Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo...

82
Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 1

Transcript of Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo...

Page 1: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

1

Page 2: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

LÍVIO SILVA

Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas

no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

1ª Edição

RecifeLivio Paulino Francisco da Silva

20132

Page 3: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Direitos Autorais ReservadosLivio Paulino Francisco da Silva

Copyright © 2013 By Lívio Silva1ª Edição © 2013

[email protected]

Ilustração da capa por Emerson Fialhowww.emersonfialhoartblog.blogspot.com

ADVERTÊNCIA

O autor da presente obra, único detentor de seus direitos morais e

patrimoniais, autoriza apenas o uso pessoal e privado, vedados o uso

comercial, a reprodução não autorizada e a distribuição sob qualquer

aspecto, ressalvadas as hipóteses de limitação aos direitos autorais

previstas no Art. 46 da Lei 9.610/98, sem prejuízo dos demais dispositivos

legais de proteção aos direitos autorais.

________________________________________________________

S586b

Silva, Lívio. Beccaria e os direitos humanos: dos delitos e das penas no ordenamento jurídico brasileiro. / Lívio Silva. - Recife: Livio Paulino Francisco da Silva, 2013.

ISBN 978-85-916666-0-7

1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. CriminologiaI. Título.

CDD 345.81________________________________________________________

Índices para catálogo sistemático:

1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. Criminologia

CDD 345.81

3

Page 4: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

SUMÁRIO

Apresentação 06

Capítulo I - Uma nova era no Direito Penal 09

Capítulo II - Origem das penas, direito de punir e interpretação das leis 15

Capítulo III - Da Obscuridade das Leis: Idade das Trevas do Direito Penal 30

Capítulo IV - Da Moderação das Penas 40

Capítulo V - Que as Penas Devem ser Proporcionais aos Delitos 57

Capítulo VI - Da Prevenção dos Crimes 65

Capítulo VII - Beccaria Conclui 73

Considerações Finais 77

4

Page 5: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Dedico este meu primeiro livro na área jurídica a todos aqueles humanos que algum dia na face da Terra sofreram com a tirania dos poderosos. Eu sei muito bem o que é sentir na pele a mão pesada da injustiça que oprime o ser humano e dilacera sua alma. Contudo, mesmo diante desse poder esmagador, nunca pensei em desistir de mim, pois assim estaria exatamente agradando meus perseguidores...

5

Page 6: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

APRESENTAÇÃO

Nenhum outro pensador da área criminal foi tão importante quanto Cesare Beccaria

para a humanização das Ciências Penais. Sua obra máxima, Dos Delitos e das Penas1,

que será humildemente comentada e comparada na presente obra, influenciou

decisivamente o Direito Penal moderno.

Filho de um aristocrata milanês, o Marquês de Beccaria, nascido em Milão a 15 de

março de 1738, mesmo sem gostar da experiência, foi educado por jesuítas desde os oito

anos de idade. Após concluir seus estudos formais, retornou a sua cidade natal entrando

em contato com o Iluminismo, influenciando-se definitivamente pelos ideais de liberdade

espalhados por toda a Europa. Ajudou a divulgar os princípios da nova filosofia, sendo um

dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão, além de fazer parte da

redação do jornal Il Caffè, que apareceu de 1764 a 1765.

Recheado de ideais iluministas, Beccaria começou a se preocupar com as

arbitrariedades praticadas na atuação da justiça de sua época, empreendendo um estudo

crítico das leis penais vigentes, culminando na publicação, em 1764, do livro: Dos Delitos e

das Penas, livro considerado por muitos como um marco inicial do Direito Penal moderno,

dada sua influência na formulação do mesmo. Através de uma apresentação sistemática,

apontou as práticas desumanas na aplicação das penas em seu tempo, discorrendo em

seu texto de fácil leitura sobre a necessidade urgente de mudanças no regime penal da

época. O sucesso de seu livro foi extraordinário e foi logo traduzido para o francês, além

de seguidas traduções ao redor do mundo, enquanto Beccaria era saudado pelos grandes

pensadores de sua época, sendo alvo das mais vivas demonstrações de simpatia quando

de sua visita a Paris, em 1766.

Em 1768 ocupou a cátedra de Economia no Colégio Palatino de Milão, onde

lecionou por dois anos. Adquiriu grande reputação como um pioneiro na análise

econômica, tendo feito parte inclusive, a partir de 1771 do conselho econômico supremo

de Milão, continuando funcionário pelo resto de sua vida. No campo da Economia, sua

1 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.6

Page 7: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

obra mais importante foi Elementi di Economia Pubblica, baseada em suas aulas,

editada em 1804, após sua morte, que ocorreu na cidade de Milão, em 1794.

Beccaria viveu durante os momentos finais da Idade Moderna, contemporâneos à

Revolução Francesa. Tal época consistiu em um período de transição entre o sistema

feudal e o capitalista, guardando alguns resquícios do primeiro e apresentando algumas

características que direcionariam a humanidade para o surgimento do atual sistema

econômico. Era uma época onde imperava o Absolutismo, regime político autoritário,

resultante da aliança entre o rei e a burguesia em ascensão, onde o crescimento

econômico proporcionado pelas práticas mercantilistas criou a necessidade da

centralização política, favorecendo a criação de medidas protecionistas que garantissem a

expansão das atividades comerciais.

A consequência imediata da adoção desse regime político foi o enfraquecimento

gradual do poder da igreja, já que a intervenção da mesma na política limitava a expansão

comercial. O mundo ocidental começou a vislumbrar uma circulação grande de riquezas e

dividi-las com a Igreja não era interesse dos burgueses em ascensão, que achavam

melhor equipar os monarcas com exércitos mercenários a fim de garantir a independência

política dos “Estados” em formação. Com isso, todo o controle das finanças, dos exércitos,

agora nacionais, bem como da Justiça e da Atividade Legislativa passou para as mãos do

Monarca, detentor da Autoridade Absoluta em seu território. Apesar de ser um período de

grande evolução do conhecimento, em confronto com a estagnação da Idade Média, a era

do “Capitalismo Comercial” apresentou quase nenhuma mudança no Direito Penal, já que

a origem do “Poder de Punir” continuou divina, mudando apenas o “Representante

Terreno” desse poder, mantendo-se o caráter cruel e desumano dos castigos aplicados.

A Itália, reduto da Igreja Católica, foi uma das últimas nações da Europa unificadas

pelo Absolutismo. Durante a Idade Moderna a Península Itálica era ocupada por cidades-

Estado, centros mercantis dominados por pequenas nobrezas. Tais principados, ao

contrário do resto da Europa, produziram uma espécie de “Microabsolutismo” onde as

famílias que as dominavam exerciam poder de forma ilimitada. A Itália de Beccaria era

marcada por uma verdadeira tirania medieval praticada pelas famílias que controlavam os

principados. Apesar de apresentar desenvolvimento econômico proporcionado pelo

Mercantilismo, as cidades-Estado ainda apresentavam resquícios do Feudalismo, sendo

7

Page 8: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

influenciadas pelo poder político da “Igreja”, confundindo delito com pecado na aplicação

das penas, executando-as de modo completamente desproporcional e ocasionando

episódios funestos de pura vingança e manifestação de brutalidade.

Foi de encontro a esse arbítrio sem fim que Beccaria manifestou sua crítica

sistemática e consistente ao “Antigo Regime”, elaborando um texto muito à frente de seu

tempo, influenciando gerações de pensadores e mantendo-se ainda atual. A importância de

seu livro (Dos Delitos e das Penas) supera sua época, chegando até o Brasil atual,

fazendo parte de nosso Ordenamento Jurídico, tanto nos Direitos e Garantias

Fundamentais, bem como no Direito Penal e Processual Penal.

A presente obra é direcionada não apenas aos operadores de Direito na sua

acepção mais restrita, mas também a toda a sociedade brasileira, para que conheçam a

origem dos principais institutos jurídicos existentes no Direito Penal, a fim de que possam

valorizar a conquista dos séculos de lutas que a humanidade travou contra toda a injustiça

praticada nesse período negro da Humanidade. Mesmo que ainda ocorram muitas

injustiças em nossa sociedade atual, nada pode ser comparado às atrocidades praticadas

nos tempos do “Antigo Regime”, uma época nefasta, onde imperavam o misticismo, a

intolerância, o preconceito, a insegurança e a crueldade na aplicação das penas.

O objetivo principal deste singelo estudo é o de interpretar a obra de Beccaria à luz

de nosso Direito Penal atual, identificando suas principais ideias presentes em nosso

Ordenamento Jurídico, reforçando ainda mais a importância desta obra prima das Ciências

Criminais para nossa sociedade, claro sem a mínima prepotência de esgotar a discussão,

visto que é na construção dialógica da sociedade que nós, homens e mulheres, tornamo-

nos todos cidadãos humanos. Em meio a esse objetivo principal, em determinados trechos

considerados relevantes, geralmente no fim dos capítulos, ou após conteúdos de

importância para o Direito Penal, será incluída uma seção oportunamente chamada de

“Ponto de Reflexão”, onde serão analisados assuntos relacionados com o conteúdo do

trecho e de extrema relevância para a Criminologia atual.

Uma ótima leitura,

Lívio Silva

8

Page 9: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

IUMA NOVA ERA NO DIREITO PENAL

Em seu prefácio, Beccaria vem nos trazer um pouco da História do Direito, fazendo

uma alusão crítica ao Corpus Juris Civilis, principal compilação do direito romano,

publicado por ordem do imperador Justiniano, constituindo um conjunto de legislações

esparsas, reunindo inclusive todas as constituições anteriores ao reinado de Justiniano,

vejamos então:

“Fragmentos da legislação de antigo povo conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou em Constantinopla, há doze séculos, combinados depois com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são o antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis;[...]”2 (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

O autor continua sua crítica à referida legislação destacando a influência da mesma

no direito de sua época, considerando-a fonte jurídica dos abusos cometidos no “Antigo

Regime”, delineando o caminho que será percorrido pelo seu livro, conforme a seguir:

“É esse código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros, que desejo examinar nesta obra. Ficarei limitado, contudo, ao sistema criminal, cujos abusos terei a ousadia de apontar aos encarregados de velar pela felicidade pública, sem me preocupar de impor ao meu estilo o encanto que faz a sedução dos leitores comuns.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

2 Como em cada início de capítulo da presente obra será feita referência a quais capítulos do livro de Beccaria pertencem os trechos citados e comentados, não vislumbrei a necessidade de indicar as respectivas páginas. Por conseguinte, a fim de diferenciar das citações de outras fontes, que serão feitas no rodapé, coloquei apenas a autoria e o nome do livro, bem como foi convencionado que as citações da obra de Beccaria seriam formatadas com recuos de 8cm (Esq.) e aproximadamente 0,7cm (Dir.), com o texto escrito sob a fonte Times New Roman, de tamanho 12 e em tipo Itálico.

9

Page 10: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Inicia sua introdução destacando o caráter segregativo das sociedades, baseadas

na concentração de poder e riquezas, onde pouquíssimos têm privilégios, relegando a

maioria aos martírios e aos piores frutos, transferindo esse perfil para o âmbito do direito

criminal vigente à época, repleto de normas elaboradas para a conveniência da minoria

privilegiada, vejamos:

“As vantagens da sociedade devem ser distribuidas equitativamente entre todos os seus membros. Entretanto, numa reunião de homens, percebe-se a tendência contínua de concentrar no menor número os privilégios, o poder e a felicidade, para só deixar à maioria miséria e debilidade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Cesare Beccaria continua a introdução falando sobre a origem ideal das leis, que

devem ser produzidas a fim de se beneficiar a sociedade como um todo, evitando que sua

elaboração fosse animada por sentimentos egoístas da minoria prestigiada com o poder,

confiramos portanto:

“Percorramos a história e constataremos que as leis, que deveriam constituir convenções estabelecidas livremente entre homens livres, quase sempre não foram mais do que o instrumento das paixões da minoria, ou fruto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido orientar todas as ações da sociedade com esta finalidade única: todo o bem-estar possível para a maioria.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Faz-se importante destacarmos que o panorama político-jurídico-social, no qual o

livro foi escrito, estava inserido num momento de transição, posterior ao renascimento

cultural, onde Política e Economia moldavam-se aos requisitos exigidos pela “Nova Ordem”

que se preparava para chegar.

Dessa forma, era natural a existência de resquícios do feudalismo operando

plenamente nas instituições sociais vigentes, principalmente na resistência à visão do

10

Page 11: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

homem como indivíduo único, dotado de razão e de vontade própria, ou seja, dotado de

personalidade, fazendo com que as pessoas fossem classificadas apenas como nobres e

vassalos: como “torturáveis e não torturáveis”3.

Nesse sentido, sob a alcunha de “Verdades Filosóficas”, o autor vem nos mostrar o

desenvolvimento proporcionado em seu tempo pela nova perspectiva humanista da

sociedade, fazendo ressalvas ao atraso na mudança da forma de aplicação das penas,

onde, ao contrário de outras áreas do conhecimento, não houve avanço algum, relegando

a humanidade à barbaridade bestial praticada nos tribunais, quando da época em questão,

conforme veremos a seguir:

“As verdades filosóficas que têm sido divulgadas por toda parte pela imprensa, mostraram finalmente as reais relações que unem os soberanos aos seus súditos e os povos entre si. O comércio ganhou incentivo, e entre as nações declarou-se uma guerra industrial, a única digna dos homens sábios e dos povos organizados.Contudo, se as luzes do nosso século já conseguiram alguns resultados, ainda estão muito distantes de ter dissipado todos os preconceitos que alimentávamos. Não houve um que se erguesse, senão fracamente, contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais. Não houve quem se ocupasse de reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislação tão importante quanto descurada em toda a Europa.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

“Contudo, os dolorosos gemidos do fraco, que é sacrificado à ignorância cruel e aos ricos covardes; os tormentos terríveis que a barbárie inflige em crimes não provados, ou em delitos quiméricos; a aparência repugnante dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os desgraçados, que é a incerteza; tantos métodos odiosos, difundidos por toda parte, teriam por

3 Lembrando o diálogo de um personagem do escritor Graham Greene, citado pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco, Luciano Oliveira, em seu livro, “Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura”; no qual o referido personagem anuncia que “apenas os pobres, de qualquer parte do mundo, são torturáveis”.

11

Page 12: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

força que despertar a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

“Não houve quem se ocupasse de reformar a irregularidade dos processos

criminais”, constitui o grande destaque de Beccaria nesse trecho de sua magnífica obra,

pois segundo ele, as luzes do seu século (Iluminismo) não haviam sido suficientes para

eliminar o sem número de barbaridades praticadas pela justiça daquela época, anunciadas

pelo autor em seu valioso livro. Assim, Beccaria traz pra si a missão de denunciar os

abusos cometidos no “Antigo Regime”, contraditórios ao novo conceito de humanidade

propagado pelos ideais iluministas, que influenciaram as sociedades em desenvolvimento

industrial. Portanto, o autor delineou ainda mais especificamente o cunho filosófico e

denunciador de sua obra, ocupando-se de estudar o tema profundamente, buscando até

mesmo as origens sociais e políticas das práticas comuns da época, questionando a

eficácia de tais procedimentos desumanos em confronto à nova Ordem Social que

despontava, vejamos:

“Contudo, qual a origem das penas, e em que se funda o direito de punir? Quais as punições que se devem aplicar aos diferentes crimes? A pena de morte será verdadeiramente útil, necessária, imprescindível para a segurança a estabilidade social? Serão justos os tormentos e as torturas? Levarão ao fim proposto pelas leis? Quais os meios mais apropriados para prevenir os delitos? As mesmas penas são igualmente úteis em todas as épocas? Qual a influência que exercem sobre os costumes?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, o autor veio convidar a sociedade de seu tempo a refletir sobre as

penas praticadas pela justiça, questionando a origem das penas e o fundamento do direito

de punir, instigando o debate sobre a justiça e sobre a real utilidade dos métodos brutais

utilizados nas sanções, propondo já naquele tempo, que remonta mais de duzentos anos

atrás, uma política social de prevenção dos delitos, antes mesmo do surgimento de uma

ciência voltada ao estudo do crime em si, antes mesmo da própria Criminologia.

12

Page 13: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

________________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:4

Se tentarmos fazer uma avaliação, na atualidade, dos fundamentos do

Direito de Punir do Estado, veremos que apesar do nosso Direito Penal ser

largamente baseado nos ideais iluministas defendidos por Beccaria, talvez a

realidade atual da sociedade brasileira leve-nos a reflexões muito mais

profundas, extensas e complexas do que aquelas realizadas na época do autor

de Dos Delitos e das Penas. A primeira delas, e talvez aquela que mais influencia

(ou condiciona) todas as outras é a inevitável submissão do ser humano aos

ditames do sistema econômico do qual fazemos parte. Tenho consciência de que

talvez estas palavras sejam alvos de críticas do tipo: “mais outro que chega pra

criticar o Capitalismo” ; ou do tipo: “lá vem o comunista falando”. Contudo, nobre

leitor, mesmo que nos consideremos totalmente a favor do capitalismo, ou

radicalmente contra, não podemos fugir do fato de que o mesmo constitui uma

realidade na qual estamos inseridos, mergulhados, já que, inexoravelmente,

fazemos parte dela.

Não há nenhuma Matrix, ou seja, não há nenhuma realidade alternativa,

estamos caminhando e respirando na nossa própria ilusão, pois somos ao mesmo

tempo mão de obra das elites que dominam os modos de produção e potenciais

consumidores daquilo que ajudamos a fabricar, tanto em matéria de produtos,

bem como de serviços. Assim, falando sobre sociedade, sobre ser humano

ocidental (quem sabe também do oriental), qualquer estudo científico, ou

reflexão (livre pensamento), que antes de adentrar ao mérito de seu objeto de

análise, não leve em consideração o sistema econômico capitalista, e,

consequentemente, o processo de globalização da economia, nos quais estamos

inseridos, não contemplará em sua plenitude as condições sócio-político-

econômicas orientadoras dos comportamentos humanos em nossa sociedade

4 Da mesma forma que foi convencionada uma formatação específica para as citações dos trechos da obra de Beccaria, também foi adotada uma formatação diferenciada para os trechos do presente livro chamados de “Ponto de Reflexão”, onde intenta-se formular reflexões críticas ao patamar atual do Direito Penal (Material e Processual) e ao Sistema Carcerário no Brasil, convencionando-se que estes trechos terão recuo de 2cm (Esq.) e de aproximadamente 1,2 cm (Dir.), escritos na fonte Tahoma, tamanho 11 e tipo Normal.

13

Page 14: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

atual, circunstâncias às quais estão submetidos todos os seres humanos,

independente de nacionalidade, credo, orientação sexual, prática política, etc...

Nesse sentido, nenhum fato social, nenhum acontecimento que venha

ocorrer na atualidade escapa da influência que a Ordem Econômica em vigor

impõe, seja de forma direta ou indireta, mostrando-se necessária sua análise

ampla, ou no mínimo, a não-negação de sua importância para todos os aspectos

da sociedade atual. Conforme diria Hannah Arendt:

“Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais”5.

Considerado isto, a título de primeira reflexão sobre a realidade da

sociedade atual, condicionadora inexorável dos institutos sociais em vigência,

continuemos com nosso estudo da obra de Beccaria.

________________________________________________________

Ao mesmo tempo, consciente da responsabilidade sob o conteúdo de sua obra,

diante da ousadia em criticar costumes tão arraigados no inconsciente coletivo, comportou-

se como um verdadeiro filósofo, preparando seu espírito para a repercussão de seu

trabalho, sem esperar frutos imediatos, contentando-se apenas em salvar nem que seja

algumas poucas almas das atrocidades praticadas em seu tempo, encerrando sua

introdução para iniciar seu estudo, conforme a seguir:

Contudo, se, ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas um inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da ventura conforta-me-iam do desprezo do resto dos homens. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

5ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17.

14

Page 15: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

IIORIGEM DAS PENAS, DIREITO DE PUNIR E INTERPRETAÇÃO DAS LEIS

Nos capítulos II a IV, o Marquês de Beccaria vem investigar a origem das penas e

do direito de punir do Estado, bem como criticar a má interpretação das lei em seu tempo,

que tendia sempre para uma aplicação cruel e desumana. É realmente uma tarefa difícil a

do filósofo comprometido com a importância de sua missão, já que seu trabalho consiste

muitas vezes em semear em terreno infértil.

Não sei se o ser humano atual, aquele que caminha diariamente por nossas ruas,

tem consciência da importância da obra de Cesare Beccaria para nossa sociedade e para

os Direitos Fundamentais. Os principais institutos jurídicos de toda a legislação penal do

mundo ocidental foram inspirados em suas ideias. A maioria dos princípios penais,

constitucionais ou não, embora relativamente respeitados pelo sistema prisional vigente,

têm clara influência de sua análise crítica e sistemática, externada através de sua pequena

grande obra.

Com o intuito de investigar a origem do fundamento do direito de punir do Estado, o

autor penetra na alma humana a fim de estabelecer o motivo que reside no íntimo de cada

um e que o faz abrir mão de um quinhão de sua liberdade para colaborar com a

manutenção da “Ordem Social”.

Assim, nosso filósofo do direito conclui que a adesão de cada indivíduo ao “Contrato

Social” deve-se a uma atitude política alimentada pelo instinto de sobrevivência em

sociedade, ou em palavras mais afinadas com o estudo da Sociologia, alimentada pela

“Solidariedade Social”, vejamos:

“Façamos uma consulta, portanto, ao coração humano; encontraremos nele os preceitos iniciais do direito de punir. Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando ao bem público. Tais fantasias apenas existem nos romances. Cada homem somente por interesses pessoais está ligado às diversas

15

Page 16: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

combinações políticas deste globo; e cada um desejaria, se fosse possível, não estar preso pelas convenções que obrigam os demais homens.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, segundo o autor, o ser humano não estaria ligado ao conjunto de normas

reguladoras da sociedade apenas por nobreza de espírito, como um super-herói dos

quadrinhos. Cada um o faz pela pura e simples necessidade de sobreviver em sociedade,

diante da qual aquele que não se enquadra em seus parâmetros e não participa de sua

manutenção, cumprindo seu papel social, é marginalizado e elencado de seu convívio, seja

por cumprir uma sanção jurídica, ou através da sanção velada, da exclusão social.

Penetrando um pouco mais fundo nesse raciocínio, Beccaria navega até o momento

histórico que marca o início da criação do Estado como ente individual de cada sociedade,

onde os homens abrem mão do estado de guerra como único meio de ascensão das

nações, para elaborarem leis que vinculem todos entre si, elegendo o soberano

representante das vontades do povo que deve guardá-las e administrar a nação, conforme

a seguir:

“Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do resto com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis do depositário das liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, aproximando-se da visão hobbesiana de Estado, o Marquês de

Beccaria nos traz a formação do mesmo como resposta necessária ao caos político

característico do “estado beligerante”, ligando este ao direito criminal praticado em seu

tempo, mostrando a necessidade da reformulação de tal sistema, a fim de que o mesmo

entre em sintonia com o pensamento que começava a se fazer vigente na época. Assim,

16

Page 17: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

estabelece o processo consensual de sacrifício das parcelas de liberdades individuais,

legitimador do Estado de Direito, como “fundamento” do direito de punir, já que o Estado

representa a “institucionalização” do consenso das vontades concorrentes na nação,

devendo portanto, criar mecanismos de manutenção da mesma, conforme a seguir:

“Desse modo, somente a necessidade constrange os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Portanto, nosso sábio elege somente o poder concedido pela reunião das parcelas

de vontades individuais como legitimador do direito de punir, pois tal poder externa a

vontade da maioria, vinculando entre si os aderentes do “Contrato Social”. Nesse sentido,

Beccaria estabelece que todo exercício de poder que se afaste deste “Consenso de

Vontades”, fundamentador do direito de punir, constitui um ato arbitrário. Em nosso

Ordenamento Jurídico, considerando a lei como manifestação formal e escrita dessa

“reunião de pequenas parcelas de liberdade”, encontramos tal raciocínio de Beccaria

estampado no mandamento constitucional presente no art. 5º, inc. II, onde dispõe:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”6.

Assim, somente a lei tem o condão de restringir a liberdade das pessoas, obrigando-

os a realizar determinados atos. É nesse fundamento elementar de nossa sociedade que

se baseia toda a atividade da Administração Pública, pois esta somente pode fazer aquilo

que se encontra previsto em lei. Do contrário, qualquer atividade estatal que provoque

repercussão na esfera individual do cidadão, restringindo a sua liberdade, tanto física como

a de expressão, mas que não esteja baseada em lei, constituirá abuso de poder do Estado.

6 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 02 jun. 2013.

17

Page 18: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

________________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

Nos tempos atuais uma discussão inevitável de ser enfrentada é aquela

que versa sobre a configuração hodierna do Estado em confronto com a

fragmentação (multiculturalismo) cada vez mais crescente no mundo. Como

consequência imediata dessa discussão, diante da realidade multicultural da

sociedade brasileira, torna-se indispensável a aplicação dos conceitos de

subculturas e estratos sociais a esse contexto.

Como todos sabemos, o Brasil é uma nação de nações, pois além das

etnias que participaram da miscigenação presente na formação do povo

brasileiro, o branco portugûes, o índio nativo e o negro escravizado, somos

também formados pela miscigenação de outras matrizes étnico-culturais

provenientes do contingente de imigrantes que chegou em nosso território no

século passado, proporcionando a composição de um mosaico étnico-cultural de

grande magnitude, diante do qual, um indivíduo que se desloca de uma

determinada região do país para outra, pode ter a impressão de estar entrando

em outro país.

Nesse mesmo espírito de diversidade cultural, até mesmo dentro de uma

única cidade, tomando o exemplo de metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro,

Recife e Porto Alegre, entre outras, encontramos padrões sociais de primeiro

mundo, com qualidade de vida altíssima, convivendo ao lado de padrões sociais

baixíssimos, completamente desprovidos de direitos sociais como saúde,

educação, alimentação e moradia, entre outros7 (o luxo vizinho do lixo),

proporcionando a existência de verdadeiros “Abismos Sociais” em uma mesma

sociedade. Portanto, considerando toda essa variedade cultural existente no

Brasil, aliada a constatação dessa disparidade de níveis de vida, é comum que

nossa sociedade tenha uma característica segregada, onde cada segmento social

forma uma cultura própria, com seus próprios mecanismos sociais,

7 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (CF/88)

18

Page 19: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

desenvolvendo valores próprios, que acarretarão na formação de uma identidade

cultural diferente para cada um desses segmentos. Ou seja, a sociedade

brasileira constitui um complexo cultural, uma cultura formada pela união de

várias subculturas.

Diante desse panorama multicultural, não é difícil constatar que se torna

impossível ao Estado atender a todos os cidadãos da mesma maneira, levando-

nos a inferir que ele não é o mesmo para todos, embora mantido pela maioria e

a lei seja para todos (em teoria). O Estado brasileiro atual, suposto consenso do

sacrifício das parcelas de liberdades individuais de seus indivíduos, não opera em

igualdade de condições para todos os seus “contratantes”. Assim, surge a

seguinte pergunta: a ação policial de repressão ao crime, realizada em

comunidades suburbanas desprovidas de poder econômico e político (favelas),

repletas de atores sociais marginalizados, é realizada da mesma forma que

àquela ação policial direcionada às classes mais abastadas (grandes empresários,

ou políticos de expressão)? Claro que não, pois a repressão policial de nosso

“Estado Democrático” age mais severamente com as classes sociais menos

privilegiadas (Labelling Aproach). Ou seja: “na favela, as balas não são de

borracha”8. Trazendo Bauman à nossa discussão, diríamos que as ações mais

prováveis de serem cometidas pelas pessoas excluídas do convívio social pleno

são justamente as mais passíveis de serem rotuladas como “crime” no código

penal. Enquanto isso: “Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de

promoção do livre comércio; roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio

de subsistência é chamado enxugamento ou simplesmente racionalização.”9 Esse

quadro social contraditório, proporcionador de exclusão social em larga escala,

no qual pouquíssimos aderentes do suposto “Contrato Social” fazem uso de suas

benesses, enseja uma revisão dos fundamentos contratualistas da formação da

8 Referindo-me à declaração realizada nas redes sociais por uma moradora do Complexo da Maré, sobre a polêmica ação policial realizada naquela localidade no final de junho de 2013, comparando o tratamento que a polícia dá às ações contra grandes manifestações sociais, geralmente cobertas com amplitude pela mídia, com as ações policiais realizadas nas comunidades menos favorecidas, diante da qual a mesma afirmou: "As balas aqui não são de borracha, aqui é fuzil. Para gente que não tem nome nem sobrenome nem mora em lugar nenhum, o tratamento é esse", - AS BALAS aqui não são de borracha. Aqui é fuzil. Por Heloisa Aruth Sturm, do jornal O Estado de S.Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-balas-aqui-nao-sao-de-borracha-aqui-e-fuzil-,1047054,0.htm>. Acesso em: 11 jul. 2013.

9 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 131.

19

Page 20: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

sociedade, forçando-nos a no mínimo reavaliar a sua efetiva validade (eficácia).

Como esperar que parcelas da população submetidas a condições de vida

extremamente precárias, desprovidas de saúde, educação e de outros direitos

fundamentais, sintam-se signatários desse suposto “Contrato Social”, sob o qual

estaria efetivamente fundamentada toda a relação político-jurídica Estado-

cidadão? Uma pessoa que já veio ao mundo nestas condições de pobreza e

exclusão social extremas, completamente desprovida de oportunidades de

emprego e de ascensão social, relegada a viver na marginalidade, sem qualquer

perspectiva de melhora de suas condições sociais, sem qualquer capacidade de

entender a razão pela qual a sua vida é tão ruim. Como essa pessoa seria capaz

de tomar consciência de que teria, supostamente, aberto mão de uma

determinada parcela de sua liberdade individual a fim de manter o bem comum

da sociedade? A pergunta que essa pessoa faria é: que bem comum é esse que

não chega até a minha pessoa? São perguntas como essas que nos direcionam a

levantar a necessidade de se reavaliar a real eficácia do “Contrato Social” que

estaria em vigor.

Feitas as presentes especulações, vamos dar continuidade ao nosso

estudo da obra de Beccaria.

________________________________________________________

Diante da análise do poder de imperatividade que o contrato social assume, o autor

vem nos brindar com a afirmação que culminou no mandamento básico de nosso Direito

Penal, o Princípio da Legalidade, vejamos:

“A primeira consequência que se tira desses princípios é que apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade aplicar uma pena que não esteja estabelecida em lei, e a partir do momento em

20

Page 21: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, somente as leis, segundo o autor, podem fixar as penas, pois caso ocorra o

contrário, julgando-se um membro da sociedade com rigor maior do que o previsto em lei,

estar-se-á negando a própria natureza do Estado, que representa o consenso da maioria,

mediante a efetivação do Contrato Social. Somos imediatamente remetidos ao

mandamento constitucional de que “não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, o

Princípio da Reserva Legal, um dos pilares de nosso Direito Penal, elaborado ao longo dos

séculos por juristas inspirados nas lições de Beccaria. Logo adiante, o autor estabelece a

segunda consequência dos princípios orientadores do dever de punir do Estado,

sabiamente dissecados pelo mesmo, a generalidade das leis e a autonomia de cada um

dos três poderes, no caso o Judiciário, cabendo apenas a este a atividade de julgar,

vejamos:

A segunda consequência é a de que o soberano, representando a própria sociedade, apenas pode fazer leis gerais, às quais todos devem obediência; não é de sua competência, contudo, julgar se alguém violou tais leis. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Resta por demais óbvia a segunda consequência elencada por Beccaria, tendo em

vista que se o Estado é formado pelo consenso das vontades de seus indivíduos, constitui

consequência lógica e imediata a submissão de todos às leis elaboradas pelo mesmo,

além de sua afirmação já trazer implícitos os princípios da “Separação de Poderes” do

“Juiz Natural”. Em seguida, Cesare Beccaria discorre sobre a interpretação das leis,

estabelecendo definitivamente a necessidade da limitação da atuação do Magistrado na

matéria criminal, conforme a seguir:

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna

21

Page 22: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

incerto e obscuro. Não há nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, quando o autor fala em silogismo perfeito entre a Lei e a ação conforme ou

não a lei, já traz no bojo de sua declaração o conceito de “Tipicidade”, que constitui um dos

elementos do delito, de acordo com a Teoria do Crime vigente em nosso ordenamento

jurídico. O entendimento presente na parte final do trecho acima pode ser encontrado hoje

em dia na proibição da interpretação extensiva da Lei Penal, consequência direta do

Princípio da Legalidade. De forma que, diante da subjetividade inerente à personalidade

humana, qualquer julgamento fica sujeito a erro se não forem previamente estabelecidos

parâmetros objetivadores da aplicação da pena, conforme o autor vem nos trazer no

seguinte trecho, vejamos:

Cada homem tem sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado de uma boa ou má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, da reunião de todas as pequenas causas que modificam as aparências e transmutam a natureza dos objetos no espírito mutável do homem. Veríamos, desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à mercê de um errôneo raciocínio ou da bile de um juiz. Constataríamos que o juiz interpreta apressadamente as leis, segundo as ideais vagas e obscuras que estivessem, no momento, em seu espírito. Veríamos os mesmo delitos punidos diferentemente em épocas diversas, pelo mesmo tribunal, porque, em vez de ouvir a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à instabilidade enganadora das interpretações ocasionais. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

22

Page 23: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

A Revolução Francesa, divisor de águas da história das sociedades, varreu o

“Antigo Regime Penal”, desumano e cruel, baseado no poder excessivo dos juízes e que

segundo Bitencourt, em seu tratado de Direito Penal, era “exercido arbitrariamente, em

detrimento da Justiça e a serviço da tirania medieval”10 (grifo nosso). Assim, no trecho

acima, Beccaria, muito a frente de seu tempo, já pensava em um Direito Penal onde o

Magistrado teria seu poder de julgar limitado pela lei, sem dar margem alguma à

especulações e interpretações pessoais do mesmo, vinculando a sua discricionariedade

apenas à lei.

Mais adiante, continuando esse raciocínio, o autor vem novamente trazer novos

conceitos que foram assimilados pelos juristas, aprofundados e transformados pelos

legisladores em vários Institutos Jurídicos que conhecemos hoje em nosso Direito Penal.

Um exemplo claro disso, é o caso da “Tipicidade”, agora mais claramente delineado

pelo autor, vejamos:

Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para indicar se esse atos são conformes à lei escrita, ou se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém simples questão de fato, então não se verão mais os cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos[...] (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Ante o exposto, vemos Beccaria propor que para a determinação da prática de

crime por um indivíduo, é necessária a existência de leis escritas e fixas, ou seja, que não

possam ser mudadas por conveniência dos envolvidos, que reservem ao magistrado

apenas a tarefa de determinar se o ato (conduta) praticado pelo acusado enquadra-se,

molda-se (tipifica-se) ao comportamento que a lei prevê para que se configure a prática do

delito.

Dessa forma, o autor inova trazendo os primeiros conceitos que levaram à

10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, volume 1. 13. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 587.

23

Page 24: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

formulação do instituto jurídico da tipicidade, consequência direta do Princípio da

Legalidade e como já mencionado anteriormente, um dos elementos constituintes do

instituto jurídico denominado “Infração Penal”, ou como popularmente conhecemos: crime.

É no trecho seguinte que o autor vem introduzir o que mais adiante, no próximo

capítulo, culminará em uma crítica ao costume de não se redigir as leis em vernáculo,

língua do país de origem, pois se as leis não forem claras o suficiente para que todos

possam entender os limites que seus atos devem obedecer o cidadão não conseguirá

distinguir o que é crime ou não, vejamos:

“Com leis penais cumpridas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e de seus bens; e isso é justo, pois que é esse o fim que leva os homens a se reunirem em sociedade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, Beccaria novamente antecipa o que será constatado poucos séculos depois:

que a melhor forma de evitar o crime é prevení-lo! De forma que, diante de um panorama

onde todos conhecem as ações reprováveis, consideradas crimes, pelo Princípio da

Solidariedade Social e da Divisão do Trabalho Social é natural que o homem médio evite-

as, a fim de não ser elencado do convívio com a sociedade.

_______________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

O caráter preventivo do Direito Penal defendido por Beccaria, que

segundo o qual o cidadão, diante da existência de condutas elencadas pelo

Estado como danosas à sociedade, dispostas em língua pátria no texto legal,

entendendo perfeitamente as consequências de seus atos quando estes

coincidirem com a figura típica prevista em lei, tender-se-ia a desviar do crime,

parece não se adequar perfeitamente à realidade extremamente complexa de

nossa sociedade. Assim, pegando um gancho no que foi destacado um pouco 24

Page 25: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

acima11, perguntamo-nos se um indivíduo, que vive em condições de pobreza e

exclusão social extremas desde que nasceu, levando uma vida completamente

desprovida de oportunidades de emprego e de ascensão social, relegada pelo

descaso do Estado a viver na marginalidade, sem nenhuma perspectiva de

melhora de suas condições sociais, seria capaz de tomar consciência de que teria

aberto mão de uma determinada parcela de sua liberdade individual a fim de

manter o bem comum da sociedade. Manter o bem comum da própria sociedade

que “nega a sua existência”! Seria esse indivíduo capaz de se sentir vinculado à

sociedade, a ponto de entender (aceitar) que determinadas condutas são

reprováveis e se ele não as praticar “gozará com segurança de sua liberdade e de

seus bens”. Pergunto: que liberdade? Que bens, se o referido indivíduo NÃO

EXISTE para o Estado, se sua presença é indesejável?

Por isso, se observamos a presente questão, passando através de uma

abordagem pautada nas teorias macrossociológicas da sociedade, em especial a

teoria formulada por Robert Merton12, perceberemos que essa consciência nem

sempre é suficiente para afastar o homem da prática delituosa, posto que

existem indivíduos inclinados a não fazer uso, seja por completa impossibilidade

ou por mera conveniência, dos meios legítimos que a sociedade elege para que

um indivíduo possa alcançar os objetivos que Merton convencionou chamar de

metas culturais. Diante dessa constatação, Merton terminou por classificar as

formas com as quais os indivíduos, diante desse conflito entre seus objetivos

culturais e os meios que a sociedade considera como legítimos para se atingir os

mesmos, partindo desde o completo conformismo (Conformidade) com as metas

culturais e com os meios institucionalizados até o outro extremo, que se expressa

através do inconformismo total (Rebelião) com as metas e com os meios

considerados dominantes, onde se busca uma nova configuração da ordem

social, como por exemplo “os movimentos de revolução social”13. Óbvio que essa

11 Trecho deste presente estudo (página 20) no qual se questiona a real eficácia do “Contrato Social” em vigor na nossa sociedade.

12 Robert King Merton, sociólogo americano desenvolvedor da Teoria Estrutural-funcionalista da Anomia, inicialmente introduzida nas Ciências Sociais por Durkheim, revolucionária na Criminologia, diante da qual se defende que a escassez de meios legítimos para a obtenção das metas culturais levaria determinados indivíduos a abandonarem as “regras oficiais do jogo social”, adotando o que o mesmo convencionou chamar de comportamento desviante.

13 SABADELL, Ana Lucia. In: CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p. 72.

25

Page 26: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

classificação, que conta com cinco modos de adaptação (Conformidade,

Inovação, Ritualismo, Evasão e Rebelião), não se mostra suficiente para abranger

todos os comportamentos que podemos encontrar na sociedade, servindo muito

mais como escala de referência para se analisar os “comportamentos desviantes”,

como Merton convencionou chamá-los.

Diante do acima exposto, restando constatado que a consciência da

reprovabilidade da conduta e de suas consequências jurídicas nem sempre é

suficiente para afastar o homem da prática delituosa, somos autorizados a

concluir que as especulações de Beccaria sobre este assunto talvez tenham sido

pensadas para um ser humano de sua época, participante da sociedade existente

naquele período histórico, não se ajustando ao dito “homem médio” que circula

por nossas ruas de hoje. Em outras palavras: a prevenção de certa forma

ingênua de Beccaria não mais se aplica à realidade da sociedade atual,

fragmentada e multicultural, especialmente à sociedade brasileira, que se

encontra imersa nessa nova faceta do capitalismo que chamamos globalização.

Nesse sentido, chamamos novamente a atenção para um ponto já

discutido anteriormente, aquele diante do qual se entende que qualquer estudo

científico, ou reflexão (livre pensamento), que tenha por objetivo contemplar a

total plenitude das condições sócio-político-econômicas orientadoras dos

comportamentos humanos em nossa sociedade deve antes de tudo levar em

consideração o sistema econômico capitalista, e, consequentemente, o processo

de globalização da economia, dentro dos quais estamos todos inseridos.

Assim, sem abandonar a Teoria da Anomia, mas deixando de lado o foco

da causa da criminalidade exclusivamente no indivíduo, estendemos este

raciocínio a um ponto de origem além do mesmo, no qual o indivíduo passa de

agente inteiramente responsável pelo crime a receptor dos efeitos oriundos do

grande sistema econômico de escala global no qual estamos inseridos, a

Globalização. É nesse momento, onde o ser humano passa a ser mera

coisificação do sistema, que se torna necessária a construção de uma teoria do

crime mais abrangente, que leve em consideração a submissão dos indivíduos a

um sistema muito maior do que um “simples Estado Soberano”, pois agora o que

parece estar surgindo (ou já ter surgido) é um “Estado Global”, onde as

26

Page 27: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

fronteiras dos países são atenuadas para darem lugar a uma economia

globalizada, onde os grandes blocos de poder econômico dominam o planeta,

impondo suas condições aos países, quer dizer, às “Economias Periféricas”, que

não podem fazem outra coisa senão seguir esses ditames.

Diante disso, uma economia mundial largamente estendida precisa de

muitos consumidores que dêem suporte à mesma, mediante o que, aqueles que

não se encontram em condições de figurar com tais são excluídos socialmente,

através do uso dos mecanismos de controle social existentes. É o que nos traz

Sérgio Salomão Shecaira, que alerta: “Assim, por mais paradoxal que possa

parecer, excluir faz parte dessa reordenação imposta pela sociedade global.

Diferentemente de uma sociedade inclusiva, a globalização afirma o fenômeno da

sociedade excludente”14. Dessa forma, a nova criminologia (Criminologia Crítica),

constatando o uso dos mecanismos de controle social previamente existentes na

sociedade para criminalizar os socialmente excluídos, vem se preocupar em

investigar as condições sócio-político-econômicas que proporcionam esse

processo de criminalização. Nesse sentido, trazemos as considerações de Lélio

Calhau, sobre o surgimento da Teoria Crítica na Criminologia, vejamos:

“De qualquer modo, é quando o enfoque macrossociológico se desloca do

comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele, em

especial para o processo de criminalização, que o momento crítico atinge sua

maturação na Criminologia, e ela tende a transformar-se de uma teoria da

criminalidade em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal.”15

Portanto, nosso ilustre filósofo foi extremamente genial em seu tempo,

mas apesar de continuar atual em muitos aspectos, nos tempos atuais, a

previsão legal (tipificação) de uma conduta como reprovável pela sociedade e

sujeita a uma sanção (pena) não se mostra mais inteiramente suficiente para fins

de coibir a prática dessas condutas delitivas, por dois motivos. Primeiramente,

considerando a Teoria da Anomia, a alta complexidade da sociedade atual, que

proporciona uma grande quantidade de subculturas e estratos sociais, dentre os

14 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 29.

15 CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p. 81.27

Page 28: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

quais existe uma grande diversidade de valores e princípios morais, faz com que

haja uma grande variedade de metas culturais a serem atingidas e como

consequência disso, os indivíduos (que agora são multiculturais) elegem os mais

diversos modos de adaptação à tensão criada pelo conflito entre as metas e os

meios legítimos de obtenção das mesmas. Em segundo lugar, a magnitude do

poder alcançado pelo sistema capitalista diante da globalização, onde só existe

para o mundo quem pode consumir, operando em conjunto com os mecanismos

de controle social formal e informal fazem com que se desenvolva um processo

de criminalização das camadas menos favorecidas (os torturáveis) da sociedade,

fazendo com que aqueles nos quais a “Etiqueta Social do Crime” cola sejam

sempre alvo da persecução penal eficiente, incorrendo inevitavelmente na

existência de “criminosos” na sociedade, pois o próprio sistema sócio-político-

econômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos indesejáveis”

através dos mecanismos de controle social.

A conclusão que podemos tentar extrair de tudo isso, é que, dadas as

condições sócio-político-econômicas apresentadas, entendemos que em sua

maioria, as pessoas que se encontram sujeitas às referidas condições, justamente

o contingente de excluídos sociais, não dependem exclusivamente de sua

consciência-vontade de delinquir para praticarem ações consideradas “infrações

penais”, pois o efeito provocado neles pela economia global deve ser considerado

como elemento constitutivo da prática supostamente delituosa, prejudicando

assim a eficácia social do sistema jurídico-penal praticado na atualidade, já que

na prática, a prevenção penal estaria baseada muito mais na determinação de

indivíduos socialmente perigosos do que na construção de condições sócio-

econômicas que não permitam a existência de panoramas extremos de exclusão

social. Ou seja, a prevenção penal eficaz depende necessariamente da

construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantidora de

desenvolvimento nacional, com o objetivo firme de se erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover

o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação16.

16 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil[...] (CF/88)28

Page 29: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Após as presentes considerações, continuemos com nossa análise da obra

de Beccaria.

________________________________________________________

Ciente do peso de sua obra, o autor encerra o capítulo com algumas considerações,

a seguir:

Esses princípios irão sem dúvida desagradar aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que suportam. Eu poderia temer tudo, se tais tiranetes se lembrassem um dia de ler o meu livro e compreendê-lo; mas, os tiranos não lêem. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Novamente, com muito desprendimento, característica dos sábios, vem nos mostrar

a consciência do impacto que sua obra causaria na sociedade da época. Mesmo assim,

não deixou de alfinetar os calcanhares dos tiranos contra quem lança sua denúncia.

29

Page 30: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

IIIDA OBSCURIDADE DAS LEIS: Idade das Trevas do Direito Penal

A partir do capítulo V, até o XIV, o autor começa a discorrer sobre o processo penal

de sua época, criticando as prisões arbitrárias, as acusações secretas, as torturas, entre

outras agressões à dignidade humana encontradas nesse procedimento. Porém, inicia

comentando a ausência das leis escritas em língua natural do país, já que em vários

países eram mantidos os códigos antigos, escritos em outra língua que não as suas,

mantendo-se o texto legal distante do entendimento dos homens comuns, fazendo com

que o conhecimento das leis ficasse sob o domínio de poucos, facilitando a distorção

tendenciosa de suas interpretações, vejamos:

Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, como um catecismo, enquanto elas forem redigidas em língua morta e não conhecida do povo, e enquanto forem, de maneira solene, mantidas como oráculos misteriosos, o cidadão que não puder aquilatar por si próprio as consequências que devem ter os atos que praticam sobre a sua liberdade e sobre os seus bens estará dependendo de um pequeno número de homens que são depositários e intérpretes das leis.Ponde o texto sagrado das leis nas mãos do povo e, quanto mais homens o lerem, menos delitos haverá; pois não é possível duvidar que, no espirito do que pensa um crime, o conhecimento e a certeza das penas coloquem um freio à eloquência das paixões.Que pensar dos homens, ao se refletir que as leis da maior parte das nações estão redigidas em línguas mortas e que esse uso bárbaro subsiste ainda nos países mais esclarecidos da Europa? (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Diante do exposto, podemos ver também mais um indício da preocupação especial

de Beccaria com a prevenção dos delitos, já que segundo ele, se os homens souberem

os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a certeza da

30

Page 31: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

punição evitará a ocorrência de mais crimes (grifo). O autor vem em seguida reforçar a

importância da existência de leis escritas em vernáculo e o papel da imprensa escrita na

divulgação das mesmas, cumprindo a função de controle social sobre as atividades da

justiça, antes reservadas ao conhecimento de poucos, conforme veremos a seguir:

Por aí se observa, do mesmo modo, a utilidade da imprensa, que pode, ela somente, fazer todo o público, e não apenas alguns particulares, depositário do sagrado código das leis. A imprensa dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intrigas, que, não suporta a luz e finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme. Se atualmente na Europa, são em menor número esses crimes horrendos que assombravam nossos pais, se deixamos finalmente esse estadode bárbarie que fazia de nossos antepassados ora escravos ora tiranos, à imprensa o devemos. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, estando as leis escritas na língua local, de fácil compreensão e sendo

divulgadas através da imprensa, passando a serem conhecidas por um grande número de

pessoas, a sociedade não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo

pelos tiranos.

Por outro lado, com o intuito firme de destacar o panorama macabro pelo qual a

humanidade passou durante a “Idade Negra” do Direito Penal, buscando fixar na memória

de todos, para se evitar que aconteça de novo, Beccaria descreveu magnificamente sua

visão do “Antigo Regime Penal”, vejamos:

A humanidade sofria o jugo da inexorável superstição; a avareza e a ambição de um reduzido número de homens poderosos enchiam de sangue humano os palácios dos senhores e os tronos dos reis. Haviam traições secretas e morticínios públicos. O povo tinha na nobreza apenas opressores e tiranos; e os que pregavam o Evangelho, enoadoados na carnificina e com as mãos cheias de sangue, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus misericordioso e de paz. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

31

Page 32: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Assim, como todos sabemos, o “Antigo Regime”, sob a desculpa de agir em nome

da divindade, oprimiu um sem número de pessoas, submetendo-as a um Direito Penal

monopolizado e interpretado por poucos, à sua conveniência, aplicando a lei através de

práticas extremamente desumanas e cruéis. Nesse sentido, o autor começa a falar da

consequência desse sistema penal monstruoso, evidenciada através do comportamento

proporcionado pelo poder dado aos magistrados da época, conforme a seguir:

“Concede-se, em geral, aos magistrados incumbidos de fazer as leis, um direito que contraria o fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao direito de prender, de modo discricionário, os cidadãos, de vedar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e, consequentemente, de deixar em liberdade os seus protegidos, apesar de todas as evidências do delito. Como se tornou tão frequente um erro tão prejudicial? Ainda que a prisão seja diferente de outras penalidades, pois deve, necessariamente, preceder a declaração jurídica do delito, nem por isso deixa de ter, como todos os demais castigos, o caráter essencial de que à lei cabe indicar o caso em que se há de empregá-la. Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatóio.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, Beccaria vem falar sobre o poder sem limites dado aos magistrados

pelo sistema penal de seu tempo. Foram muitas as prisões arbitrárias e os julgamentos

secretos praticadas em seu tempo e apesar do conteúdo presente na Magna Carta de

João sem Terra (que data do ano de 1.215) inspirar legislações de vários países há

séculos, a época aludida desprezava completamente o instituto jurídico milenar do habeas

corpus, levando o autor a criticar sistematicamente tais práticas, apontando a lei como

única fonte geradora da ordem de prisão de uma pessoa e das condições que devem ser

atendidas para se realizar tal procedimento. Nossa Carta Magna detém em seu rol de

Garantias Individuais, art. 5º, normas jurídicas reguladoras dessa atividade estatal,

vejamos algumas delas que denotam uma influência inegável do pensamento de Beccaria,

a seguir:

32

Page 33: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

“XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;[...]” (grifo nosso)

Assim, nosso autor está mais presente do que podemos imaginar em nossas vidas,

pois seu pensamento, externado através de sua análise sistemática do Direito Penal e

Processual Penal de seu tempo, tem influenciado juristas de todo o mundo ao longo de

pouco mais de dois séculos, que baseados em seus ensinamentos criaram os institutos

jurídicos que servem de base para a doutrina penal atual.

Quando nossa Constituição nos diz que a ordem de prisão deve ser fundamentada,

ou seja, baseada em critérios definidos em lei, identificamos nela os trechos da obra de

Beccaria. Quando ela diz que o preso deve saber quem são os responsáveis e o motivo de

sua prisão vemos os comentários do autor sobre as acusações secretas e os

interrogatórios forjados. Quando nossa Lei Maior diz que a prisão ilegal deve ser relaxada,

remetemo-nos a passagem em que Beccaria fala dos motivos frívolos usados pelos

magistrados para prender os inimigos. Enfim, a obra desse grande homem está espalhada

por toda a nossa legislação, que tem a dignidade da pessoa humana como um dos

fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito.

Um dos princípios existentes em nosso Ordenamento Jurídico e de grande

importância para o Direito Processual Penal é o Princípio da Verdade Real, onde se exige

que o julgador e as partes se empenhem no processo de tal forma a atingirem a “Verdade

Real”, a fim de determinar os acontecimentos exatamente como aconteceram, com o

intuito de que seja atingida a justiça. Nesse sentido, Beccaria mencionou a importância da

33

Page 34: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

independência da origem das provas e indícios, seguida de sua interligação, como meio de

se atingir a verdade real no processo penal, vejamos:

“Quando, porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

É nesse sentido que a confissão do réu deve ser relativizada, passando a ser vista

como prova comum, a teor do art. 197, do Código de Processo Penal, que dispõe: "O valor

da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para

a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo,

verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância" (grifo nosso).

Da mesma forma, destacamos o disposto no art. 158, também do CPP, onde se

prevê que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de

delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.” (grifo nosso)

Continuando na formulação do princípio da verdade real, o autor nos traz outra

demonstração de sua posição à frente de seu tempo, teorizando o Direito Penal que será

praticado séculos adiante de seu tempo, conforme a seguir:

Não se admirem de ver-me empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que, para merecerem um castigo, devem ser comprovados; pois, a rigor, toda certeza moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu consentimento, por uma espécie de hábito natural que advém da necessidade de agir que é anterior a qualquer especulação. A certeza que se instrui todos os homens nos seus mais importantes negócios. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

É a pura essência do Princípio da Verdade Real, do qual o Princípio do In Dubio Pro

Reo é corolário, desprezando-se as especulações e o “Achismo” sem fim, na busca da real

34

Page 35: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

autoria da prática de um crime, a fim de que se prevaleçam (ou pelo menos aproximem-se)

os fatos como eles ocorreram realmente, sem máscaras de injustiça.

Em seguida, após fazer algumas considerações importantes sobre as testemunhas,

dentre as quais a afirmação de que “Todo homem razoável, isto é, todo homem que

puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os

outros homens (grifo), poderá ser recebido em testemunho.” (presente em nosso

Ordenamento na figura do art. 202, CPP: “toda pessoa poderá ser testemunha”) , o autor

vem tratar de uma das questões mais delicadas do Direito de sua época, as “Acusações

Secretas”. Em um tempo no qual a pessoa que acusava e a pessoa que julgava eram as

mesmas, nosso autor já elencava a necessidade da divisão dessas funções, a fim de se

evitar a manipulação das acusações que favorece apenas a quem tem a intenção de

tiranizar, vejamos:

“Pode existir, contudo, um delito, isto é, uma ofensa à sociedade, que não esteja no interesse de todos punir de modo público? Respeito todos os governos; não falo de nenhum em particular e sei que existem circunstâncias em que os abusos parecem de tal maneira próprios da constituição de um Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o corpo político. Contudo, se eu tivesse de ditar leis novas em alguma parte isolada do universo, minha mão trêmula recusar-se-ia a autorizar as acusações secretas: pensaria ver toda a posteridade atirando sobre mim a responsabilidade pelos males terríveis que elas provocam.Montesquieu já o afirmou: “as acusações públicas estão de acordo com o espírito do governo republicano, no qual o cuidado do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos”. Nas monarquias, onde o amor pela pátria é muito débil, pela própria natureza do governo, é sábia a instituição de magistrados que têm o encargo de acusar, em nome do povo, os que infringem as leis.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Não fica difícil de identificar a figura do Ministério Público no texto acima,

demonstrando a posição à frente de seu tempo do pensamento de Beccaria e a sua

35

Page 36: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

compatibilidade com nosso Ordenamento Jurídico.

O nosso festejado autor vem novamente lançar os princípios que viriam estabelecer

os conceitos fundamentais das legislações que se sucederam, sendo inclusive o precursor

no tratamento de tortura como algo humilhante, degradante e, acima de tudo, anti-humano,

conforme poderemos constatar nos trechos seguintes:

“Esse meio infame de chegar à verdade é um monumento da bárbara legislação de nossos avós, que honravam com o título de “julgamento de Deus” as provas de fogo, aquelas da água fervente e a sorte horripilante dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, a origem da qual reside no seio da Divindade, pudessem ser desunidos ou partir-se a cada momento, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos humanas!A única diferença que existe entre a tortura e a prova de fogo é que a tortura apenas prova o delito quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas que queimam deixavam uma marca exterior, tida como prova do crime.Contudo, tal diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era antigamente de obstar, sem fraude, os efeitos do fogo e da água fervente.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, vemos o caráter bárbaro que Beccaria dá à tortura, dando como provável

origem dessa prática as provas de fogo e outras práticas cruéis da antiguidade, filhas do

misticismo e das supertições, que se aplicavam às pessoas para provar a sua inocência. A

monstruosidade de tal prática por si só já é causa de reprovação imediata da mesma.

Porém, além de desumano, tal procedimento é inútil na apuração da verdade, conforme

vemos nos trechos supracitados, onde o autor inicia suas considerações sobre a inutilidade

da tortura, comparando sua eficiência com a da bárbara prova da água fervendo, onde

esperava-se que ao por a mão na água fervendo o inocente não se queimasse...

Beccaria continua suas considerações acerca da tortura provando claramente sua

ineficiência, já que diante da agonia do sofrimento físico, a tendência natural que qualquer

um tem de evitar a dor obrigará o infeliz torturado a confessar qualquer coisa, vejamos:

36

Page 37: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Todos os atos de nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se faz muito forte para assenhorar-se de todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre qualquer outra atividade que exercer a não ser tomar, no momento, a via mais curta para obstar os tormentos atuais. Assim, o réu não pode mais deixar de responder, pois não poderia fugir às impressões do fogo e da água. O inocente gritará, então, que é culpado, para que cessem as torturas que já não aguenta; e o mesmo meio usado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer qualquer diferença entre ambos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, o autor vem mostrar que até mesmo um inocente confessará qualquer

crime diante de dor que não possa suportar, dando por ineficaz a prática de tortura para a

apuração da verdade sobre a prática de crime, se é que diante de uma suposta eficácia a

tortura deixaria ser menos hedionda. É nesse sentido que nossa Carta Magna vem nos

informar em seu art. 5º, inc. III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento

desumano ou degradante”. O autor não acaba aqui o seu intuito de provar a

monstruosidade de tal prática, mostrando em seguida a desigualdade de tratamento

proporcionada pela tortura, conforme a seguir:

A tortura é frequentemente um meio certo de condenar o inocente débil e de absolver o criminoso robusto. É esse, comumente, o resultado terrível dessa barbárie que se considera capaz de produzir a verdade, desse costume próprio de canibais, e que os romanos, apesar da dureza de seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tantos elogios tem recebido. Entre dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, o mais robusto e corajoso será absolvido; o mais débil, contudo, será condenado[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

37

Page 38: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Assim, Beccaria vem condenar definitivamente a tortura, elencando-a como prática

que serve apenas para favorecer as intenções maléficas dos poderosos que pretendem

culpar inocentes, infringindo-os sofrimentos insuportáveis, a fim de obter confissão.

Seguindo esse entendimento, além de outros crimes semelhantemente impactantes,

nossa Carta Política estabelece em seu art. 5º, inc. XLIII, que “a lei considerará crime

inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura,[...] por ele

respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

________________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

Todavia, mesmo diante do brilhantismo das concepções de Beccaria sobre

a tortura, que influenciaram gerações de juristas, bem como da sua proibição

constitucional expressa (art. 5º, inc. III, CF/88), fica a pergunta: por que ainda

pratica-se tortura em nosso país? É também sobre o que deve ter se questionado

Adriana de Andrade Roza, em seu estudo crítico sobre o tema, onde a mesma

afirma que apesar de encontrar-se formalmente extinta, a tortura ainda tem sido

praticada, principalmente nos países periféricos, vejamos:

“No entanto, são poucos os casos de tortura oficialmente registrados no Brasil, uma vez que quem é torturado sente-se quase sempre intimidado para denunciar os culpados; não é tão-somente uma questão de falta de coragem, mas também de medo de represálias por parte dos torturadores ou de membros das organizações/corporações da qual estes últimos, normalmente, fazem parte”17.

Não vou precisar recorrer à imagem deplorável do suplício de Damiens18,

nem a imagens de instrumentos de tortura medievais para ilustrar o significado

da tortura no presente texto. Tenho certeza que o Nobre Leitor do Século XXI

tem noção de que a tortura massacra, humilha e constrange, levando a vítima ao

desespero, fazendo com que confesse qualquer coisa para se ver livre daquele

sofrimento, demonstrando a covardia extrema daquele que a pratica. Covardia 17 ROZA, Adriana de Andrade. Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica. Revista de Informação

Legislativa. Brasília, ano 40 n. 158. abr/jun 2003, p. 330.18 Personagem com o qual Michel Foucault inicia a sua obra clássica (Vigiar e Punir), descrevendo o martírio do pobre

infeliz, sentenciado pela justiça criminal que vigorava na França antes da reforma do sistema penal então vigente, proporcionada pelo advento dos ideais iluministas, dos quais foi signatário o Marquês de Beccaria.

38

Page 39: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

ainda mais acentuada pela ocultação recorrente dessas práticas grotescas pelos

torturadores, conforme destaca o professor da Universidade Federal de

Pernambuco, Luciano Oliveira: “Esse costuma ser um dos traços marcantes que

caracterizam o uso da tortura no mundo moderno: sua indizibilidade”19. Portanto,

além de ser cruel e covarde, a prática da tortura é mascarada na sociedade,

primeiro porque muitos torturados têm medo de revelar a verdade, preferem

conviver sozinhos com essa dura verdade a correr o risco de passarem por tudo

de novo, ou pior, de serem mortos como represália dos torturadores. Depois

porque os torturadores tratam de esconder as suas barbaridades muito bem, já

que não deixam rastros, além de contarem com a proteção do corporativismo.

Em relatório sobre a tortura no Brasil, a Pastoral Carcerária, organização

mantida pela CNBB (a entidade faz uso da garantia constitucional da prestação

de assistência religiosa aos presos20 para acompanhar a situação das cadeias

brasileiras), revela um dado destacável, de que o corporativismo dos “Agentes do

Estado” constitui uma grande barreira para a erradicação da tortura no Brasil,

pois haveria um desinteresse em apurar casos de tortura contra presos, já que as

autoridades competentes para este exercício, como os juízes, delegados de

polícia e promotores de justiça, entre outros, estariam demonstrando pouca ou

nenhuma motivação em apurar, denunciar ou processar tais casos e

complementa sua denúncia, vejamos:

“Nos casos de tortura envolvendo agentes do Estado a produção de provas é frágil o corporativismo policial interfere diretamente nesta fase, não há muito empenho do Ministério Público nas denúncias e eles raramente utilizam os mecanismos internacionais contra a tortura ratificados pelo Brasil. Há uma grande desqualificação da fala da vítima durante o processo, que é colocada em dúvida diante das alegações de seu agressor, agente do Estado. Nas sentenças é comum encontrar questionamentos quanto às lesões constatadas na vítima, colocando em dúvida não somente a palavra da vítima, mas também a autoria do crime. Chega-se ao ponto de dizer que a própria vítima teria sido responsável pelos ferimentos. Esses posicionamentos revelam que a tortura ainda é, em grande medida, aceita e tolerada, inclusive por aqueles que deveriam condená-la e punir esse tipo de prática. Mesmo as corregedorias, de polícia e do judiciário, atuam geralmente mais em defesa dos agressores do que das vítimas.”21

19 OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história. A “vitória simbólica” dos vencidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 75, 2011, p. 10.

20 “É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva” (Inc. VII, Art. 5º, CF/88)

21 CNBB - Pastoral Carcerária. Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para a prevenção da tortura. São Paulo: 2010, p. 44.

39

Page 40: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Então, diante da constatação de que os agentes públicos, que deveriam

zelar pela garantia de respeito aos direitos humanos, expressamente positivada

em nossa Constituição e nos Tratados Internacionais dos quais nosso país é

signatário, não demonstrariam interesse em apurar os casos de tortura contra os

presos, surge novamente a pergunta: por que, mesmo diante do repúdio

expresso em nossa legislação ainda acontece tortura no Brasil? A resposta é

simples, pois de acordo com o que já foi defendido nesta obra, o sistema penal

tem característica seletiva, orientando sua atuação contra os excluídos sociais, os

indesejáveis, os torturáveis... É o que parecem propor Flávia Piovesan e

Fernando Salla, em artigo muito interessante, publicado na revista Ciência Hoje,

vejamos:

“O que faz com que essas práticas pareçam não ter fim? Várias razões. A mais importante, talvez, é que, no Brasil, as vítimas de tortura e maus-tratos provêm, em sua maioria, das camadas mais pobres da população. Nos períodos autoritários de nossa história, a tortura ocorre como recurso de combate à oposição política, quando então as vítimas são predominantemente da classe média ou da elite. Fora desses períodos, ela é praticada rotineiramente contra os autores ou suspeitos de crimes comuns provenientes das camadas pobres. A significativa diferença é que esses não têm os mesmos recursos para protestar e pressionar para que a tortura não mais ocorra, como em geral têm os perseguidos políticos. Assim, não podem contratar advogados capazes de impedir a prática de arbitrariedades. Da mesma forma que não contam com uma rede de relações pessoais articuladas com as esferas de poder que possam interceder em seu favor.”22

Dessa forma, considerando o caráter seletivista de nosso sistema penal,

trazemos o estudo realizado por Maria Gorete Marques de Jesus, onde a mesma

analisa os processos judiciais no âmbito da justiça paulista nos quais foram

julgadas supostas práticas de tortura. Segundo a autora, há uma distinção entre

os julgamentos nos quais figuram como réus agentes do Estado daqueles onde

são réus os não agentes do Estado, conforme poderemos verificar adiante,

vejamos então:

“Quando analisamos o desfecho processual de cada um dos réus, temos que dentre os 181 agentes do Estado acusados por crime de tortura, 127 foram absolvidos, 33 foram condenados por crime de tortura e 21 foram condenados por outro crime (lesão corporal ou maus tratos). Dentre os 12 civis acusados,

22 PIOVESAN, Flávia; SALLA, Fernando. Tortura no Brasil: pesadelo sem fim? Revista Ciência Hoje, vol. 30, nº 176, out. 2001, p. 32.

40

Page 41: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

três foram absolvidos, seis foram condenados por crime de tortura e três foram condenados por outro tipo penal[...]São especialmente relevantes o testemunho, a conduta do agressor e a vulnerabilidade da vítima quando os acusados são pessoa comum.Isso fica evidente na sentença quando verificamos quais foram os argumentos realçados pelo magistrado para basear sua decisão.Quando analisamos os processos envolvendo os agentes do Estado como agressores, foi possível perceber que a avaliação realizada durante o julgamento não tem como foco o acusado do crime de tortura, como nos casos envolvendo pais, mães, padrastros ou madrastas, mas sim a vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade[...]A condição da vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita criminosa, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda a credibilidade, principalmente por ser ele um agente do Estado[...]Não são raras expressões tais como: 'a vítima ostenta vasta lista de antecedentes criminais, o que demonstra que sua personalidade é voltada para a prática reiterada de crimes contra o patrimônio e contra a vida'[...][...]em que a defesa pode utilizar argumentos baseados na conduta do acusado para viabilizar sua defesa, alegando que o réu é trabalhador, bom pai, bom filho, bom marido, provedor do lar, etc. Da mesma forma pode desclassificar a vítima dizendo que a mesma não é digna de confiança porque é um condenado da justiça, um preso que apresenta 'vasta lista de antecedentes criminais', ou um adolescente autor de ato infracional que apresenta antecedentes criminais e que sua palavra de nada valeria como verdade[...]Outra diferença entre o julgamento dos processos envolvendo civis daqueles envolvendo agentes do Estado diz respeito à forma como esses casos são apurados e encaminhados para a justiça. Os primeiros são investigados num intervalo de três a seis meses, período em que são reunidas provas orais e periciais do crime[...] O número de testemunhas é bastante equilibrado, as de defesa correspondem ao equivalente ao número de testemunhas de acusação[...] Em praticamente todos os processos, existe exame de corpo de delito que indica as agressões presentes na vítima.Em relação aos processos envolvendo agentes do Estado como acusados, temos que a investigação pode demorar anos para ser finalizada, o que interfere sensivelmente no andamento do processo. Essa morosidade prejudica, principalmente, as provas orais[...]Muitas vezes, apesar das provas periciais comprovarem as agressões sofridas pela vítima, a autoria é desconsiderada porque o número de testemunhas que confirmam a prática de tortura é reduzido, de forma que o crime se torna quase irrelevante diante dos depoimentos das testemunhas de defesa e do acusado[...]”23

Assim, analisando-se o que foi acima exposto, oriundo desse brilhante

estudo, nota-se uma clara tendência nos processos que julgam denúncias de

tortura nos quais figuram como réus agentes do Estado em manter-se das mais

variadas formas a estigmatização dos apenados (supostas vítimas), utilizando

23 JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal. Um estudo dos processos de

tortura na cidade de São Paulo. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de

Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2009, pp. 229-232. 41

Page 42: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

isso em seu prejuízo no processo, dando a entender a existência de dois pesos e

duas medidas no julgamento dos referidos processos, reforçando ainda mais a

tese aqui defendida nesta obra de que o sistema penal tem como caráter

principal a sua seletividade, atuando como mecanismo de controle social

máximo, com foco maior nos excluídos sociais e destinado a fortalecer as

relações de desigualdade inerentes à ordem social mundial em vigor

(globalização), diante da qual apenas existirá para o mundo aquele que tem

capacidade de consumo. Nesse sentido, de posse dos mecanismos de controle

social, entre eles o monopólio da força legítima pelo Estado, o sistema sócio-

político-econômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos

indesejáveis”, incorrendo em um processo de criminalização das camadas menos

favorecidas, que são sempre alvo da persecução penal eficiente.

Assim, realizadas as presentes considerações, devemos continuar com

nosso estudo da magnífica obra de Beccaria.

________________________________________________________

Fonte inesgotável de princípios básicos do Direito Penal, Beccaria nos traz também

a essência dos procedimentos processuais praticados em nossa época, vejamos:

Quando o delito é constatado e as provas são certas, é justo que se conceda ao acusado o tempo e os meios para se justificar, se lhe for possível; é necessário, contudo, que tal tempo seja bem curto para não atrasar muito o castigo que deve acompanhar de perto o delito, se se quer que o mesmo seja um útil freio contra os criminosos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Nota-se que o autor tem imensa influência em vários institutos jurídicos presentes

em nosso ordenamento. Por exemplo, vemos aqui de forma embrionária os conceitos de

ampla defesa e contraditório, bem como do duplo grau de jurisdição, além da razoável

duração do processo, juntamente com os prazos processuais.

Nesse sentido, Beccaria vem dissertar sobre a prescrição dos crimes,

42

Page 43: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

estabelecendo como necessária a determinação por lei do período de investigação e de

julgamento a fim de que não se demore na aplicação do jus puniendi, tornando assim

inócua a atuação do Estado em seu direito de punir, conforme podemos ver a seguir:

Apenas posso apontar aqui princípios gerais. Para a sua aplicação exata, é necessário ter em vista a legislação existente, os costumes do país, as circunstâncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo que aceitasse as vantagens das penas moderadas, se as leis encurtassem ou aumentassem a duração dos processos e o tempo em que prescrevem de acordo com a gravidade do crime, se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem computados como parte da pena que o culpado merece, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos leves para um grande número de crimes.O tempo, porém, que é empregado na investigação das provas e o que determina a prescrição não devem ser aumentados em virtude da gravidade do delito que se persegue, pois, enquanto um crime não está provado, quanto mais atroz, menos verossímil. Será necessário, portanto, às vezes, reduzir o tempo de duração dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, segundo Beccaria, não é a gravidade do crime e sim a lei que deve

determinar o tempo investido na investigação e o que deve decorrer para a prescrição do

crime. Todos esses prazos devem estar previamente dispostos na lei para serem

cumpridos, submetendo todos acusados às mesmas condições, a fim de que não se

cometa injustiça na apuração da infração penal. Da mesma forma, quando o autor nos

informa que é preciso reduzir o tempo dos processos, podemos encontrar inserido nos

trechos acima o Princípio da Razoável Duração do Processo.

É também interessante notarmos a influência de Beccaria no regime de progressão

das penas presente em nosso Sistema Legal, bem como no instituto penal da “detração”,

vejamos então:

43

Page 44: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

[...]se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem computados como parte da pena que o culpado merece, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos leves para um grande número de crimes. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, a proposta feita por Beccaria há séculos, pode ser identificada hoje

em nosso Código Penal, na figura presente no art. 42, onde se estabelece que “computam-

se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão

provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em

qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.”

44

Page 45: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

IVDA MODERAÇÃO DAS PENAS

Nestes capítulos (XV ao XXII), Cesare Beccaria vem apresentar algumas espécies

de pena que eram praticadas em sua época, iniciando sua explanação com um comentário

sobre a necessidade da moderação das penas impostas na época, vejamos o seguinte

trecho:

“Quanto mais terríveis forem os castigos, tanto mais cheio de audácia será o culpado em evitá-los. Praticará novos crimes, para subtrair-se à pena que mereceu pelo primeiro. Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos. O mesmo espírito de ferocidade que ditava as leis de sangue ao legislador, colocava o punhal nas mãos do assassino e do parricida. Sobre o seu trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos somente imolavam os tiranos para arranjarem novos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Nesse trecho o autor recorre aos exemplos históricos para provar que nos regimes

políticos mais bárbaros e ferozes ocorriam os piores crimes, já que este era o espírito que

animava as sociedades da época. Em seguida, Beccaria vem tentar nos mostrar o efeito

que tais tratamentos provocam nas pessoas, endurecendo suas almas, tornando-as menos

sensíveis à violência, conforme a seguir:

“À proporção que os tormentos se tornam mais cruéis, a alma, idêntica aos fluidos que sempre ficam no mesmo nível dos objetos que os circundam, enenrijece-se pela renovação do espetáculo da barbárie. A gente acostuma-se aos tormentos atrozes; e, após cem anos de crueldades renovadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão. A fim de que o

45

Page 46: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

castigo surta o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal vá além do bem que o culpado retirou do crime. Devem ser contados ainda como parte do castigo os terrores que antecedem a execução e a perda das vantagens que o delito devia produzir. Qualquer excesso de severidade torna-se supérflua e, portanto, tirânica.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Nota-se que nesse ponto Beccaria começa a formular a idéia da proporcionalidade

entre as penas e os crimes correspondentes, de forma que uma pena excessivamente

cruel não contribuiria de forma alguma para a apuração da verdade e para a adequada

sanção do delito, visto que tornaria quem pune tão cruel quanto quem está sendo

condenado. Seguindo o raciocínio, o autor nos mostra a necessidade do caráter das penas

seguirem o avanço da humanidade, vejamos:

“São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito rude de um povo que abandona o estado selvagem. Para dominar o leão em fúria, é preciso o raio, cujo ruído apenas faz irritá-lo. Contudo, à medida que as almas se tornam mais brandas no estado social, o homem faz-se mais sensível; e, se se quiser conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação, as penas precisam ser menos rigorosas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, segundo o autor, o novo espírito que surgia com o avanço proporcionado

pela evolução da sociedade deveria estar presente também nas penas, tornando-as mais

humanas, a fim de acompanhar o caráter humanista das novas concepções da época.

A partir de agora o autor nos mostra as penas mais injustas praticadas em sua

época. Apesar de serem todas importantes, limitaremo-nos apenas às mais interessantes

para nosso estudo, iniciando pelos trechos nos quais nosso autor fala sobre pena de

morte, vejamos então:

“Diante do espetáculo dessa imensidade de tormentos que jamais tornaram melhores os homens, desejo examinar se a pena de morte é

46

Page 47: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

realmente útil e se é justa em um governo sábio. Quem poderia ter concedido a homens o direito de fazer degolar seus iguais? Tal direito não tem por certo a mesma origem que as leis que protegem. A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrifícar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Beccaria questiona a real utilidade da pena de morte, destacando tal prática como

um grande exagero do direito de punir do Estado, visto que este foi criado justamente

como resposta necessária ao caos político fundamentado sob um processo consensual de

sacrifício das parcelas de liberdades individuais. Assim, admitindo-se que o Estado seria

um consenso de vontades, dar a alguém, o direito de tirar a vida de outrem, segundo

proclma o autor, é uma incoerência com a própria origem do Estado, pois não se pode crer

que pessoas façam sacrifício de suas parcelas de liberdade, mediante um “acordo”

(Contrato Social) no qual incluam o risco às suas próprias vidas. Mais adiante, analisa a

ineficácia da pena de morte, conforme a seguir:

“O rigor do castigo faz menor efeito sobre o espírito do homem do que a duração da pena, pois a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente atingida por uma impressão ligeira, porém frequente, do que por abalo violento, porém passageiro. Todo ser sensível está dominado pelo império do hábito; e, como é este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer as suas necessidades, também é ele que inscreve no coração humano as ideias morais por de impressões reiteradas. O espetáculo atroz, porém momentâneo, da morte de um criminoso é um freio menos poderoso para o crime, do que a exemplo de um homem a quem se tira a liberdade, tornado até certo ponto uma besta de

47

Page 48: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

carga e que paga com trabalhos penosos o prejuízo que causou à sociedade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, mesmo sendo rigoroso, o caráter transitório da pena de morte não

produz o efeito esperado na punição do delito. Segundo Beccaria, sabendo que vai morrer,

o criminoso não se sentiria tão coagido a não praticar delitos quanto se soubesse que seria

forçado a uma pena longa a ser cumprida. Apesar de se mostrar de acordo com a pena de

trabalhos forçados, incoerente com nosso Ordenamento Jurídico, Beccaria mostra que

mesmo quando se propõe a punir o culpado por crime, a pena de morte mostra-se ineficaz.

Nesse sentido o autor complementa, reforçando a contradição entre o fundamento

do Estado e a autorização pelo mesmo da pena de morte, vejamos:

Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral, que detestam e punem o homicídio, autorizem um morticínio público, para desviar os cidadãos do assassínio? Quais são as leis mais justas e mais úteis? Aquelas que todos proporiam e desejariam cumprir, nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse público. Qual é o sentimento da maioria sobre a pena de morte? Está definido em caracteres indeléveis nos movimentos de indignação e de desprezo que nos causa apenas a visão do carrasco, que não é senão o executor inocente da vontade do povo, um cidadão honesto que contribui para o bem geral e defende a segurança do Estado no interior, do mesmo modo que o soldado cuida da sua defesa no exterior. Qual é, portanto, a origem de tal contradição? E porque esse sentimento de horror afronta a todos os esforços da razão? É porque em uma parte abscôndita de nossa alma, na qual os princípios naturais não foram ainda alterados, encontramos um sentimento que nos diz que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a existência de outro homem, e que apenas a necessidade, que por todos os recantos estende seu cetro de ferro, pode dispor da nossa vida”. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

48

Page 49: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Assim, Beccaria encerra sua análise da inutilidade da pena de morte mostrando a

incoerência que surge do fato de se punir o crime de assassinato com outro assassinato,

agindo em contradição com os fundamentos do direito de punir do Estado.

Mais adiante, Beccaria vem comentar as confiscações, prática comum naquela

época, vejamos:

“O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa, e faz o inocente sofrer os castigos que estão destinados aos culpados. Ainda pior, as confiscações podem tornar o homem de bem um criminoso, pois o arrastam ao crime, por reduzi-lo à indigência e ao desespero. E, além disso, não existe espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia, imersa nos horrores da indigência pelo delito do seu chefe, delito que essa família, submetida à autoridade do culpado, sujugada, não poderia prevenir, mesmo que dispusesse de meios para isso.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, tentando sempre analisar os institutos jurídicos sob a perspectiva utilitarista,

construindo assim uma abordagem pollítico-sociológica, o autor põe em cheque a real

eficácia de tal procedimento, visto que a tendência de uma pessoa que perdeu todos os

seus bens e encontra-se manchado com a marca da infâmia, desmerecido pela sociedade,

é de aproximar-se cada vez mais do crime. Nossa Carta Magna tem como direito

fundamental o mandamento presente no inciso do artigo 5°, onde se estabelece que

ninguém será privado de seus bens, da mesma forma que as penas de multa tem limites

estabelecidos na legislação penal e sua aplicação obedece a lógica da razoabilidade e da

proporcionalidade. Em seguida, Beccaria vem voltar sua atenção rapidamente para outra

prática antiga, conforme o trecho a seguir:

“A Infâmia é uma marca de desaprovação pública, que retira do culpado a consideração, a confiança que a sociedade depositava nele e essa espécie de irmandade que une os cidadãos de uma mesma nação. Como os efeit1os da infâmia não dependem, de modo algum, das leis, é

49

Page 50: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

necessário que a vergonha que a lei inflige esteja baseada na moral, ou na opinião pública.[...]As penas de infâmia devem ser raras, pois o emprego muito frequente do poder da opinião debilita a força da própria opinião. A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo, pois a infâmia de um grande número não é mais, em breve, a infâmia de ninguém.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Todos sabemos que a reputação de uma pessoa, mesmo hoje, em um tempo de

maiores garantias individuais, é algo que se bem preservado facilita a convivência em

sociedade. Situação que era diferente na época na qual o autor viveu, onde além das

penas dolorosas e desumanas a que era submetido, o culpado tinha seus bens

confiscados e ainda vivia marcado pela infâmia, uma pena de base absurdamente injusta,

manifestada através de um controle social extremo, que dependendo da rejeição praticada

contra o indivíduo, poderia até mesmo ser pior do que a própria pena, visto que relegava a

pessoa a uma vida de humilhação e desconsideração, derrubando cada vez mais a moral

do indivíduo, sem oportunidade alguma de recuperação social. Um princípio presente em

nosso Ordenamento Jurídico que evidencia a preocupação do sistema com a aplicação

justa da pena, nem pra mais, nem pra menos, é o Princípio do Non Bis In Idem, onde não

se pode condenar alguém duas vezes pelo mesmo fato.

Se consideramos Beccaria atual pela repercussão de sua obra e a influência da

mesma em nosso Sistema Criminal, no trecho seguinte ele será considerado atual por

dissertar sobre um problema que parece não ter evoluído muito de sua época pra cá,

vejamos então:

“Se a prisão constitui somente uma maneira de deter o cidadão até que ele seja considerado culpado, como tal processo é angustioso e cruel, deve, na medida do possível, amenizar-e o rigor e a duração. Um cidadão preso deve ficar na prisão apenas o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos têm o direito de ser julgados em primeiro lugar. O réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de fugir ou de esconder as provas do

50

Page 51: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

crime. O próprio processo deve ser levaso sem protelações. Que contraste tremendo entre a preguiça de um juiz e o desespero de um acusado! De um lado, um magistrado sem sensibilidade, que passa os dias no bem-estar e nas delícias, e de outro um desgraçado que definha, chorando no fundo de uma cela abominável.Os efeitos do castigo que acompanha o crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para aqueles que o testemunharam; existirá, contudo, necessidade de que esse castigo seja tão cruel para aquele que o sofre? Quando os homens se reuniram em sociedade, foi apenas para se sujeitarem aos mínimos males possíveis; e não há país que possa negar esse princípio incontestável.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Não precisamos de um exame muito detalhado do trecho supra para que passemos

a identificar uma realidade semelhante a que encontramos em nossas cadeias nos dias

atuais. Presos cumprindo prisões provisórias, aguardando um julgamento que parece

nunca acontecer, muitos encarcerados há anos, mesmo tendo praticado crimes de pouco

potencial ofensivo ou envolvendo valores financeiros insignificantes, submetidos a um

sistema penal lento e ineficaz, protagonizando cenas que não estão muito longe do que

narra Beccaria no trecho acima grifado. Pois que, mais de duzentos anos depois de

escrito, as palavras contidas no pequeno livro do Marquês amoldam-se ao panorama atual

de nosso Sistema Processual-prisional.

______________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

Sobre a perspectiva das condições de nosso sistema penitenciário, um dos

instrumentos da política criminal, creio que nenhum de nós que não tenha

experimentado na pele a dura realidade das prisões brasileiras possua condições

de ter plena consciência da falácia que é vendida como promessa de

ressocialização dos apenados. Uma parte sombria de um todo injusto chamado

de “Sistema Penal” (o nome em si já diz o seu intuito), que não cumpre outra

51

Page 52: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

função (não social) senão a de “selecionar” aqueles que expiarão os pecados da

sociedade, pelo bem da comunidade. Ou seja, na prática, o sistema penal em

vigor não cumpre outra tarefa senão a de tirar do convívio da sociedade aqueles

nos quais se consegue colar com eficiência a etiqueta de “criminoso”, de “não

consumidor”, pois nessa sociedade globalizada onde só existe no mundo quem

tem poder aquisitivo, quem não dispõe desse “atestado de boa conduta” está

sempre correndo o risco de ser alvo da mira da lei. É a essa essência seletivista

do sistema penal a que se refere Maria Lúcia Karam, no volume 1 de seu

brilhante livro, conforme a seguir:

“A função real do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução de estruturas dominantes já bastaria para demonstrá-lo. A seleção dos indivíduos que, processados e condenados, vão ser demonizados e etiquetados como 'criminosos' – assim cumprindo o papel do 'outro', do 'mau', do 'perigoso' e, agora, do 'inimigo' – necessariamente se faz de forma preferencial entre os mais vulneráveis, entre os desprovidos de poder, entre os marginalizados e excluídos.”24

Portanto, conforme as palavras da juíza aposentada do TJRJ25, o sistema

penal existe como instância máxima de controle social, mas de um controle

direcionado aos já excluídos pela própria “regra do jogo” da sociedade. É nesse

sentido que a autora complementa mais adiante, vejamos:

“No Brasil, isso é evidente; as estatísticas são até dispensáveis. De todo modo, vale mencionar que os censos, periodicamente realizados pelo Ministério da Justiça do Brasil, têm classificado como absolutamente pobres entre 90 e 95% dos internos no sistema penitenciário brasileiro.”26

Diante do exposto, Nobre Leitor, tomo a liberdade de fazer uso de um

jargão popular: só não vê quem não quer! Luiz Eduardo Soares, antropólogo e

cientista político (coautor de Elite da Tropa), traz em seu último livro um exemplo

muito claro da ineficácia social, pra não dizer da injustiça, que esse sistema penal

praticado em nosso país pode proporcionar, através da estória de dois rapazes

24 KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade: recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. v.1 Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 25.

25 A autora assina vários livros sobre política criminal. É presidente da filial brasileira da Law Enforcement Against Prohibition, organização internacional que defende a legalização das drogas mediante um sistema de regulação e controle. Atuou durante 08 (oito) anos como juíza de direito na justiça criminal, segundo seu histórico pessoal, disponível em: http://www.leapbrasil.com.br/quem-somos/diretores.

26 KARAM, ibid, p. 26.52

Page 53: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

que portavam droga no mesmo local (apenas com uma diferença, um deles

pobre, negro e mal vestido e o outro rico, branco e bem vestido), ele reproduz

um contexto social sobre o qual muitos de nós já devemos ter ouvido falar de

algo parecido, vejamos então:

“Dois adolescentes de 15 anos[...] estão em uma padaria no momento em que uma senhora dá pela falta de sua carteira, deduz que a furtaram e pede socorro: 'Déus do céu, levaram meu dinheiro!' Um policial que toma café com lei, pão e manteiga, à paisana, puxa a arma e ordena, com a boca cheia mas ansioso por cumprir seu dever: 'Ninguém sai.' Dirige-se à porta, passa os olhos de sobrevoo pelos fregueses e escolhe o suspeito. Não preciso lhe dizer quem foi brindado pela sorte, ou pelo azar. Todos os fregueses se retiram do estabelecimento, enquanto o sargento revista o jovem negro e malvestido.

O outro rapaz escapa lívido, trêmulo, mas sem dar bandeira. Carrega no bolso várias trouxinhas de maconha que acabara de comprar no morro próximo à padaria para servir aos convidados em sua festa de aniversário, que estava marcada para o próximo sábado.

[...]O rapaz malvestido não furtara a carteira da senhora. Quem levou o dinheiro? Ninguém jamais descobriria.

[...]Na porta da padaria acontece o flagrante. O menino tenta explicar, mas as trouxinhas são numerosas e permitem seu enquadramento no crime de tráfico.

[...]Levado para a delegacia, encaminhado ao juiz, o menino acaba sendo internado em uma instituição para cumprir 'medida socioeducativa'.

[...]Tudo o que o cerca (espaço, temperatura, higiene, abordagem, alimentação, atividades ou o ócio tedioso) lhe envia a mesma mensagem, em diferentes registros, por meio das estranhas linguagens silenciosas dos objetos e dos gestos: 'Ei cara, você não presta; você nada vale. Se está em um lugar que parece depósito de gente, se está na lixeira, é porque você é igual aos demais que ali estão e é mesmo o lixo da sociedade.'

Aos poucos, com a insistência dessa mensagem, reproduzida dia e noite, o jovem começa a assimilá-la, inconscientemente.

[...]Vestindo a máscara que a experiência punitiva confeccionou, o jovem volta ao convívio da sociedade, repleto de ódio, mágoa, ressentimento, com a autoestima devastada e, não raro, disposto a merecer o estigma que a Justiça carimbou em sua testa.Já que o supõem violento, criminoso, irrecuperável, o adolescente prepara-se para agir em conformidade com o que esperam dele.

[...]O que terá acontecido ao rapaz de classe média que escapou à 'dura' policial na padaria? Ele desceu da favela ao lado daquele que foi capturado. Tinha no bols a mesma quantidade de maconha. Graças ao seu jeito mauricinho, filhinho de papai, passou impune. Salvou-se porque não correspondia ao esteótipo do traficante.”27

A estória acima, parecida com a história (grifo) de milhares de

brasileiros, que são penalizados por serem pobres, traz em seu bojo a essência

do sistema penal em vigor: a seletividade. São histórias como essa que nos

fazem perguntar por que um empresário, que nega direitos trabalhistas

27 SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, pp. 50-57.

53

Page 54: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

fundamentais a cidadãos que dependem desse dinheiro para sustentar suas

famílias, não são levados à Justiça para responder por esse “crime”. São fatos

como esse, corriqueiros em nosso dia a dia, que nos fazem questionar por que

fabricantes de bebida alcóolica, que bombardeiam a mídia com campanhas

publicitárias diárias, nunca são responsabilizados por conduzirem

subliminarmente o consumidor à dependência do álcool, com sua eficácia

publicitária, que sabemos é real. São histórias como essa que nos fazem

perguntar por que os corruptos (vejam que não limitei a corrupção aos políticos),

dos quais o país está repleto, não respondem a processos criminais por

provocarem estragos enormes às finanças públicas, desviando dinheiro que faz

falta para a melhoria das escolas públicas e o aparelhamento da saúde pública.

Talvez a resposta seja mais simples do que parece. Exatamente porque a

“sociedade” (pra não dizer os poderosos) decidiu rotular como crime apenas as

condutas que têm o potencial de serem praticadas pela grande massa

socialmente excluída (em especial aqueles tipos penais mais frequentes nos

noticiários – furto, receptação, etc...), deixando de fora da definição de crime,

portanto de fora do alcance do Judiciário, as condutas geralmente praticadas por

pessoas pertencentes às classes dominantes, por pessoas de grande influência

política e econômica. Na prática, o sistema penal é feito pra tirar de circulação

aqueles que não têm poder de consumo, com um sistema penitenciário

planejado para falhar de propósito, a fim de “estocar” pessoas indesejáveis.

Assim, consultando novamente as palavras do professor da UFPE Luciano

Oliveira, expressas em seu artigo: “A fé e a montanha: notas sobre a ideia de

ressocialização penal”, podemos entender a contradição que se encontra na

falaciosa finalidade da ressocialização penal frente à característica mais evidente

das nossas prisões, que funcionam como verdadeiras universidades do crime,

pois sem nenhum critério “amontoam-se” num mesmo lugar prisioneiros de difícil

recuperação junto àqueles que cometeram um único crime, criando juntamente

com as péssimas condições de alimentação, higiene e sáude um ambiente

desfavorável à ressocialização. Ademais, a maior contradição talvez esteja na

própria essência do sistema penal, conforme alerta o professor: “Quem se faz

essa pergunta a sério constata que a prisão, pelo menos como lugar de

54

Page 55: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

ressocialização, é uma ideia às voltas com uma incongruência fundamental:

como seria possível reinserir alguém na sociedade segregando-o dela?”28

Eu, dentro de minha humilde concepção, perguntaria mais ainda: por que

falamos em ressocializar, reinserir, ao invés de reconhecer que aqueles a quem se

convencionou chamar de criminosos são parte da sociedade? Que o que

chamamos de crime é inerente à sociedade, pois sua distribuição desigual de

renda favorece a sua ocorrência e é mais honesto criar condições que acabem

com as desigualdades sociais, tornando a vida mais justa pra todos do que

insistir em banir do nosso convívio pessoas inadequadas socialmente?

Manter um sistema prisional nessas condições, sem qualquer respeito ao

mandamento constitucional da individualização da pena29, onde pessoas são

simplesmente jogadas dentro de uma caixa de concreto, sem critério nenhum,

sujeitas à influência de criminosos mais experientes, formando uma espécie de

sociedade paralela, funciona apenas como um meio de perpetuar ainda mais a

dita criminalidade, conforme assevera mais adiante o professor Luciano Oliveira,

a seguir:

“E aqui o paradoxo é total: como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio da sociedade e o incapacita, por essa forma, para as práticas da sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a sociedade dos cativos, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária?”30.

Assim, enquanto não houver um mínimo de vontade política (honesta) em

mudar esse sistema prisional excludente para um sistema verdadeiramente

inclusivo e pedagógico, reservando a privação da liberdade apenas aos casos

mais graves e de difícil recuperação, não conseguiremos sequer começar a

pensar em mudança desse patamar extremamente ineficiente de nosso sistema

penal atual.

28 OLIVEIRA, Luciano. A fé e a montanha: notas sobre a ideia de ressocialização penal. Versão escrita da intervenção oral no painel Violência e Sistema Prisional realizado na Universidade Católica de Pernambuco em 29/05/2008. Disponível em: <www.quecazzo.blogspot.com.br/2008/07/f-e-monyanha-notas-sobre-idea-de.html>. Acesso em: 11/07/2013.

29 “A lei regulará a individualização da pena[...]” (Art. 5º, Inc. XLVI, CF/88)30 OLIVEIRA, op. cit.

55

Page 56: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Portanto, consideradas as especulações acima, continuemos com nossa

análise da obra de Beccaria em confronto com nosso ordenamento.

________________________________________________________

Em seguida, encontraremos mais alusões à necessidade da celeridade processual e

eficiência do sistema prisional, conforme poderemos ver a seguir:

O rigor do suplício não é o que previne os delitos com maior segurança, porém a certeza da punição[...]Às vezes, abstemo-nos de punir um crime pouco importante, quando o ofendido perdoa. É um ato benevolente, porém contrário ao interesse público.[...]O direito de castigar não pertence a qualquer cidadão em particular; é das leis, que são o órgão da vontade geral. Um cidadão ofendido pode deixar de valer-se de sua parte desse direito, porém não tem qualquer poder sobre as dos outros. Quando as penas se tiverem feito menos cruéis, a clemência e o perdão serão menos necessários.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, Beccaria vem nos trazer novamente a origem do Direito de Punir para

estabelecer o caráter público do mesmo. De forma que, segundo o autor, a humanização

das penas, em conjunto com a atividade estatal que convencionamos chamar de jus

puniendi constituem a maneira mais eficaz de punir devidamente os criminosos pela

prática de seus atos. É aqui que o autor trabalha o efeito coercitivo da lei, diante do qual a

certeza da “punição” pela prática de condutas delituosas, sendo submetido a um aparato

estatal protegido por leis elaboradas em acordo com a vontade pública darão um efeito

muito mais eficaz do que as penas cruéis e extremas. Assim, o autor vem novamente

trazer idéias que influenciaram juristas ao longo dos séculos, operando mudanças

significativas na forma como o mundo ocidental tratava dos Delitos e das Penas, tendo seu

pensamento presente nos Princípios Gerais e Institutos Fundamentais de nosso Sistema

Legal.

56

Page 57: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

VQUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONAIS AOS DELITOS

Nos capítulos XXIII, XXIV e XXV o autor estabelece a necessidade de se atribuir

penas proporcionais aos delitos, além de que os mesmos devem ser divididos de acordo

com a gravidade de sua ameaça à sociedade. É exatamente neste ponto que chegamos à

essência do pensamento de Beccaria, que balançou toda a estrutura do “Antigo Regime”,

trazendo uma nova perspectiva para o Direito Penal, os Processos Criminais e a Aplicação

das Penas, influenciando várias constituições, inclusive a nossa Carta Magna, repleta de

institutos jurídicos baseados em suas ideias. Nesse sentido, o autor vem invocar a ameaça

ao “Bem Público” como medida da gravidade dos delitos, devendo as penas serem mais

ou menos severas em função dessa gravidade, vejamos então:

“O interesse geral não é apenas que se cometam poucos crimes, mas ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para impedir os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, segundo o autor, por ser o delito uma ameaça ao bem comum, uma conduta

reprovável pela sociedade, seu impacto deve ser medido de acordo com o grau de ameaça

que a conduta produz à coletividade e aos principais valores que norteiam a sociedade,

estabelecendo-se penas mais rigorosas para aquelas condutas que oferecem uma maior

ameaça ao bem-público e penas menos rigorosas para as de menor potencial ofensivo.

Não é preciso ser especialista em Direito Penal para perceber a influência de tal

pensamento em nossa Ciência Criminal, visto que as penas presentes no código penal são

previamente cominadas obedecendo uma proporção entre elas e os delitos que se

destinam a prevenir e punir. Baseado nisso, Beccaria estende seu raciocínio, observando

mais um indício da ineficácia na maneira de punir do “Antigo Regime”, pois, devido sua

57

Page 58: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

postura meramente vingativa, assumia um caráter paleativo, temporário e isolado, sem se

preocupar com o efeito secundário que as práticas ocasionariam, vejamos:

“Se o prazer e o sofrimento são os dois grandes motores dos seres sensíveis; se, entre as razões que guiam os homens em todas as suas atitudes, o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e os castigos; se dois desses crimes que afetam desigualmente a sociedade recebem idêntico castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo de recear uma pena maior para o crime mais hediondo, resolver-se-á com mais facilidade pelo crime que lhe traga mais vantagens; e a distribuição desigual das penas fará nascer a contradição, tanto notória quando frequente, de que as leis terão de castigar os delitos que fizeram nascer.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, aplicar a mesma pena a dois delitos de características completamente

diferentes provocaria uma contradição de difícil reparação, já que diante da certeza da

mesma pena para qualquer um dos delitos, o homem com traços de personalidade

voltados para a delinquência não hesitaria em praticar o crime que maior vantagem possa

proporcionar. Em vários trechos vemos a preocupação do autor em mostrar que o Estado

não deveria apenas “punir”, mas ao mesmo tempo proporcionar um corpo de leis no qual

seus efeitos também servissem como forma de prevenção dos delitos, trabalhando no

sentido de coibir a prática dos mesmos. É seguramente uma crítica ao “Antigo Regime”,

onde priorizava-se a vingança pessoal, aplicando-se rigor máximo (grifo) a qualquer

delito, por menor que fosse a ameaça que representasse. Portanto, havendo uma

proporção clara entre cada pena e o crime para o qual se destina, evita-se punir dois

crimes diferentes com a mesma pena.

Assim, a lei, além de determinar os crimes e suas respectivas penas, deveria ser

escrita de forma que causasse um efeito coercitivo, fazendo com que o destinatário da

norma conseguisse entender claramente o caráter delituoso de determinada prática,

evitando assim realizá-la. Vários são os críticos das Teorias Preventivas, apontando

inúmeras lacunas nas mesmas. Nossa humilde crítica a essa teoria, em especial às idéias

58

Page 59: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

de Beccaria, reside no fato de que foram direcionadas para um homem “Racional” dentro

da concepção iluminista, ou seja, um ser humano em sua plenitude de liberdade, que faz

um uso extremamente crítico da razão, completamente livre de preconceitos e dogmas,

com condições de avaliar de forma cristalina todos os efeitos de suas ações, evitando o

caminho que a luz da razão aponte como errado.

Ocorre que tal concepção, apesar de influenciar nossa sociedade atual, não previu

os efeitos futuros do Capitalismo Industrial sobre a humanidade, sendo pensada apenas

para uma sociedade linear, ao contrário do caráter estratificado que presenciamos hoje em

dia. As inúmeras classes sociais existentes e seus respectivos valores formam um imenso

mosaico de meio ambientes, várias subculturas onde em cada uma delas um indivíduo

encontrará diferentes motivações para a prática do delito. Nesse momento, a melhor

pergunta a ser feita é como um “bicho-homem”, que nasceu na miséria e foi criado nela,

sem acesso a nenhuma vantagem da sociedade, tratado desde sua mais tenra idade com

descaso e indiferença, como tal indivíduo pode ter condições de entender o caráter

delituoso de sua conduta, já que para ele aquilo é normal, pois foi apenas isso que ele

testemunhou em toda a sua vida?

De qualquer forma, apesar das críticas à “ingenuidade” de Beccaria, as suas

considerações são de importância histórica para nossa sociedade, pois constituem as

primeiras preocupações bem elaboradas de prevenção ao crime, consubstanciando-se em

uma das primeiras intenções de se elaborar uma Política Criminal, não merecendo serem

abandonadas totalmente, mas sim adaptadas à realidade atual. Nesse sentido, o autor

continua sua reflexão beneficiado pela sua visão ampla de economista, apontando as

contradições da visão que imperavam no Direito Criminal daquela época, vejamos:

“Se for estabelecido um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para aquele que mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um documento importante, em pouco tempo não se procederá mais nenhuma diferença entre esses crimes; serão destruídos no coração do homem os sentimentos da moral, obra de muitos séculos, cimentada em ondas de sangue, firmada muito lentamente através de mil obstáculos, edifício que

59

Page 60: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

apenas se pode erguer com o auxílio das mais excelsas razões e o aparato das mais solenes formalidades.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, utilizando-se de uma análise histórica da construção dos principais

valores morais presentes no inconsciente coletivo, o autor vem sugerir que a falta de

critério na proporcionalidade das penas em relação aos delitos poderia gerar uma espécie

de Anomia (num sentido puramente durkheimeano – ausência de regras), já que, de

acordo com o autor, tal situação poderia acarretar a banalização dos crimes, eliminando

aos poucos todo o conceito moral por trás do delito, destruindo lentamente a solidariedade

social, de forma que a proporção entre os delitos e as penas mostra-se extremamente

necessária para a manutenção da Paz Social.

Em seguida, chegamos ao ápice da pequena grande obra de Beccaria, onde o autor

vem concluir seu exame da necessidade da proporção entre penas e delitos,

estabelecendo como argumento principal, o mesmo embasamento filosófico que dá

suporte ao Direito de Punir do Estado, além de eleger o legislador como o responsável por

atribuir as proporções adequadas entre delitos e penas, de forma a evitar injustiças,

conforme veremos a seguir:

“Tendo-se como necessária a reunião dos homens em sociedade, de acordo com convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular, encontrar-se-á uma progressão de delitos, dos quais o maior será o que tende à destruição da própria sociedade. Os crimes menores serão as ofensas cometidas contra particulares. Entre essas duas extremidades ficarão compreendidos todos os atos que se opõem ao bem público, desde o mais criminoso até o menos passível de culpa. Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário estabelecer e buscar uma progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das

60

Page 61: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

penas proporcionadas aos crimes e que, principalmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Portanto, considerando que o Direito de Punir é fruto direto do consenso entre os

indivíduos que fazem parte de uma nação, segundo o autor, as mesmas parcelas de

liberdade que os homens em estado de natureza concordaram em sacrificar para a

manutenção da Ordem Social (Contrato Social) dão suporte à necessidade da progressão

das penas e dos crimes, atribuindo valores aos delitos, determinando que a sanção deve

ser proporcional à gravidade da ameaça que a conduta oferece à sociedade.

A importância do pensamento de Beccaria para o nosso ordenamento Jurídico é

inegável, haja vista a fixação da pena presente em nosso Código Penal ter sofrido

influência de suas ideias, já que o art. 68, CP, estabelece que a pena-base será fixada e

individualizada, aplicando-se a mesma de forma necessária e adequada à necessidade da

retribuição à sociedade e da prevenção de delitos futuros, atendendo-se ao critério do art.

59, de nosso Código Penal, conforme a seguir:

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”31 (grifo nosso)

Diante do exposto, a fixação da pena, sem desprezar o efeito de reprovação

(Controle Social), considera fatos subjetivos, individualiza-a e aplica a lei adequadamente a

cada caso concreto, tornando mais justa a atividade punitiva do Estado. O caput do art. 59,

CP, abriga em sua redação os Princípios Gerais do Direito Penal inspirados nas ideias do

sábio Marquês, de forma que podemos identificar em atuação neste diploma legal

princípios como o da Legalidade Penal, da Dignidade da pessoa Humana, da Intervenção

Mínima do Direito Penal, entre outros. Ao final, resta completamente manifesta a sintonia

com o pensamento de Beccaria do trecho no qual se prevê que a pena será estabelecida

31 Art. 59, Código Penal Brasileiro. 61

Page 62: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

conforme seja “necessário e suficiente” para reprovação e prevenção do crime,

caracterizando a devida proporção entre os delitos e as penas a eles atribuídas.

______________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

A proporcionalidade das penas constitui acima de tudo a essência do

pensamento de Beccaria e um dos princípios cruciais do Direito Penal em nosso

Ordenamento Jurídico. Conforme visto acima, a aplicação da pena imprescinde

de seu estabelecimento na medida exata para se garantir a reprovação e a

prevenção do crime, manifestando assim, um juízo de proporcionalidade e de

individualização da pena.

Muitas vezes a leitura dessas expressões que a lei transporta em si tem a

capacidade de inspirar em nós um sentimento de justiça, diante do qual a

previsão legal por si só de um critério de proporcionalidade na aplicação da pena

tem o potencial de nos fazer crer que o sistema penal alcança a equidade plena,

pois o juiz teria simplesmente a tarefa de adequar o caso concreto aos critérios

de aplicação da pena previstos em lei. Portanto, quando a lei fala em pena,

quantidade de pena e regime de cumprimento conforme seja necessário e

suficiente (grifo), vem nos fazer acreditar que o juiz, ao sancionar a pena em

concreto estará realizando justiça, aplicando de forma proporcional a sanção

adequada ao delito praticado.

Contudo, atrevo-me aqui a supor que esse critério de proporcionalidade

pode estar mascarando a real injustiça por trás de nosso sistema penal, já que

na aplicação da pena, apesar de representar o Estado, o magistrado atua apenas

dentro do Judiciário, não atingindo a totalidade complexa e multicultural de um

Estado (Democrático) de Direito como o nosso, resumindo a proporcionalidade

na aplicação da pena a critérios formalmente legais, praticando uma visão

positivista do Direito. A pena apenas condena formalmente o condenado a

cumprir um período de privação de sua liberdade em um estabelecimento

mantido pelo Estado, sem considerar a crescente superpopulação carcerária, a

62

Page 63: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

falta de critério na convivência entre criminosos habituais e condenados por

apenas um crime, a atuação humilhante e (re)estigmatizadora dos agentes

públicos que agem com excesso na execução da pena, enfim, todas as condições

desumanas e cruéis às quais os apenados são submetidos. Ou seja, na prática, a

execução da pena aplicada ao condenado possui um leque de condições

ambientais nocivas e práticas desumanizadas que acompanham a mesma e

terminam por agravar aquilo que o juiz, baseado em critérios legais, havia

definido como necessário e suficiente para reprovar e prevenir os crimes,

descaracterizando a proporção entre o delito praticado e a pena imposta.

Luiz Eduardo Soares vai um pouco mais além, pois considera todo esse

excesso velado de punição um crime do Estado contra os condenados, conforme

alerta em seu livro, a seguir:

“Observemos mais de perto o que ocorre no Brasil hoje. A imensa maioria dos presos é submetida a todos esses excedentes de pena descritos no parágrafo anterior. Claro que isso constitui uma ilegalidade. Afinal a sentença judicial está sendo descumprida. Esse descumprimento representa uma transgressão legal. E quem comete o crime, nesse caso, é o próprio Estado, especialmente o Executivo, responsável pela execução da sentença que o Judiciário determina. Imagina que situação complicada e contraditória: ao punir crimes o Estado comete outros.”32

Ouso ainda adicionar ao pensamento do ilustre sociólogo a prática de

abuso de poder pelo Estado, o que nos remete novamente ao caráter de

seletividade da Legislação Penal brasileira, que prevê como crime apenas

condutas que têm o potencial de serem praticadas pelas massas excluídas da

sociedade. Ficando ausentes da tipificação como crimes as condutas praticadas

pelas classes dominantes. Por que isso? O Estado também não pode cometer

crimes? Esse descaso com a execução efetivamente proporcional da pena não

seria um crime do Estado contra os condenados? O autor complementa seu

raciocínio:

“O problema é que vigoram dois pesos e duas medidas. O peso da mão do Estado sobre o indivíduo que transgride é incomparavelmente mais ágil do que a intervenção que a Justiça e o Ministério Público promovem contra o representante do poder Executivo que contraria a legalidade. São raros os juízes das varas de execução que cumprem com rigor seu dever e efetivamente fiscalizam o sistema penitenciário. Se o fizessem, estes juízes se

32 SOARES, op. cit., p.115.63

Page 64: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

veriam com frequência diante da necessidade de determinar remoção de presos, a libertação de outros e a interdição de cadeias públicas e penitenciárias.”33

Difícil acreditar que essa situação tenha alguma perspectiva de mudança,

pois como já debatemos acima o Estado não cumpre nem mesmo o mínimo de

garantias a direitos fundamentais dos condenados que a Constituição

determina34, quem dirá pensar em mudar a visão de toda a sociedade sobre a

problemática do sistema penal brasileiro?

Assim, diante de tais considerações, passemos a dar continuidade ao

nosso estudo comparativo da obra “Dos Delitos e das Penas”, marco sem

precedentes dos alicerces de nosso Direito Penal.

________________________________________________________

33 SOARES, ibid, p. 115.34“A pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do

apenado e é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” (Art. 5º, incs. XLVIII e XLIX, CF/88)64

Page 65: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

VIDA PREVENÇÃO DOS CRIMES

Dado o caráter utilitarista de suas colocações, presentes no livro em comento,

Beccaria não poderia terminá-lo sem enfatizar a importância da prevenção dos crimes para

a sociedade, vejamos:

É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, o autor vem nos trazer um verdadeiro “Postulado” de nossa Ciência Criminal,

inevitavelmente presente em qualquer teoria que se preze a estudar Política Criminal,

ensejando a formulação da máxima de que é melhor prevenir o Crime do que ter que arcar

com os gastos gigantescos que a repressão do crime enseja. De forma que o autor já em

sua época parecia prever o que aconteceria dois séculos depois em vários países do

mundo, as mazelas sociais causadas pelo crescimento sem freios da economia mundial,

que desprezou completamente as limitações do ser humano e da natureza em prol de um

progresso que não atingiu a todos equitativamente, relegando muitos à marginalização,

sem dar oportunidade alguma de participarem dos benefícios da sociedade. O efeito disso

todos sabemos, seres humanos transformados em “Animais”, pois que a razão de sermos

humanos é o fato de sermos dotados de cultura, do contrário seríamos apenas bichos,

repetindo a programação biológica que a natureza impõe. Portanto, prevenir não se

resume apenas a evitar que os crimes ocorram pura e simplesmente, constitui-se na tarefa

de criar um ambiente que proporcione o convívio social saudável, onde as pessoas vivam

em condição de igualdade de oportunidades, com o suporte de uma “Legislação Justa e

Eficaz” para se atingir tal objetivo, haja vista a lei ser a manifestação jurídica da vontade

65

Page 66: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

geral.

Nesse sentido, o autor vem complementar o raciocínio, alertando sobre o cuidado

que deve ser tomado no exagero da lei, vejamos, então:

“Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se houvesse necessidade de proibir-lhe tudo o que pudesse lhe ser ocasião de praticar o mal? Seria preciso começar por tirar-lhe o uso dos sentidos. Para uma causa que impele os homens a cometer um delito, existem mil outras que os impelem a ações indiferentes, que apenas são delitos perante as leis más. Ora, quanto mais se estender a esfera dos delitos, tanto mais se fará com que sejam praticados, pois se verão os crimes aumentarem à proporção que as razões de crimes especificados pelas leis forem mais numerosas, especialmente se a maioria de tais leis não forem mais do que privilégios de um pequeno número de senhores.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Dessa forma, o cuidado na formulação das leis penais também contribui para a

prevenção, haja vista seus mandamentos limitarem os atos dos indivíduos da sociedade.

De forma que, se a Lei Penal for extremamente ampla, elegendo um número sem

fim de condutas como delituosas, os indivíduos da sociedade encontrar-se-ão quase todos

delinquentes, haja vista não sobrarem mais condutas que não constituam crimes para

serem praticadas. Essa é uma prática comum dos tiranos, proibir tudo a todos (grifo),

como forma de castrar o indivíduo, de torná-lo impotente perante a perversidade de quem

impõe o Poder. Nesse sentido, o autor vem novamente invocar a necessidade da

elaboração de leis que todos os indivíduos possam ler e compreender, vejamos:

“Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma

66

Page 67: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

fonte nefasta de delitos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, Beccaria vem nos mostrar novamente a importância de uma legislação de

fácil entendimento por todos, tendo em vista o fato de que passando-se as leis a serem

conhecidas por um grande número de pessoas, já que segundo ele, se os homens

souberem os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a

certeza da punição evitará a ocorrência de mais crimes, da mesma forma que a sociedade

não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo pelos tiranos.

Após investigar os meios de se prevenir os crimes, o autor finaliza este capítulo

alertando sobre a maneira mais eficaz de evitar os descaminhos sociais, a “Educação”,

conforme poderemos ver a seguir:

“Finalmente, a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos propensos à prática do mal, é aperfeiçoar a educação. O assunto é muito vasto para caber nos limites que me prescrevi. Ouso, contudo, dizer que está tão intimamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo árido e cultivado só por um pequeno número de sábios, até chegarem os séculos ainda distantes em que as leis não terão outra finalidade senão a felicidade do povo.Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido, desenvolveu as máximas principais de uma educação verdadeiramente útil. Fez ver que ela consistia muito menos na confusa multidão dos assuntos que se apresentam às crianças, do que na escolha e na precisão com as quais se lhes são expostos. Provou que é preciso trocar as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre enseja ao espírito do aluno.Ensinou a encaminhar as crianças para a virtude, pela estrada arejada do sentimento, a afastá-las do mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que acompanham a má ação.Demonstrou que o método incerto da autoridade

67

Page 68: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

severa teria de ser posto de lado, pois produz apenas uma obediência hipócrita e passageira.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Ante o exposto, Beccaria vem eleger a Educação como o meio mais seguro de se

prevenir a ocorrência de crimes, destacando sua importância no esclarecimento dos

indivíduos, haja vista sua falta favorecer a tirania dos governos, manifestada através do

monopólio do conhecimento por poucos, privando as pessoas das oportunidades e de seus

direitos.

Nesse intuito, vem fazer alusão a Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista que

fora duramente perseguido em virtude de um trecho seu sobre a “Profissão de Fé do

Vigário Savoiano” presente em sua obra Emílio, ou da Educação, um ensaio filosófico-

pedagógico sob a forma de romance que procura orientar a educação da criança, evitando

que se torne “má”, seguindo a teoria iluminista do homem naturalmente bom,

desenvolvendo as potencialidades inerentes desta fase da vida humana de forma

progressiva, no sentido da adaptação das necessidades individuais ao desenvolvimento do

cidadão humano. Tal livro hoje é considerado por muitos como o primeiro Tratado sobre a

Filosofia da Educação no mundo ocidental.

Dessa forma, o autor nos traz que o autoritarismo e a violência geram ainda mais

autoritarismo e violência, visto que é baseado apenas na força, que a obediência devida a

regimes assim é hipócrita e apenas se sustenta durante o tempo no qual a tirania atua,

pois afastando-se o medo do tirano, encerra-se a influência que o mesmo exercia

anteriormente. Portanto, segundo o autor, o conhecimento liberta as pessoas, visto que se

a educação atuar de forma que todos conheçam claramente seus direitos e deveres, a

sociedade se sustentará justa por mais tempo, proporcionando iguais condições a todos,

criando portanto ambiente favorável a prevenção do crime, sem necessidade de repressão.

É uma “Utopia”, mas quantos sonhos considerados impossíveis já não se realizaram

em nossa humanidade?

_______________________________________________________

PONTO DE REFLEXÃO:

Viver em uma sociedade na qual não se precise mais de aparatos estatais 68

Page 69: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

repressores atuando no controle social não deixa de ser um sonho distante, uma

utopia, que cada um de nós guarda com carinho em seus desejos mais

profundos, mesmo que a convivência com a realidade social e política trate de

deixar esse sonho cada vez mais distante de nossos corações. Aproveitando o

gancho da utopia, não custa conferir as palavras de Maria Lúcia Karam sobre a

utopia da abolição do sistema penal, vejamos:

“De todo modo, não parece que a abolição do sistema penal seja tão somente uma utopia. A abolição do sistema penal é muito mais uma consequência lógica do caminho a percorrer nos esforços da humanidade por concretizar e aprofundar o modelo do Estado de direito democrático, por concretizar e aprofundar os direitos fundamentais.”35

Contudo, mesmo considerando os avanços que nosso Estado de Direito

(Democrático?) alcançou, se compararmos com o período negro da ditadura que

surgiu do golpe militar de 64, devemos ter em mente que ainda existe um

caminho muito longo a ser trilhado. A atuação de nossas polícias em meio às

manifestações que ocorreram durante e logo após a copa das confederações

deste ano (2013) é um indicador claro disso.

A perspectiva de Beccaria sobre os fins da pena (é preferível prevenir os

crimes do que punir) encerra a teoria dos fins da pena chamada de Prevenção

Geral da Pena, da qual foram adeptos Feuerbach e J. Bentham. Todavia, a

configuração do atual sistema penal, orientado acima de tudo para a punição

retributiva, parece contradizer sobretudo a sua própria origem, supostamente

preventiva. Nesse sentido, apesar de já se falar em “Nova Prevenção”

(miscigenação dos mecanismos de controle social formais e informais – patrulha

no bairro, UPPs, etc...), o paradigma da “Prevenção Penal”, parece recair sempre

na ingenuidade, atuando mediante a expectativa de uma atitude negativa do

cidadão (proibição de condutas), de aplicação duvidosa à realidade fragmentada

e multicultural da sociedade atual, especialmente nossa sociedade brasileira, que

se encontra completamente imersa nos efeitos da globalização.

A seletividade do sistema penal é a sua marca registrada, tudo isso

baseado em um discurso convicente, pois utiliza-se do medo da população, mas

que na prática aponta apenas para determinados grupos sociais (os excluídos do

35 KARAM, op. cit., p. 50.69

Page 70: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

mercado formal de trabalho) como grupos que “supostamente” teriam maior

propensão à prática do crime. Entretanto, um olhar mais atento para essa

perspectiva talvez possa revelar uma das maiores, senão a maior dentre as

contradições presentes no sistema penal em vigor. Façamos por um momento o

breve exercício de supor que a prevenção preocupa-se realmente em evitar que

os “criminosos em potencial” realizem alguma conduta delituosa e que o

fundamento da “Prevenção Geral” teria como finalidade exclusiva “tutelar os bens

jurídicos de maior importância para a sociedade”, assumindo assim uma

importância maior diante dos outros ramos do Direito Público. Ora, se fosse esse

realmente o seu principal objetivo (prevenir crimes), o Estado trataria de cumprir

os diversos institutos garantidores dos diversos direitos fundamentais presentes

em nossa Constituição. Contudo, não é isso que vemos na prática, pois a

educação continua uma falácia e a saúde pública um instrumento de humilhação

social. Conforme nos assevera Maria Lúcia Karam, que revela:

“O sistema penal que só atua negativamente – aliás, em todos os sentidos, mas, aqui, no sentido de atuar proibindo condutas, intervindo somente após o fato acontecido, para impor a pena como consequência criminalizada – é contraditoriamente apresentado como um instrumento de atuação positiva.As supostas obrigações criminalizadoras são extraídas de uma leitura distorcida da Constituição. O que os dispositivos garantidores da proteção de direitos fundamentais, assentados nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, ordenam ao Estado são intervenções positivas que criem condições materiais – econômicas, sociais e políticas – para a efetiva realização daqueles direitos, o que, mesmo para quem ilusoriamente acredita na reação punitiva, não implica em intervenção do sistema penal.”36

Portanto, dessa leitura distorcida da Constituição mencionada pela autora,

nascem os pressupostos fundamentadores de nosso sistema penal, diante dos

quais se passa a superestimar a necessidade da manutenção de um sistema

penal baseado em controle social previsto em lei e na punição como expiação

para “mau comportamento”, subestimando a necessidade da criação pelo Estado

de condições econômicas, políticas e sociais que dêem suporte à promoção da

equidade para todos, sem distinção. Eis que surge uma incoerência gritante em

nosso Estado de Direito (Democrático?), pois é fácil constatar que a “Lei” é

rigorosamente obedecida quando se quer punir quem pratica crimes, mas é

36 KARAM, op. cit., p. 29.70

Page 71: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

desobedecida no momento de se promover bem-estar e justiça social para todos,

conforme preceitua muito claramente nossa Carta Política.37

Nesse sentido, frente às intervenções positivas destinadas a garantir a

existência e a proteção aos Direitos Fundamentais Karam complementa:

“São ações como essas, de natureza positiva, promotoras de direitos, e não ações negativas, proibitivas de condutas, que se fazem obrigatórias e eficazes na atuação do Estado para proteção dos direitos fundamentais ditos de natureza social.”38

Do exposto, surge a pergunta: qual é a prioridade, vigiar e punir ou criar

condições sociais verdadeiramente justas para a população? Afinado com essa

perspectiva, a exemplo de Foucault, Luiz Eduardo Soares elege nosso sistema

penal como um monumento ao fracasso civilizatório, vejamos:

“Submeter uma pessoa ao regime de privação de liberdade é uma declaração de impotência ou de fracasso de nossa parte. Como não sabemos o que fazer diante desses desafios, recuamos ao instrumento rudimentar e primitivo, ao mecanismo medieval e obscurantista do aprisionamento.Prisões são testemunhos de fracasso civilizatório e prova de nosso atraso em matéria de procedimentos judiciais.”39

Dessa forma, se realmente fosse intenção do Estado, mediante o sistema

penal em vigor, assegurar a proteção aos bens mais valiosos à sociedade (vida e

liberdade – pelo menos em teoria), existiriam também aparatos estatais de

eficácia plena na garantia dos Direitos Fundamentais portadores da mesma

eficiência com a qual o sistema penal em vigor, na prática, rotula e exclui

socialmente. Portanto, desfazendo a ilusão da ressocialização, se o Estado não

fornece dignidade humana aos cidadãos através de políticas públicas eficientes,

garantidoras de “Educação e Saúde”, dentre outros Direitos Fundamentais, como

esperar que seja seu interesse prevenir crimes e reinserir dignamente os

apenados à sociedade? Não sei para o respeitado leitor, mas para mim está claro

que o sistema penal, da forma como se encontra em nosso ordenamento,

cumpre muito mais a função de legitimador da exclusão social do que de protetor

37 “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (grifei).” (Art. 193, CF/88)

38 KARAM, op. cit., p. 31.39 SOARES, op. cit., p.103.

71

Page 72: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

dos bens mais sensíveis da sociedade.

Feitas as presentes considerações, continuemos com nosso estudo da

obra de Beccaria.

________________________________________________________

72

Page 73: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

VIIBECCARIA CONCLUI

Após contemplar-se o conteúdo extenso, sistematizado e valiosíssimo do livro de

Beccaria, aqui destacado por meio de seus trechos de maior importância e afinidade com o

nosso Ordenamento Jurídico, é natural imaginarmos que a conclusão do competente autor

seria extensa e detalhada.

Todavia, como para o autor não faltaram argumentos para embasar sua obra,

acabou dizendo tudo que tinha pra falar, reservando apenas poucas linhas para a

conclusão, a seguir:

“De tudo o que acaba de ser exposto, pode-se deduzir um teorema geral de muita utilidade, porém pouco conforme ao uso, que é o legislador comum dos países: É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Entretanto, conforme podemos constatar acima, não é necessariamente o tamanho

do texto que indica sua qualidade e sim o conteúdo. Assim, finalizaremos nosso estudo

com a análise de trechos dessa conclusão de Beccaria à luz dos Princípios do Direito

Penal e Processual Penal, dos Direitos e Garantias Fundamentais e demais dispositivos

existentes em nosso Ordenamento Jurídico, conforme será constatado nos trechos

seguintes, vejamos:

“É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial,[...] ” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

No trecho destacado, percebemos claramente a intenção de se evitar o exagero na

aplicação da sanção penal, a fim de se tratar o condenado como qualquer ser humano

73

Page 74: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

deve ser tratado, com respeito e dignidade, fazendo-o pagar apenas pelo crime que

cometeu, baseado nas sanções impostas por lei, pois o Direito Penal e o Processo Penal

não devem constituir meios de manifestação da injustiça, posto que seus objetivos

mínimos são os de nomear as condutas delituosas e fornecer os meios para o julgamento

das mesmas, além de regulamentar a execução das sanções. A partir do momento que

Beccaria, animado pelo espírito do Iluminismo, define que a violência na aplicação das

penas deve ser evitada, antecipou um dos princípios basilares de nosso Ordenamento

Jurídico, o da Humanidade, mandamento republicano presente no art. 1º, inc. III, de nossa

Carta Magna, aqui estabelecido como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático

de Direito: “a dignidade da pessoa humana”. Tal princípio, assim como outros presentes em

nosso ordenamento, desdobra-se em vários outros mandamentos, como por exemplo, o

disposto no inc. III, do art. 5º, CF, onde se estabelece que "ninguém será submetido a

tortura nem a tratamento desumano ou degradante", bem como o previsto no inciso XLIX,

do art. 5º, da mesma Carta, que assegura "aos presos o respeito à integridade física e

moral", mandamentos protetores do reconhecimento da “dignidade inerente a todos os

membros da família humana”, conforme nos informa a Declaração Universal dos Direitos

do Homem.

Seguindo os ensinamentos de Beccaria, constataremos que muitos foram os

julgamentos secretos realizados a fim de mascarar a injustiças praticadas pelos tiranos,

vejamos:

“a pena deve ser, de modo essencial,[...] pública[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Assim, nosso autor vem nos trazer, séculos antes de nossa Carta Magna ser

promulgada, o “Princípio da Publicidade dos Atos Processuais”, norma constitucional

presente no art. 5º, inc. LX, determinando que “A lei só poderá restringir a publicidade dos

atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.” Como

uma das garantias individuais em nosso ordenamento, tal princípio vem criar uma proteção

no sentido de se evitar a prática de abusos, exageros e omissões na atuação dos órgãos

julgadores, constituindo uma ferramenta eficaz de controle social sobre tais órgãos do

Poder Judiciário, a fim de se evitar acusações secretas, prisões arbitrárias, perseguições a

74

Page 75: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

inimigos políticos, entre outras ilegalidades na aplicação da pena. Nesse sentido, nossa

Constituição tem em seu texto um dispositivo regulador da atividade do Magistrado,

presente no art. 93, inc. IX, onde se determina que “todos os julgamentos dos órgãos do

Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de

nulidade[...]”, de forma que não devem existir atuações secretas e obscuras do Judiciário,

em virtude do caráter Democrático de nosso Estado de Direito.

Além de nos adiantar a publicidade dos julgamentos, Beccaria traz em sua pequena

conclusão outra característica essencial da pena, vejamos então:

“a pena deve ser, de modo essencial,[...] pronta[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Em suas sábias palavras o autor vem redigir a célula-mãe do “Princípio da Reserva

Legal”, constante do inc. XXXIX, art. 5º, de nossa Carta Política, o qual nos diz que

“[...]não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, somente a lei pode prescrever

penas aos delitos elencados por ela, ilegitimando qualquer forma de punição que não seja

determinada pela mesma, submetendo todos os cidadãos, de acordo com o Princípio da

Igualdade, à mesma fonte de aplicação da pena.

Da mesma forma que a pena deve ser determinada por lei, o autor vem nos trazer

também o caráter necessário da mesma, conforme a seguir:

“a pena deve ser, de modo essencial,[...] necessária[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Portanto, sendo a pena necessária, sua aplicação deve ser realizada na medida

exata da culpabilidade do condenado, nada mais do que isso, a fim de que a pena cumpra

sua função jurídico-social. Dessa forma, vemos aqui a pré-formulação do Princípio da

Fragmentariedade do Direito Penal, visto que este limita-se a condenar apenas as ações

mais graves, previstas em lei, que lesem efetivamente os bens jurídicos mais relevantes,

excluindo de sua atuação aquelas condutas que não oferecem perigo aos bens acima

referidos.

Em seguida, nosso grande “Filósofo do Saber Criminológico” nos traz outra

consequência inevitável dos Princípios da Legalidade e da Reserva Legal, vejamos:75

Page 76: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

“a pena deve ser, de modo essencial,[...] a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Temos diante de nós o “Princípio da Intervenção Mínima”, pois quando Beccaria nos

diz que “a pena deve ser, de modo essencial, a menor das penas aplicáveis nas

circunstâncias dadas” ele intenta dizer que para a obtenção do equilíbrio da ordem

jurídica ameaçada somente devem ser utilizadas as sanções penais se todas as outras

medidas não incriminadoras falharem em sua atuação, determinando assim o caráter de

ultima ratio do Direito Penal.

Fechando sua conclusão, Beccaria vem nos trazer a essência de seu trabalho

escrito, os Princípios da Legalidade, da Proporcionalidade e da Individualização da Pena,

vejamos:

“a pena deve ser, de modo essencial,[...] proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)

Portanto, ao determinar que a pena deve ser proporcionada ao delito, Beccaria vem

indicar o Princípio da Proporcionalidade, estabelecendo o caráter biunívoco da pena, onde

cada conduta reprovável deve corresponder a uma pena cominada, obtendo como

corolário dessa relação a individualização da mesma, já que se a conduta reprovável é

praticada por um indivíduo e a pena é a prevista em lei para a conduta, aplicada na medida

de sua culpabilidade, extrai-se que a pena é individualizada, levando em consideração o

crime praticado, a pessoa do agente e a pena prevista em lei, além de outras

circunstâncias também previstas em lei. Encontramos a individualização da pena em nossa

Carta Magna no art. 5º, incs. XLV, onde é previsto que “nenhuma pena passará da pessoa

do condenado” e XLVI, onde se determina que “a lei regulará a individualização da pena”.

Ao informar que a pena deve ser determinada pela lei, o autor encerra o Princípio

da Legalidade Penal, presente em nosso Ordenamento Jurídico no art. 5º, inc. XXXIX, de

nossa Constituição Federal e art. 1º, caput, de nosso Código Penal, onde se prevê que

“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

76

Page 77: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final, após estudarmos esta Pérola da Doutrina Jurídica, concluímos sua

inestimável importância para nossas Leis e Processos Criminais atuais. O conteúdo

presente nesta obra revolucionou o modo de se pensar a aplicação das penas, levando

juristas e legisladores a reformular as leis e os processos penais, eliminando as práticas

desumanas que eram “legalmente” empregadas até então.

Acreditamos que ainda falta muito para a espécie humana atingir o panorama ideal

nas relações sociais, a fim de se criar um mundo seguro para todos, repleto de

solidariedade, harmonia e felicidade. Muitos dirão que isso é uma utopia, mas será que

não foi justamente isso que Beccaria ouviu de alguns diante da nova concepção que

propunha? O certo é que a racionalidade, a versatilidade e a persistência do autor, traços

comuns aos grandes ícones da Humanidade, permitiram que Cesare Beccaria nos

brindasse com seu livro, influenciando gerações, mostrando que nem tudo é impossível.

Beccaria é sem dúvida um dos seres humanos mais importantes para a história de

nossas sociedades, pois produziu uma obra muito à frente de seu tempo, fornecendo-nos

um verdadeiro tratado sobre o estudo dos crimes e das penas. Superado por

pouquíssimos, seu livro mudou a concepção do Direito Penal, inserindo a abordagem

humanista nesse ramo do conhecimento, servindo de referência para o estudo do Direito

Penal e dos Direitos Humanos até os dias de hoje, pouco mais de dois séculos após sua

publicação.

________________________________________________________

PONTO FINAL DE REFLEXÃO:

No sentido de encerrar e sintetizar, apenas no interior desta singela obra,

as reflexões acerca dos temas abordados, relacionados ou derivados do conteúdo

do livro de Beccaria, chegamos ao último ponto de reflexão deste pequeno livro,

com o intuito inevitável de estimular a discussão do presente assunto.

77

Page 78: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

O Sistema Penal Brasileiro (fazem parte deste conceito o Direito Penal, o

Processual Penal, as Políticas Públicas de “Segurança”, etc... - numa visão mais

ampla - sistêmica) merece uma reforma urgente, mas não apenas ele, nós

brasileiros merecemos uma reforma urgente. Todos os dias reclamamos dos

políticos que temos e da sociedade na qual vivemos, mas esquecemos que nós

somos a sociedade e nós elegemos os políticos. Apesar de não serem aplicados

tanto como deveriam, os valores da cidadania e da dignidade humana estão

positivados em nossa Constituição. Apesar de passarmos décadas sem dar

importância, a legitimidade do nosso poder encontra-se estampada em nossa

Carta Política, onde se estabelece que todo o poder emana do povo. Os políticos

são apenas nossos representantes, eles devem trabalhar por nós e não o

contrário. De acordo com a Constituição (Art. 1º, Parágrafo único, CF/88), temos

a possibilidade de exercer o Poder Político de forma direta, nos termos da mesma

Constituição, mas talvez precisemos de “termos melhores”, que nos permitam

uma maior participação na vontade do Estado, que nos permitam uma maior

participação na decisão do uso dos bens do Estado. Quando deixarmos de aceitar

de cabeça baixa os salários e as verbas monumentais que pagamos aos nossos

“representantes” com o dinheiro de nossos impostos, poderemos pensar em

mudança. Quando não nos dermos mais por satisfeitos com os cargos

comissionados que ganhamos dos políticos e que calam nossas bocas,

poderemos pensar em ação contra a corrupção.

O novo sopro de vida trazido para nossa Democracia pelas manifestações

ocorridas durante a copa das confederações mostrou que esses “poderosos” não

são tão absolutos assim e que suas estruturas podem ser balançadas. O caminho

para um mundo “sem violência”, passa necessariamente pela vontade de

construir um mundo sem desigualdades sociais. É extremamente urgente a

criação de novos e eficientes mecanismos de participação direta do povo nos

negócios do Estado brasileiro. Enquanto continuarmos repassando a

responsabilidade do nosso Estado de Direito (Democrático) para outros,

assinando um cheque em branco, ficaremos rendidos, à mercê de um sistema

corrupto e injusto.

78

Page 79: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Pensando e agindo assim poderemos mudar o nosso país e

consequentemente, junto com outras mudanças, mudaremos o Direito Penal, que

não é nada mais do que reflexo da política social do Estado, servindo muito mais

como instrumento seletivo de inabilitação dos indesejáveis: os não consumidores.

Pensando e agindo assim poderemos finalmente dar o primeiro passo

para o objetivo imediato de um Direito Penal mínimo, a fim de se atingir o

objetivo mediato de abolição do sistema penal, para que ao invés de

conjugarmos o verbo ressocializar passemos a conjugar o verbo reintegrar

socialmente40, para que possamos viver em um país que tenha empregos com

salários dignos, moradia para todos, saúde e educação gratuitas e de qualidade

para todos... Utopia com a qual me dou ao desfrute de continuar sonhando.

Devemos atender ao chamado feito por Beccaria em sua obra, onde o

mesmo, há mais de dois séculos atrás, já nos alertava sobre a importância do

aperfeiçoamento da Educação para a sociedade e do seu papel na prevenção da

ocorrência de crimes. Contudo, da mesma forma que alguns dos ideais de

Beccaria foram pensados para homens de sua época, a Educação da qual

precisamos é outra, mais afinada com nossas necessidades. Precisamos de uma

educação que não seja exclusivamente tecnicista e que não se preocupe apenas

em formar mão de obra e contigente de consumidores para o sistema econômico

globalizado. Urge uma educação que forme cidadãos acima de tudo,

preocupados com a dignidade da pessoa humana e com a obtenção da justiça

social, mandamento constitucional há muito esquecido em nossas práticas

sociais. Uma educação que não seja castradora, que não trate o homem como

coisa, que não trate o aprendizado apenas como meta estatística a ser atingida...

Precisamos de uma educação que pratique uma formação humanista da

sociedade, uma educação que não veja teoria e prática como dicotomias e que

passe a vê-las como tese e antítese em diálogo contínuo, que entenda o homem

e a mulher como seres inacabados em processo de diálogo constante com o

mundo e com a sociedade. Uma educação que não se baseie na ideologia

neoliberal desesperançosa, fatalista e antiutópica, criadora de acomodação ao

40 Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Disponível em:<www.egov.ufsc/portal/criminologia-crítica-e-reforma-da-legislação-penal>. Acesso em: 22/07/2013.

79

Page 80: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

mundo e negadora de transformação social41 e que não seja mera transferência

de conteúdo. Uma educação que entenda o ser humano em “sua interação com a

realidade, que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática

transformadora”42.

Ainda precisamos fazer a sociedade entender de verdade, sem discursos

de aparência, que o homem e a mulher precisam de uma educação libertadora,

uma educação como prática da liberdade, e não como prática do aprisionamento

ideológico.

De tudo que foi exposto, diante das considerações realizadas na presente

obra, fica a mensagem de paz e esperança, alimentada pelo sonho infantil de um

dia vivermos em um mundo sem nenhum tipo de violência, principalmente sem a

violência velada, que os tiranos praticam contra os mais fracos, contra os

hipossuficientes, que por vezes nem percebem que seus direitos fundamentais

são lesados covardemente, que por vezes nem sabem que têm direitos...

Fica como mensagem a esperança ingênua, de que um dia viveremos em

um mundo repleto de paz e felicidade, onde ninguém se importará com o carro

que você anda, com a roupa que você veste ou com as posses você tem; onde

todos viveremos como irmãos. Um mundo no qual não mais veremos

moralismos, onde não temeremos o outro, nem tampouco exploraremos a mão

de obra da maioria... Um lugar no futuro onde não precisaremos mais falar a

expressão dignidade humana, pois ela será parte constante do inconsciente

coletivo. É essa esperança ingênua sem a qual não vivemos que nos impele a

continuar nossa jornada e tentarmos aprender uns com os outros a nos

tornarmos “seres mais humanos” a cada dia.

Sendo assim, não poderia me despedir sem finalizar essa mensagem

fazendo uso das palavras de um dos maiores músicos e compositores que

passaram pelo nosso planeta e que foi tragicamente tirado do nosso convívio,

mas que sua poesia ainda reside em nossos corações...

41 Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 143.

42 Ver FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de oliviera. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 75.

80

Page 81: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

“...You may say I´m a dreamer,but I´m not the only one

I hope some day you´ll join usAnd the world will live as one”

Imagine - John Lennon________________________________________________________

81

Page 82: Lívio Silva Dos Delitos e das Penas no Ordenamento ... · PDF filecomercial. O mundo ocidental ... “Ponto de Reflexão”, ... O autor continua sua crítica à referida legislação

Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos:Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

O AUTOR

Nascido no ano de 1973, Lívio Silva é natural de Recife, Pernambuco e tem desenvolvido interesse

nas áreas de Ciências Jurídicas, Filosofia, Sociologia, Ciência Política, entre outras. Além de Bacharel em

Direito, tem um livro de Ficção Científica publicado e artigos sobre Direito em revistas eletrônicas

especializadas, desenvolvendo também atividades na área musical.

O livro “Dos Delitos e das Penas”, obra-prima de Cesare Beccaria, é de uma importância sem

dimensão para o Direito Penal atual, pois foi a primeira voz a se rebelar contra a tirania da tradição jurídica e

a legislação penal de seu período, conhecido como o Antigo Regime. Que formemos a partir de agora uma

nova voz contra o sistema penal seletivista e mantenedor de desigualdades sociais.

Lívio Silva na Internet:

www.naletradalei.wordpress.comBlog Jurídico

www.humanoecidadao.wordpress.comBlog sobre Direitos Humanos

www.escrevologoreflito.wordpress.comBlog Autoral

82