Lygia Clark Deleuze e Linhas

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    MONTEIRO,R.H.eROCHA,C.(Orgs.).AnaisdoVISeminrioNacionaldePesquisaemArteeCulturaVisua

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    ia-GO:UFG,FAV,2013

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    2316-6479LINHAS DE FORA

    Bruno Gomes de [email protected]

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

    Resumo

    A arte possibilitou Lygia Clark um novo caminho em direo vida, ou mesmo o seu contrrio,uma vida que remanejou os decursos da arte. Neste texto, traremos uma ateno para os modoscomo a obra da artista brasileira, quando ainda restrita produo de objetos, apresentou umambicioso intento por novas possibilidades. Trabalhos que ao se destiturem de uma unidadeexcessivamente autorreferente, abriram-se para o mundo, para a diferena. Assim, falaremosa respeito da importncia da linha enquanto elemento que acionava verdadeiros vetores deao nos trabalhos da artista, transgurando-se aos poucos como diferenciadora, dinmica,

    desertora e laboriosa.Palavras-chave: Lygia Clark; Linhas; Subjetividade

    Abstract

    The art enabled Lygia Clark a new path towards life, or even its opposite, a life that redirected thearts paths. In this text, we will pay attention to the ways in which the work of Brazilian artist, evenwhen restricted to the production of objects, presented an ambitious desire for new possibilities.They were woks that deprived an excessively self-referential unit and opened up to the world, forthe difference. So, well talk about the importance of line as an element that provided veritablevectors of action in the work of the artist, by transguring themselves gradually as distinctive,

    dynamic, defector and laborious.Keywords:Lygia Clark; Lines; Subjectivity

    Gilles Deleuze deniu a losoa como sendo a prtica de se criar conceitos.

    Interessado na potncia do pensamento, ele entendia que a diferenapossuauma importncia fundamental para se atestar o exerccio do mesmo(DELEUZE,

    2008). Assim, identicava no ato de pensar, a capacidade de produo de

    diferena; no reduo primazia de generalizaes prvias, colocando em

    voga o novo derivado do desdobramento do homem na multiplicidade ontolgica

    que o tempo. Ao nos apropriarmos desta acepo de Deleuze a respeito da

    Filosoa, possvel o deslocamento dessa perspectiva de modo a repensarmos

    o signicado da prtica artstica, mas com a ressalva de ser apenas fruto de uma

    inteno provocativa inicial. Se Deleuze armava que a losoa era a prtica dese criar conceitos, o que diria Lygia Clark a respeito da prtica de se produzir

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    2316-6479arte? No seria difcil especulara resposta da artista. possvel encontrarmos

    um vasto material documental de relatos, conversas e depoimentos que a mesma

    deixou para a posteridade. Arte como prtica de se produzir vida, sobretudo,

    formas de vida. Esta poderia ser uma denio facilmente atribuda a Lygia, ouat mesmo, a tantos outros artistas que trabalharam nessa fronteira conituosa

    na qual no se sabe ao certo onde est a arte e onde est a vida.

    Se a arte pode ser pensada tambm enquanto prtica de produo de

    vida, suas estratgias de ao no somente adquirem um comprometimento

    com o esttico, mas tambm com opoltico, se que essas duas noes j no

    possuem uma imanente inter-relao, como bem nos oferta o sensvel hetero-

    gneo de Jacques Rancire (POISIS 17, 2011, p.169). Ainda mais, se pensar-

    mos que a inerncia da poltica nas relaes entre os homens (ARENDT, 2010)

    tambm pode legitimar a inerncia da esttica na relao entre os mesmos,

    anal, possvel pensarmos as prticas artsticas como formas que intervm

    na distribuio geral das maneiras de fazer e nas suas relaes com manei-

    ras de ser e formas de visibilidade (RANCIRE, 2005, p. 17). A arte tambm

    responsvel por potencializar discursos e nveis de signicao, lidando com as

    diferentes produes de verdades e discursividades que insurgiram nos mais

    variados contextos civilizatrios. Logo, temos a evidncia de que conguraes

    que rearranjam, aceleram, desaceleram ou desarticulam os signos da lingua-

    gem, estabelecem novos nveis de produo de sentido. Assim, a arte propeuma inteligibilidade que adquire teores subjetivos, recodicando os signicados,

    inuindo diretamente nas formas de pensamento, fala e escuta. Sendo, justa-

    mente, esta a fronteira entre os condicionantes poltico e esttico.

    Rememorando as noes determinantes para uma Filosoa da Diferena,

    notamos que esta linha de pensamento foi responsvel por conjugar interesses

    comuns dos lsofos que a representavam, uma vez que se convergiam ao sinali-

    zar a necessidade do pensamento habitar deslocamentos, rupturas e desvios. Era

    a defesa de um pensamento que lida com a potncia que lhe inerente, com umacapacidade mais genuna de contato com o altero, construindo novas formas de

    enunciao. Nomes como Deleuze, Derrida, Foucault e Guattari, fazem parte des-

    sa linha losca que tem como expoentes Bergson, Espinoza e Nietzsche, e que

    sinalizava grande interesse por tudo que era plural, diverso e singular, ao invs de

    uma losoa baseada em ideais universais e numa totalidade ampliada. Eles ates-

    tavam a negao de uma igualdade e comunidade ligadas a intenes unicado-

    ras e conciliatrias, creditando outros universos possveis e toda multiplicidade de

    caminhos e composies decorrentes de um mundo errante, desordenado, dese-quilibrado e pouco denitivo. Assim, o pensamento da diferena enxerga o homem

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    2316-6479como fruto de uma criao de sentido, de contnuas buscas por signicao, fruto

    de um viver disposto a constantes transformaes.

    Podemos considerar de alguma forma que a produo de Lygia Clark tam-

    bm atestou a potncia do pensamento da diferena, porm, lanando mo do

    condicionante artstico, ou coeciente, rememorando a notria assertiva de

    Marcel Duchamp. Foi uma produo interessada em acionar novos modos de

    expanso e propagao, indo desde a gnese plstica e toda a sua latncia

    orgnica signicante, at a insero de agentes humanos dentro das prprias

    proposies artsticas.

    Atentemos para a primeira fase de sua obra, algo que podemos circunscre-

    ver at meados de 1963. Durante aquele perodo, percebemos que o desejo pelo

    circunstancial era um norte de ao que aos poucos ia amadurecendo processos

    investigativos prprios. O seu trabalho at aquele momento, ainda restrito pro-duo de objetos, cada vez mais dava vazo a um desejo de expanso, de uma

    arte que ambicionava a oscilao, os atravessamentos, erigindo uma inteligibili-

    dade composta entre foras distintas. Assim, Lygia ia deliberando a emergncia

    da relao entre obra e mundo.

    Esse anseio se materializava em operaes que repunham num comedido

    elemento, toda a sua potncia desejante. Esse elemento era a linha. A sua im-

    portncia insurgia como ndice e manobra de uma potncia potica que respin-

    gava dos trabalhos. Inegavelmente, sendo algo que tambm ecoava em certaessncia construtivista do primado plstico e sua ambio de conquista de mun-

    do, assim como o grau zero malevichiano por exemplo.

    A linhasurgia enquanto uma possibilidade de problematizao que inquie-

    tava tanto seus Contra-Relevos e Espaos Modulados quanto as estruturas

    articulveis e de cunho interativo, como os Bichos, Trepantese Caminhando.

    Lygia notou a capacidade deste elemento em estabelecer processos de

    diferenciao nos compostos matricos das obras. Carregava a possibilidade de

    instaurao de desvios, sugerindo novas cartograas sensveis para uma obracuja existncia ambicionava uma expanso, desmembrando-se de uma compo-

    sio fechada em si mesma, unitria.

    Neste sentido, a linhafoi a emergncia de uma condio disruptiva a qual

    se submeteram os processos de signicao das obras. Foi indcio de um de-

    sejo em ampliar suas possibilidades no mundo; de uma inquietude que aos pou-

    cos foi amadurecendo como impermanncia. Ela era ndice de uma estratgia

    de ao, de conquista de territrio por meio dos interstcios. E desta maneira,

    as obras de Lygia atestavam uma poltica dos interpostos, das dobraduras, das

    exibilidades, das fendas... Mostrando a importncia de se pensar em novas

    sintaxes a m de promover novas ocorrncias.

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    2316-6479O incio deste processo na obra de Lygia Clark foi com a cunhada linha

    orgnica, termo criado pela prpria artista. Essa noo representou um direcio-

    namento de pesquisa crucial para o desenvolvimento do seu trabalho em diante.

    O conceito foi fundamental para que ela entendesse a profundidade da consti-tuio objetual da obra, sobretudo atravs de certa capacidade de autonomia

    que demarcava uma existncia particular a elas e que, mais tarde, assentando

    melhor esse processo de expanso, atestaria a relao do espectador com as

    mesmas como determinante para a consolidao desse decurso investigativo.

    A descoberta da linhaque separava duas superfcies planas de mesma cor

    no espao pictrico fez Lygia no somente atentar para a plasticidade dos en-

    contros entre planos distintos, mas entrever uma suposta existncia ocasional ali.

    Efetuava-se um dilogo entre materialidades de mesma natureza, porm de uma

    forma quase autnoma. O que a interessava no era somente o valor equnime

    daquele interposto linear, capaz de equalizar-se atravs de uma existncia nego-

    ciante entre mesmas latncias cromticas, porm, de superfcies distintas. A artista

    percebeu a linha orgnicacomo um condicionante responsvel por delimitar uma

    interao que oscilava entre o virtual e o real. Os Espaos moduladosmostram a

    presena da linha orgnicajustamente no encontro entre os planos pretos. Aquela

    descontinuidade no era apenas uma delimitao do espao de cada superfcie,

    ela indicava que a substncia pode adquirir variaes, latncias ou sobreposies

    que a diferencie mesmo do que comum sua natureza. Em algumas obras comonos Contra-relevos,a linha promove a protuberncia de um dos planos sobre o

    outro, fazendo surgir um vrtice entre eles, assegurando uma complementaridade

    que no se d por meio do contnuo, mas sim, do descontnuo.

    A simples delimitao das superfcies de mesma natureza cromtica era

    pouco. O que era posto em voga ali eram as ocasies dos encontros entre

    os diferentes planos. Havia uma ciso, uma continuao descontinuada, um

    desdobramento daquela multiplicidade ontolgica, indcio de um orgnico ainda

    comedido. A obra se autoarmava como dimenso, possibilidade de encontrosentre planos descontnuos, mas que enquanto estrutura, se permitia o ocaso de

    conjunes menos preocupadas com demarcaes, e sim, com incompletudes.

    Agora, as suas ocasies desdobravam-se em ocorrncias.

    Da diferenciao dinmica

    Os Bichosso obras emblemticas do trabalho de Lygia Clark. Em 1960,

    ela criou objetos de placas de metal polido dispostos em planos geomtricosse articulando por meio de dobradias, capazes de adquirir uma innidade de

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    2316-6479conjugaes formais. Ilustravam o direcionamento que o pensamento artstico

    de Lygia seguiria dali a diante. A sua obra se transgura em ao. A possibilidade

    de manipulao dos espectadoresprope um outro lugar para o dado artstico.

    O ocasional coloca a impermanncia como fundamento potico do trabalho. Aoespectador, abre-se a possibilidade de ser cmplice, tendo no seu gesto o fator

    primordial para a obra se projetar enquanto possibilidade de construo coletiva,

    no mais uma relao de passividade.

    O toque na obra descobridor de uma gratuidade que sinaliza uma parce-

    ria. Abrandam-se as excessivas impassividades comportamentais daqueles que

    tinham de se resumir ao seu lugar de origem. O que transborda agora um de-

    sejo difuso. As relaes so consensuais e a irredutibilidade da obra ao mundo

    impelida pelo direito de se reservar diferena.

    Assim, a importncia que a linhapassa a adquirir est justamente na sua

    capacidade em instaurar uma realidade orgnica. Esse orgnico congura um

    metabolismo ativo, dando vida ao que era antes inanimado.

    Nos Bichos, a linhase consolida enquanto estrutura capaz de gerir uma eco-

    nomia das novas zonas e interfaces de contato. O eixo das dobradias o axioma

    de uma negociao entre diferentes temporalidades. Dessa forma, notamos que

    a linha orgnica adquiriu consistncia, enrijecendo as tenses entre os planos

    distintos, no apenas delatando, mas sim, propondo uma existncia subjacente

    s superfcies, que ao dinamizarem suas atuaes, incorporam uma capacidadede articulao por meio de um composto j tridimensional que vai alargando o seu

    alcance. Agora entrev a irresistvel oferta a uma existncia conjugada.

    A linearidade da linha orgnica dos contra-relevos e superfcies moduladas

    ganha dinmica. Antes, era ndice dos encontros transmutados em desencontros,

    um descompasso formal que no induzia a um desequilbrio propriamente. Era uma

    equao varivel entre as superfcies. A discreta diferenciao da linha orgnicapunha

    o espao em negociao, ou, ao menos, indicava a possibilidade desta negociao.

    Nos Bichos, a linha literalmente presentica essa aspirao variao a que sesubmetem as superfcies. Ela a propositora dos processos de diferenciao, sendo

    responsvel por lidar com possibilidades de novas cooperaes a todo o momento

    impostas pela articulao dos planos mediante a intromisso de foras exteriores.

    Lygia percebeu que o ensejo da autonomia da forma pictrica era uma maneira

    de eliminar certa condio subjetivista e trgica da obra. A circunstancialidade

    da conjugao de seus elementos constituintes se tornaria determinante no

    somente para subsumir uma suposta alforria, mas sim, acentuar o direito a uma

    existncia fortuita. Por conseguinte, a linhatorna-se o nexo capaz de asseguraressa articulao aos novos modos de ser de suas obras.

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    2316-6479Os Bichos foram os primeiros trabalhos que efetivaram uma dinmica de

    diferenciao constante. No se furtaram ao direito de se articular. A impermanncia

    colocava a existncia num entre-mundos, no qual, o estar em comum no provinha

    de uma conciliao, mas sim, de um estar entre uxos, confrontando-se s novaspossibilidades das interminveis composies e recomposies constantes.

    Assim, surgiu uma linhadinmica que infringiu a impassibilidade das qui-

    nas, dos cantos, das esquinas. Elas agora se incumbem de uma tarefa movente,

    recebendo estmulos alheios a si por fora de um entorno impermanente, prprio

    de uma inquietude fundamental para sua vitalidade. A linha conduz o obstinado

    desejo por um incessante continuar por parte da obra. De uma obra que se

    alicera no irrevogvel direito de seu funcionamento operar inequivocamente as

    engrenagens que a mantm viva. Dando ateno para uma existncia que se

    reserva a um continuado processo de deambulaes e errncias atravs de si

    mesma, como que abrindo oportunidades para se avivar outras formas de ha-

    bitar o mundo. O plano pictrico entregue ao dissabor de uma vida reticente,

    posto que, uma vez protuberncia, tambm pode se resumir a ser a base, supor-

    te da estrutura, alicerando a liberdade de seus pares, atuando rente ao cho,

    escondido, porm, ansioso a novas oportunidades de movimentao.

    Desta forma, a linha proporciona a oscilao determinante para uma exis-

    tncia composta, prpria de uma obra que parte de uma conjugao, ambicio-

    sa por um entorno cmplice que a convoque de modo a manter o curso de suacirculao. A prerrogativa a mobilidade. No entanto, esta pode presumir uma

    gratuidade, que de fato no nega uma atuao pura e destituda de grandes

    elucidaes, contudo, o seu nobre propsito de manter viva uma ambio mvel

    carrega uma signicncia que o impossibilita de ser pormenorizado.

    Linhas desertoras

    Os Trepantesso trabalhos que j apresentam outro comportamento dalinhadentro de suas gneses matricas. O desdobramento da etapa anterior

    evidente; se nos Bichosa diferenciao da linha orgnica adquire uma potncia

    dinmica e processual sujeita a interferncias externas, nos Trepantessua ao

    se modica. A variabilidade proporcionada pelo eixo articulvel dos Bichosbeira-

    va uma economia dos afetos, sua rigidez era um interposto capaz de gerir uma

    condio processual que propiciava contnuas conguraes e reconguraes.

    que a obra sobrevivia mediante atravessamentos temporais, e logo, necessi-

    tava de um elemento capaz de reger esse processo de negociao irresoluto.Assim, nesses trabalhos, que eram feitos tanto de alumnio quanto de borracha,

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    2316-6479nota-se uma nova estratgia de ao da linha. E, diga-se de passagem, quando

    eram feitos de borracha, recebiam a denominao Obra mole.

    A linha, alm de adquirir exibilidade, passa a se projetar enquanto rami-

    caes. Inicialmente ndice, agora redimensiona a sua atuao, sua ativao um desgarro, a dinmica negociante no faz mais sentido, ela no mais media ou

    conjuga, mas promove, ou melhor, substancializa os desvios. A ao desviante

    incorpora o devir linha; se embrenha, se prolonga, se desmembra, ativando graus

    de potncia nos traados desertores, ainda partes de uma unidade autoreferente.

    A desero no implica uma ciso, destituio de sua natureza originria,

    apenas o desejo de uma obra que no se permite denitiva. Sua diferenciao

    promove uma latncia que desregula, que se desmembra de sua prvia inteireza.

    Assim, ocasiona-se uma nova orientao espacial, onde desmembramentos se

    ramicam atrelados a substncias terceiras. Essa possibilidade de atrelamento

    a uma realidade outra o fator que atesta a capacidade dos trabalhos lidarem

    com atravessamentos temporais e espaciais, estando sempre sujeitos a novas

    misturas. Logo, notamos que essa possibilidade de se congurarem novos

    entrelaamentos ultrapassa uma suposta constituio ainda redutvel a si

    mesma. A sua variabilidade depende de novos encontros com outros mundos,

    ou seja, o seu metabolismo condiciona um prolongamento em direo a novas

    realidades num processo de expanso vido por uma maior relao com seu

    entorno. Ela no se alimenta mais dos empurres ou condues anteriores,agora quer abraos. Desta forma, desagrega o composto autorreferente, que no

    caso dos Bichos, mesmo uma unidade aberta a variaes, ainda no possua

    um envolvimento pleno com o altero; as articulaes ainda eram internas, por

    mais que provenientes de estmulos alheios. O ritmo era externo, mas os pares

    danantes pertenciam todos ao mesmo grupo.

    Trepantes uma srie de trabalhos que consiste em recortes espiralados

    em metal e borracha dispostos a se enroscar a quaisquer tipos de superfcies que

    lhes ofertassem aderncia. A organicidade dessas obras ativa um metabolismovivo composto, implica numa grande variabilidade formal, sempre sujeita a novos

    enroscamentos. Desse modo, a linhase torna uma ramicao que possui na

    exibilidade do poder de adeso o seu maior trunfo. A obra forja uma gnese

    quase sexual; as possibilidades de atrelamentos encontram cmplices que se

    deixam seduzir. Nos Bichos, as relaes se davam no plano das negociaes,

    as novas composies que se ocasionavam estavam sempre sujeitas forma

    como os contnuos rearranjos equilibrariam a nova conjuntura estrutural. O

    equilbrio era determinante para que as aes encontrassem um dilogo queestabilizasse as variaes. Diferentemente, os Trepantespropunham um dilogo

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    2316-6479mais sensual, a obra se atranhava s superfcies, rmando uma existncia

    disruptiva, porm, compartilhada. A projeo de seus prolongamentos no espao

    assegurava um estado de criao metamorfoseante, sempre sujeito a novas

    unidades compostas. Mas ainda assim, unidades, ou seja, extenses eramicaes provenientes de um composto matrico comum, capaz de instaurar

    uma existncia insidiosa, contudo, remissiva ao direito de pertencer a uma

    mesma substancialidade. Os planos entram num processo de inquietao; o

    nivelamento opressivo; parte-se para uma emanao que s encontra sentido

    ao incinerar-se pelo outro, um outroinsituado, diga-se de passagem. o intento

    por uma ventura consentida, que nada mais anseia do que uma expanso.

    A exibilidade desses trabalhos de Lygia revela o desejo pelo circunstancial.

    A nova disponibilidade da obra enquanto um objeto do mundo, cabvel de relaes

    entre meios e universos variados, legitima o notrio desejo da artista em integrar

    arte e vida. Assim, ao abrir a sua existncia para o mundo, a obra atravessada

    por intromisses de provenincias dissemelhantes a si, revelando novas moradas

    e formas de convvio. Tais questes, apesar de indicarem uma pesquisa artstica

    cada vez mais direcionada s relaes e interpessoalidades, e logo, ao sensvel

    que se ergue da, ainda possui, notavelmente, resqucios dos princpios construti-

    vistas subjacentes escolha de uma materialidade neutra, como forma de atestar

    uma natureza primordial, genuna, despojada de subjetivismos.

    O corpo-a-corpo dos trepantes revela o desejo de emanao da obra,sendo um processo de abertura para os entre-mundosdas intersees. A no

    centralidade, sua condio incidental,permite a obra emanar sua incidncia de

    corpo vivo, de uma vitalidade que se abastece dos intentos e desvarios de suas

    errncias pelo mundo. Esse corpo-obra um corpo no mais apenas movente,

    mas que ui, que se prolonga, um ser em extenso, ambicioso, desejante.

    Assim, Lygia vai aglutinando foras que cumulam conagraes. As ca-

    madas superpostas umas s outras trazem a evidncia da disparidade material

    daqueles encontros. Isso uma maneira de tencionar a realidade. Esse mpetoque a obra carrega ao buscar terrenos compatveis, um claro anseio de no

    sucumbir ao sedentarismo. Com efeito, essa atuao ressalta o cultivo de outras

    possibilidades. A artista trafega por diferentes superfcies de inscrio. uma

    ttica de vida; subsume que a realidade furtar-se ao dever de uma realidade

    ordenada. Logo, ressaltado uma prtica artstica que dali a diante, passa a

    ecoar cada vez mais a liberdade da vida enquanto processos de criao vitais.

    A linearidade equnime da linha, passando a adquirir o estatuto das rami-

    caes, encarna uma sobriedade exvel, tornando-se capaz de alterar os sentidosde direo sempre que for solicitado. Sua existncia, ao deixar de ser apenas nego-

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    2316-6479ciadora como nos Bichos, se permite ao descomedimento como ttica de ao. Os

    traados conjugam a substncia, enrijecem plos de potncia na materialidade da

    obra, desmembramentos que no a fragmentam, no a dividem, mas que alargam

    a sua existncia. No entanto, ela ainda no rompe com o estatuto do objeto, mesmotendo sinalizado grande simpatia ao exterior que lhe avizinha. Desta forma, aps

    adquirir diferenciao, dinmica e variao, o prximo passo da linhana obra

    de Lygia Clark ser o ato, a sua indiferenciao enquanto um fazer.

    Linhas laboriosas

    Caminhando traz uma nova direo de pesquisa artstica para Lygia Clark. A

    potica da experienciao da obra, de sua ampliao no mundo e sua disposio

    a encontros casuais, conjugando, entrelaando, notavelmente uma questo

    que cada vez mais vai ganhando espao na produo da artista. A proeminncia

    do fazerganha importncia em seus trabalhos, a linha se transforma em um

    vetor de ao que precisa ser encarnado, impondo uma estratgia que dilata

    a amplitude de alcance de seu efeito.O seu procedimento, ao mesmo tempo

    em que deixava patente a potncia das articulaes e deambulaes, tambm

    revelava a ambio de uma transformao mais estrutural. A linha tornou-se

    um elemento responsvel por sustentar as manobras de ao das obras que,

    depois da linha orgnica, j passam a adquirir uma existncia compartilhadacom o mundo exterior, algo seminal para a realizao dos trabalhos enquanto

    compostos, conjugaes. Assim, a artista valida uma variao menos relacionada

    natureza material dos objetos, e mais ao nvel de sua sintaxe. O que ganhava

    relevncia era sua forma de signicao perante o mundo, ao mesmo tempo

    legitimando certo teor autnomo sua existncia, assim como, certo interesse

    em fazer desse processo de ampliao uma atuao compartilhada.

    Em 1963, Lygia props um trabalho que consistiu em um recorte feito numa

    ta de Moebius, que sem frente ou verso, propiciava uma operao minuciosa,contnua, que s se encerrava quando a espessura da superfcie do papel j no

    comportava o corte da tesoura. Assim foi denominado Caminhando.

    Como parte de um processo de trabalho que podemos determinar enquanto

    um divisor de guas, dali em diante, evidenciava-se a primazia do ato, com

    o fazer ganhando mais importncia do que a obra em si mesma; abertura a

    exerccios de gratuidade. Neste sentido, o existir vai se congurando numa ao

    incessante e indiferenciada entre sujeito e objeto. A restrio da obra enquanto

    exclusiva detentora da produo de sentidos vai se dissolvendo medida que aimportncia da vida na construo da mesma ganha cada vez mais relevncia

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    2316-6479no pensamento investigativo de Clark. A evidncia advinha da necessidade de

    se conceber a arte enquanto uma experincia ativa, rompendo com a habitual

    hierarquia dos processos de recepo de trabalhos artsticos. Assim, notamos em

    seu processo de trabalho em Caminhando, que a obra se torna uma estratgiade ao na qual os processos de signicao se do como encontros fortuitos.

    A imprevisibilidade do ato indicador de uma proposta experienciada enquanto

    aposta, destituda de predeterminaes, aberta possibilidade de um manejo

    por sobre os caminhos e descaminhos da produo de sentido.

    A relevncia e potncia desta linha s se evidenciam no momento de sua

    prpria realizao, a instantaneidade do ato assegura um abrir passagem, im-

    pondo a sua realizao enquanto fratura da matria. Realizar a obra percor-

    rer caminhos. A experincia prope um atravessamento substancialidade do

    papel; atravessamento de mundos. Em Trepantes, ao propiciar um desmem-

    bramento da forma, prolongando a sua articulao e ocasionando encontros

    efetivos com a materialidade exterior, a linhaainda se constitui uma dimenso

    grca, sua realizao representativa para uma obra que ainda possua certa

    coeso formal. J em Caminhando, como a obra transforma-se num ato, uma

    ao, a linhadeixa de ser indicativa de uma intermediao entre contextos dis-

    tintos, tornando-se a prpria ciso que a incidncia da tesoura vai inaugurando

    sobre o papel. Essa linhase confunde com um existir, sua realizao a prpria

    emanao de sua existncia. Ao cortar o papel, o participante redimensiona agratuidade dos gestos dando potncia criadora a eles, contaminando sua vida

    com vetores de poeticidade, aberturas capazes de resignicar os gestos e as

    aes supostamente mais corriqueiros da realidade cotidiana.

    Desta forma, notamos que o corte na ta de Moebius no apenas um

    mero recorte sobre uma folha de papel qualquer. Ao mesmo tempo em que

    um gesto gratuito, ele tambm representa uma ao que percorre um caminho,

    que no deixa rastros, mas que atravessa uma realidade, desmembrando-a,

    onde sua prpria travessia a possibilidade de prolongamentos. A innitude daao s encontra limite na prpria materialidade do gesto, que em determinado

    momento tornar-se incapaz de continuar a sua operao, a superfcie do papel

    se estreita e a impossibilita.

    Em Caminhando, a linha o puro labor, trabalho, operao. A sua existncia

    se d no agora, nada antes e nada aps.

    Assim, importante que nos atentemos para o carter altero dessa linha.

    A Linha Orgnicapromovia uma diferenciao entre os planos de mesma cor

    no composto pictrico, uma incompletude orgnica, prpria da materialidadeda obra, atestando um estar em comum entre diferentes dimenses de uma

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    2316-6479mesma matria. Nos Bichos,a linha lida de forma negociadora, intermedia as

    possibilidades de variao da obra perante as vicissitudes das foras externas.

    Nos Trepantes, a linha torna-se desertora de uma unidade at ento impas-

    svel a emanaes, e desta forma, busca a sua ampliao e prolongamento,oportunando novas superfcies de contato, admitindo o mundo atravs de suas

    aberturas. Assim, ao concebermos a linhade Caminhando,percebemos que a

    convergncia ou mesmo a intermediao no o seu forte. Sua ao no

    propriamente diferenciadora e nem negociadora. Tambm no h certo carter

    desertor que indique uma atuao minimamente paradoxal, j que por mais que

    ela desmembre a ta, o resultado nal da ao irrelevante para a construo

    de sentido da obra. Assim, poderamos colocar em xeque a promoo do es-

    tar em comumdessa linha, diferenciando-se de suas aes nas outras obras.

    O fato dela no ser conjugadora ou negociante, como as duas anteriores, no

    impede sua potncia de trnsito e contato. Ela se coloca enquanto disrupo de

    uma ao que innitamente se alonga, que promove um caminharcapaz de

    dissolver as fronteiras existentes entre as descobertas e os rompimentos, tudo

    passa a fazer parte de uma contnua construo, na qual o comum tambm

    aquilo que atravessa e dilata.

    Mas comumcomo um por vir, no poder querer dizer uma identidade

    comum, no quer dizer o idntico, a unicao ou uma identicaocom uma substncia ou essncia dada, como uma matria ou corpocoletivo, na qual aquilo que somos ou podemos ser se encontra fundi-do, dissolvido, moldado, apropriado. O comumseria, antes de mais eprimeiro que tudo, indcio e sinal de nossa nitude, do fato de que po-demos, com aqueles com quem no temos nada em comum, ter pelomenos isso em comum. nessa gura do comumcomo algo que estem potncia e que est em expectao, como trao da incompletude edo inacabado que cabe a cada um, que o espao do comum se abre.S nessa abertura partilhada, de uma escassez ontolgica comparti-lhada, se poder tornar necessrio tomar parte na articulao da co--existncia e do estar-em-conjuntodos humanos. (SILVA, 2011, p.17)

    As palavras do lsofo portugus Rodrigo Silva nos convocam a esse

    mesmo desejo de expanso de um comum que no mais se resume a uma

    substancialidade unicadora. Assim, as linhas laboriosasoperam uma produo

    ativa da realidade, numa cadncia que engana. O corte da tesoura no

    desagrega, muito menos destri como poderamos suspeitar. Pelo contrrio,

    erige um caminho que repousa sua ambio no desejo pela fratura da presena,

    nos evidenciando o irremedivel continuar de todas as conagraes de rastros

    e runas que permeiam o viver, assim como um interminvel processo circulante

    que a todo o momento nos permite o contato com as sobras e entornos que nos

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    2316-6479avizinham em cada caminhar. E que se ofertam constantemente a ns, como se

    fossemos recompostos de outras unidades fragmentadas, mas ainda bastante

    capazes de repercutir nos interespaos de nossos prprios corpos.

    Essa linhainstaura um rebento interminvel. Procede numa existncia quese furta ao primado das grandes ocasies, deagra uma vida que representa

    a proeza dos exerccios de gratuidade, agora responsveis por validarem aquilo

    que comumente destoa dos idealismos, que o seu contrrio. O vigor de uma vida

    desconcertante, oscilante, incalculvel, mas no menos enervante e minuciosa.

    Por fora de uma existncia cada vez mais reticente frente s tentativas

    de contornos prvios, notamos que a disfuno de determinadas realidades

    menos uma impavidez e mais um agregar de foras que pouco desfrutam de

    visibilidade. E justamente, diante deste processo de tornar visveis as emergn-

    cias invisveis dos homens que Lygia incitou a formao de novos horizontes

    para os mesmos. Diante dessas tentativas de restituio de uma existncia so-

    terrada pelos vcios mundanos das relaes, a artista deixou claro que o prximo

    passo seria adentrar a realidade do corpo.

    Referncias

    ARENDT, Hannah. A condio Humana. Braslia: Forense universitria, 2010.

    DELEUZE. Gilles. Conversaes. So Paulo: Editora 34, 2008.

    RANCIRE, Jacques. A partilha do sensvel. So Paulo: Ed.34, 2005. P17

    RANCIRE, Jacques. Comunidade Esttica. In: Revista Poisis n 17. P. 169-

    187. Julho de 2011

    SILVA, Rodrigo( org.). A Repblica por vir. Arte, Poltica e Pensamento para o

    sculo XXI. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2011. P17

    Minicurrculo

    Bruno Gomes de Almeida formado pela universidade federal de Juiz de Fora-MG, com licencia-

    tura e Bacharelado em Artes. Tambm sou mestrando em Histria e Crtica de Arte Universidade

    Estadual do Rio de Janeiro. professor de artes no ensino bsico e tambm desenvolve pesqui-

    sas prticas enquanto artista frente do coletivo Arte na Beira, que aprofunda pesquisas sobre

    prticas artsticas coletivas.