Álvaro de Campos VIAGEM -...

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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4402 Álvaro de Campos VIAGEM VIAGEM Sonhar um sonho é perder outro. Tristonho Fito a ponte pesada e calma. . . Cada sonho é um existir de outro sonho Ó eterna desterrada em ti própria, ó minha alma! Sinto em meu corpo mais conscientemente O rodar estremecido do comboio. Pára?. . . Com um como que intento intermitente De (. . .) mal-roda, estaca. Numa estação, clara De realidade e gente e movimento. Olho p’ra fora. . . Cesso. Estagno em mim. Resfolgar da máquina. . . Carícia de vento Pela janela que se abre. . . Estou desatento. . . Parar. . . seguir. . . parar. . . Isto é sem fim Ó o horror da chegada! Ó horror. Ó nunca chegares, ó ferro em trémulo seguir! À margem da viagem prossegue. . . Trunca A realidade, passa ao lado do ir E pelo lado interior da Hora Foge, usa a eternidade, vive. . . Sobrevive ao momento (. . .) vai! Suavemente. . . suavemente, mais suavemente e demora (. . .) entra na gare. . . Range-se. . . estaca. . . É agora! Tudo o que fui de sonho, o eu-outro que tive Resvala-me pela alma. . . Negro declive Resvala, some-se, para sempre se esvai 1/2 Obra Aberta · 2015-06-08 02:11

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Álvaro de Campos

VIAGEM

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Sonhar um sonho é perder outro. TristonhoFito a ponte pesada e calma. . .Cada sonho é um existir de outro sonhoÓ eterna desterrada em ti própria, ó minha alma!

Sinto em meu corpo mais conscientementeO rodar estremecido do comboio. Pára?. . .Com um como que intento intermitenteDe (. . .) mal-roda, estaca. Numa estação, clara

De realidade e gente e movimento.Olho p’ra fora. . . Cesso. Estagno em mim.Resfolgar da máquina. . . Carícia de ventoPela janela que se abre. . . Estou desatento. . .Parar. . . seguir. . . parar. . . Isto é sem fim

Ó o horror da chegada! Ó horror. Ó nuncachegares, ó ferro em trémulo seguir!À margem da viagem prossegue. . . TruncaA realidade, passa ao lado do irE pelo lado interior da HoraFoge, usa a eternidade, vive. . .Sobrevive ao momento (. . .) vai!Suavemente. . . suavemente, mais suavemente e demora(. . .) entra na gare. . . Range-se. . . estaca. . . É agora!

Tudo o que fui de sonho, o eu-outro que tiveResvala-me pela alma. . . Negro decliveResvala, some-se, para sempre se esvai

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E da minha consciência um Eu que não obtiveDentro em mim de mim cai.

s. d.

Álvaro de Campos — Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição,organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 4.

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