu, vimos a lhe darem porrada e

    isso um crime pblico mesmo que a

    senhora pea e no meta queixa ele vai dormir aqui!

    No obstante o enquadramento legal dado

    a este caso pelo Agente, a ofendida

    implorou intensamente at que acabaram

    por libertar o seu marido, dando por

    encerrado o caso. Por detrs desta prtica,

    podem-se equacionar vrios factores tais

    como a dependncia quase total da mulher

    em relao ao homem, fonte da

    provenincia dos rendimentos financeiros

    que garantem a sobrevivncia da famlia na

    esfera domstica e possveis represlias

    por parte da famlia do marido, na

    eventualidade deste ser encarcerado. Por

    outras palavras, a famlia do marido

    encararia com muita estranheza e de forma

    revoltosa uma situao em que a mulher,

    sendo propriedade integral do marido, recorresse a uma esquadra para resolver

    um problema visto como sendo do frum

    familiar (JUNOD, 1944).

    As prticas acima descritas, e que na sua

    maior parte ocorrem numa situao em que

    o homem se encontra sob forte influncia

    do lcool, so do conhecimento da polcia.

    Os Agentes da Lei e Ordem, na posio de

    cidados, partilham do modus vivendi que

    caracteriza as comunidades que os

    circundam.

    Todavia, importa frisar os Agentes da

    PRM tem a obrigao de actuar luz da lei

    aplicvel e no sob moldes extra-judiciais.

    A ttulo de demonstrao, o Cdigo do

  • E Mabasso

    Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Cincias Sociais, Vol. 1, No 0, pp 40-61, 2012

    59

    Processo Penal, no seu artigo 1 das Disposies Gerais, prescreve o seguinte:

    A todo o crime ou contraveno

    corresponde a uma aco penal, que ser

    exercida nos termos deste cdigo.

    nico. Nos casos omissos, quando as

    suas disposies no possam aplicar-se

    por analogia, observar-se-o as regras do

    processo civil que se harmonizam como processo penal e, na falta delas, aplicar-

    se-o os princpios gerais do processo

    penal. (GONALVES, 1972, p. 13)

    Ou:

    Quando a lei tornar a aco penal

    dependente da querela, acusao ou requerimento particular, necessrio

    que o ofendido, [sic] ou as outras

    pessoas, a quem a lei confere a faculdade de acusar, promovam o

    andamento do processo.

    (GONALVES, 1972, p.41)

    Portanto, a obrigatoriedade de se dar

    encaminhamento a todo o processo que

    participado nas esquadras est prevista nos

    termos da lei, o que pressupe que toda a

    aco no sentido de anular a acusao deve

    ser feita mediante requerimento ao

    Ministrio Pblico, por parte do ofendido.

    Sem pretendermos discutir nuances

    subjacentes a este procedimento,

    acreditamos que nas esquadras, comum

    aparecerem casos considerados sumrios a

    no serem tratados mediante a abertura de

    um Auto, mas sim por via de uma espcie

    de conversa informal. Em muitos casos,

    isto acontece quando o ofensor demonstra

    algum sentimento de arrependimento

    perante o ofendido, da o apelo ao bom senso, no sentido extra-judicial da expresso (MABASSO, 2010). Este

    procedimento ilegal que, a nosso ver, constitui marca muito forte das formas

    tradicionais de resoluo de certos crimes,

    pode constituir um foco de estmulo para

    actos de corrupo no seio da corporao.

    CONCLUSES

    Uma das principais concluses do presente

    trabalho que o uso de estratgias

    lingustico-discursivas nas esquadras da

    PRM, p.ex., a alternncia de cdigo (code

    switching) e a transferncia negativa da

    lngua materna ou interferncia, est

    associado ao fraco domnio que os

    intervenientes tm da lngua oficial,

    incluindo mesmo os prprios Oficiais de

    Permanncia. Por outro lado, verifica-se

    que as estruturas retricas e as estratgias

    interaccionais so fortemente marcadas por

    elementos do Direito Costumeiro, o que

    constitui um desafio para a elaborao dos

    Autos.

    A terminar, importa reiterar que a contnua

    excluso do uso das lnguas moambicanas

    em contextos oficiais e a adopo do

    Portugus como nica lngua oficial obriga

    a maior parte dos moambicanos a ter que

    apresentar a sua defesa nas esquadras e

    tribunais numa lngua que no domina ou

    que no domina suficientemente nos

    contextos como os que foram tratados.

    Esta situao pode pr em causa o esforo

    empreendido pelo governo moambicano

    no sentido de construir um Estado de

    Direito, um estado em que os direitos,

    deveres e obrigaes dos cidados so

    observados.

    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Catedrtico Armando Jorge

    Lopes; Ao Ministrio do Interior, atravs

    do Comando Geral da PRM a nvel da

    Cidade de Maputo; Shila e aos meus

    filhos Prince e Vinny; ao John Gibbons e

    ao Michael Walsh.

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    61

    1 The basic concept of the rights and obligations of a member of a community are deeply embedded in the fabric of language itself, and existed before there were codified laws. Furthermore, the concepts which now construct legal

    systems such as guilt and murder are available to us only through the medium of language. There is then a very important sense in which language constructs the law (). (GIBBONS, 1994, p. 3).

    2 () trials are linguistic events. Language is then central to the law, and law as we know it is unconceivable without language. Many lawyers pride themselves upon their mastery of language, and regard such mastery as a critical skill for legal professionals. (GIBBONS, 1994, p. 3)

    3 Esta informao foi retirada de um texto de apoio preparado por John Gibbons para efeitos de leccionao da cadeira Introduction to Language and the Law na Universidade de Sydney, Austrlia, em Julho de 2001.

    4 It has been established that African customary law, like any system of law, consists of a variety of different types of

    principles, norms, and rules. Some of them state wide and general principles of morality and public policy to constitute an apparently enduring ideological framework for justice. Such principles and of wide connotation, stated in multivocal terms covering many referents of wide range of actions, are flexible and be adapted to changing conditions and standards. (GLUCKMAN, 1966, p. 9)

    5 (...) we do not constantly refer back to the previous text, as the literature on cohesion would have us believe. The reason why we do not refer back (...) is that we are primed to expect cohesion of particular type of texts for particular words and therefore anticipate its occurrence in advance of its appearance. (HOEY, 2005, p. 122)